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Guias e Dicas
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Comer bem, viver bem: arte, cultura e educação, Teses (TCC) de Nutrição

Artigos e tcc envolvendo educação alimentar e nutricional. org: Profa Michelle Jacob

Tipologia: Teses (TCC)

2017
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Compartilhado em 07/12/2017

paulo-maito-3
paulo-maito-3 🇧🇷

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Baixe Comer bem, viver bem: arte, cultura e educação e outras Teses (TCC) em PDF para Nutrição, somente na Docsity! (COMER BEM, VIVER BEM. ARTE, CULTURA E EDUCAÇÃO MICHELLE JACOB (ORG.) Comer bem, viver bem: arte, cultura e educação Michelle Jacob (Org.) isbn 978-85-5741-003-9 SuMáRIO Prefácio 6 Comer bem, viver bem: artes da nutrição humana 10 I. Arte para comer e viver bem Aroma de especiarias e lábios de mel: alimentação e erotismo no Cântico dos cânticos Agnes Félix 18 A Ética alimentar bíblica: os fundamentos da prática da comensalidade nos banquetes bíblicos Raquel Santos Vitorino 40 A poética dos resíduos da Cinderela do Lixo: Carolina Maria de Jesus em seu Quarto De Despejo Viviany Chaves 61 Por que sou gorda, Mamãe? Marcas da sociedade lipófoba em Cíntia Moscovich Virgínia Williane de Lima Motta 77 A cozinha de Manet: alimentação e vida burguesa no século XIX Analis Costa 98 II. Cultura para comer e viver bem Casas de farinha: as raízes da mandioca no município de Cuité, Paraíba Clébio dos Santos Lima 119 Aspectos culturais das mudanças alimentares no São João de Capina Grande, Paraíba. Íris Cristhianne Jerônimo da Costa Melo 161 Ao vento ou ao sereno: os aspectos históricos e culturais da carne de sol do município de Picuí, Paraíba Vanessa Nogueira Bezerra 178 III. Educação para comer e viver bem Percepção dos educadores infantis sobre alimentação saudável: um estudo de caso em escolas de educação infantil em Picuí, Paraíba Halana dos Santos Germano 207 Análise das ações de educação alimentar e nutricional em um espaço de educação não formal no município de Cuité, Paraíba Helena Cristina Moura Pereira 223 A mesa de Clarice Lispector: a literatura na promoção da alimentação saudável nas escolas Laysa Nóbrega 243 Saberes e sabores da infância: oficinas culinárias como princípio de educação alimentar e nutricional na educação infantil Priscila Silva Cunha 261 Mapa da alimentação da literatura brasileira: o território na promoção da alimentação adequada nas escolas Rafaela Juliane Silva Santos 279 Posfácio 304 6 PREfáCIO fazer um prefácio é sempre um ato de amor, seja pela afei- ção ao tema, ao conhecimento em si ou ao “encomendador” de tal tarefa. Como creio na causalidade, parece-me signifi- cativo que Michelle Jacob tenha me convidado para prefaciar esta coletânea organizada por ela. Vivo agora, enquanto dedi- lho estas palavras, os primeiros dias de minha aposentadoria, com desejo e necessidade de longas férias, mas interrompo essa volição por outra maior – a vontade de compartilhar algo, que como disse ela, só eu saberia contar, ou coisas que só uma velha professora pode dizer. A organização de um livro traz a marca da pessoa que tem a ideia, reúne e transforma coisas dispersas no tempo e no espaço delineando-os em um conjunto harmonioso; aquela que faz de textos esparsos um escrito com sentido. Esta organização e os textos aqui apresentados traduzem a vida acadêmica de Michelle. Posso vê-la em seu tempo em cada um deles, porque vi(vi) este percurso com ela, como professora e amiga. Nosso primeiro contato se deu quando ela cursava o quar- to período de Nutrição, na disciplina de Nutrição Humana, para a qual eu era convidada a apresentar algo do qual quase todos os alunos e alunas nunca tinham ouvido falar – que se pode, SIM, viver saudavelmente sem comer carnes, ovos e la- ticínios e que algumas pessoas até o fazem. Como se o choque fora pouco, ainda falava daqueles que optam por não comer – os adeptos da nutrição prânica. Depois das costumeiras e 9 se trata de resgatar, mas de reinventar. O que os autores nos dizem é que não é momento de nos desencantarmos, mas de recantarmo-nos com as múltiplas possibilidades do amor à Terra como Gaia. Escrevo este texto poucos dias depois de perdermos Leo- nard Cohen; pensando no muito a fazer no âmbito da Ali- mentação e Nutrição pela via da contracultura podemos to- mar emprestado sua frase I’ve done my best, I know it wasn’t much e trabalhar, muito e sempre. Isto faz Michelle e os auto- res aqui reunidos. Ao lê-los temos a certeza de que não somente nossos alu- nos e alunas de todos os níveis, mas também comerciantes, docentes, agricultoras e agricultores, donas e donos de casa, pais e mães, gestores e nutricionistas contam com uma gera- ção de nutricionistas capazes de reconstruir práticas culturais, como disse Maturana, através de redes específicas de conver- sações. Diz este autor que as mudanças culturais ocorrem por uma modificação do emocionar, que ao assegurar uma nova rede de conversações constitui uma nova cultura. Se você ainda não é um dos nossos, converse com estes autores através destes escritos; fale sozinho enquanto lê, fale com seus amigos depois de ler, seguramente pode ser um ex- celente começo para esta conversa capaz de mudar a vida e de mudar o mundo. Vera Pinto 10 COMER BEM, VIVER BEM: ARTES DA NuTRIçãO HuMANA Já que de toda forma é necessário comer, o que comer? Como resol- ver essa metonímia da introjeção? “É necessário comer bem”, desta forma, não quer dizer prender e compreender em si, mas apren- der a dar de comer, aprender-a-dar-de-comer-ao-Outro. Jamais se come tudo sozinho, veja-se a regra do é necessário comer bem. É uma lei de infinita hospitalidade. Em todas as diferenças, as rup- turas, as guerras, é esse bem comer que está em jogo. É necessário comer bem, eis aí uma máxima que deve sofrer ao infinito uma variação nas modalidades e nos conteúdos. O refinamento sublime no respeito é também uma maneira de comer bem ou de comer o bem. O bem também pode e deve ser comido e comido bem. Jacques Derrida. Il fault bien manger. Points de suspension. Que todos vayamos juntos, que nadie se quede atrás, que todo alcance para todos, y que a nadie le falte nada. Provérbio Ayamara Em entrevista a Jean-Luc Nancy, Jacques Derrida levanta a questão do sofrimento animal ligado à alimentação humana: comer é necessário, mas é necessário, também, fazer sofrer? Afinal, o que é comer bem?, lança a questão. Não por justifica- tiva de aporte proteico, nem tampouco por falta de outras ma- térias, come-se animais. Para Derrida, a virilidade carnívora, que ele denomina como carnofalogocentrismo, é o esquema dominante de cultura ocidental. E é a partir dele, que mesmo os vegetarianos ou culturas ditas não-antropofágicas, tam- 11 bém incorporam carnivoramente o outro: não basta abster- se de comer carne para tornar-se um não-carnívoro. […] Os vegetarianos também podem incorporar, como todo mundo, simbolicamente, algo vivo, carne e sangue, do homem ou de Deus, comenta em sua obra O animal que logo sou. Comer bem é, certamente, uma máxima que sofre ao infi- nito variação nas modalidades e nos conteúdos. A discussão levantada por Derrida que começa com a pergunta sobre o comer no sentido da incorporação física e nos convida a uma ampliação do pensamento para o modo de incorporação sim- bólica na cultura do ocidente - do homem branco que toma a sua própria mitologia, seu logos, pela forma universal do que se deve designar por razão - é exemplar da multiplicidade das instâncias do comer e, logo, da discussão em torno de um co- mer bem. Comer bem: esse é o tema de interesse central da Nutri- ção. O caso apontado na discussão entre Nancy e Derrida é apenas um dos exemplos de questões que orbitam ao seu redor. Atualmente, a Nutrição, enquanto campo do conheci- mento estabelecido sob o logos científico, vem abrindo-se a diálogos transdisciplinares, ao reconhecer que suas questões, que envolvem a relação do homem com o alimento, excedem o campo material da incorporação física, e repousam sob um terreno nômade, para utilizar a ideia de Gilles Deleuze, dota- do de interseções com as Ciências Humanas e Sociais. Marco significativo deste esforço de diálogo foi o destaque concedido à Interdisciplinaridade na área de Nutrição, no do- cumento de avaliação trienal produzido pela diretoria de ava- liação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní- vel Superior (CAPES) em 2013. Neste relatório destaca-se que programas de pós-graduação na área de Nutrição poderão ser 14 obra da gaúcha Cíntia Moscovich, Por que sou gorda mamãe?. Analis Costa, por sua vez, sai do âmbito literário e apresen- ta a pintura como seu material de pesquisa. Para analisar os costumes alimentares do século XIX, apresenta a obra de Édouard Manet como um modelo reduzido levistrausiano da sociedade burguesa. Esse é o conteúdo da primeira seção, Arte para comer e viver bem. A segunda seção, Cultura para comer e viver bem, apresen- ta o relevo da análise cultural para a compreensão dos fenô- menos alimentares locais. Em Alimentação, sociedade e cultu- ra, o antropólogo Jesús Contreras, sublinha a importância da pesquisa antropológica no desenvolvimento de investigações na área da alimentação, sobretudo, naquelas que analisam o comer a partir de suas questões que transcendem a materiali- dade estrita do alimento, analisando questões políticas, sim- bólicas, éticas entre outras. Neste sentido é que Clébio Lima propõe uma reflexão sobre o desmonte das casas de farinha brasileiras, que Íris Costa convida o leitor a refletir sobre a padronização das práticas alimentares no festejo mais tradi- cional da Paraíba, o junino, e que Vanessa Nogueira questio- na a ideia de tradição ao remontar a história da carne de sol em Picuí, na Paraíba, cidade nacionalmente reconhecida pela produção deste alimento. Educação para comer e viver bem, a terceira seção, apre- senta a educação alimentar e nutricional (EAN) como princí- pio de diálogo com o outro. Maria Cristina faber Boog, uma das grandes mestras da EAN no país, reforça em sua última obra, Educação em Nutrição, a necessidade de operar diag- nósticos educativos com o fim de conhecer as razões e o ter- reno no qual as práticas alimentares são construídas, para daí sim instaurar processos verdadeiramente dialógicos. A partir 15 desta ótica é que se desenvolveram os trabalhos desta seção. Laysa Nóbrega, trabalhando com Clarice Lispector, e Rafaela Santos, com Graciliano Ramos, tentam transpor a ideia apre- sentada na primeira seção, que entende que a arte é objeto de conhecimento também para o desenvolvimento ações de EAN em ambientes escolares junto a crianças e adolescentes. Halana Germano e Helena Pereira tentam, a partir da reflexão sobre suas práticas, trazer elementos para pensar o fazer em EAN. Priscila Cunha, por fim, reconhecendo que a educação é um processo de corpo inteiro, como já disse friedrich Niet- zsche, propõe, alinhada como o Marco de referência em EAN, que a culinária é um dos princípios que deve orientar nossas praticas educativas para um comer bem. Comer: simples porque integrado ao mais cotidiano do nossos gestos, complexo pela mesma razão. Tentar tateá-lo no âmbito da reflexão científica deixa exposta essa dificuldade de definir e limitar conceitualmente a ideia de um comer bem. Até o momento, a ideia que parece sintetizar esses pressupos- tos e que assim torna-se aparentada sua é o viver bem ou bem viver andino, uma visão holística e integrada do ser huma- no inserido na grande comunidade terrenal que inclui, além dele, toda a comunidade de vida. São treze os princípios do bem-viver: saber beber, saber dançar, saber dormir, saber tra- balhar, saber meditar, saber pensar, saber amar e ser amado, saber escutar, saber falar bem, saber sonhar, saber caminhar, saber dar e receber e, por fim, saber comer, princípio que en- volve uma clara dimensão ética, com valores de uma civiliza- ção focada na centralidade da vida, que vive o sentimento de pertença a um Todo e compaixão para com os que sofrem e de solidariedade entre todos, conforme afirma Leonardo Boff, em Sustentabilidade: o que é, o que não é. 16 Acreditamos que comer bem, e logo o viver bem, passe pelo processo de aprender a partilhar, denominado por Der- rida de aprender-a-dar-de-comer-ao-outro, e pelos andinos a saber dar e receber. Nutrir ideias em um livro é um gesto de partilha, de um processo que ativa a interação e, em conse- quência, na nutrição mútua deste jovem campo em pleno es- tágio de desenvolvimento. Acreditamos que esse seja o prin- cípio de toda Nutrição Humana. 19 envolver o corpo feminino, assim podendo perceber a repre- sentação da dualidade do verbo comer. Com isso, ao refletir e analisar a relação entre alimentação e erotismo no texto bí- blico Cântico dos Cânticos, pudemos perceber que os alimen- tos podem transcender a sua representação e sua importância com apenas nutrientes: podem ser símbolo de desejos e pai- xões implícitas que só podem ser expressas e materializadas através da metáfora com esses. O estudo serviu para ampliar nossas percepções sobre alimentos, materializando a ideia de que o homem se alimenta de carne, de vegetais e de imaginá- rio, com isso, os alimentos estão além das suas características nutricionais. Palavras-chave: Cântico dos Cânticos, alimentos, erotismo. INTRODUÇÃO A literatura é caracterizada por uma relação com a reali- dade e apresenta certas propriedades de linguagem. Os dois aspectos estão interligados. uma obra literária não é uma “có- pia” ou “descrição” da realidade, mas que, em uma instância preliminar, por usar a linguagem que se constitui em “signos” gráficos e sonoros, ela é uma reconstrução do mundo a partir da percepção do artista, de modo a transmitir aos leitores uma visão particular da realidade (fERREIRA, 2008). Tomemos como exemplo a poesia que é capaz de trazer para o mundo material um encontro mágico de um homem e de uma mulher. uma materialização que se torna, poeticamen- te, possível devido à fusão do ver e do crer, ou seja, não vemos o poema com olhos materiais, mas com olhos do espírito. Assim, os sentidos se tornam servos da imaginação, prontos para criar (ALEXANDRE, 2009). 20 Na literatura/poesia, o erotismo está relacionado às ima- gens eróticas que afloram na mente do leitor durante o ato da leitura, quando “a imagem, mental ou escrita, entretém com o visual” (BOSI, 1977, p. 14). Para Paz (1995), “a relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal”. Desse modo, essa linguagem - som que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas - é capaz de no- mear o mais fugaz e evanescente dos sentimentos: a sensação erótica. um exemplo de poesia que possui sentido erótico laten- te é o texto bíblico Cântico dos Cânticos, que trata, do come- ço ao fim, do amor humano. Curiosamente, porém, em ne- nhum lugar, explica ou define diretamente o amor. Todavia, o livro tenta, indiretamente de alguma maneira, balbuciá-lo por meio de imagens, metáforas e comparações que abarcam, praticamente, todos os campos da natureza e da produção humana (STORNIOLO; BALANCIN, 1991). Neste livro, uma das formas para falar o amor é utilizar imagens de alimentos com uma aparente conotação erótica. É, no âmbito religioso, que os alimentos começam por adquirir conotações eróticas (NASCIMENTO, 2007). Diante das imagens que podem ser atribuídas aos alimen- tos em textos eróticos e poéticos; o presente trabalho tem o objetivo de compreender a relação entre alimentação e erotis- mo, tendo, como corpus, o texto bíblico Cântico dos Cânticos. O referencial teórico utilizado para compreender o erotismo será Georges Bataille, a partir da obra O erotismo (1987). Como estratégia metodológica para análise do texto foi eleita a análise temática, proposta por Bauer e Gaskell (2002), para permitir uma reflexão mais aprofundada sobre a obra e sobre o tema discutido. 21 DESVENDANDO FONTES DE PRAZER Prazer sexual - o erotismo: a busca por uma continuidade Embora implique a intensificação da relação amorosa, o erotismo não tem por objetivo o enfoque do ato sexual em si, mas a infinita gama de matizes sensuais que presidem a intimidade entre os sexos. É o despertar da excitação sexual e o seu consequente prolongamento, privilegiando o estado de desejo sobre o ato sexual consumado, de modo a envolver va- riadas etapas e matrizes da sexualidade, que poderão ou não culminar no ato sexual. Desse modo, entende-se que o erotis- mo seja um valor em si, independente da realização última do impulso sexual (fRANCONI, 1997). Se pensarmos na literatura e nas artes, a compreensão do erotismo está em toda parte, vemos que, nessa atividade do desejo, está o gasto, a consumação, a interiorização daquilo se tomava como o que se procura fora de nós (BARROS, 2007). O querer ser procurado e encontrado advém da experiência da união dos corpos que é explicado no Mito do Andrógino encontrado na obra O banquete, de Platão, que retrata a expli- cação da vontade dos homens de serem completados. Assim, o erotismo é a busca a união dos corpos; e, como relatado no evangelho de Marcos no capitulo 10 e versículo 8, “serão ambos uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne” (ALMEIDA, 1993). Nessa linha de pensamento, o mito e as demais defini- ções apresentam pontos de convergência com pensamento de Georges Bataille sobre o erotismo. Bataille, em O erotis- mo (1987), reflete intensamente sobre a complexidade da vida erótica, ressaltando a íntima relação entre essa e a experiência místico-religiosa. Segundo ele, o erotismo diz respeito a uma 24 Prazer de ler - cânticos dos cânticos O Cântico dos Cânticos, de Salomão é um livro poético que consta na Bíblia como parte integrante das Sagradas Escrituras (STADELMANN, 1993). A tradução literal da ex- pressão “Cântico dos cânticos” é “o mais belo (o maior) de todos os cânticos”. O livro é chamado de o mais belo porque é o objeto da realidade mais bela, o amor: quão belo é o teu amor (SANTOS, 2011). Existem várias indagações sobre a autoria dos Cânticos. Há os adeptos da autoria salomônica, que apoiam tal atri- buição, a começar pelo próprio título onde está dito que se trata do mais belo Cântico de Salomão. Salomão é mencio- nado em várias partes do poema e, para muitos, identifi- cado como o amante ou o “esposo” de Sulamita. Há claras referências à riqueza, ao luxo, à presença de bens impor- tados, característicos do reino de Salomão (CAVALVANTI, 2005). Segundo Storniolo e Balancin (1991), existem duas perspectivas diferentes com relação à interpretação do Cântico dos Cânticos: a Interpretação religiosa e a Interpre- tação profana. Na Interpretação Religiosa, o Cântico fica inteiramente espiritualizado. Segundo o Novo Testamento: Cristo seria o amado, e o povo cristão seria a amada; o Cântico seria a parábola sobre o amor de Cristo pela Igreja (STORNIOLO; BALANCIN, 1991). Na Interpretação Profana, o Cântico seria apenas uma antologia de cânticos de amor para ce- lebrar o amor humano (STORNIOLO; BALANCIN, 1991). O Cântico dos cânticos exalta e canta o amor entre o homem e a mulher, dentre os diversos tipos de amor o exemplar e paradigmático (SANTOS, 2011). 25 Vale ressaltar que o Cântico é poesia. uma das caracte- rísticas da poesia é trabalhar a linguagem nos seus múltiplos significados. Todo texto poético tem por natureza a capacida- de de desvelar realidades diferentes, por meio de símbolos, as- sociações, evocações, comparações, etc. (SANTOS, 2011). Nos Cânticos, a fruta é uma imagem do corpo representada como símbolo de amor e metáfora para mulheres: doce e nutritiva, sensualmente prazerosa. Símbolos de corpos amantes e do desejo corporal no Cântico dos Cânticos, a fruta permaneceu um objeto de desejo. REFERENCIAL TEORICO E ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS O referencial teórico utilizado para compreender erotis- mo será Bataille, a partir da obra O erotismo (1987). Para Ba- taille, a compreensão do erotismo está associada à ausência de limites levando à dissolução da descontinuidade; e o dese- jo erótico da busca da continuidade perdida, da completude do ser, própria de nossa natureza; a experiência da união dos corpos em um só. Para corpus utilizamos um dos livros da Bíblia, pois enten- demos que a Bíblia se trata de uma obra que há anos é uma das mais lidas no mundo, influenciando em soberania a cul- tura ocidental, por meio de suas narrativas. Assim observa- mos a importância deste livro ser interpretado como um texto literário. Com isso, o corpus foi composto pelo livro “Cântico dos Cânticos”, que faz parte dos livros poéticos do Antigo Tes- tamento na Bíblia. O poema é o único livro da Bíblia que é todo composto por diálogos. Durante estes, o amado, para ex- pressar o seu amor, faz alusões da amada a paisagens, animais e, principalmente, a alimentos. 26 O corpus foi analisado a partir da metodologia de análise temática, de acordo com Bauer e Gaskell (2002), o qual reco- menda um procedimento gradual de redução do texto quali- tativo. Primeiramente, realizamos a primeira redução, onde os textos foram parafraseados em sentenças mais sucintas. Após isso, efetuamos uma segunda redução em que as sen- tenças foram parafraseadas em palavras-chaves. “Ambas as reduções operam com generalização e condensação de senti- do” (BAuER; GASKEL, 2002. p. 107). A partir disso, essas pala- vras foram separadas em categorias, para serem interpretadas e analisadas. Durante o desmembramento da análise das categorias, usamos narrativas da mitologia grega e romana como estraté- gia de apoio à discussão dos resultados. Assim, como apresen- tado por Lévi-Strauss (1989, p.39), assumimos os lugares de cientista e de bricoleur, pois por meios artesanais elaboramos um objeto material que é também um objeto de conhecimen- to. Assim, através dos mitos podemos ter uma maior percep- ção reflexiva em situações que necessitam de uma representa- ção metafórica para serem interpretadas. Portanto, nesse trabalho buscamos dialogar o conjunto estruturado presente no Cântico dos Cânticos e os fragmentos de conjuntos estruturados dos mitos gregos e romanos, as- sim utilizando um mito para entender o outro; buscando um maior respaldo para organizar novas informações e percep- ções sobre a relação entre alimentação e erotismo. RESULTADOS E DISCUSSÃO Ao realizar a análise temática do Cântico dos Cânticos, chegou-se a três categorias de análise: vinho, como princi- pal bebida representadora e facilitadora do erotismo; frutos, 29 “Beije-me com os beijos da sua boca, porque melhor é o seu amor do que o vinho”. O vinho é o referencial marcante de desejo do casal. E, além disso, é o meio pelo qual o amado tem acesso psíquico ao sabor da amada. Esse se embriaga com o vinho como se estivesse consumindo a vitalidade do amor de sua amada. É através do vinho que o amado mantém acesa a memória do sabor e da intensidade da amada, mesmo essa estando distante. A partir dos versos como um todo, percebe-se que há re- presentações tanto do significado do vinho para o cristianis- mo quanto para a mitologia grega, vemos que a relação do casal é tida como um amor denso e vital, como o sangue; e o vinho é o que facilita a união dos corpos, assim podendo haver a continuidade do ser. Além do vinho, o Cântico dos Cânticos também cita: “Co- lhi a minha mirra com a minha especiaria, comi o meu favo com o meu mel, bebi o meu vinho com o meu leite”. Assim, outra bebida que também é citada é o leite. Porém, a partir da análise do texto, pudemos perceber a grande diferença entre a simbologia do vinho e do leite para o casal. O leite e o vinho são o alimento da inocência e a bebida da vida adulta, respec- tivamente, símbolos do alimento puro e do prazer absoluto. Podemos perceber que, no Cântico dos Cânticos, a amada passa por vários momentos marcantes, pois ela experimenta tanto a infantilidade em sua inocência quanto a malícia e sen- sualidade em sua embriaguez, pois o leite e o vinho é que dão sabor ao seu corpo. Ela é transformadora como o vinho e res- tauradora como o leite. O vinho a representa em momentos de entrega carnal ao amado, quando esse pode embriagar-se dos fluidos femininos; já o leite mostra o carinho e a doçu- ra do amor inocente. Assim, o leite está mais relacionado ao conforto, à inocência e à maternidade. 30 Essa ideia de alimentos que confortam, nos Cânticos dos Cânticos, está bem representada com relação às frutas, que são utilizadas para suprir a carência do amado através da sua suculência. “Confortai-me com maçãs”: os frutos confortadores da cornucópia Em vários textos literários, as frutas são mencionadas como símbolos de desejo tentação e fertilidade, não só por sua suculência e doçura, mas também por ser atrativa aos olhares carentes. No Cântico dos Cânticos, percebe-se a fruta sempre por trás do erotismo e da representação feminina. O esposo, ao deparar-se em momentos de solidão e de desejo, dirige-se à Sulamita recordando as frutas: “Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor”. Nessa suplica, o amado sente falta do conforto trazido pela amada que também pode ser um conforto acalentado pela re- presentação feminina através das frutas. Existem alimentos que confortam, que proporcionam uma nostalgia sentimental ao serem comidos, e esse é o dese- jo do amado: comê-los como se estivesse se deliciando da sua amada, e assim sentindo-se bem e podendo sentir o gosto de provar e recordar os prazeres. Assim, as frutas mostram ser uma representação feminina do desejo masculino, em que o homem é tentado e tenta envolver e desfrutar o alimento, e a mulher seduz através da sua doçura e suculência. Essa analogia remete à metáfora na representação da Cor- nucópia da mitologia romana. Essa é representada por um cesto em forma de chifre com uma abundância de frutas e flores se espalhando dele assim tornando-se um símbolo re- presentativo de fertilidade, riqueza e abundância. 31 Além dessa representação a cornucópia também pode ser um símbolo erótico. O chifre por ser tido como um símbolo fálico, representando o sagrado masculino. E o seu interior simboliza o útero, que, quando cheio de alimentos, simboliza a generosidade da terra fértil, representando o sagrado femi- nino. No Cântico dos Cânticos, há sempre uma predominância das frutas representando o feminino, sendo retratado através do psíquico metafórico do desejo masculino. Isso é o que está mais à mostra e o que consegue ser mais visto através da leitu- ra e da análise, porém, subentendido, sempre há a simbologia fálica; assim como a cornucópia, em que o que é mais bem visto e mais chamativo são as frutas que representam o femi- nino, mas o que dá suporte, o que envolve e o que afaga é o masculino; é nessa representação em que vemos o desejo e o fálico implícitos. Como vemos na metáfora da Cornucópia, o desejo mas- culino sofre de certa carência que necessita ser suprida, aca- lentada e confortada pela representação feminina, por isso a cesta está repleta de frutas, para que haja o preenchimento e conforto dessa carência, porém chega um momento em que essas frutas começam a não caber mais na cesta, o desejo se torna tão faminto que as frutas começam a dispender para fora dela. Essa metáfora representa o desejo contido no enre- do do Cântico dos Cânticos, pois comida e amor, nesse texto, são uma combinação inseparável de necessidade e prazer, sus- tento e excesso. Esse dispêndio e excesso remetem ao princípio da perda de Bataille, no que diz: “A perda deve ser a maior possível para que a atividade adquira seu verdadeiro sentido” (BATAILLE, 1975, p. 30) a dúvida deve conter o sacrifício. Por isso, durante 34 Baldung Grien, Adam and Eve, representa esse conto bíblico, na qual a mão esquerda de Eva está oferecendo uma maçã a Adão, mas Adão parece querer colher sua própria fruta e de uma carne diferente: estando atrás de Eva, sua mão direita está colhendo duas maçãs da árvore, enquanto sua mão es- querda está acariciando o seio de Eva (MAZZONI, 2009). Essa imagem associa, por meio de metáforas visuais e sím- bolos, a maçã e o seio – da perspectiva de Adão: o prazer da maçã redonda e suave é semelhante ao prazer derivado do seio de Eva (MAZZONI, 2009). Além disso, percebe-se que Adão pode sentir o corpo através do toque na própria matéria, no próprio seio; e através do seu psíquico, no toque subjetivo na essência da maçã representando o seio. Esse processo discriminatório revela então que, o huma- no tem uma realidade de essência, de natureza mais íntima e profunda daquilo que faz que o humano seja, o que é, indo além da própria matéria. O dualismo soma e psique fruto do pensamento cartesiano contribuiu para que o ser que é em cada corpo, não pudesse manifestar-se na plenitude de sua essência. A partir dos Cânticos pudemos perceber que as frutas são tidas como representação do corpo, assim materializando o psíquico erótico da continuidade. O corpo simbólico é o que proporciona a redenção do amor e do desejo entre o casal, sendo fundido em um só ato de entrega. É através dessa materialização do corpo que o amado, principalmente, consegue expressar o seu psíquico, na forma de comparação com frutas: “Os teus lábios são como um fio de escarlata, e o teu falar é doce: a tua fronte é qual pedaço de romã dentre os tuas tranças”. A dimensão sagrada e simbólica 35 do corpo traz a representação do que transcende nosso enten- dimento e consciência (MENDONçA, 2004). Além disso, o amado consegue expressar o seu desejo de devoração e de apropriação do corpo da amada, onde esse consegue chegar ao ápice do seu desejo: “Dizia eu: Subirei à sua palmeira, pegarei em seus ramos; e então os teus peitos se- rão como os cachos na vide, e o cheiro da tua respiração, como o das maçãs”. Porém, que importância há em simbolizar o corpo com as frutas? Porque não ser direto em sua expressão? Isso é total- mente justificado através da reflexão de Vertuno à Pomona, na mitologia romana, que disse: “Se a árvore ficasse só, sem a vinha lhe cingindo o tronco, nada teria para nos atrair ou nos oferecer, a não ser folhas inúteis” (BuLfINCH, 2006, p. 86). Assim, percebemos que a ideia de metáforas e de materializa- ção do psíquico através das frutas, foi a chave na qual o ama- do encontrou para expressar-se, sem ser vulgar; e mostrar o seu desejo incessante na ausência da amada, pois essa, a seus olhos é como “Como um pedaço de romã, assim são as tuas faces entre as tranças”. Portanto, através do Cântico dos Cânticos, pudemos con- firmar a teoria de que os alimentos podem sim adquirir um simbolismo erótico e podem ser tidos como afrodisíacos por semelhança através da analogia, materialização e metáforas desses com partes do corpo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao refletir e analisar a relação tênue entre alimentação e erotismo no texto bíblico o Cântico dos Cânticos pudemos perceber que os alimentos podem transcender a sua represen- tação e sua importância com apenas nutrientes; esses podem 36 ser símbolo de desejos e paixões implícitas que só podem ser expressas e materializadas através da metáfora com esses. No texto, o vinho mostra-se como facilitador da continuidade das relações carnais e é representativo da vitalidade e da densida- de do sentimento mutuo do casal; as frutas podem oferecer a continuidades dos corpos com relação ao conforto imediato; e simbologia dos corpos, como a devoração e representação material dos corpos pelo desejo psíquico masculino. Portanto, ao refletirmos sobre a importância desse estudo pudemos perceber que esse serviu para ampliar nossas ideias e percepções sobre alimentos, materializando a ideia de que o homem se alimenta de carne, de vegetais e de imaginário, com isso, os alimentos estão além das suas características nu- tricionais, pois podemos atribuir a esses vários significados simbólicos e subjetivos, assim encontrando a nossa continui- dade através da atribuição da memória, sentimentos e, prin- cipalmente, de desejo, sensualidade e erotismo. Pensar nisso em nossas práticas pode oferecer-nos outras vias para se tra- balhar a questão da educação alimentar e nutricional. O tema da alimentação e erotismo abriria muitas possibilidades de discussão, por exemplo, entre adolescentes. REFERÊNCIAS ALEXANDRE, S. f. A imagética do amor e do sexo urdidos pela voz poética: em cântico dos cânticos de Salomão. Peda- gogia e Autonomia: Identidade Didática e Organização dos Saberes (PAIDOS), Goiás, v. 1, 2009. Disponível em: <http:// www.slmb.ueg.br/paidos/artigos/1_imagetica_do_amor.pdf>. Acessos em 28 jul. 2012. 39 MENDONçA, J. G. R. O corpo e sua dimensão simbólica. Revista de educação, cultura e meio ambiente, Rondônia, v. 8, n. 29, 2004. NASCIMENTO, A. B. Comida - Prazeres, Gozos e trans- gressões. 2. ed. Salvador: Editora EDufBA, 2007. PAZ, O. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wla- dyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1995. PIRES, R. E. Erotismo e religião: um diálogo instigante. 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E a Bíblia enquanto obra literária, maior influência na formação da cultura ocidental, deixa pistas para a compreensão dos movimentos que instituíram tal prática de sociabilidade em torno da comida, bem como nos ajuda a refletir como eles ecoam em nossas práticas atualmente. Assim, este artigo ob- jetiva compreender a ética constitutiva de banquetes descritos no texto bíblico, tendo como corpus a Bíblia. As análises do texto foram realizadas segundo a proposta de Bauer e Gaskell. Os resultados apontaram para três tipos de comportamento que regiam os atos de partilha de alimentos: (1) a ética da passagem, que serve como signo de uma mudança na vida co- letiva ou individual; (2) a ética da comunhão, que cria uma esfera de partilha de valores, conquistas, ideais, de cuidado em favor de alguém ou um povo, visando a um fim político; e (3) a ética do poder, partilhas que engendram relações de acordo, de demonstração do poder via produção de imagens de fartura e que desenham distinção entre soberano e súditos. Nessa ótica, pensar em alimentação envolve focar não ape- 2 Graduada em Nutrição pela universidade federal de Campina Grande (ufCG). E-mail: raquelvitorino_@hotmail.com. 41 nas no componente nutricional, mas pensar os símbolos, a imaginação coletiva, a sociabilidade, enfim, as questões que perpassam o humano. Palavras-chave: comensalidade, sociabilidade, cultura. INTRODUÇÃO Toda linguagem, além de um valor racional e funcional, contém seus ruídos, desvios e aspectos simbólicos. Assim também a alimentação que, para além de seu componente nutricional, reveste-se de cultura, sociabilidade e de aspectos da subjetividade humana (CANESQuI, 2005). A alimentação humana transversaliza a sua existência: profissões, objetos de consumo, rituais de agregação, obras literárias e cinematográficas, novas formas de relacionamen- tos (TIGER, 1993). foquem-se os seguintes rituais: o início e a manutenção das relações pessoais e de negócios, a expressão de amor e carinho, a distinção de um grupo, a reação a um estresse psicológico ou emocional, o significado de status so- cial ou de riqueza, recompensas ou castigos, reconhecimento, fortalecimento da autoestima, exercício do poder político e econômico, prevenção e tratamento de enfermidades físicas e mentais, mudanças de hábitos. Todos esses são eventos relacionados e marcados pelo consumo de alimentos em uma rede de sociabilidades. (NASCIMENTO, 2007). Esse componente social que habita o ato de comer e beber em comunidade define a comensalida- de. Mensa, do latim, significa conviver à mesa e isto envolve não somente o padrão alimentar ou o que se come, mas, prin- cipalmente, como se come (MOREIRA, 2010). O que poderia ser dito sobre os rituais de comensalidade em um dos livros que, segundo Sellier (2011), mais influenciou a formação da cultura ocidental: a Bíblia? 44 apresentado no texto, têm como principal objetivo marcar uma mudança na vida de um indivíduo ou coletividade. No corpus analisado foram encontrados banquetes que explicitam a ética da passagem: como os banquetes de casa- mentos, aniversários e os fúnebres. As primeiras menções que temos na história ocidental aos matrimônios são descritas em textos bíblicos. Nesses relatos os cônjuges eram expostos a algum ritual religioso para oficializar o enlace. Aqui serão destacadas pelo menos dois fragmentos que se referem à pas- sagem dos matrimônios: o casamento de Jacó e Raquel e o casamento do rei Assuero e Ester. Duas cerimônias com di- ferentes propostas, mas com a mesma finalidade: celebrar o contrato matrimonial. (1) Jacó, filho de Rebeca quando chega em Harã conhece a pastora Raquel e descobre que também ela é sua prima, filha de Labão, irmão de sua mãe. Jacó, no momento que conheceu Raquel, amou-a e prometeu servir a Labão por sete anos para ter a sua filha. Após esse tempo, Labão não entregou Raquel, mas sim Lia, filha mais velha, visto que era de costume casar a filha mais velha antes da mais nova. Jacó, então, serviu a La- bão por mais sete anos para ter sua amada e quando o tempo se completou Labão entregou Raquel. Para selar cada um dos casamentos Labão ofertou banquetes públicos entre amigos e familiares oficializando seu acordo com Jacó. (2) Já no segundo caso, tem-se o exemplo do banquete que marca o matrimônio do rei Assuero com Ester. O rei Assuero, após afastar Vasti como rainha do seu reinado, vai em busca de uma nova mulher. A escolhida foi Ester, uma jovem cheia de formosura. Ester encantou o rei Assuero e o próprio sabia que a presença de uma nova rainha em seu reinado demons- traria mais confiança para o povo. foi realizada uma cerimô- 45 nia de casamento em comemoração, sendo selada publica- mente com um banquete para todos os cidadãos de Susã. Tal repasto convivial ficou conhecido como o Banquete de Ester onde o rei distribuiu presentes segundo sua generosidade. Como se pode perceber, os casamentos, já no relato bíbli- co, tinham como função marcar uma passagem que, mais do que um laço afetivo, constituíam-se em um contrato, um ne- gócio realizado a conselho de seus pais, tutores ou ancestrais (Labão, Mardoqueu ou Mordecai, esse último primo e tutor de Ester). O principal papel do casamento, portanto, era servir de base a alianças cuja importância se sobrepunha ao amor e à se- xualidade (ARAÚJO, 2002). Labão procurava uma ética comu- nitária com o casamento de Jacó e Raquel; Assuero intencio- nava assegurar seu poder, manutenção dos limites territoriais e perpetuar sua linhagem; Mordecai, por sua vez, preocupado com o destino do povo judeu, pauta pela ética judaica: por um lado, é preciso ser fiel ao rei da terra na qual se vive e, ao mesmo tempo, não se pode esquecer quem ele é e qual a res- ponsabilidade que lhe cabe por isso. Sendo assim, soube dar a Ester as orientações adequadas para a consolidação desta passagem: de judia deportada à Imperatriz da Pérsia. Por que a necessidade de marcar essa passagem contratual com comida? Oferecer e compartilhar comida, nestes casos, poderia simbolizar o desejo de criar laços (JOANNÈS, 1998). A comensalidade em tais momentos funciona como um sinal da aceitação da participação do indivíduo dentro de deter- minado círculo social: uma nova família, um novo povo (LE HOuEROu, 2006). Os convidados são convocados a comun- gar deste pão como co-participes desse jogo de interações so- ciais, tendo em vista a necessidade de tornar público o con- trato firmado. 46 Tratando de banquetes, percebe-se que há na bíblia um re- lato insuficiente dos alimentos consumidos durante os rituais, com exceção para as comidas que, com o decorrer da nar- rativa, passam a revestir-se de caráter sagrado. O vinho, por exemplo, é um alimento que juntamente com o pão e o azei- te foram revestidos de caráter sagrado e litúrgico pela Igreja (MONTANARI, 2003). Os casamentos são, portanto, modelos de ética de pas- sagem porque representam uma mudança expressa na vida social de duas pessoas. São passagens idênticas para ambos e com um único objetivo: atravessar a etapa do estado de noi- vos para casados. É um dos ritos mais importantes para a so- ciedade na vida e a partilha comum de alimentos serve como prova para essa mudança. “A comensalidade promove uma forte e expressiva convivialidade em circunstâncias particu- lares. Congrega pessoas por ocasião dos ritos de passagem, nomeadamente o nascimento e o casamento” (fERNANDES, 1997, p. 17). Outro ritual de passagem marcado por banquetes são as comemorações dos natalícios, ou seja, os aniversários. Des- taque no texto bíblico para os aniversários de faraó e para o aniversário de Herodes. (1) faraó, o rei do Egito, ao ser ofendido pelo seu copei- ro e padeiro mandou prendê-los. Ambos os presos tiveram sonhos; José, filho de Jacó, relevou o significado dos sonhos deles, dizendo o copeiro a José que tinha visto uma videira da qual brotaram três ramos com cachos de uva. As uvas amadu- receram e ele as espremeu no copo de faraó. Com a ajuda de Deus, José logo entendeu o significado desse sonho. Ele disse ao copeiro que os três ramos significavam três dias e que, após esse tempo, faraó lhe daria novamente o cargo de copeiro. 49 sica para uma não-física. A comida estava presente e media o ato ritual destes momentos de transição. Ética da Comunhão Pode-se dizer que são movidos por uma ética da comu- nhão os banquetes que, inseridos no sistema alimentar apre- sentado no texto, têm como principal objetivo propagar a par- tilha solidária mediada pelo cuidado. Assim sendo, no corpus analisado foram localizados banquetes que indicam a ética da comunhão: pautada pelos banquetes nos quais valores, con- quistas, ideais são partilhados, ou uma ideia de comunidade ou, ainda, a intervenção em favor de alguém ou de um povo, visando um fim político, a construção de uma esfera de bem comum. (1) Jesus Cristo após receber notícia da morte de João Ba- tista, encontra um barco e vai para o deserto, porém, seus dis- cípulos e multidão vão ao seu encontro. Jesus, sensibilizado com tamanha devoção, cura os enfermos presentes. Ao final, um dos discípulos pede a Jesus para deixar seu povo voltar às aldeias para comer, considerado que ali não havia comida suficiente para todos. Jesus então pede ao discípulo os pães e peixes que tinham, segura-os em suas mãos, olha para o céu, os abençoa e lhes dá aos seus discípulos que os distribuem para a multidão e todos comem que se saciam. (2) Jesus fez uma grande ceia para qual convidou seus apóstolos mais próximos para a celebração de sua morte, que estava por vir. A sua morte ofereceria a redenção dos pecados humanos e abriria as portas para o reino por vir. Este pacto é selado pela transubstanciação do vinho e do pão em sangue e corpo de Cristo. 50 (3) A rainha Ester, preocupada com o que poderia aconte- cer com todos de sua linhagem, preparou um banquete para o rei Assuero e também convidou Hamã. Essa oferta apresen- tava uma única intenção: apelar pela vida dos judeus, o seu povo. foi nessa cerimônia que Ester revelou sua identidade como judia para o rei. Após apelar pela vida dos judeus, ele cancela sua ordem dada a pedido de Hamã para matar todos os judeus e condena Hamã a forca por ter ultrajado Ester den- tro do seu próprio palácio. A partilha de alimentos trazida à tona pelos banquetes elencados acima fundam uma ética da comunhão porque, ao partilhar, doa-se pelo outro com atitude atenta e zelo (Jesus e seu sacrifício, Jesus e a atenção com os famélicos, Ester e a compaixão com seu povo). A comunhão marcada pela parti- lha de alimentos, além de marcar uma identificação e com- promisso solidário, marca uma preocupação diligente com o bem-estar do outro: a partilha do pão material. Na multiplicação dos pães e peixes Jesus ao penalizar-se com seus seguidores famélicos, que mesmo assim caminha- ram uma longa distância ao seu encontro, opera o milagre da multiplicação dos alimentos para suprir a necessidade de seu povo. A fome era implacável no período ao qual o texto bíbli- co se refere (JOANNÈS, 1998; LAuRIOuX, 2002). As pessoas viviam num mundo em que os especulado- res retinham os cereais e no qual o Estado e o imperador se serviam do pão para fins políticos, dando alimento a quem apoiasse o seu poder. Assim sendo, Jesus oferecia pão basica- mente por dois motivos (1) para, de certa forma, demonstrar quais perspectivas seu reinado trariam em relação à fome ma- terial, estabelecendo assim um tipo de dominação, mas tam- 51 bém como (2) forma de cuidado. Chegavam até ele pessoas sofrendo das mais terríveis doenças, desesperadas e esfomea- das. Cristo mergulhava de tal forma no interior do sofrimento daquelas pessoas que era insuportável negar-lhes ajuda. Cura- va-os e dava-lhes pão. (JACOB, 2003). Sua partilha foi fundada em um ato amoroso, sendo o amor uma abertura ao outro e uma com-vivência e co-munhão com o outro. (BOff, 2013). Além do pão como alimento físico, como era o maná, ele destaca que aquele pão enquanto palavra, verbo, tinha o po- der de conceder a eternidade espiritual: aquele que comes- se do pão, ou seja, que comungasse daquele momento ritual da palavra, lograria a almejada vida eterna. Isso fica evidente com o ritual da Última ceia. Esse ato funda um regime político por incentivar a mul- tiplicidade de manifestações dentro da comunidade. Des- taca-se, portanto, uma sociabilidade alimentar pautada em uma ideia de imunologia: identificar iguais e distingui-los dos diferentes como forma de proteção, anticorpos contra as influências externas, reforço do vínculo interno da comuni- dade, como sugere Peter Sloterdijk (2009). É nesse momento também que Jesus consagra pela primeira vez a Eucaristia. Correia (2008) responde que não se tratou de Ceia Pascal, mas de uma refeição de adeus ou despedida realizada em um am- biente familiar e apropriado. Portanto, a Última ceia promulga-se como ética da comu- nhão porque Jesus partilhou com seus discípulos o que deve- ria ter real valor e importância em sua vida e na da humani- dade, um ideal, instituindo o ato de comer do “pão da vida” aquele que poderia conceder a vida eterna. A partilha da rainha Ester revelava-se com duas inten- ções indiretamente familiares com as de Cristo: tinha o de- 54 para todos os seus príncipes, servos e nobres buscando mos- trar toda sua grandeza. (5) O rei Belsazar, após assumir o trono de seu pai Na- bucodonosor, em virtude de comemorar seus mais honrados soldados do exército, realizou um banquete para eles onde comeu e bebeu na presença de todos. Durante esse encontro aconteceu um episódio em que uma mão escreveu nas pare- des do palácio com dedos sujos de sangue uma profecia que assombrou o rei que foi em busca de Daniel para tentar inter- pretar a mensagem. Os banquetes destacados nos atentam para uma observa- ção de Albert (2011): a mesa é a ocasião para um tipo parti- cular de sociabilidade. Como local de tomada de decisões, de demonstração de força, de integração e de exclusão, de hie- rarquização ou de nivelamento, a mesa é uma das ferramentas mais sutis e mais eficazes. Abimeleque nessa ocasião por ele oferecida queria fortalecer sua autoridade nas suas proprie- dades aliando-se a Isaque, pois ele adquiriu mais posses do que qualquer um nos últimos tempos. Davi consolidou Ab- ner como um aliado para futura unificação de reinado e Eli- seu criou uma forma de acordo de paz para ele com a Assíria para sua proteção. Assuero impressionava por sua fartura à mesa, assim como o pai de Belsazar, Nabucodonosor. Todos eles juntos, executavam rituais onde se distinguiam de seus súditos. A mesa posta pelos dois reis, Abimeleque e Davi, nos aten- ta para finalidades parecidas: reforço de uma aliança na qual atribuem ao alimento o papel de testemunho dos acordos, compartilhamento de mesmos interesses, esses estabeleci- dos entre seus convivas, e, união pelo mesmo sentido políti- co. “Sentar-se à mesa não era um gesto inofensivo” (ALBERT, 55 2011, p. 12). Eliseu, no entanto, não era um rei, mas um pro- feta que servia a Deus, que o escutava e ao medo da situação a qual foram colocados os soldados que o procuravam o atri- buiu uma imagem de poder. O fausto banquete de Assuero partia para o lado que mais conhecemos na história em banquetes de poder: exibição de luxo acompanhado de exagero. Assuero queria exibir toda e qualquer conquista que tinha conseguido em três anos de reinado. Essa é uma das formas mais antigas de expressão de poder. A demonstração de poder pela grandeza da comemoração estabeleceria visualmente, deste modo, uma dada legitimidade nas relações sociais e culturais de poder. O espectador ou par- ticipante seria impactado pela imagem. Tais comemorações deveriam ter também um cerimonial social (com elementos religiosos ou não), com aspectos culturais, que tenham re- lações com os segmentos sociais presentes nestas comemo- rações de modo a exprimir as hierarquias e representações destes segmentos ampliando o impacto visual do espectador. Médicos e dietistas dos séculos XVI e XVII, erguendo um discurso de advertência sanitária em torno das práticas alimen- tares de reis e senhores, não deixavam de assinalar a diferença do valor nutritivo dos produtos consumidos, sendo que, in- discutivelmente, o lugar cimeiro entre estes era ocupado pelo pão, vinho e carne, que constituíam o que se pode designar por “núcleo do gosto”, de acordo com expressão de Robert fossier, desde a época medieval (fOSSIER, 2010; BuESCu, 2013). O pão estava presente com fartura na mesa do rei. Assim, longe de ser o sinal ou o símbolo de alguma igualdade ali- mentar ou proximidade social, o pão sublinhava as diferenças sociais. É ainda necessário evocar o lugar do vinho na mesa do rei, na corte e na sociedade em geral. O vinho era uma das mais importantes produções da Europa do Sul, e o seu valor 56 social e econômico inquestionável para as populações, tam- bém em Portugal. (BuESCu, 2013). uma partilha diretamente com o rei representava a coesão de igualdade e cidadania en- tre os convivas. O banquete privado que o rei Belsazar reali- zou para os seus soldados é tido como exemplo. A passagem bíblica relata que ele partilhou com seus soldados sua taça de vinho. Dividir a taça com o rei era sinal de unidade e inte- ração com os convivas. Alimentá-los estabelece uma forma de companheirismo que, em retorno, atribui deveres a esta dádiva alimentar (ALBERT, 2011, p. 70). Esses banquetes participam como ética de poder pelo fato de ocorrerem acordos selados entre soberanos, produção de imagens da fartura e do excesso e, sobretudo, atentam para uma das características mais contraditórias que perfazem os rituais de comensalidade: estabelecem simultaneamente igualdade e hierarquia. Ao mesmo tempo em que ao comun- gar deseja-se estabelecer igualdade, o ritual é permeado de regras que distinguem os convivas hierarquicamente, seja no reparto, seja nos lugares tomados. Os banquetes regidos pela ética do poder são cercados de sinais para determinar a posi- ção social e política de cada um. CONSIDERAÇÕES FINAIS Atenta-se para três tipos de comportamento que regiam os atos de partilha de alimentos: (1) a ética da passagem, que serve como signo de uma mudança na vida coletiva ou in- dividual, como casamentos, aniversários e mortes, dando sentido a esses marcos da vida social; (2) a ética da comu- nhão, que cria uma esfera de partilha de valores, conquistas, ideais, de cuidado em favor de alguém ou de algum povo, vi- sando um fim político, onde os alimentos denotam um sinal (COMER BEM, VIVER BEM. ARTE, CULTURA E EDUCAÇÃO MICHELLE JACOB (ORG.) Comer bem, viver bem: arte, cultura e educação Michelle Jacob (Org.) isbn 978-85-5741-003-9 SuMáRIO Prefácio 6 Comer bem, viver bem: artes da nutrição humana 10 I. Arte para comer e viver bem Aroma de especiarias e lábios de mel: alimentação e erotismo no Cântico dos cânticos Agnes Félix 18 A Ética alimentar bíblica: os fundamentos da prática da comensalidade nos banquetes bíblicos Raquel Santos Vitorino 40 A poética dos resíduos da Cinderela do Lixo: Carolina Maria de Jesus em seu Quarto De Despejo Viviany Chaves 61 Por que sou gorda, Mamãe? Marcas da sociedade lipófoba em Cíntia Moscovich Virgínia Williane de Lima Motta 77 A cozinha de Manet: alimentação e vida burguesa no século XIX Analis Costa 98 II. Cultura para comer e viver bem Casas de farinha: as raízes da mandioca no município de Cuité, Paraíba Clébio dos Santos Lima 119 Aspectos culturais das mudanças alimentares no São João de Capina Grande, Paraíba. Íris Cristhianne Jerônimo da Costa Melo 161 Ao vento ou ao sereno: os aspectos históricos e culturais da carne de sol do município de Picuí, Paraíba Vanessa Nogueira Bezerra 178 III. Educação para comer e viver bem Percepção dos educadores infantis sobre alimentação saudável: um estudo de caso em escolas de educação infantil em Picuí, Paraíba Halana dos Santos Germano 207 Análise das ações de educação alimentar e nutricional em um espaço de educação não formal no município de Cuité, Paraíba Helena Cristina Moura Pereira 223 A mesa de Clarice Lispector: a literatura na promoção da alimentação saudável nas escolas Laysa Nóbrega 243 Saberes e sabores da infância: oficinas culinárias como princípio de educação alimentar e nutricional na educação infantil Priscila Silva Cunha 261 Mapa da alimentação da literatura brasileira: o território na promoção da alimentação adequada nas escolas Rafaela Juliane Silva Santos 279 Posfácio 304 6 PREfáCIO fazer um prefácio é sempre um ato de amor, seja pela afei- ção ao tema, ao conhecimento em si ou ao “encomendador” de tal tarefa. Como creio na causalidade, parece-me signifi- cativo que Michelle Jacob tenha me convidado para prefaciar esta coletânea organizada por ela. Vivo agora, enquanto dedi- lho estas palavras, os primeiros dias de minha aposentadoria, com desejo e necessidade de longas férias, mas interrompo essa volição por outra maior – a vontade de compartilhar algo, que como disse ela, só eu saberia contar, ou coisas que só uma velha professora pode dizer. A organização de um livro traz a marca da pessoa que tem a ideia, reúne e transforma coisas dispersas no tempo e no espaço delineando-os em um conjunto harmonioso; aquela que faz de textos esparsos um escrito com sentido. Esta organização e os textos aqui apresentados traduzem a vida acadêmica de Michelle. Posso vê-la em seu tempo em cada um deles, porque vi(vi) este percurso com ela, como professora e amiga. Nosso primeiro contato se deu quando ela cursava o quar- to período de Nutrição, na disciplina de Nutrição Humana, para a qual eu era convidada a apresentar algo do qual quase todos os alunos e alunas nunca tinham ouvido falar – que se pode, SIM, viver saudavelmente sem comer carnes, ovos e la- ticínios e que algumas pessoas até o fazem. Como se o choque fora pouco, ainda falava daqueles que optam por não comer – os adeptos da nutrição prânica. Depois das costumeiras e 9 se trata de resgatar, mas de reinventar. O que os autores nos dizem é que não é momento de nos desencantarmos, mas de recantarmo-nos com as múltiplas possibilidades do amor à Terra como Gaia. Escrevo este texto poucos dias depois de perdermos Leo- nard Cohen; pensando no muito a fazer no âmbito da Ali- mentação e Nutrição pela via da contracultura podemos to- mar emprestado sua frase I’ve done my best, I know it wasn’t much e trabalhar, muito e sempre. Isto faz Michelle e os auto- res aqui reunidos. Ao lê-los temos a certeza de que não somente nossos alu- nos e alunas de todos os níveis, mas também comerciantes, docentes, agricultoras e agricultores, donas e donos de casa, pais e mães, gestores e nutricionistas contam com uma gera- ção de nutricionistas capazes de reconstruir práticas culturais, como disse Maturana, através de redes específicas de conver- sações. Diz este autor que as mudanças culturais ocorrem por uma modificação do emocionar, que ao assegurar uma nova rede de conversações constitui uma nova cultura. Se você ainda não é um dos nossos, converse com estes autores através destes escritos; fale sozinho enquanto lê, fale com seus amigos depois de ler, seguramente pode ser um ex- celente começo para esta conversa capaz de mudar a vida e de mudar o mundo. Vera Pinto 10 COMER BEM, VIVER BEM: ARTES DA NuTRIçãO HuMANA Já que de toda forma é necessário comer, o que comer? Como resol- ver essa metonímia da introjeção? “É necessário comer bem”, desta forma, não quer dizer prender e compreender em si, mas apren- der a dar de comer, aprender-a-dar-de-comer-ao-Outro. Jamais se come tudo sozinho, veja-se a regra do é necessário comer bem. É uma lei de infinita hospitalidade. Em todas as diferenças, as rup- turas, as guerras, é esse bem comer que está em jogo. É necessário comer bem, eis aí uma máxima que deve sofrer ao infinito uma variação nas modalidades e nos conteúdos. O refinamento sublime no respeito é também uma maneira de comer bem ou de comer o bem. O bem também pode e deve ser comido e comido bem. Jacques Derrida. Il fault bien manger. Points de suspension. Que todos vayamos juntos, que nadie se quede atrás, que todo alcance para todos, y que a nadie le falte nada. Provérbio Ayamara Em entrevista a Jean-Luc Nancy, Jacques Derrida levanta a questão do sofrimento animal ligado à alimentação humana: comer é necessário, mas é necessário, também, fazer sofrer? Afinal, o que é comer bem?, lança a questão. Não por justifica- tiva de aporte proteico, nem tampouco por falta de outras ma- térias, come-se animais. Para Derrida, a virilidade carnívora, que ele denomina como carnofalogocentrismo, é o esquema dominante de cultura ocidental. E é a partir dele, que mesmo os vegetarianos ou culturas ditas não-antropofágicas, tam- 11 bém incorporam carnivoramente o outro: não basta abster- se de comer carne para tornar-se um não-carnívoro. […] Os vegetarianos também podem incorporar, como todo mundo, simbolicamente, algo vivo, carne e sangue, do homem ou de Deus, comenta em sua obra O animal que logo sou. Comer bem é, certamente, uma máxima que sofre ao infi- nito variação nas modalidades e nos conteúdos. A discussão levantada por Derrida que começa com a pergunta sobre o comer no sentido da incorporação física e nos convida a uma ampliação do pensamento para o modo de incorporação sim- bólica na cultura do ocidente - do homem branco que toma a sua própria mitologia, seu logos, pela forma universal do que se deve designar por razão - é exemplar da multiplicidade das instâncias do comer e, logo, da discussão em torno de um co- mer bem. Comer bem: esse é o tema de interesse central da Nutri- ção. O caso apontado na discussão entre Nancy e Derrida é apenas um dos exemplos de questões que orbitam ao seu redor. Atualmente, a Nutrição, enquanto campo do conheci- mento estabelecido sob o logos científico, vem abrindo-se a diálogos transdisciplinares, ao reconhecer que suas questões, que envolvem a relação do homem com o alimento, excedem o campo material da incorporação física, e repousam sob um terreno nômade, para utilizar a ideia de Gilles Deleuze, dota- do de interseções com as Ciências Humanas e Sociais. Marco significativo deste esforço de diálogo foi o destaque concedido à Interdisciplinaridade na área de Nutrição, no do- cumento de avaliação trienal produzido pela diretoria de ava- liação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní- vel Superior (CAPES) em 2013. Neste relatório destaca-se que programas de pós-graduação na área de Nutrição poderão ser 14 obra da gaúcha Cíntia Moscovich, Por que sou gorda mamãe?. Analis Costa, por sua vez, sai do âmbito literário e apresen- ta a pintura como seu material de pesquisa. Para analisar os costumes alimentares do século XIX, apresenta a obra de Édouard Manet como um modelo reduzido levistrausiano da sociedade burguesa. Esse é o conteúdo da primeira seção, Arte para comer e viver bem. A segunda seção, Cultura para comer e viver bem, apresen- ta o relevo da análise cultural para a compreensão dos fenô- menos alimentares locais. Em Alimentação, sociedade e cultu- ra, o antropólogo Jesús Contreras, sublinha a importância da pesquisa antropológica no desenvolvimento de investigações na área da alimentação, sobretudo, naquelas que analisam o comer a partir de suas questões que transcendem a materiali- dade estrita do alimento, analisando questões políticas, sim- bólicas, éticas entre outras. Neste sentido é que Clébio Lima propõe uma reflexão sobre o desmonte das casas de farinha brasileiras, que Íris Costa convida o leitor a refletir sobre a padronização das práticas alimentares no festejo mais tradi- cional da Paraíba, o junino, e que Vanessa Nogueira questio- na a ideia de tradição ao remontar a história da carne de sol em Picuí, na Paraíba, cidade nacionalmente reconhecida pela produção deste alimento. Educação para comer e viver bem, a terceira seção, apre- senta a educação alimentar e nutricional (EAN) como princí- pio de diálogo com o outro. Maria Cristina faber Boog, uma das grandes mestras da EAN no país, reforça em sua última obra, Educação em Nutrição, a necessidade de operar diag- nósticos educativos com o fim de conhecer as razões e o ter- reno no qual as práticas alimentares são construídas, para daí sim instaurar processos verdadeiramente dialógicos. A partir 15 desta ótica é que se desenvolveram os trabalhos desta seção. Laysa Nóbrega, trabalhando com Clarice Lispector, e Rafaela Santos, com Graciliano Ramos, tentam transpor a ideia apre- sentada na primeira seção, que entende que a arte é objeto de conhecimento também para o desenvolvimento ações de EAN em ambientes escolares junto a crianças e adolescentes. Halana Germano e Helena Pereira tentam, a partir da reflexão sobre suas práticas, trazer elementos para pensar o fazer em EAN. Priscila Cunha, por fim, reconhecendo que a educação é um processo de corpo inteiro, como já disse friedrich Niet- zsche, propõe, alinhada como o Marco de referência em EAN, que a culinária é um dos princípios que deve orientar nossas praticas educativas para um comer bem. Comer: simples porque integrado ao mais cotidiano do nossos gestos, complexo pela mesma razão. Tentar tateá-lo no âmbito da reflexão científica deixa exposta essa dificuldade de definir e limitar conceitualmente a ideia de um comer bem. Até o momento, a ideia que parece sintetizar esses pressupos- tos e que assim torna-se aparentada sua é o viver bem ou bem viver andino, uma visão holística e integrada do ser huma- no inserido na grande comunidade terrenal que inclui, além dele, toda a comunidade de vida. São treze os princípios do bem-viver: saber beber, saber dançar, saber dormir, saber tra- balhar, saber meditar, saber pensar, saber amar e ser amado, saber escutar, saber falar bem, saber sonhar, saber caminhar, saber dar e receber e, por fim, saber comer, princípio que en- volve uma clara dimensão ética, com valores de uma civiliza- ção focada na centralidade da vida, que vive o sentimento de pertença a um Todo e compaixão para com os que sofrem e de solidariedade entre todos, conforme afirma Leonardo Boff, em Sustentabilidade: o que é, o que não é. 16 Acreditamos que comer bem, e logo o viver bem, passe pelo processo de aprender a partilhar, denominado por Der- rida de aprender-a-dar-de-comer-ao-outro, e pelos andinos a saber dar e receber. Nutrir ideias em um livro é um gesto de partilha, de um processo que ativa a interação e, em conse- quência, na nutrição mútua deste jovem campo em pleno es- tágio de desenvolvimento. Acreditamos que esse seja o prin- cípio de toda Nutrição Humana. 19 envolver o corpo feminino, assim podendo perceber a repre- sentação da dualidade do verbo comer. Com isso, ao refletir e analisar a relação entre alimentação e erotismo no texto bí- blico Cântico dos Cânticos, pudemos perceber que os alimen- tos podem transcender a sua representação e sua importância com apenas nutrientes: podem ser símbolo de desejos e pai- xões implícitas que só podem ser expressas e materializadas através da metáfora com esses. O estudo serviu para ampliar nossas percepções sobre alimentos, materializando a ideia de que o homem se alimenta de carne, de vegetais e de imaginá- rio, com isso, os alimentos estão além das suas características nutricionais. Palavras-chave: Cântico dos Cânticos, alimentos, erotismo. INTRODUÇÃO A literatura é caracterizada por uma relação com a reali- dade e apresenta certas propriedades de linguagem. Os dois aspectos estão interligados. uma obra literária não é uma “có- pia” ou “descrição” da realidade, mas que, em uma instância preliminar, por usar a linguagem que se constitui em “signos” gráficos e sonoros, ela é uma reconstrução do mundo a partir da percepção do artista, de modo a transmitir aos leitores uma visão particular da realidade (fERREIRA, 2008). Tomemos como exemplo a poesia que é capaz de trazer para o mundo material um encontro mágico de um homem e de uma mulher. uma materialização que se torna, poeticamen- te, possível devido à fusão do ver e do crer, ou seja, não vemos o poema com olhos materiais, mas com olhos do espírito. Assim, os sentidos se tornam servos da imaginação, prontos para criar (ALEXANDRE, 2009). 20 Na literatura/poesia, o erotismo está relacionado às ima- gens eróticas que afloram na mente do leitor durante o ato da leitura, quando “a imagem, mental ou escrita, entretém com o visual” (BOSI, 1977, p. 14). Para Paz (1995), “a relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal”. Desse modo, essa linguagem - som que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas - é capaz de no- mear o mais fugaz e evanescente dos sentimentos: a sensação erótica. um exemplo de poesia que possui sentido erótico laten- te é o texto bíblico Cântico dos Cânticos, que trata, do come- ço ao fim, do amor humano. Curiosamente, porém, em ne- nhum lugar, explica ou define diretamente o amor. Todavia, o livro tenta, indiretamente de alguma maneira, balbuciá-lo por meio de imagens, metáforas e comparações que abarcam, praticamente, todos os campos da natureza e da produção humana (STORNIOLO; BALANCIN, 1991). Neste livro, uma das formas para falar o amor é utilizar imagens de alimentos com uma aparente conotação erótica. É, no âmbito religioso, que os alimentos começam por adquirir conotações eróticas (NASCIMENTO, 2007). Diante das imagens que podem ser atribuídas aos alimen- tos em textos eróticos e poéticos; o presente trabalho tem o objetivo de compreender a relação entre alimentação e erotis- mo, tendo, como corpus, o texto bíblico Cântico dos Cânticos. O referencial teórico utilizado para compreender o erotismo será Georges Bataille, a partir da obra O erotismo (1987). Como estratégia metodológica para análise do texto foi eleita a análise temática, proposta por Bauer e Gaskell (2002), para permitir uma reflexão mais aprofundada sobre a obra e sobre o tema discutido. 21 DESVENDANDO FONTES DE PRAZER Prazer sexual - o erotismo: a busca por uma continuidade Embora implique a intensificação da relação amorosa, o erotismo não tem por objetivo o enfoque do ato sexual em si, mas a infinita gama de matizes sensuais que presidem a intimidade entre os sexos. É o despertar da excitação sexual e o seu consequente prolongamento, privilegiando o estado de desejo sobre o ato sexual consumado, de modo a envolver va- riadas etapas e matrizes da sexualidade, que poderão ou não culminar no ato sexual. Desse modo, entende-se que o erotis- mo seja um valor em si, independente da realização última do impulso sexual (fRANCONI, 1997). Se pensarmos na literatura e nas artes, a compreensão do erotismo está em toda parte, vemos que, nessa atividade do desejo, está o gasto, a consumação, a interiorização daquilo se tomava como o que se procura fora de nós (BARROS, 2007). O querer ser procurado e encontrado advém da experiência da união dos corpos que é explicado no Mito do Andrógino encontrado na obra O banquete, de Platão, que retrata a expli- cação da vontade dos homens de serem completados. Assim, o erotismo é a busca a união dos corpos; e, como relatado no evangelho de Marcos no capitulo 10 e versículo 8, “serão ambos uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne” (ALMEIDA, 1993). Nessa linha de pensamento, o mito e as demais defini- ções apresentam pontos de convergência com pensamento de Georges Bataille sobre o erotismo. Bataille, em O erotis- mo (1987), reflete intensamente sobre a complexidade da vida erótica, ressaltando a íntima relação entre essa e a experiência místico-religiosa. Segundo ele, o erotismo diz respeito a uma 24 Prazer de ler - cânticos dos cânticos O Cântico dos Cânticos, de Salomão é um livro poético que consta na Bíblia como parte integrante das Sagradas Escrituras (STADELMANN, 1993). A tradução literal da ex- pressão “Cântico dos cânticos” é “o mais belo (o maior) de todos os cânticos”. O livro é chamado de o mais belo porque é o objeto da realidade mais bela, o amor: quão belo é o teu amor (SANTOS, 2011). Existem várias indagações sobre a autoria dos Cânticos. Há os adeptos da autoria salomônica, que apoiam tal atri- buição, a começar pelo próprio título onde está dito que se trata do mais belo Cântico de Salomão. Salomão é mencio- nado em várias partes do poema e, para muitos, identifi- cado como o amante ou o “esposo” de Sulamita. Há claras referências à riqueza, ao luxo, à presença de bens impor- tados, característicos do reino de Salomão (CAVALVANTI, 2005). Segundo Storniolo e Balancin (1991), existem duas perspectivas diferentes com relação à interpretação do Cântico dos Cânticos: a Interpretação religiosa e a Interpre- tação profana. Na Interpretação Religiosa, o Cântico fica inteiramente espiritualizado. Segundo o Novo Testamento: Cristo seria o amado, e o povo cristão seria a amada; o Cântico seria a parábola sobre o amor de Cristo pela Igreja (STORNIOLO; BALANCIN, 1991). Na Interpretação Profana, o Cântico seria apenas uma antologia de cânticos de amor para ce- lebrar o amor humano (STORNIOLO; BALANCIN, 1991). O Cântico dos cânticos exalta e canta o amor entre o homem e a mulher, dentre os diversos tipos de amor o exemplar e paradigmático (SANTOS, 2011). 25 Vale ressaltar que o Cântico é poesia. uma das caracte- rísticas da poesia é trabalhar a linguagem nos seus múltiplos significados. Todo texto poético tem por natureza a capacida- de de desvelar realidades diferentes, por meio de símbolos, as- sociações, evocações, comparações, etc. (SANTOS, 2011). Nos Cânticos, a fruta é uma imagem do corpo representada como símbolo de amor e metáfora para mulheres: doce e nutritiva, sensualmente prazerosa. Símbolos de corpos amantes e do desejo corporal no Cântico dos Cânticos, a fruta permaneceu um objeto de desejo. REFERENCIAL TEORICO E ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS O referencial teórico utilizado para compreender erotis- mo será Bataille, a partir da obra O erotismo (1987). Para Ba- taille, a compreensão do erotismo está associada à ausência de limites levando à dissolução da descontinuidade; e o dese- jo erótico da busca da continuidade perdida, da completude do ser, própria de nossa natureza; a experiência da união dos corpos em um só. Para corpus utilizamos um dos livros da Bíblia, pois enten- demos que a Bíblia se trata de uma obra que há anos é uma das mais lidas no mundo, influenciando em soberania a cul- tura ocidental, por meio de suas narrativas. Assim observa- mos a importância deste livro ser interpretado como um texto literário. Com isso, o corpus foi composto pelo livro “Cântico dos Cânticos”, que faz parte dos livros poéticos do Antigo Tes- tamento na Bíblia. O poema é o único livro da Bíblia que é todo composto por diálogos. Durante estes, o amado, para ex- pressar o seu amor, faz alusões da amada a paisagens, animais e, principalmente, a alimentos. 26 O corpus foi analisado a partir da metodologia de análise temática, de acordo com Bauer e Gaskell (2002), o qual reco- menda um procedimento gradual de redução do texto quali- tativo. Primeiramente, realizamos a primeira redução, onde os textos foram parafraseados em sentenças mais sucintas. Após isso, efetuamos uma segunda redução em que as sen- tenças foram parafraseadas em palavras-chaves. “Ambas as reduções operam com generalização e condensação de senti- do” (BAuER; GASKEL, 2002. p. 107). A partir disso, essas pala- vras foram separadas em categorias, para serem interpretadas e analisadas. Durante o desmembramento da análise das categorias, usamos narrativas da mitologia grega e romana como estraté- gia de apoio à discussão dos resultados. Assim, como apresen- tado por Lévi-Strauss (1989, p.39), assumimos os lugares de cientista e de bricoleur, pois por meios artesanais elaboramos um objeto material que é também um objeto de conhecimen- to. Assim, através dos mitos podemos ter uma maior percep- ção reflexiva em situações que necessitam de uma representa- ção metafórica para serem interpretadas. Portanto, nesse trabalho buscamos dialogar o conjunto estruturado presente no Cântico dos Cânticos e os fragmentos de conjuntos estruturados dos mitos gregos e romanos, as- sim utilizando um mito para entender o outro; buscando um maior respaldo para organizar novas informações e percep- ções sobre a relação entre alimentação e erotismo. RESULTADOS E DISCUSSÃO Ao realizar a análise temática do Cântico dos Cânticos, chegou-se a três categorias de análise: vinho, como princi- pal bebida representadora e facilitadora do erotismo; frutos, 29 “Beije-me com os beijos da sua boca, porque melhor é o seu amor do que o vinho”. O vinho é o referencial marcante de desejo do casal. E, além disso, é o meio pelo qual o amado tem acesso psíquico ao sabor da amada. Esse se embriaga com o vinho como se estivesse consumindo a vitalidade do amor de sua amada. É através do vinho que o amado mantém acesa a memória do sabor e da intensidade da amada, mesmo essa estando distante. A partir dos versos como um todo, percebe-se que há re- presentações tanto do significado do vinho para o cristianis- mo quanto para a mitologia grega, vemos que a relação do casal é tida como um amor denso e vital, como o sangue; e o vinho é o que facilita a união dos corpos, assim podendo haver a continuidade do ser. Além do vinho, o Cântico dos Cânticos também cita: “Co- lhi a minha mirra com a minha especiaria, comi o meu favo com o meu mel, bebi o meu vinho com o meu leite”. Assim, outra bebida que também é citada é o leite. Porém, a partir da análise do texto, pudemos perceber a grande diferença entre a simbologia do vinho e do leite para o casal. O leite e o vinho são o alimento da inocência e a bebida da vida adulta, respec- tivamente, símbolos do alimento puro e do prazer absoluto. Podemos perceber que, no Cântico dos Cânticos, a amada passa por vários momentos marcantes, pois ela experimenta tanto a infantilidade em sua inocência quanto a malícia e sen- sualidade em sua embriaguez, pois o leite e o vinho é que dão sabor ao seu corpo. Ela é transformadora como o vinho e res- tauradora como o leite. O vinho a representa em momentos de entrega carnal ao amado, quando esse pode embriagar-se dos fluidos femininos; já o leite mostra o carinho e a doçu- ra do amor inocente. Assim, o leite está mais relacionado ao conforto, à inocência e à maternidade. 30 Essa ideia de alimentos que confortam, nos Cânticos dos Cânticos, está bem representada com relação às frutas, que são utilizadas para suprir a carência do amado através da sua suculência. “Confortai-me com maçãs”: os frutos confortadores da cornucópia Em vários textos literários, as frutas são mencionadas como símbolos de desejo tentação e fertilidade, não só por sua suculência e doçura, mas também por ser atrativa aos olhares carentes. No Cântico dos Cânticos, percebe-se a fruta sempre por trás do erotismo e da representação feminina. O esposo, ao deparar-se em momentos de solidão e de desejo, dirige-se à Sulamita recordando as frutas: “Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor”. Nessa suplica, o amado sente falta do conforto trazido pela amada que também pode ser um conforto acalentado pela re- presentação feminina através das frutas. Existem alimentos que confortam, que proporcionam uma nostalgia sentimental ao serem comidos, e esse é o dese- jo do amado: comê-los como se estivesse se deliciando da sua amada, e assim sentindo-se bem e podendo sentir o gosto de provar e recordar os prazeres. Assim, as frutas mostram ser uma representação feminina do desejo masculino, em que o homem é tentado e tenta envolver e desfrutar o alimento, e a mulher seduz através da sua doçura e suculência. Essa analogia remete à metáfora na representação da Cor- nucópia da mitologia romana. Essa é representada por um cesto em forma de chifre com uma abundância de frutas e flores se espalhando dele assim tornando-se um símbolo re- presentativo de fertilidade, riqueza e abundância. 31 Além dessa representação a cornucópia também pode ser um símbolo erótico. O chifre por ser tido como um símbolo fálico, representando o sagrado masculino. E o seu interior simboliza o útero, que, quando cheio de alimentos, simboliza a generosidade da terra fértil, representando o sagrado femi- nino. No Cântico dos Cânticos, há sempre uma predominância das frutas representando o feminino, sendo retratado através do psíquico metafórico do desejo masculino. Isso é o que está mais à mostra e o que consegue ser mais visto através da leitu- ra e da análise, porém, subentendido, sempre há a simbologia fálica; assim como a cornucópia, em que o que é mais bem visto e mais chamativo são as frutas que representam o femi- nino, mas o que dá suporte, o que envolve e o que afaga é o masculino; é nessa representação em que vemos o desejo e o fálico implícitos. Como vemos na metáfora da Cornucópia, o desejo mas- culino sofre de certa carência que necessita ser suprida, aca- lentada e confortada pela representação feminina, por isso a cesta está repleta de frutas, para que haja o preenchimento e conforto dessa carência, porém chega um momento em que essas frutas começam a não caber mais na cesta, o desejo se torna tão faminto que as frutas começam a dispender para fora dela. Essa metáfora representa o desejo contido no enre- do do Cântico dos Cânticos, pois comida e amor, nesse texto, são uma combinação inseparável de necessidade e prazer, sus- tento e excesso. Esse dispêndio e excesso remetem ao princípio da perda de Bataille, no que diz: “A perda deve ser a maior possível para que a atividade adquira seu verdadeiro sentido” (BATAILLE, 1975, p. 30) a dúvida deve conter o sacrifício. Por isso, durante 34 Baldung Grien, Adam and Eve, representa esse conto bíblico, na qual a mão esquerda de Eva está oferecendo uma maçã a Adão, mas Adão parece querer colher sua própria fruta e de uma carne diferente: estando atrás de Eva, sua mão direita está colhendo duas maçãs da árvore, enquanto sua mão es- querda está acariciando o seio de Eva (MAZZONI, 2009). Essa imagem associa, por meio de metáforas visuais e sím- bolos, a maçã e o seio – da perspectiva de Adão: o prazer da maçã redonda e suave é semelhante ao prazer derivado do seio de Eva (MAZZONI, 2009). Além disso, percebe-se que Adão pode sentir o corpo através do toque na própria matéria, no próprio seio; e através do seu psíquico, no toque subjetivo na essência da maçã representando o seio. Esse processo discriminatório revela então que, o huma- no tem uma realidade de essência, de natureza mais íntima e profunda daquilo que faz que o humano seja, o que é, indo além da própria matéria. O dualismo soma e psique fruto do pensamento cartesiano contribuiu para que o ser que é em cada corpo, não pudesse manifestar-se na plenitude de sua essência. A partir dos Cânticos pudemos perceber que as frutas são tidas como representação do corpo, assim materializando o psíquico erótico da continuidade. O corpo simbólico é o que proporciona a redenção do amor e do desejo entre o casal, sendo fundido em um só ato de entrega. É através dessa materialização do corpo que o amado, principalmente, consegue expressar o seu psíquico, na forma de comparação com frutas: “Os teus lábios são como um fio de escarlata, e o teu falar é doce: a tua fronte é qual pedaço de romã dentre os tuas tranças”. A dimensão sagrada e simbólica 35 do corpo traz a representação do que transcende nosso enten- dimento e consciência (MENDONçA, 2004). Além disso, o amado consegue expressar o seu desejo de devoração e de apropriação do corpo da amada, onde esse consegue chegar ao ápice do seu desejo: “Dizia eu: Subirei à sua palmeira, pegarei em seus ramos; e então os teus peitos se- rão como os cachos na vide, e o cheiro da tua respiração, como o das maçãs”. Porém, que importância há em simbolizar o corpo com as frutas? Porque não ser direto em sua expressão? Isso é total- mente justificado através da reflexão de Vertuno à Pomona, na mitologia romana, que disse: “Se a árvore ficasse só, sem a vinha lhe cingindo o tronco, nada teria para nos atrair ou nos oferecer, a não ser folhas inúteis” (BuLfINCH, 2006, p. 86). Assim, percebemos que a ideia de metáforas e de materializa- ção do psíquico através das frutas, foi a chave na qual o ama- do encontrou para expressar-se, sem ser vulgar; e mostrar o seu desejo incessante na ausência da amada, pois essa, a seus olhos é como “Como um pedaço de romã, assim são as tuas faces entre as tranças”. Portanto, através do Cântico dos Cânticos, pudemos con- firmar a teoria de que os alimentos podem sim adquirir um simbolismo erótico e podem ser tidos como afrodisíacos por semelhança através da analogia, materialização e metáforas desses com partes do corpo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao refletir e analisar a relação tênue entre alimentação e erotismo no texto bíblico o Cântico dos Cânticos pudemos perceber que os alimentos podem transcender a sua represen- tação e sua importância com apenas nutrientes; esses podem 36 ser símbolo de desejos e paixões implícitas que só podem ser expressas e materializadas através da metáfora com esses. No texto, o vinho mostra-se como facilitador da continuidade das relações carnais e é representativo da vitalidade e da densida- de do sentimento mutuo do casal; as frutas podem oferecer a continuidades dos corpos com relação ao conforto imediato; e simbologia dos corpos, como a devoração e representação material dos corpos pelo desejo psíquico masculino. Portanto, ao refletirmos sobre a importância desse estudo pudemos perceber que esse serviu para ampliar nossas ideias e percepções sobre alimentos, materializando a ideia de que o homem se alimenta de carne, de vegetais e de imaginário, com isso, os alimentos estão além das suas características nu- tricionais, pois podemos atribuir a esses vários significados simbólicos e subjetivos, assim encontrando a nossa continui- dade através da atribuição da memória, sentimentos e, prin- cipalmente, de desejo, sensualidade e erotismo. Pensar nisso em nossas práticas pode oferecer-nos outras vias para se tra- balhar a questão da educação alimentar e nutricional. O tema da alimentação e erotismo abriria muitas possibilidades de discussão, por exemplo, entre adolescentes. REFERÊNCIAS ALEXANDRE, S. f. A imagética do amor e do sexo urdidos pela voz poética: em cântico dos cânticos de Salomão. Peda- gogia e Autonomia: Identidade Didática e Organização dos Saberes (PAIDOS), Goiás, v. 1, 2009. Disponível em: <http:// www.slmb.ueg.br/paidos/artigos/1_imagetica_do_amor.pdf>. Acessos em 28 jul. 2012. 39 MENDONçA, J. G. R. O corpo e sua dimensão simbólica. Revista de educação, cultura e meio ambiente, Rondônia, v. 8, n. 29, 2004. NASCIMENTO, A. B. Comida - Prazeres, Gozos e trans- gressões. 2. ed. Salvador: Editora EDufBA, 2007. PAZ, O. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wla- dyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1995. PIRES, R. E. Erotismo e religião: um diálogo instigante. Re- vista Brasileira de Psicanalise, São Paulo, v. 41, n. 2, p. 141- 148, 2007. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo. php?pid=S0486-641X2007000200013&script=sci_arttext>. Acessos em 11 set. 2012. SANTOS, M. A. dos. Introdução ao Cântico dos Cânticos. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Edição de estudos. Tradu- ção de João José Pedreira de Castro. 1. ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 2011. STADELMANN, I. L. Cântico dos Cânticos. 2. ed. São Paulo: Loyola. 1993. STORNIOLO, I; BALANCIN, E. M. Como ler o cântico dos cânticos: o amor é uma faísca de Deus. São Paulo: Edições Paulinas. 1991. TIGER, L. A busca do prazer. Rio de Janeiro: RJ, Objetiva, 1993. 40 A ÉTICA ALIMENTAR BÍBLICA: os fundamentos da prática da comensalidade nos banquetes bíblicos Raquel Santos Vitorino2 Resumo: Os banquetes, desde a Idade Antiga, oferecem ele- mentos para reflexão sobre a passagem natureza-cultura ope- rada via comensalidade no âmbito da culinária humana. E a Bíblia enquanto obra literária, maior influência na formação da cultura ocidental, deixa pistas para a compreensão dos movimentos que instituíram tal prática de sociabilidade em torno da comida, bem como nos ajuda a refletir como eles ecoam em nossas práticas atualmente. Assim, este artigo ob- jetiva compreender a ética constitutiva de banquetes descritos no texto bíblico, tendo como corpus a Bíblia. As análises do texto foram realizadas segundo a proposta de Bauer e Gaskell. Os resultados apontaram para três tipos de comportamento que regiam os atos de partilha de alimentos: (1) a ética da passagem, que serve como signo de uma mudança na vida co- letiva ou individual; (2) a ética da comunhão, que cria uma esfera de partilha de valores, conquistas, ideais, de cuidado em favor de alguém ou um povo, visando a um fim político; e (3) a ética do poder, partilhas que engendram relações de acordo, de demonstração do poder via produção de imagens de fartura e que desenham distinção entre soberano e súditos. Nessa ótica, pensar em alimentação envolve focar não ape- 2 Graduada em Nutrição pela universidade federal de Campina Grande (ufCG). E-mail: raquelvitorino_@hotmail.com. 41 nas no componente nutricional, mas pensar os símbolos, a imaginação coletiva, a sociabilidade, enfim, as questões que perpassam o humano. Palavras-chave: comensalidade, sociabilidade, cultura. INTRODUÇÃO Toda linguagem, além de um valor racional e funcional, contém seus ruídos, desvios e aspectos simbólicos. Assim também a alimentação que, para além de seu componente nutricional, reveste-se de cultura, sociabilidade e de aspectos da subjetividade humana (CANESQuI, 2005). A alimentação humana transversaliza a sua existência: profissões, objetos de consumo, rituais de agregação, obras literárias e cinematográficas, novas formas de relacionamen- tos (TIGER, 1993). foquem-se os seguintes rituais: o início e a manutenção das relações pessoais e de negócios, a expressão de amor e carinho, a distinção de um grupo, a reação a um estresse psicológico ou emocional, o significado de status so- cial ou de riqueza, recompensas ou castigos, reconhecimento, fortalecimento da autoestima, exercício do poder político e econômico, prevenção e tratamento de enfermidades físicas e mentais, mudanças de hábitos. Todos esses são eventos relacionados e marcados pelo consumo de alimentos em uma rede de sociabilidades. (NASCIMENTO, 2007). Esse componente social que habita o ato de comer e beber em comunidade define a comensalida- de. Mensa, do latim, significa conviver à mesa e isto envolve não somente o padrão alimentar ou o que se come, mas, prin- cipalmente, como se come (MOREIRA, 2010). O que poderia ser dito sobre os rituais de comensalidade em um dos livros que, segundo Sellier (2011), mais influenciou a formação da cultura ocidental: a Bíblia? 44 apresentado no texto, têm como principal objetivo marcar uma mudança na vida de um indivíduo ou coletividade. No corpus analisado foram encontrados banquetes que explicitam a ética da passagem: como os banquetes de casa- mentos, aniversários e os fúnebres. As primeiras menções que temos na história ocidental aos matrimônios são descritas em textos bíblicos. Nesses relatos os cônjuges eram expostos a algum ritual religioso para oficializar o enlace. Aqui serão destacadas pelo menos dois fragmentos que se referem à pas- sagem dos matrimônios: o casamento de Jacó e Raquel e o casamento do rei Assuero e Ester. Duas cerimônias com di- ferentes propostas, mas com a mesma finalidade: celebrar o contrato matrimonial. (1) Jacó, filho de Rebeca quando chega em Harã conhece a pastora Raquel e descobre que também ela é sua prima, filha de Labão, irmão de sua mãe. Jacó, no momento que conheceu Raquel, amou-a e prometeu servir a Labão por sete anos para ter a sua filha. Após esse tempo, Labão não entregou Raquel, mas sim Lia, filha mais velha, visto que era de costume casar a filha mais velha antes da mais nova. Jacó, então, serviu a La- bão por mais sete anos para ter sua amada e quando o tempo se completou Labão entregou Raquel. Para selar cada um dos casamentos Labão ofertou banquetes públicos entre amigos e familiares oficializando seu acordo com Jacó. (2) Já no segundo caso, tem-se o exemplo do banquete que marca o matrimônio do rei Assuero com Ester. O rei Assuero, após afastar Vasti como rainha do seu reinado, vai em busca de uma nova mulher. A escolhida foi Ester, uma jovem cheia de formosura. Ester encantou o rei Assuero e o próprio sabia que a presença de uma nova rainha em seu reinado demons- traria mais confiança para o povo. foi realizada uma cerimô- 45 nia de casamento em comemoração, sendo selada publica- mente com um banquete para todos os cidadãos de Susã. Tal repasto convivial ficou conhecido como o Banquete de Ester onde o rei distribuiu presentes segundo sua generosidade. Como se pode perceber, os casamentos, já no relato bíbli- co, tinham como função marcar uma passagem que, mais do que um laço afetivo, constituíam-se em um contrato, um ne- gócio realizado a conselho de seus pais, tutores ou ancestrais (Labão, Mardoqueu ou Mordecai, esse último primo e tutor de Ester). O principal papel do casamento, portanto, era servir de base a alianças cuja importância se sobrepunha ao amor e à se- xualidade (ARAÚJO, 2002). Labão procurava uma ética comu- nitária com o casamento de Jacó e Raquel; Assuero intencio- nava assegurar seu poder, manutenção dos limites territoriais e perpetuar sua linhagem; Mordecai, por sua vez, preocupado com o destino do povo judeu, pauta pela ética judaica: por um lado, é preciso ser fiel ao rei da terra na qual se vive e, ao mesmo tempo, não se pode esquecer quem ele é e qual a res- ponsabilidade que lhe cabe por isso. Sendo assim, soube dar a Ester as orientações adequadas para a consolidação desta passagem: de judia deportada à Imperatriz da Pérsia. Por que a necessidade de marcar essa passagem contratual com comida? Oferecer e compartilhar comida, nestes casos, poderia simbolizar o desejo de criar laços (JOANNÈS, 1998). A comensalidade em tais momentos funciona como um sinal da aceitação da participação do indivíduo dentro de deter- minado círculo social: uma nova família, um novo povo (LE HOuEROu, 2006). Os convidados são convocados a comun- gar deste pão como co-participes desse jogo de interações so- ciais, tendo em vista a necessidade de tornar público o con- trato firmado. 46 Tratando de banquetes, percebe-se que há na bíblia um re- lato insuficiente dos alimentos consumidos durante os rituais, com exceção para as comidas que, com o decorrer da nar- rativa, passam a revestir-se de caráter sagrado. O vinho, por exemplo, é um alimento que juntamente com o pão e o azei- te foram revestidos de caráter sagrado e litúrgico pela Igreja (MONTANARI, 2003). Os casamentos são, portanto, modelos de ética de pas- sagem porque representam uma mudança expressa na vida social de duas pessoas. São passagens idênticas para ambos e com um único objetivo: atravessar a etapa do estado de noi- vos para casados. É um dos ritos mais importantes para a so- ciedade na vida e a partilha comum de alimentos serve como prova para essa mudança. “A comensalidade promove uma forte e expressiva convivialidade em circunstâncias particu- lares. Congrega pessoas por ocasião dos ritos de passagem, nomeadamente o nascimento e o casamento” (fERNANDES, 1997, p. 17). Outro ritual de passagem marcado por banquetes são as comemorações dos natalícios, ou seja, os aniversários. Des- taque no texto bíblico para os aniversários de faraó e para o aniversário de Herodes. (1) faraó, o rei do Egito, ao ser ofendido pelo seu copei- ro e padeiro mandou prendê-los. Ambos os presos tiveram sonhos; José, filho de Jacó, relevou o significado dos sonhos deles, dizendo o copeiro a José que tinha visto uma videira da qual brotaram três ramos com cachos de uva. As uvas amadu- receram e ele as espremeu no copo de faraó. Com a ajuda de Deus, José logo entendeu o significado desse sonho. Ele disse ao copeiro que os três ramos significavam três dias e que, após esse tempo, faraó lhe daria novamente o cargo de copeiro. 49 sica para uma não-física. A comida estava presente e media o ato ritual destes momentos de transição. Ética da Comunhão Pode-se dizer que são movidos por uma ética da comu- nhão os banquetes que, inseridos no sistema alimentar apre- sentado no texto, têm como principal objetivo propagar a par- tilha solidária mediada pelo cuidado. Assim sendo, no corpus analisado foram localizados banquetes que indicam a ética da comunhão: pautada pelos banquetes nos quais valores, con- quistas, ideais são partilhados, ou uma ideia de comunidade ou, ainda, a intervenção em favor de alguém ou de um povo, visando um fim político, a construção de uma esfera de bem comum. (1) Jesus Cristo após receber notícia da morte de João Ba- tista, encontra um barco e vai para o deserto, porém, seus dis- cípulos e multidão vão ao seu encontro. Jesus, sensibilizado com tamanha devoção, cura os enfermos presentes. Ao final, um dos discípulos pede a Jesus para deixar seu povo voltar às aldeias para comer, considerado que ali não havia comida suficiente para todos. Jesus então pede ao discípulo os pães e peixes que tinham, segura-os em suas mãos, olha para o céu, os abençoa e lhes dá aos seus discípulos que os distribuem para a multidão e todos comem que se saciam. (2) Jesus fez uma grande ceia para qual convidou seus apóstolos mais próximos para a celebração de sua morte, que estava por vir. A sua morte ofereceria a redenção dos pecados humanos e abriria as portas para o reino por vir. Este pacto é selado pela transubstanciação do vinho e do pão em sangue e corpo de Cristo. 50 (3) A rainha Ester, preocupada com o que poderia aconte- cer com todos de sua linhagem, preparou um banquete para o rei Assuero e também convidou Hamã. Essa oferta apresen- tava uma única intenção: apelar pela vida dos judeus, o seu povo. foi nessa cerimônia que Ester revelou sua identidade como judia para o rei. Após apelar pela vida dos judeus, ele cancela sua ordem dada a pedido de Hamã para matar todos os judeus e condena Hamã a forca por ter ultrajado Ester den- tro do seu próprio palácio. A partilha de alimentos trazida à tona pelos banquetes elencados acima fundam uma ética da comunhão porque, ao partilhar, doa-se pelo outro com atitude atenta e zelo (Jesus e seu sacrifício, Jesus e a atenção com os famélicos, Ester e a compaixão com seu povo). A comunhão marcada pela parti- lha de alimentos, além de marcar uma identificação e com- promisso solidário, marca uma preocupação diligente com o bem-estar do outro: a partilha do pão material. Na multiplicação dos pães e peixes Jesus ao penalizar-se com seus seguidores famélicos, que mesmo assim caminha- ram uma longa distância ao seu encontro, opera o milagre da multiplicação dos alimentos para suprir a necessidade de seu povo. A fome era implacável no período ao qual o texto bíbli- co se refere (JOANNÈS, 1998; LAuRIOuX, 2002). As pessoas viviam num mundo em que os especulado- res retinham os cereais e no qual o Estado e o imperador se serviam do pão para fins políticos, dando alimento a quem apoiasse o seu poder. Assim sendo, Jesus oferecia pão basica- mente por dois motivos (1) para, de certa forma, demonstrar quais perspectivas seu reinado trariam em relação à fome ma- terial, estabelecendo assim um tipo de dominação, mas tam- 51 bém como (2) forma de cuidado. Chegavam até ele pessoas sofrendo das mais terríveis doenças, desesperadas e esfomea- das. Cristo mergulhava de tal forma no interior do sofrimento daquelas pessoas que era insuportável negar-lhes ajuda. Cura- va-os e dava-lhes pão. (JACOB, 2003). Sua partilha foi fundada em um ato amoroso, sendo o amor uma abertura ao outro e uma com-vivência e co-munhão com o outro. (BOff, 2013). Além do pão como alimento físico, como era o maná, ele destaca que aquele pão enquanto palavra, verbo, tinha o po- der de conceder a eternidade espiritual: aquele que comes- se do pão, ou seja, que comungasse daquele momento ritual da palavra, lograria a almejada vida eterna. Isso fica evidente com o ritual da Última ceia. Esse ato funda um regime político por incentivar a mul- tiplicidade de manifestações dentro da comunidade. Des- taca-se, portanto, uma sociabilidade alimentar pautada em uma ideia de imunologia: identificar iguais e distingui-los dos diferentes como forma de proteção, anticorpos contra as influências externas, reforço do vínculo interno da comuni- dade, como sugere Peter Sloterdijk (2009). É nesse momento também que Jesus consagra pela primeira vez a Eucaristia. Correia (2008) responde que não se tratou de Ceia Pascal, mas de uma refeição de adeus ou despedida realizada em um am- biente familiar e apropriado. Portanto, a Última ceia promulga-se como ética da comu- nhão porque Jesus partilhou com seus discípulos o que deve- ria ter real valor e importância em sua vida e na da humani- dade, um ideal, instituindo o ato de comer do “pão da vida” aquele que poderia conceder a vida eterna. A partilha da rainha Ester revelava-se com duas inten- ções indiretamente familiares com as de Cristo: tinha o de- 54 para todos os seus príncipes, servos e nobres buscando mos- trar toda sua grandeza. (5) O rei Belsazar, após assumir o trono de seu pai Na- bucodonosor, em virtude de comemorar seus mais honrados soldados do exército, realizou um banquete para eles onde comeu e bebeu na presença de todos. Durante esse encontro aconteceu um episódio em que uma mão escreveu nas pare- des do palácio com dedos sujos de sangue uma profecia que assombrou o rei que foi em busca de Daniel para tentar inter- pretar a mensagem. Os banquetes destacados nos atentam para uma observa- ção de Albert (2011): a mesa é a ocasião para um tipo parti- cular de sociabilidade. Como local de tomada de decisões, de demonstração de força, de integração e de exclusão, de hie- rarquização ou de nivelamento, a mesa é uma das ferramentas mais sutis e mais eficazes. Abimeleque nessa ocasião por ele oferecida queria fortalecer sua autoridade nas suas proprie- dades aliando-se a Isaque, pois ele adquiriu mais posses do que qualquer um nos últimos tempos. Davi consolidou Ab- ner como um aliado para futura unificação de reinado e Eli- seu criou uma forma de acordo de paz para ele com a Assíria para sua proteção. Assuero impressionava por sua fartura à mesa, assim como o pai de Belsazar, Nabucodonosor. Todos eles juntos, executavam rituais onde se distinguiam de seus súditos. A mesa posta pelos dois reis, Abimeleque e Davi, nos aten- ta para finalidades parecidas: reforço de uma aliança na qual atribuem ao alimento o papel de testemunho dos acordos, compartilhamento de mesmos interesses, esses estabeleci- dos entre seus convivas, e, união pelo mesmo sentido políti- co. “Sentar-se à mesa não era um gesto inofensivo” (ALBERT, 55 2011, p. 12). Eliseu, no entanto, não era um rei, mas um pro- feta que servia a Deus, que o escutava e ao medo da situação a qual foram colocados os soldados que o procuravam o atri- buiu uma imagem de poder. O fausto banquete de Assuero partia para o lado que mais conhecemos na história em banquetes de poder: exibição de luxo acompanhado de exagero. Assuero queria exibir toda e qualquer conquista que tinha conseguido em três anos de reinado. Essa é uma das formas mais antigas de expressão de poder. A demonstração de poder pela grandeza da comemoração estabeleceria visualmente, deste modo, uma dada legitimidade nas relações sociais e culturais de poder. O espectador ou par- ticipante seria impactado pela imagem. Tais comemorações deveriam ter também um cerimonial social (com elementos religiosos ou não), com aspectos culturais, que tenham re- lações com os segmentos sociais presentes nestas comemo- rações de modo a exprimir as hierarquias e representações destes segmentos ampliando o impacto visual do espectador. Médicos e dietistas dos séculos XVI e XVII, erguendo um discurso de advertência sanitária em torno das práticas alimen- tares de reis e senhores, não deixavam de assinalar a diferença do valor nutritivo dos produtos consumidos, sendo que, in- discutivelmente, o lugar cimeiro entre estes era ocupado pelo pão, vinho e carne, que constituíam o que se pode designar por “núcleo do gosto”, de acordo com expressão de Robert fossier, desde a época medieval (fOSSIER, 2010; BuESCu, 2013). O pão estava presente com fartura na mesa do rei. Assim, longe de ser o sinal ou o símbolo de alguma igualdade ali- mentar ou proximidade social, o pão sublinhava as diferenças sociais. É ainda necessário evocar o lugar do vinho na mesa do rei, na corte e na sociedade em geral. O vinho era uma das mais importantes produções da Europa do Sul, e o seu valor 56 social e econômico inquestionável para as populações, tam- bém em Portugal. (BuESCu, 2013). uma partilha diretamente com o rei representava a coesão de igualdade e cidadania en- tre os convivas. O banquete privado que o rei Belsazar reali- zou para os seus soldados é tido como exemplo. A passagem bíblica relata que ele partilhou com seus soldados sua taça de vinho. Dividir a taça com o rei era sinal de unidade e inte- ração com os convivas. Alimentá-los estabelece uma forma de companheirismo que, em retorno, atribui deveres a esta dádiva alimentar (ALBERT, 2011, p. 70). Esses banquetes participam como ética de poder pelo fato de ocorrerem acordos selados entre soberanos, produção de imagens da fartura e do excesso e, sobretudo, atentam para uma das características mais contraditórias que perfazem os rituais de comensalidade: estabelecem simultaneamente igualdade e hierarquia. Ao mesmo tempo em que ao comun- gar deseja-se estabelecer igualdade, o ritual é permeado de regras que distinguem os convivas hierarquicamente, seja no reparto, seja nos lugares tomados. Os banquetes regidos pela ética do poder são cercados de sinais para determinar a posi- ção social e política de cada um. CONSIDERAÇÕES FINAIS Atenta-se para três tipos de comportamento que regiam os atos de partilha de alimentos: (1) a ética da passagem, que serve como signo de uma mudança na vida coletiva ou in- dividual, como casamentos, aniversários e mortes, dando sentido a esses marcos da vida social; (2) a ética da comu- nhão, que cria uma esfera de partilha de valores, conquistas, ideais, de cuidado em favor de alguém ou de algum povo, vi- sando um fim político, onde os alimentos denotam um sinal 59 fERREIRA, J. C. L. A Bíblia como literatura – Lendo as nar- rativas bíblicas. Revista Eletrônica Correlatio, São Paulo, v.7, n. 13, p. 4-13, 2008. Disponível em: <https://www.meto- dista.br/revistas/revistasmetodista/index.php/COR/article/ view/1650/1646>. Acesso em 07 jul. 2014. fISCHLER, Claude. El (h)omnívoro: El gusto, la cocina y el cuerpo. Tradução de Mario Merlino. Barcelona: Editorial Anagrama, 1995. fOSSIER, R. Gente da Idade Média. Lisboa: teorema. 2010. JACOB, E. H. Seis mil anos de pão. 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Todavia, acredita-se que refletir sobre este fenômeno alimentar pos- sibilita adentrar num imaginário denso de significações que vai além de interpretações objetivas. Através da escrita ca- roliana pode-se compreender como os sujeitos em situações de precariedade alimentar entendem, enfrentam e resolvem este problema. Portanto, observa-se a importância de formar 4 Aluna do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais (Mestrado) da uni- versidade federal do Rio Grande do Norte (ufRN), graduada em Nutrição pela universidade federal de Campina Grande (ufCG). E-mail: vivianymouracha- ves@hotmail.com 64 O sentido do termo marginal na obra, diz respeito à condi- ção dos sujeitos pertencentes às classes sociais menos favoreci- das, aqueles que estão economicamente, sobretudo, às margens dos privilegiados da sociedade (classes abastadas). Na narrativa caroliana, o “marginal” tem origem do humilde, onde a “voz da periferia” ocupa os segmentos literários no interior da obra. A identidade marginal de Carolina se constrói a partir da inser- ção social e cultural da autora que morou numa favela situada às margens do rio Tietê (CORONEL, 2010). Alguns estudos (KIffER, 2009; PEREIRA fILHO, 2010) se propõem a compreender a fome, adicionando um novo olhar ao fenômeno para além do epidemiológico, lançando mão da literatura como objeto de conhecimento, como corpus de pes- quisa. A obra literária Quarto de despejo também possibilita esta incursão no tema da fome, bem como a busca por respos- tas para questionamentos inerentes ao indivíduo e ao coletivo, em meio a reflexões relacionadas à condição humana. Assim, tal obra propicia a compreensão desta condição ocupada pela autora através de sua própria perspectiva. Diante disso, o presente estudo objetivou compreender o fenômeno da fome, sob a ótica da Segurança Alimentar e Nu- tricional, a partir da obra literária de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, a fim de propor uma reflexão adicional so- bre a problemática da fome dentro do campo da Alimentação e Nutrição. A LITERATURA COMO TEMPERO VIVO: DESVENDANDO QUARTO DE DESPEJO A miséria instaurada, a lama podre e excrementos fétidos entre barracos, a extrema pobreza e um povo condenado por uma mazela intocável, a fome. Essas são algumas característi- 65 cas descritas por Carolina Maria de Jesus para retratar o cená- rio vivenciado por ela e pelos miseráveis da favela do Canindé situada em São Paulo no Brasil. Quarto de despejo foi a obra eleita como corpus desta pes- quisa, pelo fato de que, os registros de Carolina Maria de Je- sus, a autora da obra, carregam a essência de vida da escritora que convive com a mazela da fome e utiliza a escrita como uma arma de superação, perante toda a situação de precarie- dade que vivencia. A obra é apresentada na forma de diário, o que conduz ao leitor enxergar a realidade envolta de Caro- lina com os olhos e sentimentos dela, que se subjetiva em sua escrita. Concorda-se com Calligaris (1998) ao pensar que na narrativa biográfica o fato em si não é o que mais importa, mas uma verdade que habita o sujeito de onde provem um modo de narrar. Carolina não apenas traz fatos, ela escolhe o que narrar, como narrar. O escrito biográfico para o autor tem um forte elemento de criação (literatura): o diário é uma aventura a ser inventa- da. É importante destacar que esta obra trata-se de um diário e, portanto, traz consigo a expressão literária como uma su- cessão de fatos ocorridos e vivenciados durante o cotidiano na forma de um registro pessoal. Partindo desse pressuposto, Carolina em seu diário torna-se uma autora/narradora que, de modo intuitivo, desbrava sua reflexão, sua discussão e seus julgamentos sobre a sua condição de vida e a dos favelados, tornando-se uma porta voz da classe marginalizada. Sabe-se que a ficção e a realidade estão inter-relaciona- das, e que a literatura, quando preciso cumpre seu papel como veículo de denúncia social (LIEBIG, 2012). Porém, o diário de Carolina vai além das colocações a cerca das iniquidades so- ciais, trata-se também de uma autobiografia, com o intuito 66 de retratar o seu eu, de afirmar a identidade que ela deseja transparecer. Contudo, há traços de realidade e ficção nos relatos autobiográficos, pois o artista ao se representar deci- de que imagem pretende transmitir e qual identidade deseja expor (QuERIDO, 2012). Toma-se como exemplo a ação de tirar uma fotografia, na qual Roland Barthes afirma: “Louca ou sensata? A fotografia pode ser uma ou outra: (…) cabe a mim escolher, submeter seu espetáculo ao código das ilusões perfeitas ou afrontar nela o despertar da intratável realidade (BARTHES, 1984).” Assim, quando o sujeito sente-se olhado pela objetiva da câmera tudo muda, pois este sujeito fabrica- se instantaneamente e assim decide que imagem deseja passar. A MESA DE CAROLINA: COMIDA DE FAVELADO Entende-se que as regras são normas estabelecidas para impor uma ordem, criadas para ditar como as coisas devem ser feitas ou organizadas. Questões jurídicas, políticas, sociais são estabelecidas por regras. No tocante à alimentação isto não ocorre de maneira diferente. A espécie humana possui regras sobre o que comer e como comer (CONTRERAS; GRACIA, 2011). Assim como a linguagem, de acordo com Lévi-Strauss, a cozinha é uma atividade universal, presente em qualquer so- ciedade humana, sendo constituída por cada cultura de modo inconsciente, criando assim sua própria estrutura (LÉVI-S- TRAuSS, 1991; 2006). Nesse sentido, considera-se que cozinha possui um sentido muito mais amplo do que o mero espa- ço físico, ou os princípios de condimentação, procedimentos culinários, boas práticas de higiene, entre outros. A cozinha é um sistema de significados na qual é moldada pelas práticas 69 aquilo que se encontra no lixo ou no chão da feira, esses atri- butos não são considerados, visto que a necessidade imediata é de calar a fome. Dessa forma, o consumo de vários tipos de alimentos não convém com a realidade dos favelados do Canindé. Em um estudo realizado no município de Cuité-PB, foi analisada a qualidade do consumo de alimentos da população adulta, segundo a condição social e de acesso ao PBf. Nesta pesquisa, a amostra era composta por três grupos: (1) famí- lias acima da linha da pobreza; (2) famílias abaixo da linha da pobreza e titular do PBf; (3) famílias abaixo da linha da pobreza e não vinculadas ao PBf. Quando analisada a ques- tão da variedade de alimentos no domicílio observou-se uma baixa variedade em todos os grupos estudados, acentuando ainda mais conforme a redução da renda ou o não recebimen- to do PBf. Também foi visto que as famílias titulares do PBf possuem uma melhor condição na variedade de alimentos em relação ao grupo 3 (SILVA, 2014). Com isso, é possível reconhecer que estratégias de com- bate à fome e pobreza como o PBf, trouxeram contribuições válidas para as famílias em vulnerabilidade social, reconhe- cendo também o incremento da renda como uma condição favorável na melhoria da qualidade da alimentação. Assim, considera-se que a garantia da SAN não engloba apenas o acesso ao alimento, mas também alcança a qualidade e a di- versidade alimentar. No que se refere ao tempo da escassez, Carolina passa a consumir restos de alimentos catados no lixo, na feira e no fri- gorífico. Se a variedade de alimentos no tempo de abundância já não era favorável, no período de escassez a quantidade e qualidade eram precárias: “Havia jogado muitas linguiças no 70 lixo. Separei as que não estavam estragadas. Eu não quero en- fraquecer e não posso comprar. E tenho um apetite de Leão. Então recorro ao lixo.” (JESuS, 2005, p. 83) “fui buscar agua para por os ossos para ferver. Ainda tem um pouco de macar- rão, eu faço uma sopa para os meninos.” (JESuS, 2005, p. 83). Nestas situações, o lixo torna-se a única alternativa para calar a fome do favelado. Quando a comida é pouca, o lixo é servi- do sobre a mesa: restos de macarrão com feijão adicionado de quilos de indignação, sendo uma amarga alternativa de sobre- vivência. O caso de Carolina citado incorpora a violação de uns dos princípios básicos dos direitos humanos: a dignidade. Para Valente (2002), um dos meios para se alcançar a dig- nidade é a garantia de uma alimentação adequada, ou seja, garantir um direito básico. Vale salientar que o direito à ali- mentação vai além do acesso aos recursos alimentícios, é ne- cessário também se estabeleça uma alimentação de acordo com os hábitos e práticas alimentares de sua cultura, fortale- cendo também sua dignidade humana. Segundo a lei internacional de direitos humanos, o Esta- do é obrigado a assegurar que todas as pessoas possam exer- cer livremente os seus direitos, incluindo o DHAA (BuRITY; RECINE, 2007). Em o Romanceiro da inconfidência (1989), de Cecília Meireles, a autora descreve muito bem o conceito de liberdade, onde ela diz: “liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” (MEIRELES, 1989, p.81). Com- preendendo que livre é o estado de liberdade, tomando como exemplo Carolina e os demais favelados, pode-se refletir so- bre como essas pessoas podem ser consideradas “livres” se dependem totalmente da comida que é despejada no lixo, se dependem de um sistema capitalista onde “você é aquilo que 71 você tem”. Nessa e em outras situações, o Estado tem o dever de garantir a todos o acesso a uma alimentação de qualidade. O documentário Peraí é nosso direito, retratou a realidade de duas comunidades urbanas: Vila Santo Afonso (PI) e Suru- ru de Capote (AL). Com o apoio financeiro da Organização das Nações unidas para Alimentação e Agricultura (fAO), a Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRAN- DH) realizou um projeto entre 2004 e 2006 que objetivou con- tribuir com o empoderamento das comunidades e apoiar as ações para exigir e monitorar a realização do DHAA. foi ob- servado que no momento em que os moradores das comuni- dades conheceram os seus direitos e passaram a compreender que aquilo era algo que lhes pertenciam, eles começaram a exigir e cobrar do Estado um conjunto de elementos (saúde, educação, moradia, segurança etc.) que compõe o universo complexo do DHAA (BuRITY; RECINE, 2007). Portanto, a luta pelo DHAA é consequentemente uma forma de lutar pela dig- nidade e pela moral do cidadão. Alimentar-se em tempo de escassez: o significado da comida para o favelado O ato de se alimentar é algo complexo. O papel da alimen- tação vai muito além da ordem da satisfação das necessidades fisiológicas do corpo humano e alcança múltiplos significa- dos e representações para os indivíduos. Por isto, pode ser compreendida como um fenômeno biocultural (POuLAIN, PROENçA, 2003). Diante das diversidades vivenciadas pelos sujeitos, a alimentação pode atribuir diferentes valores peran- te aqueles que têm comida e aqueles que não têm. Em Quarto de despejo é possível perceber que a comida é dada principalmente como um papel estratégico de sobrevi- 74 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nu- tricional. Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira. Brasília: CONSEA, 2009. BRASIL. Lei de Segurança Alimentar e Nutricional: concei- tos, lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Brasília, Df: [s.n.]; 2006. 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É preciso uma leveza em seus membros, pois esses estão sempre se deslocando e, como os líquidos que não assumem uma for- ma própria, tudo muda rapidamente nessa sociedade, não há tempo para consolidações.Nesse contexto a obesidade emerge – na mesma sociedade que rejeita os excessos do corpo obeso. um paradoxo, já que a ideia da gordura não complementa a da fluidez, necessária aos deslocamentos rápidos e fugidios da sociedade líquido-moderna. Perceber marcas dessa sociedade na literatura pode ser, portanto, uma forma de iluminar pontos cegos nesta temáti- ca de cunho bio-sócio-antropológico. Ademais, como Roland Barthes (2007, p. 17), acreditamos que “todas as ciências estão presentes no monumento literário”. Assim, este é um trabalho de cunho multirreferencial, guiado pela ideia de Morin (2003) de que em toda grande obra, seja ela de literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura, existe um pensamento profundo so- bre a condição humana, bem como pelas reflexões de Claude fischler (1995) acerca da sociedade lipófoba, discutidas em seu livro O Onívoro, no qual o autor propõe um estudo do onívoro (eterno e moderno), de sua percepção e da evolução de suas representações, numa perspectiva histórica. fischler (1995) define as sociedades modernas como lipó- fobas, ou seja, aversivas à gordura. O autor destaca ao longo de seu texto marcas dessa sociedade, sendo estas: obsessão pela magreza; rejeição à gordura e obesidade/obesos; lipo- fobia centrada na medicina, moda e aparência corporal, co- 80 zinha e alimentação cotidiana; o prezar pelo movimento e velocidade; discurso sobre saúde e obesidade centrada numa responsabilidade individual; cacofonia alimentar. Para buscar essas marcas, a obra literária, de caráter ficcio- nal, escolhida foi Por que sou gorda, mamãe? da autora Cíntia Moscovich. Sua escolha fundamentou-se no fato de a autora compartilhar com o leitor diversas realidades, deixando em sua obra a previsão de algo intrínseco à própria condição hu- mana, desejos e inseguranças, emoções e contradições. A autora é considerada um nome expressivo da ficção brasileira contemporânea, estando sua produção entre as de maior importância de sua geração (SILVA; SANTOS, 2008), sendo a obra uma reinvenção da memória da família da per- sonagem, contada através da história de seu corpo. O intuito final da pesquisa foi perceber, através da litera- tura, como os obesos vivem e são vistos nessa sociedade que tem verdadeiro horror à gordura. Partimos, portanto, da ideia de que os saberes são indissociáveis, ou seja, literatura e socie- dade são tidas como interligadas e se retroalimentam. Nesse âmbito, ao invés de ir das partes ao todo, Lévi-S- trauss (2005) apresenta a possibilidade de se percorrer o ca- minho inverso. O conhecimento do todo precederá ao das partes, caso trabalhemos com o objeto em escala reduzida, a exemplo da arte. Ela se encontra entre o conhecimento cien- tífico e o pensamento mítico, pois “o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto de conhecimento” (LÉVI-STRAuSS, 2005, p.38). E jamais o corpo foi tão interpretado, ele se tornou obra viva, não-falada, mas se tornou linguagem. O “corpo como objeto de arte” impele e orienta uma grande quantidade de 81 intenções e atos. Acreditamos que na arte se encontram fabri- cadas nossas próprias imagens (JEuDY, 2002). NUTRIÇÃO E LITERATURA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL? Cíntia Moscovich (2006) constrói o livro com base em uma pergunta a qual ratificamos, afinal “por que sou gor- da, mamãe? A resposta que constrói em seus escritos não se resume a uma explicação cientifica, um emaranhado de fatores contribuiu de forma direta com a obesidade da per- sonagem. A gordura é causa da relação conflituosa entre mãe e filha, e, ao mesmo tempo, consequência, na qual a capa de gordura atua como um mecanismo de mimetismo e a filha fica, para- doxalmente, invisível aos olhos da mãe. A cada quilo perdi- do a personagem parece resgatar sua identidade e reaver seu direito de ser vista e aceita pela mãe, de forma que os quilos perdidos não só representam números, mas a recuperação da imagem corporal da personagem. Acreditamos que a compreensão da relação entre socie- dade e corpo, é de suma importância para o entendimento do estado do paciente, nesse caso do paciente obeso, consideran- do a multidimensionalidade do processo do cuidar, afinal o cuidar também é uma arte. CORPO, OBESIDADE E SOCIEDADE A obesidade, como problema de saúde pública apare- ce cedo na vida do brasileiro. De acordo com a Pesquisa de Orçamentos familiares (POf), de 2008 a 2009, a população brasileira apresenta, já a partir de cinco anos de idade, uma 84 modificou o modo de pensar, produzir, consumir e comuni- car, alterando assim o modo de vida. As mudanças no plano sociopolítico, econômico e nos modos de subjetivação pare- cem refletir também no imaginário sobre o corpo (MAROuN; VIEIRA, 2008). Segundo fischler (1995) uma das características marcan- tes que define a sociedade contemporânea é o desejo de um corpo absolutamente livre de qualquer marca da adiposidade, sendo essa uma das marcas da sociedade líquido-moderna. Para essa sociedade apenas o músculo é nobre, as sociedades modernas se tornaram intolerantes à gordura e aos gordos. Numa academia de ginástica não há gordos [...]. Constranjo-me diante deles, recuso-me a frequentar vestiários e duchas. Ao con- trário, enfio-me dentro de camisetas extragrandes que vão do pes- coço aos quadris (MOSCOVICH, 2006, p.141). A informação nessa sociedade ocorre de forma a poupar o receptor do trabalho de pensar, de processar as informações recebidas. “O mundo em flashes é facilmente deglutível, mi- nimizando-se, assim, a possibilidade de apropriação crítica e seletiva do conteúdo veiculado” (NOVAES, 2006, p.79). É nesse ambiente que surgem os excessos de informação, de seletivi- dade dessas informações e consequentes excessos do corpo, por dificuldade de seleção dos discursos que o regem. DO DRAMA DA ALIENAÇÃO AO ÊXTASE DA INFORMAÇÃO A sociedade líquido-moderna é calcada em uma natureza contraditória, na qual o mundo se apresenta em metamor- foses, sendo marcada pelos fluxos de tecnologia, informação 85 e conhecimento, que se encontram controlados pela fluidez, flexibilidade, mobilidade, fragmentação e heterogeneidade (BAuMAN, 2007). Com a alimentação não poderia ser diferente, o discurso que gira em torno dela atualmente é composto por informa- ções que mudam antes que a informação anterior possa ser fixada, sendo essa a característica mais marcante da sociedade líquido-moderna. Resta, portanto, a dúvida: - O que escolher? Recorrendo ao conceito durkheimiano de anomia6, Claude fischler (1995) apresentou o neologismo gastro-anomia, a au- sência de regras na alimentação. A industrialização dos alimentos possibilitou uma maior diversidade de produtos a serem ofertados para os consumi- dores. Essa diversidade alimentar permitiu dinamicidade ao ato de se alimentar, sendo possível ter uma alimentação va- riada e balanceada, portanto, mais saudável, reduzindo assim enfermidades (HERNáNDEZ; ARNáIZ, 2005). Para fischler (1995), essa liberdade de escolha à qual o consumidor está submetido leva-o a um processo de dúvi- das. Apesar de o hábito alimentar receber influência do am- biente, da situação socioeconômica e cultural do indivíduo, essa escolha tem embasamento em informações que para este consumidor tem uma grande confiabilidade. Precisamente, aí se concentra o grande dilema do consumidor contemporâ- neo, a falta de informações consistentes ou coerentes, pois, seja no discurso médico ou na mídia, o que se encontra são incertezas ou até mesmo informações contraditórias. A pala- vra de ordem é tão fugaz que acaba gerando um certo caos, uma verdadeira cacofonia alimentar (fischler, 1995, p.195). As 6 O termo anomia é empregado por Émile Durkheim, caracterizando “o estado de desregramento’’ no qual as paixões são ameaçadoras da ordem (Durkheim, 2000). 86 informações são variadas e, por vezes, contradizem-se. Tolhi- da pela dúvida, essa sociedade moderna então é definida por fischler (1995, p. 315-316) como gastro-anômica, ou seja, no que se refere à alimentação, é “sem lei ou com normas deses- truturadas ou em degradação”. Jean Baudrillard (1996) cita uma obesidade secundária ou de simulação, que é aquela que, assim como os sistemas atuais, engordam de tanta informação. Esta obesidade é bem característica da sociedade moderna- operacional, na qual se anseia por estocar e memorizar tudo, a ponto de chegar aos limites da informação, instaurando simultaneamente uma potencialidade monstruosa, mas que não é mais possível por em ação. A obesidade carrega consigo uma lentidão que permite visibilidades, o que a torna incompatível com a sociedade líquido-moderna onde as coisas acontecem muito rapida- mente. Em meados do século XIX, a velocidade aparece nos esportes, trazendo consigo uma valorização da linha reta, pistas para veículos em alta velocidade, por exemplo, que têm sempre o mínimo de curvas, obstáculos e interferên- cias possíveis. Quanto mais retas, mais favorável à veloci- dade. As imagens são a forma mais eficaz de compartilhar conhecimento, devendo se adequar à demanda de rapidez e imediatismo. Por isso, a superfície lisa encontra no corpo um local no qual rugas, dobras e saliências são evitadas pelo olhar. Assim, a gordura não é bonita aos olhos, os obesos são verdadeiros obstáculos para essa sociedade que rejeita o que o peso corporal traz, a sociedade da velocidade não tem lugar para os lentos. A gordura, portanto, é relacionada à lentidão, à presença, ao olhar que não economiza, resumin- 89 gordura a ser enquadrada em forma de categoria de exclusão (NOVAES, 2006, p.118; fISCHLER, 1995, p.73). A magreza ganha destaque e uma supervalorização, – “os magros talvez nem saibam como ofendem e afrontam o pró- ximo”– pois, no seu excesso de peso, o obeso carrega estereó- tipos depreciativos (MOSCOVICH, 2006, p.189) Essa obsessão pela magreza vem a se apresentar como outra marca da socie- dade lipófoba, conforme observamos: Gordos são pusilânimes. Gordos são suspeitos de ter cará- ter fraco e determinação quebradiça. Covardes. Mentirosos. Gordos são simpáticos porque nunca serão bonitos. São sorridentes porque têm que disfarçar porqueiras emocio- nais. Quasímodos. Gordos são seres humanos que não me- recem caridade ou confiança (MOSCOVICH, 2006, p.25). A obesidade também é espectral, paradoxalmente não pesa, mas flutua numa boa consciência da sociabilidade. O corpo perde suas normas, sua cena e sua razão, mesmo sen- do visível em excesso, o conjunto continua transparente, os obesos são um obstáculo tão incômodo aos olhos que é pre- ferível os evitar, sendo postos à margem da sociedade (BAu- DRILLARD, 1996). No entanto, apesar dessa marginalização, os obesos cons- tituem hoje uma parcela tão significativa da sociedade que se tornaram um nicho de mercado: das roupas (extra) largas aos seriados de televisão, do mercado em ascensão de modelos GG aos assentos em aviões, o mercado deu o espaço que tanto falta ao obeso. Pensar o obeso nessas múltiplas perspectivas pode ser a forma para reduzir o peso do preconceito. Como aponta Novaes (2006, p.70) “na atualidade, o corpo é a própria vestimenta, por isso, ele sim, deve estar adequado ao código”. A questão é esclarecer que código é esse e como ele se institui. 90 MEU CORPO, NOSSAS REGRAS Segundo Michel foucault (2006), as questões sobre a die- tética podem auxiliar no esclarecimento da instituição de nor- mas e condutas alimentares. A reflexão dos gregos na época clássica, por exemplo, tem o alimento, a bebida e a atividade sexual como instrumentos de regulação. Neste sentido, cabe uma reflexão acerca de como se servir dos prazeres, desejos e atos de modo a se evitar os excessos, ou seja, qual o limite, a medida para estes três campos? Para controlar os excessos, os gregos da antiguidade esta- beleceram a dieta como ferramenta para o controle das prá- ticas alimentares, sexuais e exercícios físicos. foucault (2006) utiliza duas narrativas sobre a origem da dietética, uma que apontava para o surgimento da medicina a partir da dietéti- ca, encontrada na coleção hipocrática, e outra encontrada em Platão, que acredita que a preocupação com o regime advém de uma alteração nas práticas médicas. “A dietética aparece, segundo essa gênese, como uma espécie de medicina para os tempos de lassidão, ela era destinada às existências mal con- duzidas e que buscavam prolongar-se”. O estabelecimento do regime fez com que a dietética se tornasse um prolongamento da arte de curar sustentado no modo de vida, “o regime é toda uma arte de viver” (foucault, 2006, p.91-92). Esta marca é também presente em Moscovich (2006, p.204), conforme destacamos: “A última frase de papai, antes de avistarmos o carro-guincho do Touring chegando, foi: - Vocês vão fazer dieta. E vai ser para toda vida. Aquela frase foi uma profecia”. Como aponta Bauman (2007, p.131), o corpo continua tão socialmente regulado quanto era antes, “mudaram apenas as 91 agências reguladoras, com consequência de longo alcance para a sorte dos indivíduos incorporados, encarregados de administrar os corpos que têm e são”. fischler (1995) aborda que o discurso normativo da medi- cina sobre a saúde e obesidade se tornou um discurso moral, que tem seus fundamentos na responsabilidade individual e, sobretudo, é um discurso de culpabilidade, marca lipófoba já citada anteriormente e que também está em Moscovich (2006, p.205): “Só havia um jeito de seguir aquela dieta: - força de vontade. Você quer, você consegue”. A última marca, da sociedade lipófoba, encontrada em Moscovich (2006), dá conta que a lipofobia é centrada na medicina, moda e aparência corporal, cozinha e alimen- tação cotidiana. Os discursos que normatizam o corpo vão, progressivamente, “tomando conta da vida simbólica/ subjetiva do sujeito”. Os cuidados físicos configuram en- tão como uma forma de se preparar para o olhar do outro. Analogamente, o investimento estético está ligado à visi- bilidade almejada, às qualidade estéticas do próprio corpo que determinam se o sujeito se expõe ou se omite ao olhar do outro (NOVAES, 2003). [...] me espremo dentro daquele delírio do fabricante de roupas esportivas, jogo uma toalha ao ombro e me dou ao desfrute de levantar pesos, espichar todos os músculos em alongamentos, suar em bicas nas aulas de aeróbica, que não são as mais recomenda- das para meu caso – isso quando não caminho na esteira, olhando para uma parede branca ou para uma televisão que não tem boa sintonia, sempre com o sentimento de ir tanto para lugar nenhum (MOSCOVICH, 2006, p.138). O discurso da medicina atua como um regime disciplinar, de forma que circula um saber/poder que não está ao alcance de um individuo comum. Assim sendo, as noções de saúde, 94 “Agora eu sei por que sou gorda”, diz Cíntia Moscovich. Nós também. Por meio do exercício que neste trabalho pode- mos compreender um pouco mais o paradoxo que a socieda- de contemporânea carrega com a gordura. A importância do diálogo entre nutrição e literatura fica latente nestas linhas, assim como a crença de que a arte tem se mostrado num meio efetivo para a formação de profissionais mais aptos a com- preender as singularidades da condição humana. REFERÊNCIAS ALMEIDA, A. The fat Man in History: da obesidade à an- tropofagia. Revista Desenredos, Teresina, v. 1, n. 3, p. 1-17, 2009. Disponível em: <http://desenredos.dominiotempora- rio.com/doc/03_artigo_-_fat_man_-_aline_amsberg.pdf>. Acesso em 15 de nov. 2015. BARTHES, R. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2007. BAuDRILLARD, J. As Estratégias Fatais. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1996. BAuMAN, Z. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a popu- lação brasileira. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. DuRKHEIM, E. O suicídio. Estudo de Sociologia. São Paulo: Martins fontes, 2000. 95 fISCHLER, C. Obeso benigno, obeso maligno. In: SANT’AN- NA, D.(Org.) 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