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O poder - História natural de seu crescimento - Bertrand de Jouvenel, Notas de estudo de Engenharia Mecânica

O poder história de seu crescimento

Tipologia: Notas de estudo

2018
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Baixe O poder - História natural de seu crescimento - Bertrand de Jouvenel e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Mecânica, somente na Docsity! BERTRAND DE JOUVENEL O PODER | história natural de seu crescimento | EDITORA PEIXOTO NETO COLEÇÃO TEORIA POLÍTICA 1 Do século XIl ao século XVII, o poder público não cessou de aumentar. O fenômeno era reconhe- cido por todas as testemu- nhas, evocava protestos sempre renovados e re- ações violentas. Desde então, ele continuou a crescer num ritmo acele- rado, estendendo a guerra à medida que ele próprio se estendia. E então não o reconhecemos mais, não protestamos mais, não re- agimos mais. Essa passividade inteira- mente nova é devida à bru- ma que envolve o Poder. Palau Fe lagia ASI Ee II manifestado na pessoa do Rei, que se declarava um senhor e cujas paixões eram conhecidas. Hoje, mascarado por seu anonimato, ele pretende não ter existência própria, ser apenas o instrumento impessoal e sem paixão da vontade geral. Por uma ficção, que uns chamam uma abstração, afirma-se que a vontade geral, que na realidade O Poder História natural de seu crescimento Bertrand de Jouvenel O Poder História natural de seu crescimento Tradução de Paulo Neves Pe�tõNeto 6 • Bertrand de Jouvenel deixava livre a entrada e, mais livre ainda, o emprego desses meios! Aí está o que dirigiu minha atenção neste livro a todos os que tiveram a preo, cupação de limitar o poder, embora nem sempre por sabedoria social, e sim, com frequência, por interesse. Mas, enfim, o problema colocava,se claramente depois de tão funesta experiência. Problema raramente discutido - e incomparavelmente me, nos depois da aventura napoleônica. Será porque uma infelicidade tão extraordinária devia, por essa razão, permanecer única? Aceitemos essa hipótese. Aliás, alegremo,nos com os grandes progressos feitos depois da guerra nos serviços sociais. Mas nem por isso negligenciemos o inquietante contraste entre o formidável cres, cimento que se produz nos meios do Poder e a frouxidão no controle de seu emprego, até mesmo na principal potência democrática. Concentração dos poderes, monarquização do comando, segredo das grandes decisões, não são fatos que nos obrigam a pensar? A integração não é menor no domínio econômico. É a época das grandes torres e não da praça pública. Por isso este livro, cujos graves defeitos reconheço, permanece talvez oportuno. Quanto eu gostaria que ele não o fosse! Bertrand de Jouvenel janeiro de 1972 Tendo Constant Bourquin falecido depois da redação desse prefácio, quero dizer o que lhe devo. Ele veio pedir,me em Saint-Saphorin o manuscrito que havia anterior, mente recebido as recusas de vários editores estabelecidos, forneceu,nos meios de existência de que estávamos desprovidos ao extremo, preparou a publicação com amor, e teve o delicado pensamento de fazer imprimir um exemplar para o senhor e a senhora Daniel Tlúroux, nome que consta, va em nossas carteiras de identidade forjadas na França e que devíamos continuar usando na Suíça. Foi para mim bem mais do que um editor: um amigo dos dias difíceis. Bertrand de Jouvenel janeiro de 1977 7 Principais obras de Bertrand de Jouvenel �Économie Dirigée. Le Programme de la Nouvelle Géneration. Librairie Va, lois, 1928. Vers les État,Unis d'Europe. Librairie Valois, 1930. La Crise du Capitalisme Américain. Gallimard, 1933. Le Réveil de l'Europe. Gallimard, 1938. D'une Guerre à l'.Autre. Calmann,Lévy, 1940,1941, t. 1., De Versailles à Lo, carna, t. II La Décomposition de l'Europe Libérale (1925,1931). Apres da Défaite. Plon, 1941. Napoléon et l'Économie Dirigée, le Blocus Continental. Paris: La Toison d'Or, 1942. Du Pouvoir, Histoire Naturelle de sa Croissance. Genebra: Le Cheval ailé, 1945; nova ed. Paris: Hachette, 1972. Raisons de Craindre, Raison d'Espérer. Paris: Le Portulan, 1947, t. I, Quelle Europe?, t. II, Les Passions en Marche. Problemes de l'.Angleterre Socialis, te ou l'Échec d'une Expérience. La Table Ronde, 1947. The Ethics of Redistribution. Cambridge University Press, 1951. De la Souveraineté. Librairie de Médicis, 1955. The Pure Theory of Poütics. Cambridge University Press, 1963. Trad. fran, cesa: De la Poütique Pure. Calmann,Lévy. (Teoria pura de política. Trad. port. Maria Eduarda Bastos. Lisboa: Guimarães, 1975.) r.:Art de la Conjecture: Futuribles. Mônaco: Éditions du Rocher, 1964. (A arte da conjectura. São Paulo: Duas Cidades, 1968.) Arcadie, Essais sur le Mieux,vivre. Paris: SEDEIS, 1968. 11 12 • Bertrand de Jouvenel Du Principat et Autres Réflexions Politiques. Paris: Hachette, 1972. La Civilisation de Puissance. Fayard, 1976. Les Origines de l'État Modeme. Fayard, 1976. (Origens do estado moderno: uma história das ideias políticas do século XIX. Trad. port. Mamede de Souza Freitas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.) Sumário APRESENTAÇÃO DO MINOTAURO A explicação imediata ________________ 24 O progresso da guerra 25 Os reis em busca de exércitos 25 Extensão do Poder, extensão da guerra 27 Os homens pegos pela guerra 29 Sobrevivência do Poder absoluto 30 O Minotauro mascarado 32 O Minotauro de rosto descoberto 34 O Minotauro é onipresente 35 Livro 1 METAFÍSICAS DO PODER Cap. 1: Da Obediência civil ______________ 39 O mistério da Obediência civil 41 Caráter histórico da Obediência 43 Estática e dinâmica da Obediência 45 A Obediência ligada ao crédito 47 Cap. u: As teorias da Soberania ____________ 49 A Soberania divina 50 A Soberania popular 54 A Soberania popular democrática 59 Uma dinâmica do Poder 62 13 16 • Bertrand de Jouvenel Uma civilização que se militariza 180 A lei da concorrência política 181 Progresso do Poder, progresso da guerra. Progresso da guerra, progresso do Poder 184 Do exército feudal ao exército da realeza 185 A guerra, parteira da monarquia absoluta _________ 187 Os Poderes, em rivalidade internacional, lutam cada um, no interior, contra as "liberdades" que lhes resistem ______ 188 A conscrição 189 A era da carne de canhão 191 A guerra total 192 Livro IV O ESTADO COMO REVOLUÇÃO PERMANENTE Cap. IX: O Poder, agressor da ordem social 199 Conflito do Poder com a aristocracia; aliança com a plebe 201 É o Poder conservador social ou revolucionário social? 203 Os "vazios" da onda estatal 205 O Poder diante da célula gentílica 206 O Poder diante da célula senhorial 208 O Poder diante da célula capitalista 212 Apogeu e desmembramento do Estado 219 Dinâmica política 220 Cap. x: O Poder e a plebe 223 A "coisa pública" feudal 225 A afirmação do Poder 227 O plebeu no Estado 230 O absolutismo plebeu 232 A reação aristocrática 236 Falsas manobras e suicídio da aristocracia na França 240 Cap. XI: O Poder e as crenças 245 O Poder mantido pelas crenças 246 O Poder • 17 A Lei divina __________________ 249 Solenidade da Lei 252 A Lei e as leis 254 As duas fontes do Direito 256 A Lei e o costume 259 O desenvolvimento do Poder Legislativo 261 A crise racionalista e as consequências políticas do Protagorismo_ 263 Livro v O PODER MUDA DE ASPECTO, MAS NÃO DE NATUREZA Cap. xn: Das revoluções 271 As revoluções liquidam a fraqueza e engendram a força 272 Três revoluções 273 Revolução e tirania 275 Identidade do Estado democrático com o Estado da realeza 276 Continuidade do Poder 277 Caráter desigual da autoridade do Antigo Regime 279 Enfraquecimento do Poder, coalizão aristocrática 280 O Terceiro Estado restaura a Monarquia sem o Rei 281 O governador napoleônico, filho da Revolução 286 A Revolução e os direitos individuais 287 A Justiça desarmada diante do Poder 290 O Estado e a Revolução Russa 292 Cap. xm: lmperium e Democracia 297 Sobre o destino das ideias 299 Princípio libertário e princípio legalitário 299 A soberania da Lei culmina na soberania parlamentar 301 O Povo, juiz da Lei 306 A Lei, "satisfação" do povo 312 O apetite do Imperium 314 Da soberania parlamentar 316 Da soberania da Lei à soberania do povo 318 18 • Bertrand de Jouvenel Cap. XIV: A democracia totalitária ____________ 321 Soberania e liberdade 322 A totalidade em movimento 323 A guerra às tendências centrífugas 325 O gênio autoritário na democraci 327 O interesse geral e seu monopólio 329 A autodefesa dos interesses 331 Da formação do Poder 333 Dos partidos 338 Da máquina política: o aliciamento dos votos e como os dirigentes da máquina acabam se tomando mestres dos eleitos __ 340 Do cidadão ao militante: a competição pelo Poder militariza,se __ 342 Rumo ao regime plebiscitário 343 A competição dos partidos "maquinizados" leva à ditadura de um partido, isto é, de uma equipe 345 A degradação do regime está ligada à degradação da ideia de lei_ 346 LIVRO VI PODER LIMITADO OU PODER ILIMITADO Cap. xv: O Poder limitado 353 O Poder limitado 354 Do impedimento interno 357 Dos contrapoderes 358 Aniquilamento dos contrapoderes e subordinação do Direito 360 O Poder ilimitado é perigoso tanto de onde emana quanto onde reside 364 Retomo dos espíritos ao Poder limitado: lições pedidas à Inglaterra_ 368 A separação formal dos poderes 371 Cap. XVI: O Poder e o Direito _____________ 377 O Direito, regra editada pela Autoridade? 378 Do poder legislativo ilimitado 380 O erro sensualista e utilitário 382 O Direito acima do Poder 384 LABOREM EXTUUSTI HELENA UT CONFOVENTE DILECTIONE HOC EVIGILAREfUR OPUS DUM EVERTUNTUR FUNDITUS GENTES 21 Apresentação do Minotauro V ivemos a guerra mais atroz e mais devastadora que o Ocidente já conheceu. A mais devastadora por causa da imensidade dos meios empregados. Não apenas exércitos de dez, quinze, vinte milhões de ho­ mens foram recrutados, mas na retaguarda a população inteira foi requisi­ tada para fornecer-lhes as mais eficazes ferramentas de morte. Tudo o que um país contém de seres vivos serviu à guerra, e os trabalhos que mantêm a vida só foram vistos e tolerados como o suporte indispensável do gigan­ tesco instrumento militar no qual o povo inteiro se transformou.1 Uma vez que todos, o operário, o lavrador, a mulher, contribuem para a luta, então tudo, a fábrica, a colheita, a casa, se tornou alvo, o adversá­ rio tratou como inimigo tudo o que é carne e terra, e por meio da aviação buscou um total aniquilamento. Nem uma participação tão geral nem uma destruição tão bárbara te­ riam sido possíveis sem a transformação dos homens por paixões violentas e unânimes, que permitiram a perversão integral de suas atividades natu­ rais. A excitação e a manutenção dessas paixões foram o resultado de uma máquina de guerra que condicionou o emprego de todas as outras: a Propa­ ganda. Ela sustentou a atrocidade dos fatos pela atrocidade dos sentimentos. O mais surpreendente no espetáculo que oferecemos a nós mesmos é que ele nos espante tão pouco. 1. "É preciso satisfazer as necessidades da população civil numa medida bastante ampla pa­ ra não afetar o traballw que ela fornece no setor da produção de guerra", escrevia o Frankfurter Zeitung de 29 de dezembro de 1942. A intenção do jornal era liberal! Tratava-se de justificar um quantum de atividades de vida, o que só era possível mostrando a condição indispensável das atividades de morte. Também na Inglaterra, ao longo de repetidos debates parlamenta­ res, reclamou-se que o exército dispensasse os mineiros, invocando a utilidade fundamental da extração das minas de carvão para a guerra. 23 26 • Bertrand de Jouvenel tempos representados como tão belicosos, é a extrema polidez dos exérci-­ tos e a brevidade das campanhas. O rei dispõe dos contingentes que lhe trazem seus vassalos - mas que lhe devem serviço apenas durante quarenta dias. Ele conta também com as milícias locais - mas que não lhe valem muito,4 e que o acompanham apenas por dois ou três dias de marcha. Com isso, como tentar grandes operações? Ele precisa de tropas dis, ciplinadas e que o acompanhem por muito mais tempo, mas estas devem ser pagas. Com que dinheiro lhes pagaria, não tendo outros recursos senão os rendimentos de seu domínio? Não se admite de modo algum que ele possa cobrar impostos, 5 e seu grande recurso é obter, se a Igreja aprovar uma ex, pedição, que ela lhe forneça durante alguns anos um décimo de seus ren­ dimentos. Mesmo com esse apoio e ainda no fim do século XIII, a "cruzada de Aragão", por ter durado cento e cinquenta e três dias, será vista como um empreendimento monstruoso e endividará longamente a monarquia. A guerra é então muito pequena: isso porque o Poder é pequeno, por, que ele não dispõe destas duas alavancas essenciais, a obrigação militar e o direito de impor. Mas o Poder se esforça por crescer: os reis tratam de conseguir que o clero, de um lado, os senhores e as comunas, de outro, lhe deem ajudas financeiras cada vez mais frequentes. Sob os reinados ingleses de Eduar, do 1 e Eduardo III, franceses de Filipe, o Belo, a Filipe de Valois, essa ten, dência vai se desenvolver. Temos estimativas dos conselheiros de Carlos rv para uma campanha na Gascônia que exigiria cinco mil cavaleiros e vinte mil membros da infantaria, todos recebendo soldos, todos "solda, dos" durante cinco meses. Uma outra, uns doze anos depois, prevê para uma campanha de quatro meses em Flandres dez mil cavaleiros e qua, renta mil homens a pé. 4. Dá-se grande importância a seu papel em Bouvines, mas na maioria das vezes sucedia como em Crécy, onde Froissart as descreve desembainhando as espadas a duas milhas do inimigo, aos gritos: "À morte! À morte!", para em seguida fugir precipitadamente à primei­ ra visão do exército. 5. Cf. A. Caullery. Histoire du Pouvoir royal d'imposer depuis la Féodalité jusqu' à Charles v. Bruxelas, 1879. O Poder • 27 Mas, para obter esses meios, é preciso que o rei vá sucessivamente a todos os principais centros do reino e, reunindo o povo "grande, médio e miúdo", lhe exponha suas necessidades e requeira sua ajuda. 6 Tais procedimentos e tais demandas serão continuamente repetidos durante a Guerra dos Cem Anos, a qual devemos representar como uma sucessão de breves campanhas que exigiam um constante financiamento. O mesmo ocorre no outro campo,7 onde o rei, que possui relativamente mais poder, obtém recursos cada vez maiores e mais regulares de um país menos rico e menos povoado. 8 Contribuições, como as necessitadas para o resgate do rei João, se es, tenderão por vários anos, mas não se decidirá considerá,las como perma, nentes, e o povo se revoltará contra elas simultaneamente na França e na Inglaterra. É somente no fim da guerra que o hábito do sacrifício permitirá es, tabelecer um imposto permanente - a talha - que sustenta um exército permanente - as companhias de ordenança. Eis aí um passo prodigioso dado pelo Poder: em vez de mendigar uma contribuição em circunstâncias excepcionais, ele conta agora com uma dotação permanente, e fará todo o empenho para aumentá,la. Extensão do Poder, extensão da guerra Como fazer crescer essa dotação? Como aumentar a parte da tique, za nacional que passa para as mãos do Poder e toma,se, assim, poderio? Até o fun, a monarquia não ousará requisitar os homens, impor a obrigação militar. É pelo dinheiro que terá soldados. Ora, as tarefas civis, que, aliás, ela cumprirá muito bem, justificam a obtenção de um Poder Legislativo, inexistente na Idade Média, mas que 6. Segundo os documentos publicados por Maurice Jusselin. Bibliotheque de l 'École des Char­ tes, 1912, p. 209. 7. Baldwin Schuyler Terry. The Financing of the Hundred Years War, 1337-1360. Chicago e Londres, 1914. 8. Sobre a riqueza da França no início da guerra, Froissan escreve: "Então·o reino da Fran­ ça era fénil e vigoroso, os homens ricos possuindo grandes terras, e não se falava de nenhu­ ma guerra". 28 • Bertrand de Jouvenel vai se desenvolver. E o Poder Legislativo implica o direito de impor. A evo­ lução nesse sentido será longa. A grande crise do século XVII, marcada pelas revoluções da Inglaterra, de Nápoles - esquecida, mas muito significativa! - e enfim pela Fronda, na França, corresponde ao esforço das três grandes monarquias ociden­ tais para aumentar os impostos9 e à reação violenta dos povos. Quando o Poder finalmente dobra o cabo, vemos os resultados: du­ zentos mil homens se entrematam na batalha de Malplaquet [1709], em comparação a cinquenta mil em Marignan [1515]. Em vez dos doze mil homens em armas de Carlos VII, Luís XVI contará com cento e oitenta mil soldados, o rei da Prússia, com cento e noventa e cinco mil, o Imperador, com duzentos e quarenta mil. Montesquieu alarmou-se com esse avanço:10 "E em breve previa, de tanto ter soldados, não teremos senão soldados, e seremos como os tár­ taros!". Aliás, ele acrescentava com uma presciência admirável: "Para is­ so basta fazer valer a invenção das milícias estabelecidas em quase toda a Europa, e levá-las ao mesmo excesso feito com as tropas regulares".11 Mas isso a monarquia não podia fazer: Louvois havia criado regimen­ tos territoriais cujos efetivos as localidades deviam fornecer, efetivos em princípio destinados unicamente ao serviço local e que o ministro procu­ rou em seguida tratar como reservas dos corpos ativos, no que encontrou a mais forte resistência. Nesse ponto, a Prússia (regulamento de 1733) te­ ve mais êxito. Mas, do mesmo modo e mais ainda que o aumento dos im­ postos, esse começo de obrigações militares exasperava as populações e constituía uma séria razão de queixa contra o Poder. 9. Aumento em certa medida causado pelo encarecimento geral seguido ao afluxo dos me­ tais preciosos da América. 10. "Uma nova doença se espalhou na Europa: ela se apoderou de nossos príncipes e os faz manter um número desordenado de tropas. Tem suas reincidências e torna-se necessaria­ mente contagiosa, pois, tão logo um Estado aumenta o que ele chama suas tropas, os outros aumentam as deles; de modo que se ganha com isso apenas a ruína comum. Cada monarca conta com todas as tropas de que puder dispor, se seu povo estiver em perigo de s.er exter­ minado: e chama-se paz esse estado de esforço de todos contra todos". Esprit eles Lois, Livro XIII, cap. XVlI. (Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973.) 11. Op. cit. O Poder • 31 Que singular reviravolta! Podemos explicá,la pela rivalidade das na, ções que teria substituído a das dinastias? Diremos que a vontade do Pº' vo é ávida de expansão, ardente de combate? Que o cidadão quer pagar para entrar no exército e ir à guerra? Enfim, que nos impomos com en, tusiasmo sacrifícios bem mais pesados que os que consentíamos outrora com tanta má vontade? Seria uma brincadeira. Avisado pelo coletor de impostos, convocado pelo gendanne, o ho, mem está longe de reconhecer no aviso, no cartaz de estrada, um efeito de sua vontade, por mais que a exaltem e a transfigurem. Ao contrário, esses são decretos de uma vontade alheia, de um senhor impessoal, que o povo nomeia ELES, como outrora nomeava os espíritos malignos. "ELES nos aumentam os impostos, ELES nos mobilizam", assim fala a sabedoria do vulgo. Tudo se passa como se um sucessor do rei desaparecido resolvesse continuar o empreendimento interrompido do absolutismo. De fato, se vimos crescer tanto o exército quanto o imposto com o crescimento do Poder monárquico, se o máximo dos efetivos e das con, tribuições correspondeu ao máximo do absolutismo, como não diremos, ao ver prolongaMe a curva desses índices irrefutáveis, ao ver desenvol, ver,se monstruosamente os mesmos efeitos, que a mesma causa continua operando e que, sob uma outra forma, o Poder continuou e continua seu crescimento? Foi o que percebeu Viollet: "O Estado moderno não é senão o rei dos últimos séculos que continua triunfalmente seu labor encamiçado".13 A "casa de máquinas" constituída pela monarquia não fez senão aper, feiçoar,se: suas alavancas materiais e morais tomaram,se progressiva, mente capazes de penetrar sempre mais fundo na sociedade e de pegar os bens e os homens de uma forma sempre mais irresistível. A única mudança é que o Poder acrescido tomou,se um desafio. Esse poder, diz Marx, com sua enorme organização burocrática e militar, com seu mecanismo complicado e artificial, esse terrível 13. Paul Viollet. Le Roi et ses ministres pendant les trois derniers siecles de la monarchie. Paris, 1912, p. vm. 32 • Bertrand de Jouvenel parasita que cobre como uma membrana o corpo da sociedade francesa e veda todos os seus poros, nasceu na época da monar­ quia absoluta, no declínio de uma feudalidade que ele ajudou a derrubar. ( ... ) Todas as revoluções não fizeram senão tornar mais perfeita a máquina governamental em vez de quebrá-la. Os par­ tidos que, sucessivamente, lutaram pelo Poder viam na conquista desse enorme edifício de Estado a presa oferecida ao vencedor.14 O Minotauro mascarado Do século XII ao século xvn, o poder público não cessou de aumentar. O fenômeno era reconhecido por todas as testemunhas, evocava protes­ tos sempre renovados e reações violentas. Desde então, ele continuou a crescer num ritmo acelerado, estenden­ do a guerra à medida que ele próprio se estendia. E então não o reconhe­ cemos mais, não protestamos mais, não reagimos mais. Essa passividade inteiramente nova é devida à bruma que envolve o Poder. Antigamente ele era visível, manifestado na pessoa do Rei, que se de­ clarava um senhor e cujas paixões eram conhecidas. Hoje, mascarado por seu anonimato, ele pretende não ter existência própria, ser apenas o instrumento impessoal e sem paixão da vontade geral. Por uma ficção, que uns chamam uma abstração, afirma-se que a vontade geral, que na realidade emana dos indivíduos investidos de poder político, emana de um ser coletivo, a Nação, da qual os governantes seriam apenas os órgãos. Aliás, estes sempre se em­ penharam em fazer penetrar essa ideia no espírito dos povos. Eles compreenderam que era um meio eficaz de fazer aceitar seu poder ou sua tirania.15 Hoje, como sempre, o Poder é exercido por um conjunto de homens que dispõem da "casa de máquinas". Esse conjunto constitui o que cha­ mam o Poder, e sua relação com os homens é uma relação de comando. 14. Karl Marx. O dez:oito de brumário de Luis Bonaparte. Trad. port. Maria Flor Marques Si­ mões. Lisboa: Estampa, 1976. 15. L. Duguit. I.:État, le Droit objetctif et la Loi positivie. Paris, 1901, t. 1, p. 320. O Poder • 33 O que mudou é que ao povo foram dados meios cômodos de mudar os principais participantes do Poder. Em certo sentido, o Poder acha-se enfraquecido, pois, entre as vontades que pretendem dirigir a vida social, o eleitorado pode, em certas épocas, fazer sua escolha. Mas, ao abrir a todas as ambições a perspectiva do Poder, esse regime facilita muito sua extensão. Sob o Antigo Regime, os espíritos capazes de exercer uma influência, sabendo que nunca fariam parte do Poder, esta­ vam prontos a denunciar seu menor abuso. Enquanto agora, sendo todos pretendentes, não há nenhum interesse em diminuir uma posição que se espera um dia alcançar, em paralisar uma máquina que se pensa usar chegada sua vez.16 Daí que haja nos círculos políticos da Sociedade moderna uma vasta cumplicidade em favor da extensão do Poder. Os socialistas oferecem o exemplo mais impressionante. Sua doutri- na ensina: O Estado não é senão a máquina de opressão de uma classe por uma outra, e isso tanto numa república democrática quanto numa monarquia. Por meio das inumeráveis revoluções de que a Europa foi o palco desde a queda do feudalismo, desenvolve-se, aperfei­ çoa-se e reforça-se esse aparelho burocrático e militar ... 17 Todas as revoluções anteriores apenas aperfeiçoaram a máquina governa­ mental, quando é preciso abatê-la, quebrá-la.18 No entanto, com que indulgência eles não veem crescer essa "máquina de opressão" que pensam menos em "quebrar" do que pôr em suas mãos.19 16. Cf. Benjamin Constant: "Os homens de partido, por mais puras que sejam suas inten­ ções, sempre se recusam a limitar a soberania. Eles se consideram como seus herdeiros e tra­ tam de cuidar, mesmo na mão dos inimigos, de sua propriedade futura". Cours de Politique constitutionneUe. Paris: ed. Laboulaye, 1872, t. 1, p. 10. 17. Engels, em seu prefácio de 1891 à Guerra civil, de Marx. Lisboa: Edições Avante, 1984. 18. Lenin. I.:État et la Révolution. Ed. "Humanité", 1925, p. 44. (Estado e a reoolução: o que en­ sina o marxismo sobre o estado e o papel do proletariado na reoolução. São Paulo: Hucitec, 1983.) 19. "Eles desconfiam, dizia ainda Constant, dessa ou daquela espécie de governo, dessa ou daquela classe de governantes: mas permitam-lhes organizar à sua maneira a autoridade e confiá-la a mandatários de sua escolha: para eles nunca será o bastante ampliar essa autori­ dade". Benjamin Constant, op. cit. 36 • Bertrand de Jouvenel irresistível a onda de uma comunidade armada que pode se abater sobre uma comunidade pacífica. Arriscamo,nos portanto, ao entregarmos mais de nós mesmos ao Es, tado, não obstante seu rosto tranquilizador de hoje, a alimentar a guerra por vir, a fazer com que ela seja em relação a esta o que esta foi em rela, ção às guerras da Revolução Francesa. Não pretendo aqui me opor ao crescimento do Poder, ao inchaço do Estado. Sei tudo o que os homens esperam dele e quanto sua confiança no Poder que virá é alimentada por todos os sofrimentos infligidos pelo Poder que desaparece. Eles desejam apaixonadamente uma segurança so, cial. Os dirigentes, ou os que aspiram a sê,lo, não duvidam que a ciência os capacite a formar os espíritos e os corpos, a adaptar cada indivíduo a um alvéolo social feito para ele, assegurando pela interdependência dos serviços a felicidade de todos. É uma tentativa que não carece de grande, za, é o coroamento da história do Ocidente. Considerando que talvez haja aqui demasiada confiança e ali dema, siada presunção; que as aplicações prematuras de uma ciência incerta podem ser de uma crueldade quase desconhecida dos bárbaros, como o prova a experiência racista; que os erros de orientação de imensos com, boios humanos serão necessariamente catastróficos; enfim, considerando que a disponibilidade das massas e a autoridade dos chefes nos prometem conflitos dos quais este é somente o presságio, devemos nos lamentar co, mo Jeremias? Acredito que não, e meu propósito limita,se a examinar as causas e o modo de crescimento do Poder na Sociedade. LIVRO 1 Metafísicas do Poder O Poder • 41 Poder com a sociedade. E podemos tratá-los como duas variáveis desco­ nhecidas das quais somente a relação é apreensível. No entanto, a história não é tão redutível assim à matemática. E con­ vém nada negligenciar para ver o mais claro possível. O mistério da Obediência civil A grande educadora de nossa espécie, a curiosidade, só é despertada pelo inabitual; foram necessários os prodígios, eclipses ou cometas para que nossos longínquos antepassados se indagassem sobre os mecanismos celestes; foram necessárias as crises para que nascesse, e foram precisos trinta milhões de desempregados para que se generalizasse a investigação dos mecanismos econômicos. Os fatos mais surpreendentes não solicitam nossa razão se forem cotidianos. É o que explica, por certo, que se tenha refletido tão pouco sobre a milagrosa obediência dos conjuntos humanos, milhares ou milhões de homens que se curvam às regras e às ordens de alguns. Basta uma ordem e o tumultuoso fluxo de veículos que, num vasto país, seguia à esquerda se transfere para a direita. Basta uma ordem e um povo inteiro abandona os campos, as fábricas, os escritórios, para afluir às casernas. "Uma tal subordinação, disse Necker, deve encher de espanto os ho­ mens capazes de reflexão. A obediência da grande maioria a uma pe­ quena minoria é uma ação singular, uma ideia quase misteriosa". 22 Para Rousseau, o Poder faz pensar em ''Arquimedes sentado tranquilamente na praia e puxando, sem dificuldade, um grande navio da água". 23 Todo aquele que fundou uma pequena sociedade para um objeto par­ ticular conhece a propensão dos membros - não obstante comprometidos por um ato expresso de sua vontade em vista de um fim que lhes interessa - a fugir das obrigações societárias. Como é surpreendente, então, a doci­ lidade na grande sociedade! 22. Necker. Du Pouvoir exécutif dans les grands États. 1792, p. 20-22. 23. Rousseau. Du Contrat social, livro III, cap. VI. (0 contrato social. São Paulo: Martins Fon­ tes, 1989.) 42 • Bertrand de Jouvenel Dizem,nos "Vem!", e vimos. Dizem,nos "Vai!", e vamos. Obedecemos ao coletor de impostos, ao gendanne, ao sargento. Seguramente, não é que nos inclinemos diante desses homens. Mas será diante de seus chefes? No entanto, desprezamos o caráter deles, suspeitamos de suas intenções. De que maneira então eles nos mobilizam? Se nossa vontade cede à deles é porque dispõem de um aparelho ma, terial de coerção, é porque são os mais fortes? É certo que tememos a coer, ção que eles podem empregar. Mas, para isso, eles precisam usar todo um exército de auxiliares. Resta explicar de onde vem esse corpo de execu, tantes e o que assegura sua fidelidade: o Poder nos aparece então como uma pequena sociedade que domina uma mais ampla. Mas os Poderes estão longe de disporem sempre de um amplo apare, lho de coerção. Basta lembrar que durante séculos Roma não conheceu funcionários profissionais, não viu nenhuma força armada dentro de suas muralhas, e seus magistrados só podiam usar alguns lictores. Se o Poder tinha forças para coagir um membro individual da comunidade, ele as obtinha apenas do concurso de outros membros. Dirão que a eficácia do Poder não se deve aos sentimentos de temor, mas aos de participação? Que um conjunto humano tem uma alma cole, tiva, um gênio nacional, uma vontade geral? E que seu governo personi, fica o conjunto, manifesta essa alma, encarna esse gênio, promulga essa vontade? De modo que o enigma da obediência se dissipa, já que em úl, tima instância obedecemos apenas a nós mesmos? É a explicação de nossos juristas, favorecida pela ambiguidade da pala.­ vra estado e que corresponde a usos modernos. O termo estado - e por isso o evitamos - comporta dois sentidos muito diferentes. Ele designa em primeiro lugar uma sociedade organizada com um governo autônomo, e nesse sentido somos todos membros do estado - o estado somos nós. Mas ele denota, por outro lado, o aparelho que governa essa sociedade. Nesse sentido, os mem, bros do Estado são os que participam do Poder - o Estado é eles. Se for dito então que o Estado, entendido como aparelho de comando, comanda a So, ciedade, não se faz senão emitir um axioma; mas, se em seguida for introdu, zido sub,repticiamente sob a palavra estado seu outro sentido, vê,se que a � ciedade é que comanda a si mesma, tal como se queria demonstrar. O Poder • 43 Evidentemente, isso não passa de uma fraude intelectual inconscien, te. Ela não se mostra flagrante precisamente porque, em nossa sociedade, o aparelho governamental é ou deve ser em princípio a expressão da so, ciedade, um simples sistema de transmissão por meio do qual ela rege a si mesma. Supondo que seja verdadeiramente assim - o que resta examinar -, é patente que nem sempre, nem em todo lugar, isso aconteceu, que a auto, tidade foi exercida por Poderes claramente distintos da Sociedade, e que a obediência foi obtida por eles. O domínio do Poder sobre a Sociedade não é obra da simples força concreta, pois encontramo,lo onde essa força é mínima, não é obra da simples participação, pois encontramo,lo onde a Sociedade de maneira nenhuma participa do Poder. Mas dirão, talvez, que há em realidade dois Poderes de essências di, ferentes? O Poder de um pequeno número sobre o conjunto, monarquia, aristocracia, que se sustenta apenas pela força, e o Poder do conjunto so, bre si mesmo, que se sustenta apenas pela participação? Se fosse assim, deveMe,ia naturalmente constatar que nos regimes monárquico e aristocrático os instrumentos de coerção atingem o máxi, mo, pois tudo se espera deles, enquanto nas democracias modernas atin, giriam o mínimo, pois nada se pede aos cidadãos senão o que desejaram. Mas constatamos, ao contrário, que o progresso da monarquia à demo, cracia foi acompanhado de um prodigioso desenvolvimento dos instru, mentos coercitivos. Nenhum rei dispôs de uma polícia comparável à das democracias modernas. Portanto, é um erro grosseiro contrastar dois Poderes de essências di, ferentes, cada um dos quais obteria a obediência utilizando um único sen, timento. Essas análises lógicas desconhecem a complexidade do problema. Caráter histórico da Obediência A obediência, na verdade, resulta de sentimentos muito diversos, os quais oferecem ao Poder uma base múltipla: Só existe esse poder, disseram, pela reunião de todas as proprieda, des que formam sua essência; ele obtém sua força tanto dos apoios reais que lhe são dados quanto da assistência contínua do hábito 46 • Bertrand de Jouvenel Com efeito, retomemos nossa reflexão sobre a obediência. Reconhe, cemos que ela era causada de forma imediata pelo hábito. Mas o hábito só é suficiente para explicar a obediência se o comando se mantém nos limites que lhe são habituais. Tão logo queira impor aos homens obriga, ções que vão além daquelas a que se habituaram, não mais se beneficia de um automatismo de longa data criado no sujeito. Para haver um incre, mento de efeito, um acréscimo de obediência, deve haver um incremen, to de causa. Aqui o hábito não pode servir, é preciso uma explicação. O que a Lógica sugere, a História verifica: com efeito, é nas épocas em que o Poder tende a crescer que se discutem sua natureza e os princípios, nele presentes, que causam a obediência, seja para ajudar seu crescimento, seja para opoMe a ele. Esse caráter oportunista das teorias do Poder explica, aliás, sua incapacidade de fornecer uma explicação geral do fenômeno. Nessa atividade particular, o pensamento humano sempre seguiu duas direções, respondendo às categorias de nosso entendimento. Ele buscou a justificativa teórica da Obediência - e, na prática, difundiu crenças que possibilitam um crescimento da obediência -, seja numa causa eficiente, seja numa causa final. Em outras palavras, afirmou,se que o Poder devia ser obedecido seja porque, seja em vista de. Na direção do porque desenvolveram,se as teorias da Soberania. A causa eficiente da obediência, foi dito, reside num direito exercido pelo Poder, que lhe vem de uma Majestas que ele possui, encarna ou represen, ta. Ele detém esse direito com a condição, necessária e suficiente, de ser legítimo, isto é, em razão de sua origem. Na outra direção, desenvolveram,se as teorias da Função do Estado. A causa final da obediência, foi dito, consiste na meta que o Poder perse, gue e que é o Bem Comum, não importando, aliás, como este é concebi, do. Para que ele mereça a docilidade do sujeito, é necessário e suficiente que o Poder busque e proporcione o Bem Comum. Essa classificação simples abrange todas as teorias normativas do Po, der. Certamente poucas não se valem ao mesmo tempo da causa eficiente e da causa final, mas ganha,se muito em clareza considerando sucessiva, mente tudo o que se relaciona a uma e depois à outra categoria. O Poder • 47 Antes de entrar nos detalhes, vejamos se, à luz deste apanhado, não podemos fazer uma ideia aproximada do Poder. Reconhecemos ne, le uma propriedade misteriosa que é, por meio de seus avatares, sua du, ração, que lhe confere um ascendente não racional, fora da jurisdição do pensamento lógico. Este distingue no Poder três propriedades cer, tas, a Força, a Legitimidade, a Beneficência. Mas, à medida que se bus, ca isolar essas propriedades, como corpos químicos, elas se furtam, pois não possuem existência em si, adquirindo,a apenas nos espíritos huma, nos. O que existe efetivamente é a crença humana na legitimidade do Poder, é a esperança em sua beneficência, é o sentimento que se tem de sua força. De forma muito evidente, ele só tem caráter legítimo por sua conformidade com o que os homens consideram o modo legítimo do Poder; só tem caráter beneficente pela conformidade de suas metas com o que os homens acreditam ser bom. Só tem força, enfim, ao me, nos na maioria dos casos, por meio daquelas que os homens julgam de, ver lhe oferecer. A Obediência ligada ao crédito Vemos, portanto, que na obediência entra uma parte enorme de cren, ça, de confiança, de crédito. O Poder pode estar fundado apenas na força, ser sustentado somente pelo hábito, mas não poderia crescer senão pelo crédito, que não é logica, mente inútil para sua criação e manutenção, e que, na maioria dos casos, não lhe é historicamente estranho. Sem pretender defini...Io aqui, podemos já descrevê,Io como um cor, po permanente ao qual se tem o hábito de obedecer, que possui os meios materiais de coagir, e que é sustentado pela opinião que se tem de sua força, pela crença em seu direito de comandar (sua legitimidade) e pela esperança que se deposita em sua beneficência. Não foi inútil sublinhar o papel do crédito no avanço do Poder. Pois se compreende agora a importância que têm para ele as teorias que pro, jetam certas imagens nos espíritos. Conforme inspirem mais respeito por uma Soberania, concebida como mais absoluta, conforme suscitem mais esperança num Bem Comum melhor definido, conforme forneçam ao 48 • Bertrand de Jouvenel Poder concreto uma assistência mais eficaz, elas lhe abrem o caminho e preparam seus progressos. Fato digno de nota - não é sequer necessário, para ajudar o Poder, que esses sistemas abstratos lhe reconheçam uma Soberania ou lhe con, fiem a tarefa de realizar o Bem Comum: basta que formem esses concei, tos nos espíritos. Assim Rousseau, que dava grande importância à ideia da Soberania, a recusava ao Poder e a opunha a ele. Assim o socialismo, que criou a visão de um Bem Comum infinitamente sedutor, não confia, va de modo algum ao Poder a tarefa de obtê,lo, exigindo, ao contrário, a morte do Estado. Não importa: o Poder ocupa tal lugar na Sociedade que só ele é capaz de se apoderar dessa Soberania tão sagrada, só ele é capaz de trabalhar por esse Bem Comum tão fascinante. Sabemos agora sob que ângulo examinar as teorias do Poder. O que nos interessa nelas é essencialmente o reforço que dão ao Poder. O Poder • 5 1 autônomos em sua esfera), e que sobretudo não era soberano.27 Pois é um caráter essencial do Poder soberano ter a capacidade legislativa, ser capaz de modificar à vontade as normas de comportamento impostas aos súdi, tos, definir à vontade as normas que presidem sua própria ação, ter enfim a capacidade legislativa, estando ele próprio acima das leis, sendo legibus solutus, Absoluto. Ora, o Poder medieval, ao contrário, era mantido teó, rica e praticamente pela lex terrae, concebida como imutável; o Nolimus leges angliae mutare dos barões ingleses exprime, sob esse aspecto, o sen, timento geral da época. 28 Portanto, longe de ter causado a grandeza do Poder, o conceito de Soberania divina coincidiu, durante longos séculos, com sua pequenez. Certamente podem ser citadas fórmulas impressionantes. Não dizia Jaime I a seu herdeiro: "Deus fez de vós um pequeno deus para ocupar seu trono e governar os homens"?29 Não instruía Luís XIV o delfim em termos muito semelhantes? '�quele que deu reis ao mundo quis que eles fossem honrados como seus representantes, reservando,se a ele só julgar suas ações. Aquele que nasceu súdito deve obedecer sem murmurar: essa é sua vontade".30 Mesmo Bossuet, pregando no Louvre, não exclamava: "Sois deuses ainda que morrais, e vossa autoridade não morre!"?31 27. Entendemos que ele não era soberarw no sentido moderno da palavra. A Soberania me­ dieval não é outra coisa senão superioridade (do latim popular superanum). É a qualidade que pertence ao poder colocado acima de todos os outros e que não tem ele próprio superior na série temporal. Mas do fato de ser mais elevado não decorre em absoluto que o direito do soberano seja de uma natureza diferente dos direitos que ele cobre: ele não os destrói, não é visto como sua origem e seu autor. Quando acima descrevemos o caráter do Poder sobe­ rano, referimo-nos à concepção moderna da Soberania que se desenvolveu no século XVII. 28. Na grande obra consagrada pelos irmãos R. W. e A. J. Carlyle às ideias políticas da Ida­ de Média (A History of Political Mediaeval Theory in the West. Londres, 6 vol., 1903-1936) é cem vezes reiterada a ideia, demonstrada pelo conjunto de suas pesquisas, de que o monar­ ca era concebido pelos pensadores medievais e visto de maneira geral como abaixo da Lei, obrigado por ela, e incapaz de mudá-la por via de autoridade. A Lei é para ele um dado e, a bem dizer, o verdadeiro soberano. 29. Citado por Marc Bloch. Les Rois thaumaturges. Publicação da Faculdade de Letras de Estrasburgo, 1924, p. 351. (Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.) 30. Luís XN. Oeut1res, t. 11, p. 317. 31. Domingo de Ramos de 1662. 52 • Bertrand de Jouvenel Certamente se Deus, pai e protetor da sociedade humana, designou ele próprio alguns homens para regê-la, chamou-os seus cristos, os fez seus ajudantes de ordens, pôs nas mãos deles a espada para administrar sua justiça, como afirmava ainda Bossuet, então o Rei, na certeza de tal investidura, deve ser visto por seus súditos como o senhor absoluto. Mas tais fórmulas só se verificam, com tal acepção, no século XVII, e são proposições heterodoxas em relação ao sistema medieval da soberania di­ vina; e surpreendemos aqui um caso evidente de subversão de uma teoria do Poder em proveito do Poder concreto, subversão sobre a qual dissemos e que veremos ser um fenômeno muito geral. A mesma ideia de que o Poder vem de Deus foi enunciada e emprega­ da, em mais de quinze séculos, com intenções muito diferentes. São Paulo, 32 evidentemente, queria combater na comunidade cristã de Roma as tendên­ cias à desobediência civil que apresentavam o duplo perigo de precipitar as perseguições e de desviar a ação cristã de seu objeto real, a conquista das almas. Gregório, o Grande, 33 na época em que a anarquia guerreira no Oci­ dente e a instabilidade política no Oriente destruíam a ordem romana, sen­ tia a necessidade de fortalecer o Poder. Os canonistas do século rx34 busca­ vam escorar o poder imperial vacilante que a Igreja havia restaurado para o bem comum. Outras épocas, outras necessidades, outros sentidos. Mas a doutrina do direito divino está longe de ter prevalecido antes da Idade Mé­ dia: eram as ideias derivadas do direito romano que dominavam os espíri­ tos. E, se tomarmos o sistema do direito divino no momento de seu flores­ cimento, do século XI até o XN, o que constatamos? Repete-se a fórmula de São Paulo: "Todo Poder vem de Deus", mas muito menos para convidar os súditos à obediência em relação ao Poder do que para convidar o Poder ... à obediência a Deus. Ao chamar os prín­ cipes de representantes ou ministros de Deus, a Igreja, em vez de que­ rer transmitir-lhes a onipotência divina, quis mostrar-lhes, ao contrário, que a autoridade deles era apenas um mandato, e que deviam, portanto, usá-la segundo a intenção e a vontade do Senhor do qual a receberam. 32. Cf. Epístola aos Romanos, XIII, 1. Comentários em Carlyle. Op. cit., t. 1, p. 89-98. 33. São Gregório. Regulae Pastoralis, III, 4. 34. Cf. especialmente Hincmar de Reims. De Fide Carolo Rege Servanda, xxm. O Poder • 53 Não se trata de permitir que o príncipe faça indefinidamente a lei, mas sim de curvar o Poder a uma Lei divina que o domina e o obriga. O rei sagrado da Idade Média nos apresenta o Poder menos livre, me, nos arbitrário que possamos imaginar. Pois ele é mantido ao mesmo tem, po por uma Lei humana, o Costume, e pela Lei divina. Nem de um la, do nem de outro se confia em seu simples senso do dever. Assim como a Corte dos Pares o obriga a respeitar o Costume, a Igreja zela para que ele seja o administrador diligente do monarca celeste, cujas instruções deve seguir em todos os pontos. A Igreja faz,lhe essa advertência ao entregar a coroa: "Por ela, vos tor, nais participante de nosso ministério", dizia o arcebispo ao rei da França ao sagrá,lo no século XIII; "assim como somos para o espiritual os pastores das almas, deveis ser para o temporal o verdadeiro servidor de Deus ... " Ela repetia,füe sempre a mesma objurgação. Assim, Yves de Chartres es, crevia a Henrique I, da Inglaterra, após sua coroação: "Príncipe, não es, queçais, sois o servidor dos servidores de Deus e não seu mestre. Sois o protetor e não o proprietário de vosso povo". 35 Enfim, se ele cumpria mal sua missão, ela dispunha de sanções que deviam ser bastante temidas pa, ra que o imperador Henrique IV viesse ajoelhar,se diante de Gregório VII na neve de Canossa. Tal foi, em todo o seu esplendor, em toda a sua força, a teoria da sobe, rania divina. Teoria tão pouco favorável ao desdobramento de uma auto, ridade sem freio, que um imperador ou um rei preocupados em aumentar o Poder veem,se naturalmente em conflito com ela. E se, para romper o controle eclesiástico, vemo,los às vezes argumentar que obtêm sua autori, dade imediata de Deus, sem que ninguém possa vigiar seu emprego - tese que se apoia principalmente na Bíblia e na epístola de Paulo -, é muito notável que recorram na maioria das vezes e mais eficazmente à tradição jurídica romana, que atribui a Soberania ... ao Povo! É assim que, entre muitos outros paladinos do Poder, o aventureiro Marsílio de Pádua, em proveito do imperador não coroado Luís da Bavie, ra, postula a soberania popular em lugar da soberania divina: "O supre, mo legislador do gênero humano, diz ele, não é senão a universalidade dos 35. Épist., CV! P.L., t. CLXII, col. 121. 56 • Bertrand de Jouvenel Belarmino replica: "O povo jamais delega seu poder sem conservá-lo em potência e sem poder em certos casos retomá-lo em ato".44 Na doutrina jesuíta, é a comunidade que, ao constituir-se, institui o Poder. A cidade ou república consiste "em certa união política, que não teria se originado sem certa convenção, expressa ou tácita, pela qual as famílias e os indivíduos se subordinam a uma autoridade superior ou ad­ ministrador da sociedade, a dita convenção sendo a condição de existên­ cia da comunidade".45 Nessa fórmula de Suarez se reconheceu o contrato social. É pelo de­ sejo e o consentimento da multidão que a sociedade é formada, o Poder instituído. No momento em que o povo investe dirigentes com o direito de mandar, há um pactum subjectionis.46 Compreendeu-se que esse sistema estava destinado a impedir o abso­ lutismo do Poder. Logo o veremos, no entanto, deformado de forma a jus­ tificar esse absolutismo. Para isso, basta que dos três termos - Deus autor do Poder, a multidão que atribui o Poder, os governantes que o recebem e o exercem - seja retirado o primeiro. Basta afirmar que o Poder não per­ tence mediatamente, mas imediatamente à Sociedade, que os governan­ tes o recebem somente dela. É a teoria da soberania popular. Mas essa teoria, dirão, é a que mais seguramente serviu de obstáculo ao absolutismo. Aí está o erro, como vamos ver. É com bastante inabilidade que os paladinos medievais do Poder con­ duzem seu raciocínio. Assim, Marsílio de Pádua afirmou que o "supremo legislador" é a "universalidade dos homens", para dizer a seguir que essa au­ toridade foi transferida ao povo romano; e ele conclui triunfalmente: "En­ fim, se o povo romano transferiu a seu príncipe o Poder Legislativo, cumpre dizer que esse poder pertence ao príncipe dos romanos", isto é, ao cliente de Marsílio, Luís da Baviera. O argumento expõe sua malícia com candu­ ra. Uma criança perceberia que a multidão só foi dotada de um poder tão 44. Belarmino: Resposta a Jaime I da Inglaterra. Oeuwes, t. XII, p. 184 ss. 45. Suarez. De Opere, LV, cap. VII, nº 3, t. UI, p. 414. 46. A inovação de Rousseau consistirá apenas em dividir em dois atos sucessivos esse ato ori­ ginal. Pelo primeiro, a comunidade política se constituirá; pelo segundo, ela designará um governo. O que agrava, em princípio, a dependência do Poder. Mas isso não é senão levar mais longe o sentido do pensamento jesuíta. O Poder • 57 majestoso a fim de levá-lo por graus sucessivos a um déspota. Na continua­ ção dos tempos, a mesma dialética saberá mostrar-se mais plausível. Eis que Hobbes, em pleno século XVII, na grande época do direito divino dos reis, quer fazer a apologia da monarquia absoluta. Veja-se como ele evi­ ta empregar os argumentos tirados da Bíblia, com os quais o bispo Filmer se armará uma geração mais tarde para sucumbir às críticas de Locke. Não é da soberania de Deus que Hobbes deduzirá o direito ilimitado do Poder: é da soberania do povo. Ele admite homens naturalmente livres; não é como jurista, mas co­ mo físico que ele define essa liberdade primitiva, como ausência de todo impedimento exterior. Essa liberdade de ação se desenvolve até se chocar contra a liberdade de um outro. O conflito se resolve segundo a relação das forças. Como disse Espinosa, "cada indivíduo tem um direito sobera­ no sobre tudo o que está em seu poder, ou seja, o direito de cada um se estende até onde vai a capacidade determinada que lhe pertence".47 Não há portanto direito em vigor senão o dos tigres de comer os homens. Trata-se de sair desse "estado de natureza" em que cada um pega o que pode e defende como pode o que pegou.48 Essas liberdades ferozes não dão nenhuma segurança, não permitem nenhuma civilização. Como fariam então os homens para abandoná-las mutuamente em vista da paz e da or­ dem? Hobbes chega a fornecer a fórmula do pacto social: "Entrego meu direito de governar-me a esse homem ou a essa assembleia, sob a condi­ ção de que também abandones o teu ... Assim, conclui, a multidão tomou­ -se uma só pessoa que se chama cidade ou república. Tal é a origem desse Leviatã ou Deus terrestre ao qual devemos toda paz e toda segurança".49 O homem ou a assembleia a quem foram entregues sem restrições di­ reitos individuais ilimitados passa a possuir um direito coletivo ilimitado. Com isso, afirma o filósofo inglês: Cada sujeito tendo se tornado, pela instituição da República, au­ tor de todas as ações e julgamentos do soberano instituído, este 47. Espinosa. Tratado teológico-politico, XVI. 48. Th. Huxley. Natural and Political Rights, em Method and Results. Londres, 1893. 49. Hobbes. Leviatã, cap. XVII, De causa generatione et definitione civitatis. (São Paulo: Abril Cultural, 1983.) 58 • Bertrand de Jouvenel não lesa, não importa o que faça, nenhum dos sujeitos, e nunca pode ser acusado de injustiça por nenhum deles. Pois, agindo ape­ nas por mandato, que razão teriam de se queixar os que lhe con­ fiaram esse mandato? Por essa instituição da República, cada particular é o autor de tu­ do o que faz o Soberano: consequentemente, quem afirma que o soberano o prejudica está atacando atos dos quais ele próprio é o autor, e não deve acusar ninguém a não ser ele. 50 Não é isso uma grande extravagância? Mas Espinosa, em termos me- nos chocantes, afirma igualmente o direito ilimitado do Poder: Quer o poder supremo pertença a um só, seja partilhado entre alguns ou comum a todos, é certo que àquele que o detém per­ tence também o direito soberano de exigir tudo o que quer ... O súdito é obrigado a uma obediência absoluta enquanto o Rei, os Nobres ou o Povo conservarem o soberano poder que a trans­ ferência de direitos lhes conferiu. Ele afirma também: "O soberano, ao qual por direito tudo é permiti­ do, não pode infringir o direito dos súditos". 51 Eis aí, portanto, o mais perfeito despotismo, deduzido por dois ilustres filósofos do princípio de Soberania popular. Quem detém o poder sobera­ no pode tudo o que quer, o súdito lesado deve consideraMe como o autor mesmo do ato injusto. "Somos obrigados a executar absolutamente tudo o que ordena o soberano, mesmo que suas ordens sejam as mais absurdas do mundo", esclarece Espinosa. 52 50. Hobbes, Leviatã, segunda parte, capítulo xvm. É uma proposição fundamental e que Hobbes retoma sob todas as formas. No caso de um ato particular do Soberano Representante do povo em relação a um indivíduo: " ... não importa o que o soberano representante faça a um sujeito, sob qualquer pretexto que seja, isso jamais poderia ser dito uma injustiça ou um dano; pois cada sujeito é o autor de cada um dos atos do soberano". Idem, cap. XXI. No caso de uma lei: " ... nenhuma lei pode ser injusta. A Lei é feita pelo poder soberano, e tudo o que é feito por esse poder é aceito (de antemão) por cada um dos membros do povo; e o que cada homem em particular quis como tal, nenhum homem pode dizer que é injusto". Idem, cap xxx. 51. Espinosa. Tratado teol6gico-político, capítulo XVI: Dos fundamentos do Estado. 52. Ibidem. O Poder • 61 Como seus predecessores, Rousseau julga que a Soberania é constituí­ da pela transferência sem reservas dos direitos individuais, que formam um direito total, o do Soberano, direito que é absoluto. É o ponto comum às teorias da Soberania do Povo. Mas a Hobbes parecia que uma transferência de direitos supõe al­ guém a quem esses direitos sejam transferidos: um homem ou uma as­ sembleia, cuja vontade, detentora do direito total, passaria doravante pa­ ra a vontade de todos, seria juridicamente a vontade de todos. Espinosa e outros admitiram que o direito total podia ser atribuído à vontade de um só, de vários ou da maioria. Daí as três formas tradicionais, Monarquia, Aristocracia, Democracia. Segundo essas ideias, o ato constitutivo da So­ ciedade e da Soberania constitui ipso facto o governo que é o Soberano. E, para espíritos excelentes, pareceu impensável que, admitida a hipótese fundamental, as coisas se desenrolassem de outro modo. 51 No entanto, Rousseau nos diz que os indivíduos formam um povo por um ato primeiro, e dão-se um governo por um ato subsequente. De modo que o direito total, a Soberania, que nos sistemas anteriores o povo entre­ gava ao criá-la, aqui ele a cria sem entregá-la, permanecendo perpetuamen­ te investido dela. Rousseau admite todas as formas de governo, considera a democráti­ ca conveniente aos pequenos Estados, a aristocrática aos médios e a mo­ nárquica aos grandes.58 na filosofia dos antigos gregos e romanos, assim como nos escritos e na linguagem dos que aprenderam a política nesses antigos, não é de modo algum a liberdade dos particulares, mas a liberdade do conjunto". " ... atenienses e romanos eram livres; ou seja, suas cidades eram livres; e não que os particu­ lares podiam resistir a seu representante, mas que seu representante era livre para resistir a outros povos ou para invadi-los. Ainda hoje, nos torreões da cidade de Luca, pode-se ler em grandes caracteres a palavra LIBERTAS; no entanto, ninguém pode inferir que o particular tenha lá mais liberdade ou mais imunidade ante as exigências da República do que as teria em Constantinopla. Quer um Estado seja monárquico ou popular, a liberdade é sempre a mesma". (Leviatã, segunda parte, cap. XXI.) Hobbes quer dizer que o súdito nunca é livre, como particular, a não ser nas coisas que o So­ berano lhe permite, e a extensão dessas coisas independe da forma de governo. 57. Cf. Bossuet. Cinquieme avertissement aux protestants. 58. Du Contrat social, livro m, capítulo m. 62 • Bertrand de Jouvenel Uma dinâmica do Poder Mas, em todo caso, o governo não é o Soberano. Rousseau chama-o de Príncipe ou Magistrado, denominações que podem se aplicar a um con­ junto de homens: um Senado pode ser o Príncipe e, na democracia per­ feita, o próprio povo é o Magistrado. Esse Príncipe ou Magistrado comanda, é verdade. Mas não em vir­ tude do direito soberano, desse Imperium sem limites que é a Soberania. Não, ele apenas exerce poderes que lhe são conferidos. Só que, uma vez concebida a Soberania Absoluta, uma vez sua exis­ tência afirmada no corpo social, são grandes a tentação e a possibilidade de que o corpo governante se apodere dela. Embora Rousseau tenha cometido o grande erro, em nossa opinião, de supor a existência de um direito tão excessivo, onde quer que se situe, sua teoria tem o mérito de explicar o crescimento do Poder. Ele nos mostra uma dinâmica política. Rousseau viu perfeitamente que os homens do Poder formam um corpo, 59 que esse corpo é habitado por uma vontade de corpo60 e que busca apropriar-se da Soberania: Quanto mais esse esforço aumenta, mais se altera a constituição; e, como não há aqui outra vontade de corpo que, resistindo à do Príncipe (entenda-se: do Poder), imponha o soberano (o povo) e entre em equilíbrio com ela, acontece cedo ou tarde que o prín­ cipe (o Poder) acabará se impondo sobre o soberano (o povo) e rompendo o tratado social. T ai é o vício inerente e inevitável que, desde o nascimento do corpo político, tende incansavelmente a destruí-lo, assim como a velhice e a morte destroem por fim o cor­ po do homem. 61 59. "Para que o corpo do governo tenha uma existência, uma vida real que o distinga do corpo do Estado; para que todos os seus membros possam agir de comum acordo e respon­ der à finalidade para a qual foi instituído, ele precisa de um eu particular, uma sensibilida­ de comum a seus membros, uma força, uma vontade própria que tenda à sua conservação. Essa existência particular supõe assembleias, conselhos, um poder de deliberar, de decidir, direitos, títulos, privilégios, que pertencem ao príncipe exclusivamente". (Du Contrat Social, livro m, capítulo n.) 60. Livro III, cap. x. 61. lbid. O Poder • 63 Essa teoria do Poder representa um avanço enorme sobre as que exa, minamos até agora. Elas explicavam o Poder pela posse de um direito ili, mitado de comandar, quer este emanasse de Deus, quer da Totalidade so, cial. Mas não se via nesses sistemas por que de um Poder a outro, de uma época a outra da vida do mesmo Poder, a extensão concreta do comando e da obediência se mostrava tão variável. Ao contrário, na forte construção de Rousseau encontramos um es, forço de explicação. Se esse poder adquire de uma sociedade a outra uma extensão diferente, é que o corpo social, único detentor da Soberania, ce, deu em maior ou menor grau o exercício dela. Sobretudo, se um mesmo Poder varia em extensão ao longo de sua existência, é que ele tende in, cessantemente a usurpar a Soberania e, à medida que o consegue, dispõe mais livremente e mais completamente do povo e dos recursos sociais. De modo que os governos mais "usurpadores" apresentam o mais alto grau de autoridade. Mas o que não é explicado é de onde o Poder retira a força necessária para essa usurpação. Pois, se sua força lhe vem da massa social e do fato de ele encarnar a vontade geral, ela deveria diminuir à medida que ele se afastasse da referida vontade geral, e sua autoridade desaparecer à medi, da que se distinguisse do desejo de todos. Rousseau pensa que o governo, por uma tendência natural, passa do grande número ao pequeno, da de, mocracia à aristocracia - ele cita o exemplo de Veneza -, e finalmente à monarquia, que lhe parece o estado final de uma sociedade; ao tornaHe despótico, ele causa enfim a morte do corpo social. A História não nos mostra de maneira alguma que essa sucessão seja fatal. E não se compre, ende de onde um só obteria os meios de fazer executar uma vontade cada vez mais separada da vontade geral. O vício da teoria é sua heterogeneidade. Ela tem o mérito de tratar o Poder como um fato, um corpo que possui uma força, mas ela considera ainda a Soberania como um direito, à moda medieval. Existe aí um im, bróglio no qual a força do Poder permanece inexplicável, e permanecem desconhecidas as forças que, na Sociedade, podem moderá,lo ou detê,lo. Que progresso, porém, sobre os sistemas precedentes! E, em pontos essenciais, que clarividência! 66 • Bertrand de Jouvenel Que o método fosse inaplicável, ele não o ignorava. Na obstinação com que o propôs, devemos ver a prova de seu invencível distanciamento em relação ao método de controle que via funcionar na Inglaterra e que Montesquieu havia elevado às nuvens: o controle parlamentar. Rousseau insurge-se com uma espécie de violência contra esse método, que ele vê como manifestamente odioso: A soberania não pode ser representada ... Portanto, os deputados do povo não são e não podem ser seus representantes ... A ideia dos representantes é moderna: ela nos vem do governo feudal, desse iníquo e absurdo governo no qual a espécie humana se de­ gradou e o nome de homem cai em desonra. 66 Ele ataca o sistema representativo no próprio país que Montesquieu tomou como modelo de excelência: O povo inglês pensa ser livre: ele muito se engana; só o é du­ rante a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes se elegem, ele é escravo, não é mais nada. Nos curtos momen­ tos de sua liberdade, o uso que faz dela mostra que merece perdê-la. 67 E por que tanta cólera?68 Rousseau percebeu que, após ter feito a So­ berania tão grande, a partir do momento em que se concorda que o So­ berano pode ser representado, não se pode impedir o Representante de atribuir-se essa Soberania. E, de fato, todos os poderes tirânicos que sur­ giram desde então justificaram suas ofensas aos direitos individuais pela pretensão de representar o Povo. 66. Contrat social, livro III, cap. xv. 67. Ibid. 68. Vemos em Kant a mesma desconfiança dos "representantes". "O povo, escreve o fi­ lósofo, que é representado por seus deputados no Parlamento, encontra, nesses guar­ diães de sua liberdade e de seus direitos, homens que se interessam vivamente por sua própria posição e a dos membros de sua família, no exército, na marinha e nas funções civis - coisas que dependem, todas elas, dos ministros - e que, em vez de opor uma resis­ tência às pretensões dos governantes, estão sempre dispostos, ao contrário, em fazer passar o governo para suas mãos". (Kant. Métaphysique des Moeurs. Trad. francesa Barni, Paris, 1853, p. 179.) [Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. e notas de Paulo Quin­ tela. Lisboa: Ed. 70, 1986] . O Poder • 67 Mais especialmente, ele previu o que parece ter escapado a Montes­ quieu; que o poder parlamentar, crescendo, em princípio, em detrimento do executivo, e, portanto, limitador do Poder, acabaria por subordinaMe ao executivo, fundir-se com ele, reconstituindo um Poder que poderia as­ pirar à Soberania. As teorias da Soberania consideradas em seus resultados Se agora abarcarmos com um olhar as teorias cujo espírito acaba­ mos de examinar, observamos que todas tendem a fazer o sujeito obede­ cer, mostrando-lhe, por trás do Poder, um princípio transcendente, Deus ou o Povo, armado de um direito absoluto. Que todas tendem também a subordinar efetivamente o Poder ao referido princípio. Portanto, elas são duplamente disciplinares: disciplina do sujeito, disciplina do Poder. À medida que disciplinam o sujeito, elas reforçam o Poder de fato. Mas, ao subordinar estritamente esse Poder, elas compensam esse refor­ ço ... com a condição de que consigam efetuar praticamente essa subordi­ nação do Poder. Eis aí a dificuldade. Os meios práticos empregados para manter o Poder adquirem tanto mais importância quanto mais ilimitado for o direito soberano que ele ameaça arrogar-se, comportando portanto mais perigos para a Sociedade se o Poder se apropria dele. Mas o Soberano é incapaz de manifestar-se in toto para reter os regen­ tes em seu dever. Ele precisa então de um corpo controlador, e este, situa­ do ao lado ou acima do governo, procurará tomar esse governo, reunir as duas qualidades de regente e de vigilante, o que praticamente o investirá do direito ilimitado de mandar. Portanto, nunca seria demais tomar precauções, o que leva à frag­ mentação do Poder e de seu Controlador por uma divisão de atribuições ou uma sucessão rápida dos titulares, causa de fraqueza na gestão dos in­ teresses sociais e de desordem na comunidade. Fraqueza e desordem a longo prazo intoleráveis e que, por uma reação natural, causam enfim a reunião dos fragmentos da Soberania num todo, o Poder achando-se, en­ tão, armado de um direito despótico. 68 • Bertrand de Jouvenel Aliás, o despotismo será tanto mais acentuado quanto mais ampliado se tiver concebido o direito de Soberania, no momento em que se acredi, tava estar ele protegido de todo açambarcamento. Se não se imagina de modo algum que as leis da comunidade possam ser modificadas, o déspota permanecerá retido por elas. Se se imagina que nessas leis há uma parte imutável, que corresponde aos decretos divi, nos, isso pelo menos será fixo. E aqui se entrevê que da soberania popular pode sair um despotis, mo maior que da soberania divina. Pois um tirano, individual ou cole, tivo, que hipoteticamente conseguisse usurpar uma ou outra soberania, não poderia invocar a vontade divina, que se apresenta sob as espécies de uma Lei eterna, para ordenar o que quer que seja. A vontade geral, ao contrário, não é fixa por natureza, mas móvel. Em vez de estar predeter, minada numa Lei, pode,se fazê,la falar por meio de leis sucessivas e mutá, veis. Nesse caso, o Poder usurpador tem maior liberdade de ação, é mais livre, e a liberdade do Poder chama,se Arbitrariedade. O Poder • 7 1 entender claramente, por essa denominação essencialmente descritiva, que não concebiam um personagem, Roma, mas viam a realidade física, um conjunto de indivíduos agrupados. A palavra Populus, em sua acepção ampla, evoca para eles algo de perfeitamente concreto, os cidadãos roma, nos convocados em assembleia; eles não têm necessidade de uma palavra equivalente ao nosso vocábulo Nação, porque a adição dos indivíduos pro, duz apenas, a seu ver, uma soma aritmética, e não um Ser de espécie dife, rente. Tampouco têm necessidade da palavra estado, porque não têm cons, ciência de uma Coisa transcendente que vive fora e acima deles, mas sim de interesses que lhes são comuns, que formam a Res Publica. Nessa concepção, legada à Idade Média, o real consiste apenas em homens. Teólogos medievais e filósofos dos séculos XVII e XVII estão de acordo em declarar esses homens anteriores a toda Sociedade. Eles cons, tituíram a Sociedade quando esta se lhes tomou necessária, seja pela cor, rupção de sua natureza (teólogos), seja pela ferocidade de seus instintos (Hobbes). Mas essa Sociedade continua sendo um corpo artificial, Rous, seau diz isso expressamente,73 e mesmo Hobbes, embora tenha posto no frontispício de um de seus livros um gigante cuja silhueta é composta de formas humanas adicionadas, não pensou que o Leviatã tivesse uma vida própria. Ele não tem vontade, é a vontade de um homem ou de uma as, sembleia que é tida por sua vontade. Essa concepção puramente nominalista da Sociedade faz compreen, der a noção de Soberania. Há na Sociedade apenas homens associados, e cuja dissociação é sempre possível. Um autoritário como Hobbes, um li, bertário como Rousseau, mostram,se igualmente convencidos disso. Um vê aí um desastre que se deve prevenir pelo mais extremo rigor, 74 o outro, um supremo recurso oferecido aos cidadãos oprimidos. 73. Assim: " ... embora o corpo artificial do governo seja a obra de um outro corpo artificial (o corpo político ou a Sociedade) ... " (Du Contrat social, livro lll, cap. 1.) 74. Hobbes, a quem os distúrbios civis causavam tamanho horror que fugia de seu país quan­ do surgiam, só queria um Poder tão absoluto porque execrava acima de tudo a recaída hu­ mana no que lhe parecia, com ou sem razão, o estado primitivo, a luta de todos contra todos. Tendo desenvolvido sua teoria do direito de comando ilimitado, ele respondia assim às ob­ jeções: "Mas poderão aqui objetar que a condição dos súditos é muito miserável, pois estão expostos à cupidez e a outras paixões irregulares dos que detêm em suas mãos um poder tão ilimitado. E geralmente os que vivem sob um monarca acusam a monarquia; e os que vivem 72 • Bertrand de Jouvenel Mas, se a Sociedade é somente uma reunião artificial de homens na, turalmente autônomos, quanto não foi necessário para curvá,los a com, portamentos compatíveis e fazê,los admitir uma autoridade comum! O mistério da fundação social exige a intervenção divina ou, pelo menos, uma primeira convenção solene de todo o povo. E que prestígio não foi também necessário para manter cotidianamente a coesão do conjunto! Deve,se supor um direito que exija o respeito e que, para esse fim, nunca será demais exaltar, a Soberania - quer se aceite ou não confiá,la imedia, tamente ao Poder. Por certo, quando partes independentes concordam em criar algu, mas funções de relação e a elas designar comissários, é inevitável, quan, do se quer assegurar a perpetuidade do vínculo e a estrita execução das obrigações assumidas, atribuir majestade aos que deverão continuamente conduzir as vontades singulares no caminho comum. Vimos, nos dias de hoje, formaMe um Contrato Social entre pessoas que se achavam no es, tado de natureza - bellum omnium contra omnes. Essas pessoas eram as po, tências do mundo, esse Contrato foi a Sociedade das Nações. E esse cor, po artificial se dissociou por não haver um Poder amparado num direito transcendente ao qual os direitos das partes fossem oponíveis. Se me permitirem um exemplo mais familiar, uma federação de futebol deve ter uma autoridade discricionária para que o árbitro de uma partida, frágil em meio aos jogadores apaixonados, faça escutar seu apito. Tão logo se colocou in abstracto o problema de construir e de manter uma associação entre elementos autônomos, tão logo se representou a per, sonalidade desses elementos como não sendo substancialmente modifica, da pela adesão ao pacto social, tão logo se imaginou a não conformidade e em democracia ou regidos por uma autoridade soberana qualquer, atribuem seus incômodos essa forma de governo, quando o Poder, sob todas as suas formas, se for bastante integro para protegê-los, é sempre o mesmo. Eles não consideram que a condição humana nunca é desprovida de algum incômodo, e que o pior que um governo, tenha a forma que tiver, pode infligir, mal se compara às misérias e calamidades horríveis que acompanham uma guerra civil, e à condição anárquica de ho­ mens sem mestres, libertos de todas as leis, de todo poder coercitivo que se oponha a suas rapinas e a suas vinganças". (Le\liatã, 1ª edição de 1651, p. 94.) O Poder • 73 a secessão como sempre possíveis, não se pôde evitar uma Soberania im, ponente que transmitisse sua dignidade a magistrados supostamente nus e sem força. Compreendida no quadro de seus postulados, a ideia é lógica e possui, inclusive, grandeza. Mas, se a Sociedade é um fato natural e necessário, se é material e moralmente impossível ao homem retirar,se dela, se muitos outros fatores além da força das leis e do Estado o fixam em comportamentos sociais, então a teoria da Soberania dá ao Poder um reforço excessivo e perigoso. Os perigos que ela comporta não podem se manifestar plenamente enquanto subsiste nos espíritos a hipótese fundamental que lhe deu ori, gem, a ideia de que os homens são a realidade e a Sociedade é uma con, venção. Essa opinião alimenta a ideia de que a pessoa é um valor ab, soluto, junto da qual a Sociedade figura apenas como meio. Donde as Declarações dos Direitos do Homem, direitos ante os quais o próprio direito de Soberania se rompe, o que parece logicamente absurdo se nos lembrarmos que ele é, por definição, absoluto, mas que se explica per, feitamente se lembrarmos que o corpo político é artificial, que a Sobe, rania é um prestígio que se justifica apenas por uma finalidade, e que todas essas sombras não valem contra a realidade do homem. Enquanto se conservou a filosofia social individualista e nominalista, a noção de Soberania não pôde produzir danos; estes aparecem quando essa filo, sofia se enfraquece. Daí, observemos de passagem a dupla acepção da Democracia enten, dida na filosofia social individualista como regime dos Direitos do Ho, mem e, numa filosofia política divorciada do individualismo, como o Ab, solutismo de um governo que invoca as massas. A concepção realista da Sociedade O pensamento é menos autônomo do que supõe, e os filósofos mais devedores do que admitem às representações correntes e à linguagem vulgar. Para que a metafísica afirmasse a realidade da Sociedade, foi pre, ciso primeiro que esta passasse a existir sob o nome de Nação. Isso foi um resultado, talvez o resultado mais importante, da Revolu, ção Francesa. Quando a Assembleia Legislativa lançou a França numa 76 • Bertrand de Jouvenel finalidade, então, era a Justiça, era preciso "jus suum cuique tribuere", ze, lar para que cada um obtivesse seu direito; mas qual direito? O direito que lhe reconhecia uma lei fixa, o Costume. Portanto, era uma ativida, de essencialmente conservadora. Daí que a ideia de finalidade ou causa final não pudesse ser empregada para a extensão do Poder. Mas tudo se modifica a partir do momento em que os direitos pertencentes aos indi_.. víduos, os direitos subjetivos, perdem seu valor, relativamente a uma Mo, ralidade cada vez mais elevada que deve se realizar na Sociedade. Como agente dessa realização, e em razão dessa finalidade, o Poder poderá jus, tificar qualquer crescimento de sua extensão. Concebe,se então que do, ravante há lugar para as teorias da causa final do Poder, infinitamente vantajosas para este. Basta tomar por finalidade, por exemplo, o conceito indefinido de Justiça Social. E, quanto ao Poder, o que a ideia nova implica? Posto que existe um Ser coletivo, infinitamente mais importante que os indivíduos, compete a ele evidentemente o direito transcendente de Soberania. É a Soberania nacional, muito diferente, como várias vezes se evidenciou,76 da Sobera, nia do Povo. Nesta, como disse Rousseau, "o soberano é formado apenas dos particulares que o compõem",77 enquanto naquela a Sociedade só se realiza como Todo à medida que os participantes se veem como seus membros e a reconhecem como sua finalidade: disso resulta, logicamen, te, que somente os que adquiriram essa consciência encaminham a Socie, dade para sua realização. Eles são condutores, guias, e somente a vontade deles se identifica à Vontade Geral: ela é a Vontade Geral. Assim Hegel pensa ter esclarecido uma noção que, devemos admitir, é bastante confusa em Rousseau. Pois o genebrino nos diz que "a vonta, de geral é correta e tende sempre à utilidade pública";78 mas, conhecendo bem a história ateniense para não se lembrar de tantas decisões popula, res injustas ou desastrosas, ele acrescenta em seguida: "Isso não significa que as deliberações do povo tenham sempre a mesma retidão", e afirma: "Há sempre muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; 76. Cf. particularmente Carré de Malberg. Contribution à la Théorie générale de l'État. Z vol. Paris, 1920, e Paul Bastid, numa obra fundamental: Sieyes et sa Pensée. Paris, 1939. 77. Contrat social, livro I, cap. VII. 78. Contrat social, livro II, cap. III. O Poder • 77 esta diz respeito apenas ao interesse comum". Tudo isso é bastante obscu, ro, a menos que se tomem as fórmulas "ela é sempre correta e tende sem, pre ao interesse geral ... ela diz respeito apenas ao interesse comum". como qualidades que definem uma Vontade ideal. É o que diz Hegel: é Vontade Geral a que tende à finalidade (não mais dos interesses particulares no que eles têm de comum, mas como realização da vida coletiva mais ele, vada). A Vontade Geral, motor da Sociedade, é a que cumpre o que deve ser cumprido, com ou sem o consentimento dos indivíduos que não têm consciência da finalidade. Trata,se, em suma, de levar o Corpo Social a um certo florescimen, to cuja visão pertence apenas aos membros conscientes. Eles formam "a classe universal" por oposição aos que permanecem encerrados em sua particularidade. Cabe portanto à parte consciente querer em nome do Todo. Isso não significa, no pensamento de Hegel, que ela é livre para escolher para o Todo qualquer futuro. Não: ela é dita consciente precisamente porque re, conhece o que deve ser, aquilo em que o Todo deve se transformar. Ao precipitar a eclosão do que deve ser, ela não pratica mais violência ao To, do que a praticada por um parteiro, mesmo se empregar a força. Percebe,se tudo o que pode tirar dessa teoria um grupo que se preten, de consciente, que afirma conhecer a meta, que está convencido de que sua vontade coincide com o "racional em si e para si" de que fala Hegel. Assim, a Administração prussiana, então em pleno desenvolvimento, encontra no hegelianismo a justificação de seu papel e de seus métodos au, toritários. O Beamtenstaat, o Poder burocrático e culto, está convencido de que sua vontade não é um capricho arbitrário, mas conhecimento do que deve ser. Consequentemente, ele pode e deve impelir o povo às maneiras de agir e de pensar que realizarão a meta que a Razão permitiu prever. A imagem do que deve ser, pré,formada num grupo, habilita esse gru, po a um papel dirigente. O socialismo científico de Marx sabe o que deve ser o Proletariado. A parte consciente do Proletariado, portanto, pode fa, lar em nome do Todo, querer em nome do Todo, e deve dar consciência à massa inerte de que ela forma esse Todo proletário. Ao conheceMe, aliás, o Proletariado é abolido como classe e toma,se o Todo Social. 78 • Bertrand de Jouvenel Do mesmo modo, o partido fascista é a parte consciente da Nação, que quer pela Nação, e quer a Nação tal como ela deve ser. Todas essas doutrinas, que consagram praticamente o direito de uma minoria - autodenominada consciente - guiar uma maioria, saem direta, mente do hegelianismo. Aliás, a concepção do Todo social está longe de ter engendrado apenas sistemas de filiação visivelmente hegeliana. Disse, mos que essa concepção era difusa no pensamento pós,revolucionário; por, tanto, não é surpreendente que a política moderna esteja impregnada dela. Enquanto o povo concreto dos séculos anteriores só podia ser representado sob seus múltiplos aspectos (Estados Gerais) ou não o podia de modo al, gum (Rousseau), o Todo pode ser expresso pelos que conhecem ou preten, dem conhecer seu Devir necessário, e que portanto são ou pretendem ser capazes de exprimir a Vontade Objetiva. Será uma oligarquia de eleitos, ou serão sociedades populares, exprimindo,se com uma segurança total em nome da Nação. Será qualquer grupo ou partido, detentor da verdade. E partidos opostos, concebendo de maneiras distintas a finalidade, poderão aspirar concorrentemente a guiar de maneira absoluta .o Todo. Resumindo: a experiência da emoção nacional comum fez a Socie, dade ser vista como um Todo. Não realizado, porque muitos indivíduos presentes na Sociedade não se comportam ainda como membros de um Todo, por se verem ainda como indivíduos e não como membros. Mas es, se Todo se realiza à medida que os membros conscientes levam os outros a se comportar e a sentir como convém para que o Todo se realize como tal. E então eles podem e devem indefinidamente puxar e empurrar os inconscientes. Hegel não parece ter intencionado construir uma teoria autoritária. Mas ela se julga por seus frutos. Divisão do trabalho e organicisrrw Entretanto, a meio caminho do século XIX, os espíritos estavam tão impressionados pelo progresso industrial e pelas transformações sociais resultantes quanto o haviam estado no início do século pelo fenômeno do nacionalismo. E essa mudança prodigiosa, que se efetuava a um ritmo impetuoso mais ou menos desde a época do Contrato Social, fora interpretada, já O Poder • 81 artigo de impacto Oaneiro de 1860) intitulado: O organismo social. Ali ele aponta83 semelhanças entre sociedades de homens e sociedades de célu­ las. Começando por pequenos agregados, ambas aumentam impercep­ tivelmente de massa, algumas atingindo até mil vezes seu volume primiti­ vo. Ambas têm no início uma estrutura tão simples que são consideradas como não tendo nenhuma, mas ao longo do desenvolvimento essa estru­ tura cresce e se complica continuamente. Na origem, mal existe uma de­ pendência mútua das partes componentes, mas por graus sucessivos essa dependência toma-se tal que finalmente a atividade e a vida de cada parte só são possíveis pela atividade e pela vida do resto. A vida de uma socieda­ de, como a de um organismo, é independente dos destinos particulares que a compõem: as unidades constituintes nascem, crescem, trabalham, repro­ duzem-se e morrem, enquanto o corpo total sobrevive e vai aumentando de massa, de complicação estrutural e de atividade funcional. Essa ideia conhece de imediato uma popularidade imensa. Ela ofe­ rece ao sentimento moderno de pertencer ao Todo uma explicação mais acessível que a do idealismo hegeliano. Além disso, quantas vezes não se comparou, ao longo dos séculos, o corpo político a um corpo vivo? Não há verdade científica mais facilmente aceita que aquela que vem justificar uma imagem já incorporada ao hábito. A Sociedade, organismo vivo Na verdade, foi do corpo do homem que se tiraram, desde a Antigui­ dade - como o testemunha Menênio Agripa - argumentos analógicos pa­ ra raciocinar sobre a Sociedade. São Tomás escrevia: O grupo se dispersaria se não houvesse alguém para cuidar bem dele. Assim também o corpo do homem, como o de qualquer ani­ mal, se desagregaria se não houvesse nesse corpo certa força di­ retora aplicada ao bem comum de todos os seus membros.84 [ ... ] Entre os membros do corpo, há um principal que pode tudo, seja 83. Cf. H. Spencer. Essays, Scientific, Political and Speculatilie. 3 vol., Londres, 1868 a 1875. O artigo citado ocupa as páginas 384-428 do primeiro tomo; a passagem aqui resumida, as páginas 391-392. 84. De Regimine Principum, I, 1. 82 • Bertrand de Jouvenel ele o coração ou a cabeça. É preciso então que haja em qualquer multidão um princípio de direção. 85 Às vezes a analogia foi buscada com afinco. O inglês Forset, em 1606, confrontava, órgão a órgão, os corpos naturais com os corpos políticos. 86 Foi dele, dizem, que Hobbes tirou muitas de suas ideias, o que duvido, pois parece,me que, para Hobbes, o Leviatã possuía só uma aparência de vida resultante da vida real de seus elementos constitutivos, os homens. É certo, porém, que a metáfora é sempre uma serva perigosa: aparecendo de início apenas modestamente para ilustrar o raciocínio, ela logo se im, põe e o governa. É ainda à arquitetura natural do homem que se referem Rouvray87 e mesmo Rousseau88 para explicar a composição da comunidade, que eles 85. Id., I, 2. 86. E. Forset. A Comparati"e Discourse of Bodies Natural and Politique. Londres, 1606. 87. Du Rouvray. Le Triomphe des Républiques. 1673. 88. Na Encyclopédie, no artigo "Economia política", ele escreve: "O Corpo político, tomado individualmente, pode ser considerado como um corpo organizado, vivo e semelhante ao do homem. O poder soberano representa a cabeça; as leis e os costumes são o cérebro, prin­ cípio dos nervos e sede do entendimento, da vontade e dos sentidos, dos quais juízes e ma­ gistrados são os órgãos; o comércio, a indústria, a agricultura são a boca e o estômago, que preparam a subsistência comum; as finanças públicas são o sangue pelo qual uma economia judiciosa, com a função do coração, distribui o alimento a todo o corpo; os cidadãos são o corpo e os membros que fazem mover, viver e trabalhar a máquina, e que não se poderia fe­ rir em parte alguma sem que imediatamente uma impressão dolorosa se transmitisse ao cé­ rebro, se o animal goza de boa saúde. A vida de ambos é o eu comum ao todo, a sensibilidade recíproca e a correspondência in­ terna de todas as partes. Se essa comunicação cessa, se desaparece a unidade formal, se as partes contíguas não pertencem mais uma à outra senão por justaposição, o homem está morto ou o Estado dissolvido. Portanto, o corpo político é também um ser moral que tem uma vontade, e essa vontade ge­ ral que tende sempre à conservação e ao bem-estar do todo e de cada parte, e que é a fonte das leis . . . etc". Rousseau disse e repetiu posteriormente que se trata de um "corpo artificial". Nesse ar­ tigo, "Economia política", a metáfora o havia levado longe demais: é talvez a razão pela qual ele evita mais tarde qualquer referência a esse texto, como seu exegeta Schinz obser­ vou. Ainda assim, é verdade que a imagem influenciou muito seu espírito, especialmente para sugerir que o corpo social é bem guiado pelo "amor de si". Cf. meu Essai sur la Poli­ tique de Rousseau. O Poder • 83 reconhecem artificial. Em Rousseau, no entanto, percebe,se todo o poder da imagem sobre o espírito que a emprega. O progresso das ciências naturais tornou caducas todas as explicações do corpo social baseadas em exemplos fisiológicos: estes não tinham ne, nhuma pertinência, primeiro porque se apoiavam sobre uma representação grosseiramente errônea do organismo e dos órgãos tomados como termos de comparação. A seguir, e sobretudo, porque é preciso, se se quiser com, parar a sociedade presentemente existente a um organismo, tomar um or, ganismo muito menos evoluído, infinitamente menos avançado no duplo processo de diferenciação e de integração em comparação ao homem. Em outras palavras, se as sociedades são seres vivos, se elas formam, acima da série animal, uma "série social", como Durkheim não hesitará em supor, então deve,se dizer que os seres dessa nova série estão num es, tágio de seu desenvolvimento próprio que os deixa muito atrás dos mamí, feros, mesmo dos mais inferiores. Estabelecida por Spencer, a hipótese parece conciliar uma tendên, eia antiga da inteligência com recentes descobertas positivas. Ela recebe destas um grande impulso, e revela,se, aliás, fecunda pelo estímulo e pela direção dados às pesquisas etnológicas: não nos oferecem as sociedades primitivas, em seus diferentes graus de evolução, o testemunho de estados sucessivos pelos quais nós mesmos tivemos de passar? Voltaremos a esse ponto de vista e veremos o que se deve pensar dele. O que nos importa aqui são as conclusões políticas a que levará o sis, tema "organicista". Uma vez mais, vamos assistir à mudança de uma doutrina formulada numa intenção restritiva do Poder, e que quase em seguida virá explicar e justificar a extensão do Poder. Spencer é um Whig vitoriano, dedicado desde sua estreia literária a restringir a esfera de ação do Poder. Embora deva muito - e bem mais do que admite - a Auguste Comte, ele se revolta contra as conclusões que este tirou do processo de diferenciação social. A intensidade da função reguladora (disse o filósofo francês), lon, ge de dever diminuir à medida que a evolução humana se efetua, deve, ao contrário, tomaMe cada vez mais indispensável... [ ... ] 86 • Bertrand de Jouvenel e esse processo desenrola-se por meio de uma centralização e de um cres­ cimento do Poder. Mas sua atividade interior, ao contrário, que se desen­ volve por meio da diversificação das funções e de uma adaptação recíproca sempre mais eficaz de partes cada vez mais subdivididas e particularizadas, não exige um único regulador central, pois ela elabora, fora do órgão gover­ namental, órgãos reguladores distintos e numerosos (como os mercados de matérias-primas ou de valores, as câmaras de compensação bancárias, os sindicatos e associações diversas}. Essa tese era sustentada por argumentos precisos tomados da fisiologia onde o filósofo via a mesma dualidade: de um lado, a mesma concentração, de outro, a mesma dispersão ordenada. Mas a visão da Sociedade como organismo, que ele se esforçou por fazer acreditar, se voltará contra ele. O biólogo Huxley vai imediatamen­ te objetar-lhe: Se as semelhanças entre o corpo fisiológico e o corpo político de­ vem nos trazer alguma luz não só sobre o que é este último mas sobre a maneira como ele tomou-se o que deve ser e tende a ser, sou obrigado a constatar que toda a força da analogia vai em sen­ tido contrário à doutrina restritiva da função estatal.92 Não cabe a nós decidir qual deles, se Spencer ou Huxley, interpreta­ va mais corretamente "as tendências políticas do organismo fisiológico"! 92. "Suponhamos, prossegue Huxley, que, de acordo com essa doutrina, cada músculo ar­ guisse que o sistema nervoso não tem o direito de intervir em sua própria contração, a não ser para impedi-lo de impedir a contração de um outro músculo; ou que cada glândula pre­ tendesse secretar onde quer que sua secreção não perturbasse nenhuma outra; suponhamos cada célula entregue a seu interesse próprio e o laissez,-faire presidindo ao conjunto, o que aconteceria ao corpo fisiológico? A verdade é que o poder soberano do corpo pensa pelo organismo fisiológico, age por ele e governa todas as partes componentes com mão de ferro. Mesmo os glóbulos sanguíneos não podem fazer uma reunião pública sem ser acusados de causar uma congestão, e o cérebro, como outros déspotas conhecidos, responde de imediato ... com a lanceta. Como no Leviatã de Hobbes, o representante da autoridade soberana no organismo vivo, embora derive todos os seus poderes da massa que ele governa, está acima da lei. O menor questionamento de sua autoridade causa a morte ou essa morte parcial que chamamos paralisia. Sendo assim, se a analogia do corpo político com o corpo fisiológico serve para alguma coi­ sa, parece-me que ela justifica o aumento e não a diminuição da autoridade governamen­ tal". (No ensaio Administrative Nihilism, escrito em resposta a Spencer e reeditado no volu­ me Method and Results, Londres, 1893.) O Poder • 87 O importante é que a visão organicista, adotada por todas as partes, mi­ litou exclusivamente em favor de explicar e justificar o crescimento inde­ finido das funções e do aparelho de govemo.93 Durkheim, finalmente, numa obra que fará escola,94 amalgama hege­ lianismo e organicismo, afirma que as dimensões e as funções do órgão governamental devem necessariamente crescer com o desenvolvimento das sociedades95 e que o vigor da autoridade deve diminuir em razão da força dos sentimentos comuns.96 Mais tarde, ele irá mais longe e afirma­ rá que os próprios sentimentos religiosos não são senão sentimentos de 93. Ver, entre muitos outros, Lilienfeld. Die Menschliche Gesellschaft als Realer Organismus. Mittau, 1873. A sociedade é a mais alta classe de organismo vivo. A. Schãffle. Bau und Le­ ben des sozialen Korpers. 4 vol. Publicados de 1875 a 1878, onde o autor desenvolve laborio­ samente, órgão por órgão, a comparação do corpo fisiológico e do corpo social. O que não impedirá a retomada da penosa tarefa por Worms. Organisme et Société. Paris, 1893. E ainda por G. de Greef. Le Transformisme social. Essai sur le Progres et les Regres des Sociétés. Paris, 1893: "Na história do desenvolvimento das sociedades humanas, os órgãos reguladores da força coletiva se aperfeiçoam progressivamente, criando uma coordenação cada vez mais poderosa de todos os agentes sociais. Não ocorre o mesmo na série hierárquica de todas as espécies vivas? E não é a medida de sua organização que lhes atribui o lugar na escala ani­ mal? Para as sociedades, do mesmo modo, o grau de organização é a medida comum, o me­ tro do progresso; não existe outro critério de seu valor respectivo e relativo na história das civilizações". Podemos citar, ainda, Novicow. Conscience et Volonté sociales. Paris, 1893. A tese fez muito sucesso nos meios socialistas, onde Vandervelde tomou-se seu ardoroso pro­ pagador. Por fim, a mais recente exposição e a melhor é a do biólogo Oskar Hertwig. Des Staat als Organismus. 1922. 94. De la Division du Tra11ail social. Paris, 1892. 95. "É contrário a todo método considerar as dimensões atuais do órgão governamental co­ mo um fato mórbido e devido a um concurso de circunstâncias acidentais. Tudo nos obriga a ver aí um fenômeno normal, ligado à estrutura mesma das sociedades superiores, pois ele progride de uma maneira regularmente contínua à medida que as sociedades se aproximam desse tipo" etc., p. 201-202. 96. "Sempre que nos vemos diante de um aparelho governamental dotado de grande auto­ ridade, é preciso buscar a razão disso não na situação particular dos governantes, mas na natureza das sociedades que eles governam. É preciso observar quais são as crenças comuns, os sentimentos comuns que, ao se encarnarem numa pessoa ou numa família, lhe transmi­ tiram tal poder", p. 213-214. Como na tese de Durkheim, nesse ponto inspirada em Hegel, a sociedade parte de uma for­ te solidariedade moral para retomar, por um processo de diferenciação, a uma solidariedade ainda mais completa; o resultado é que a autoridade, após ter diminuído, deve finalmente se fortalecer. 88 • Bertrand de Jouvenel pertença à sociedade, premonições obscuras com que elaboramos um Ser de um grau superior ao nosso; dirá enfim que, sob os nomes de deuses ou de Deus, nunca adoramos senão a Sociedade.97 Da água ao moinlw do Poder Passamos em revista quatro farm1ias de teorias, quatro concepções abstratas do Poder. Duas, as teorias da Soberania, explicam e justificam o Poder por um direito que ele obtém do Soberano, Deus ou o povo, e que pode exercer em razão de sua legitimidade ou justa origem. Duas, que chamamos teo­ rias orgânicas, explicam e justificam o Poder por sua função ou sua fina­ lidade, que é assegurar a coerência material e moral da Sociedade. Nas duas primeiras, o Poder aparece como um centro ordenador no seio de uma multidão. Na terceira, como um centro de cristalização ou, se preferirem, uma zona iluminada a partir da qual a luz se propaga. Na quarta, enfim, como um órgão num organismo. Em umas, o direito de comandar é concebido como absoluto; nas ou­ tras, a função é concebida como crescente. Por diferentes que sejam, não há nenhuma de que não se possa tirar, e da qual não se tenha tirado num momento qualquer, a justificação de um domínio absoluto do Poder. Entretanto, porque fundadas sobre uma visão nominalista da So­ ciedade e sobre o reconhecimento do indivíduo como única realidade, as duas primeiras comportam uma certa repugnância à absorção do ho­ mem: elas admitem a ideia de direitos subjetivos. A primeira de todas, en­ fim, por implicar uma Lei divina imutável, implica um Direito Objetivo cujo respeito se impõe imperativamente. Nas teorias mais recentes, só po­ de haver Direito Objetivo forjado sobre a sociedade e sempre modificável por ela, e direitos subjetivos apenas outorgados por ela. 97. Cf. Les Formes élémentaires de la vie reügieuse. 2ª ed., Paris, 1925: "O fiel não se engana quando crê na existência de um poder moral do qual depende e ao qual detJe o melhor de si mes­ mo; esse poder existe: é a Sociedade ... o deus não é senão a expressão figurada da Sociedade", p. 322-323. (As formas elementares da vida reügiosa: o sistema totêmico na Austrália. Trad. Joa­ quim Pereira Neto. São Paulo: Paulinas, 1989.) LIVRO II Origens do Poder CAPÍTULO IV As origens mágicas do Poder P ara conhecer a natureza do Poder, saibamos primeiro como ele nasceu, qual foi seu primeiro aspecto, e por quais meios ele obte, ve a obediência. Esse procedimento propõe,se naturalmente ao espfri, to, sobretudo ao espírito moderno, modelado pelo modo de pensamen, to evolucionista. Mas o empreendimento logo se mostra carregado de dificuldades. O historiador surge apenas tardiamente numa sociedade amplamente de, senvolvida: Tucídides é contemporâneo de Péricles, Tito Lívio, de Au, gusto. O crédito que merece, ao tratar de épocas próximas dele, para as quais se vale de documentos múltiplos, vai diminuindo à medida que ele remonta às origens da Cidade. Então ele se apoia apenas em tradições verbais, deformadas de geração a geração, e que ele próprio apropria ao gosto de seu tempo. Daí as fábulas sobre Rômulo ou sobre Teseu, tidas como mentiras poéticas pela crítica estritamente racionalista do século XVlll, e que no fim do século XIX, ao contrário, começaram a ser exami, nadas como que ao microscópio, elaborando com o apoio da filologia in, terpretações engenhosas, geralmente fantasiosas, em todo caso incertas. Consultaremos o arqueólogo? Que obra a dele! Tirou do solo cidades enterradas e reanimou civilizações esquecidas.98 Graças a ele, milênios ao longo dos quais nossos antepassados discerniam apenas os personagens bíblicos foram povoados de monarcas poderosos, os vazios do mapa em tomo da terra de Israel foram preenchidos de poderosos impérios. 98. Marcel Brion dá uma ideia desse empreendimento de conquista do passado humano em seu livro: La Résurrection des Villes mortes. 2 vol., Paris, 1938. 93
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