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Existencialismo - Jacques Colette, Notas de estudo de Filosofia

Um dos principais movimentos filosoficos do sec. xx, entre os anos de 1930-1950, entre seus principais pensadores, Kierkegaard, Husserl, Jasper, Marcel, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty e Camus.

Tipologia: Notas de estudo

2017
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Baixe Existencialismo - Jacques Colette e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! ET ECT [Ss 7 Existencialismo DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." INTRODUÇÃO O EXISTENCIALISM O NÃO É UM A DOUTRINA O aparecimento dos neologismos é raramente datado com precisão. Apollinaire pôde apresentar ao público as razões que o levaram a forjar o adjetivo “surrealista” (Tirésias, 1918). O mesmo não acontece nem com “existencial”, nem com “existencialismo”. Mas sabe-se que o emprego filosófico do primeiro ocorre aproximadamente na metade do século XIX, e o do segundo, cerca de um século mais tarde. Durante as décadas de 1930-1950, o existencialismo parece designar um clima de pensamento, uma corrente literária vinda da Europa do Norte, dos países eslavos ou germânicos. Um de seus traços principais seria a percepção do sentido do absurdo juntamente com a do sentimento trágico da vida. A experiência de uma humanidade entregue às violências mortíferas, às monstruosidades de uma guerra particularmente bárbara teria exigido dos artistas, dos escritores e dos filósofos novas inflexões, capazes de repor em questão o exercício de uma liberdade ainda a conquistar. “O existencialismo é mais do que uma filosofia em moda (...), em sua essência mais geral, ele tem a ver com a estrutura e a angústia do mundo moderno”.1 Assim, obras literárias, políticas e filosóficas de orientações as mais variadas foram tachadas de existencialismo, o que no grande público, aliás, podia qualificar tanto um modo de vida quanto um estilo literário. Os próprios teólogos e filósofos neotomistas tiveram de pagar seu tributo.2 O Congresso internacional de filosofia de Roma, em 1946, consagrava sua primeira seção ao materialismo histórico, a segunda ao Esistenzialismo. O rótulo “Existencialismo” substituiu rapidamente, na França e na Itália, o que na Alemanha era chamado mais academicamente Existenzphilosophie. Numa carta a J. Wahl, K. Jaspers escrevia: “O existencialismo é a morte da filosofia da existência”.3 Estava entendido, desde o início, que as concepções e descrições da existência não podiam de modo algum ser reunidas sob esse único emblema. A denominação é incapaz de designar algo de preciso no campo da ontologia, da teoria da conhecimento, do pensamento moral ou político, da filosofia da arte, da cultura ou da religião. O que confirma o fato, aliás, de que nenhum dos autores ditos existencialistas reivindicou duradouramente e sem reticências essa qualificação. É verdade que J.P. Sartre, mais que outros, afirmou no título de uma conferência feita em outubro de 1945: O existencialismo é um humanismo. Para ele e para S. de Beauvoir (Les temps modernes, dezembro de 1945), era importante opor à natureza segundo “a sabedoria das nações” o homem, que é sempre liberdade, e refutar os que viam no existencialismo apenas pessimismo, ignomínia e desconhecimento das “belezas alegres, do lado luminoso da natureza humana”.4 O humanismo existencialista era descrito aí como o antídoto às espécies e subespécies de humanismo das quais A náusea [La nausée, romance de Sartre, 1938] fizera a sátira na cena do almoço de Roquentin com o Autodidata. Mas em 1975 ele haveria de declarar que não aceitaria mais essa “etiqueta de existencialista” e que, de resto, “ninguém mais me chama de ‘existencialista’, a não ser nos manuais, onde isso nada quer dizer”.5 Em “A querela do existencialismo” (revista Les temps modernes, novembro de 1945), Merleau-Ponty rebatia as críticas de que, no “existencialismo” de O ser e o nada [L’Être et le Néant, de Sartre, 1943], haviam penetrado ou teses materialistas (G. Marcel), ou bafios de idealismo (H. Lefebvre). Considerando que cristianismo e marxismo deveriam “salvar a busca existencialista e integrá-la, em vez de sufocá-la”, ele sugeria que isso fosse feito reunindo “as duas metades da posteridade hegeliana: Kierkegaard e Marx”. O cenário estava assim traçado. Ao evocar Hegel, Husserl e Sartre, J. Hy ppolite voltou mais de uma vez a desenhá- lo. “Não é uma das coisas menos surpreendentes que a descoberta de Hegel a partir de 1930 foi contemporânea da descoberta de seus adversários, o existencialismo e o marxismo. Ao chegar tardiamente a Hegel, éramos capazes de descobrir nele, retrospectivamente, o que os comentadores anteriores não haviam podido ver.6” Parece que se deve a Bergson a introdução do adjetivo existencial na língua filosófica francesa. No capítulo “A existência e o nada” de A evolução criadora [L’Évolution créatrice, 1907], o julgamento existencial é simplesmente distinguido do julgamento atributivo, seja qual for o objeto ao qual se refere. O sentido existencial do indivíduo humano, em sua vida corporal e psíquica, aparece em Gabriel Marcel que, sem referência a nenhuma das obras de seus contemporâneos alemães, propõe a expressão índice existencial para opor ao cogito, “que guarda a entrada do legítimo”, a experiência imediata e irredutível da “unidade da existência e do existente”, presença irredutível àquela que o simples fato da objetividade garante.7 A partir de então, o existencial se integrou na linguagem corrente. O que antes era dito psicológico ou moral, ou mesmo simplesmente vital, será dito existencial: isso vale para o estilo de um romance, as inflexões de um testemunho, de um arrazoado ou de uma reportagem, o conteúdo de uma emoção, de um mal-estar, a energia de uma resistência, a coloração de uma indolência e, sobretudo, o vigor de um engajamento. Em sua Introdução aos existencialismos (1947), E. Mounier explicava: “A história do pensamento é pontuada por uma série de despertares existencialistas”, o primeiro sendo o apelo de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. De fato, pode-se dizer que nenhum filósofo deixou de falar do homem em sua essência e existência, alma e corpo, ou mesmo do homem “medida de todas as coisas”. Mas, se quisermos levar em consideração as questões filosóficas de uma problemática coerente quanto à idade e às conotações dos conceitos, convém, no caso do existencialismo, atermo-nos ao pensamento moderno e contemporâneo dito pós-idealista à época que sucedeu à construção dos grandes sistemas alemães do idealismo especulativo. Na verdade, é na língua dinamarquesa, em Kierkegaard, que o conceito de existencial aparece como determinando o pensamento da subjetividade, a qual não é mais entendida como o eram o Eu de Montaigne, o ego de Descartes, o eu penso da apercepção transcendental em Kant ou, enfim, em Hegel, como o resíduo de unilateralidade não assumido no espírito, que é ao mesmo tempo substância e sujeito. Chegou-se a reconhecer em Schelling um precursor do pensamento existencial, na medida em que ele leva a seu acabamento a metafísica da subjetividade. Nas Investigações sobre a essência da liberdade humana de 1809, assim como na obra póstuma As idades do mundo (versão de 1815), aparece o tema da angústia, da vertigem que se apodera do homem na experiência da liberdade como poder do bem e do mal. Kierkegaard refere-se a isso, certamente de maneira crítica, quando fala da dor e da melancolia a propósito da divindade afligida com a criação, mas reconhecendo que esse “antropomorfismo” não deve ser completamente reprovado.8 Em última instância, e é o que vemos em Schelling, uma vez acabado o percurso da filosofia dita negativa, a subjetividade se reconhece incapaz de chegar pela razão ao pleno domínio pensante dela mesma, por ser forçada a retomar por sua conta “os dolorosos clamores dos tempos antigos e modernos”, e isso na medida em que ela esbarra na “questão última e universal: Por que existe alguma coisa? Por que não há nada?”.9 A filosofia racional, que vai da essência à existência, do prius ao posterius, tendo atingido seu termo – a identidade do ente e do pensado no espírito absoluto –, coloca-se então a questão do “objeto último que não tem mais prius”. Essa filosofia deve ser dita negativa, pois, se abre a perspectiva de novas tarefas, ela não oferece nenhuma base, nenhum princípio para lançar-se a isso. A filosofia positiva será animada por um outro tipo de querer-pensar. “Quero o que está acima do ser, o que não é o simples ente mas o Senhor do ser.” Mesmo o conceito de Deus-ente supremo pode aqui ser abandonado; não é de sua ideia, de sua essência que podemos partir, como sempre fez a metafísica, mas do puro e “simples existir”. “O ser é aqui prius, a essência posterius.” O ser necessário, que precede toda potência, toda possibilidade, que obriga a em nada deter-se exceto no “simples existir”, lança assim o pensamento naquela espécie de vertigem de que falou Kant, pois o pensamento se vê compelido a afirmar o ser imemorial, “um fora de si absoluto”, e com isso ele é por sua vez “afirmado fora de si mesmo, de maneira absolutamente extática”. “O existir não é aqui a consequência do conceito ou da essência, mas o existente é ele mesmo o conceito e ele mesmo a essência.”10 Kierkegaard, que foi ouvinte do curso de Schelling em Berlim em 1841- 1842, reteve a ideia de um novo tipo de saber, de uma filosofia segunda. Não certamente à maneira de Schelling, que entendia ainda proceder especulativamente para “transformar a posteriori em concebível esse inconcebível a priori”.11 É plausível, porém, ver nesse breve encontro o começo do pensamento da subjetividade como poder-ser e finitude, um dos temas principais das filosofias da existência. O que Schelling chamava a existência ativa e verdadeira, ou ainda existência interior, não será mais aquilo a que se pode chegar a partir da essência (seja ela do Eu ou de Deus), a partir da ideia que já é nossa (inata ou adquirida). Será a realidade, a existência como fato, o vivido tal como se dá não ao cabo de uma dedução engenhosa ou de uma audaciosa construção, mas tal como se oferece a simples descrições, embora complexas. Não é por acaso que novos comentários dos últimos grandes sistemas sistemática mais ampla que se pode imaginar.19 Propomos aqui uma versão um tanto reduzida e consideravelmente modificada do estudo anteriormente publicado20, que se atinha às obras dos seguintes autores: Soren Kierkegaard (1813-1855), Karl Jaspers (1883-1969), Gabriel Marcel (1889-1973), Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Albert Camus (1913-1960). Observação preliminar “Filosofar é aprender a morrer.” Montaigne (Essais, I, 20) citava Cícero, mas poderia ter mencionado muitos outros estoicos. Ele fazia bem em não citar Platão (Fédon, 67 e). Alguns poderiam, com razão, achar estranho não ver figurar o ser mortal nos títulos desse sobrevoo das filosofias da existência, dessas “fenomenologias existenciais”. A razão disso é que o motivo não podia deixar de reaparecer em múltiplas retomadas, a cada vez exigido pelo contexto. 1. LEVINAS, E. Les imprévus de l’histoire. Montpellier: Fata Morgana, 1994. p.120. (N.A.) 2. CASTELLI, E. Existentialisme théologique. Paris: Herman, 1948; GILSON, E. Être et essence. Paris: Vrin, 1948. (N.A.) 3. Bulletin de la Société française de philosophie, sessão de 4 de dezembro de 1937. p.196. (N.A.) 4. SARTRE, J-P. L’existentialisme est un humanisme. Paris: Nagel, 1946. p.10. (N.A.) 5. SARTRE, J-P. Situations. X. Paris: Gallimard, 1976. p.192. (N.A.) 6. MERLEAU-PONTY. Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1948. p.158-164; HYPPOLITE, J. La Phénoménologie de Hegel et la pensée française contemporaine. In: ______. Figures de la pensée philosophique. Paris: PUF, 1971. Tomo I. p.233. (N.A.) 7. MARCEL, G. Existence et objectivité. Journal métaphysique. Paris: Gallimard, 1935. p.309, 315-316. (N.A.) 8. KIERKEGAARD. Le concept d’angoisse. Oeuvres complètes. Trad. de P.H.Tisseau. Paris: L’Orante, 1966-1986. v.20. p.161. (N.A.) 9. SCHELLING. Philosophie de la Révelation. Trad. de R.C.P. Schellingiana. Paris: PUF, 1989. p.25. (N.A.) 10. Ibid. p.115-116, 184-186, 189, 193. (N.A.) 11. Ibid. p.191. (N.A.) 12. RICOEUR, P. Phénoménologie existentielle. In: Encyclopédie française. Paris: Larousse, 1957. Tomo XIX. (N.A.) 13. KIERKEGAARD. Exercice en christianisme. Trad. de V. Delecroix. Paris: Le Félin, 2006. p.124. (N.A.) 14. BEAUFRET, J. De l’existentialisme à Heidegger. Paris: Vrin, 1986. p.17, 52, 54, 76. (N.A.) 15. HEIDEGGER. Moira. In: Essais et Conférences. Trad. de A. Préau. Paris: Gallimard, 1958. p.282. (N.A.) 16. SCHULZ, W. Die Vollendung des deutschen Idealismus in der Spätphilosophie Schellings. Stuttgart: Kohlhammer, 1955. (N.A.) 17. HEIDEGGER. Remarques sur la Psychologie der Weltanchauungen de Karl Jaspers. Trad. de P.Collomby. Philosophie, nº 11-12, 1986. (N.A.) 18. JASPERS. Philosophie. Trad. de J.Hersch. Paris-Berlim: Springer, 1989. Posfácio de 1955. p.19. (N.A.) 19. FOULQUIÉ, P. L’existentialisme. Paris: PUF, 1952. (N.A.) 20. L’existentialisme, 1994, 3ª edição corrigida, 1999. (N.A.) CAPÍTULO I TEORIA E PRÁTICA DA REFLEXÃO “Kierkegaard, que foi o primeiro a empregar o termo ‘existência’ no seu sentido moderno, deliberadamente se opôs a Hegel.”21 Confrontados com o pensamento da reflexão em Hegel, com sua complexidade e amplitude, a noção e o trabalho da reflexão nas filosofias da existência têm uma natureza bem diferente. Para compreender seu alcance, vale mencionar alguns traços da temática hegeliana, tais como aparecem na edição de 1827 da Enciclopédia das ciências filosóficas, pois isso diz respeito tanto à noção de existência quanto à relação, que é também separação, do finito e do infinito, lá onde se impõe, em última instância, o questionamento propriamente reflexivo (§ 573). Como diz o prefácio, a reflexão, no sentido comum, é produzida ou pelo entendimento que opera com o auxílio de categorias fixas opostas umas às outras, ou pelo simples julgamento de apreciação. Dessa reflexão, distingue-se radicalmente o pensamento filosófico, dito reflexão num outro sentido, isto é, pensamento segundo, ulterior, subsequente (Nachdenken), que rediz, repete, reflete a Ideia filosófica desprovida de toda mistura, o conhecimento elaborado e desdobrado cujo núcleo, segundo o terceiro silogismo do absoluto, é a lógica que se divide em espírito e em natureza. Sem considerar a filosofia da natureza, veremos aparecer a reflexão no espírito subjetivo como espírito prático e vontade livre (§ 478), no espírito objetivo como moralidade (§ 487) e, em se tratando do espírito absoluto, como reflexão espiritual na Ideia, ou seja, no segundo silogismo em que o momento mediador é o próprio espírito (§ 576). É no centro da Ciência da lógica, na doutrina da “essência como fundamento da existência”, nessa teoria que é por excelência o ponto de vista da reflexão, que esta aparece precisamente a respeito da definição de existência, no § 123: “A existência (Existenz) é a unidade imediata da reflexão-em-si e da reflexão-em-outra-coisa”, texto precisamente citado por Kierkegaard no Post- scriptum de 1846.22 Ser singular ou mundo em totalidade, todo existente aparece à reflexão como oriundo de um fundamento (Grund), de uma razão de ser, fundamento que se nega e se mantém em seu resultado: a existência. Todas as realidades refletidas em si e que aparecem ao mesmo tempo em seu outro formam o conjunto daquilo que funda e daquilo que é fundado; essa conexão infinita é o “jogo multicolorido do mundo”. Segundo a etimologia latina, bastante explorada desde a Idade Média, o existente ex-sistit originado do seu fundamento, o supera, se sustém aí (sistit), se mantém e se mostra. A existência é a unidade do ser e do aparecer. Se se considera o sistema a partir da Ciência da lógica, percebe-se o momento a partir do qual se desenvolvem progressivamente e, segundo Hegel, concretamente, ao ritmo da reflexão, as esferas da natureza e do espírito. Histórica e filosoficamente, as filosofias da existência têm seu tempo e seu lugar lá onde não se trata mais de proceder à postulação de um fundamento comunicação duplamente refletida, feita de artifícios constantemente renovados na ordem da criação literária de ficções e de ensaios. Era para dar voz a isso na ordem existencial que a Idade Média chamava haecceitas. Não bastava indicar teticamente o lugar a partir do qual o leitor poderia ter do mundo da moral e da religião uma visão justa. É de forma reflexiva que, reconduzindo constantemente o discurso a si, o autor se apresenta ao mesmo tempo em que se ausenta dessa apresentação. Misturando o gracejo ao sério, o cômico ao trágico, a alusão à argumentação, ele deixa o leitor decifrar sozinho o apelo que eventualmente poderia passar através do que é dito. Enquanto o movimento diretamente perceptível da reflexão segue tranquilamente sua marcha, o da reflexão segunda comporta o trabalho contra si, dialética na segunda potência, espécie de “redobramento em que consiste o sério, comparável à pressão que determina a profundidade do sulco traçado pela charrua”.26 “Se o pensamento exposto é reduplicado”, a linguagem também será altamente vigiada; nenhuma palavra, nenhum incidente, nenhuma digressão, nenhuma expressão que produza imagem deve ser pronunciada por descuido. Quando o autor se sabe incapaz de “impor diretamente um freio a toda uma época”, resta-lhe refrear-se a si mesmo. “É nesse ponto do existir, e devido à exigência ética endereçada ao existente, que é preciso refrear (at holde igjen), quando uma filosofia abstrata e um pensamento puro querem explicar tudo escamoteando o que é decisivo.”27 II. Marcel: a reflexão segunda O ponto de partida e o movimento do pensamento de G. Marcel são bastante significativos na medida em que se produziram independentemente tanto de Kierkegaard quanto de Husserl. Ele está mais próximo de alguns autores anglo-saxões, de Schelling, ao mesmo tempo em que participa do contexto tipicamente francês da filosofia reflexiva (Lachelier, Lagneau, Brunschvicg) e do bergsonismo: desconfiança em relação ao intelectualismo, preocupação com a vida concreta, retorno à intuição. Em “As condições dialéticas da filosofia da intuição” (Revue de métaphysique et de morale, 1912) e depois na primeira parte do Journal métaphysique [Diário metafísico], ele se dedicou, solitária e laboriosamente, a estabelecer o valor ontológico da intuição, mostrando a incapacidade, nesse ponto, da dialética idealista que procede de maneira discursiva. O propósito era demonstrar que o idealismo, mas também o bergsonismo não permitiam o acesso ao ser concreto. Tratava-se de estabelecer que na intuição o ser é dado, mas não dado por ela, donde a imanência do ser ao espírito e a transcendência do pensamento em relação ao saber sempre é regido pelos processos de objetivação. “A existencialidade é a participação na medida em que esta é não-objetivável.”28 Sem considerar o aspecto religioso das fórmulas que marcam o final do artigo de 1912, convém reter o ganho filosófico assim negativamente expresso: ao empírico verificável opõe-se a existência imediata, um dado não constituído. A herança teológico-filosófica, tal como fora assumida pelo idealismo, é aqui abandonada em nome da intuição, na qual poderiam se conjugar a liberdade do espírito e a realidade empírica dita existencial. Mais aquém da dedução do empírico ou da necessidade formal, o eu penso – não como dado ou como forma, mas como ato livre cujo traço é o inverificável – pode chamar-se fé. Essa fé não é uma hipótese, mas “o ato pelo qual o espírito preenche o vazio entre o eu pensante e o eu empírico ao afirmar a ligação transcendente deles”.29 Para além de todo subjetivismo, o eu creio transcende desde o início a oposição do imediato e do mediato, embora isso não se dê à maneira de Schelling. Diferentemente do santo (o Cristo dos filósofos afirmado como Ideia), “para quem tudo é atualidade pura” (ibid.), o filósofo, que não é um santo, precisa abrir na dimensão da encarnação e da relação com outrem as vias de acesso a um novo imediato. O drama da sensação e da fé é que elas devem ser refletidas, interpretadas. “Com isso o erro se torna possível. O erro faz sua entrada no mundo com a reflexão” (ibid., p.131). O pensamento de Marcel vai se desenvolver, então, primeiro, denunciando as armadilhas e as facilidades da reflexão primária que, centrada no verificável, não pode chegar à intensidade do existencial (corporeidade, relação com o outro homem). Depois, propõe a ideia de uma reflexão segunda que dê acesso ao metaproblemático, ao mistério e, de certo modo, ao eterno, em virtude de uma fidelidade criadora que ignora a fragmentação do tempo. Os temas cristãos da fé e da esperança reaparecem no campo filosófico numa espécie de contestação da posse intuitiva. Mas é no amor que melhor se apaga a fronteira entre o em-mim e o diante-de-mim. Essa esfera coincide com a do metaproblemático, na qual aparece como mistério a união da alma e do corpo. É o que permite formular, a partir da existência encarnada e em relação com o mundo, o programa de uma dialética que se apoia “no solo de uma experiência não completamente mediatizável” (ibid., p.261). Feita de idas e voltas, essa dialética não é progressiva; não é nem acolhimento de um dado, nem tensão para uma apoditicidade qualquer ou para uma totalização. A existência é da ordem de um sentimento originário, com o qual o pensamento só pode se relacionar como “conhecimento imediato e participação” (ibid., p.315). Confrontado ao tema bergsoniano da intuição, tema dificilmente contornável na França da época, Marcel chegou a propor a expressão “intuição reflexiva”, para contestá-lo pouco depois.30 A intuição reflexiva é uma intuição que, sem ser para si, não se possui ela mesma senão através dos modos de experiência e dos pensamentos que ela ilumina ao transcendê-los. É da fé que se trata, quando se fala de uma intuição que é também reflexão. Quanto à filosofia, reflexão sobre essa reflexão, ela deverá praticar uma “reflexão na segunda potência pela qual o pensamento se inclina para recuperar uma intuição que, de certo modo, se perde na medida em que se exerce” (ibid., p.171). Ao contrário do cogito, que garante o que é válido, o credo conduz ao espírito e não mais ao sujeito pensante. A imediatidade não-relativa, expressão concreta do esquema metafísico da participação, é a experiência ou o sentir fundamental que sempre já aconteceu quando, pelo pensamento, eu me torno sujeito. A reflexão segunda será a atenção dada a essa antecedência, que não é outra coisa senão minha participação no mistério do ser. O ultrapassar da reflexão primária e do Denken pela reflexão segunda e pelo Andenken é motivado pela vontade de imediatez. “O Andenken é mágico no seu fundo; ele vai ao ser mesmo para além dos intermediários psicológicos” (ibid., p.43). A recuperação do imediato ou da afirmação originária, com o índice de certeza que possuem, poderiam evocar um certo voluntarismo metafísico polarizado pelo desejo de presença total. Na verdade, embora esses acentos estejam presentes em Marcel, convém sublinhar que a intuição é dita aqui “cega” (ibid., p.175). O pensamento concreto se manifesta diante da sensação e da crença, do indubitável que só se pode pensar nos lugares do fracasso da objetivação. O existente é a resposta à questão que ele é, para si mesmo, resposta nunca completamente revelada, pois o invulgar itinerário de cada destino desenrola-se sob o signo da participação, que é da ordem do mistério. A ruptura com o regime da objetividade e do problemático é o avesso, abstratamente designado, daquilo que só se pode dar a ver por numerosas análises existenciais concretas. III. Jaspers: a reflexão sobre si “Colocado em suspenso pelo ultrapassar de todo conhecimento que imobiliza o ser do mundo (enquanto orientação filosófica no mundo), o pensamento (enquanto esclarecimento da existência) apela à liberdade e cria o espaço do seu agir incondicionado pela evocação da transcendência, enquanto metafísica.”31 Por essa fórmula, Jaspers exprimia a unidade do seu projeto no qual se rearticulavam as três partes tradicionais da metaphysica specialis. Uma vez reconhecido em seu ser determinado no mundo, e como que após o que dele disseram os saberes positivos, o homem ouve o chamado que o abre à indeterminação de uma possibilidade absoluta. Assim reconduzida à sua essência de possibilidade, a existência pode livremente conjurar a transcendência oculta, isto é, despojada dos nomes que lhe dão as religiões ou as especulações filosóficas. A consciência idealista é vontade de unidade, de apaziguamento, de reconciliação, de saber absoluto; ela só pode faltar à transcendência ao mesmo tempo em que desfaz “o que é existencialmente histórico” (Filosofia, p.376). O idealismo é a filosofia da felicidade, na qual se desfaz toda negatividade, na ignorância de que “a verdade da felicidade surge sobre o fundo de um fracasso” (p.444). A reflexão sobre si ou existencial representa aquele momento de liberdade em que surge não o ser-si como dado, mas a consciência de poder, isto é, “o ser que se preocupa consigo e que em seu comportamento também decide o que ele é” (p.293). O esclarecimento da existência não pode vir de uma ontologia, a existência não é nem objeto (metafísica realista), nem sujeito (metafísica idealista). “A existência é o que nunca será objeto, a origem a partir da qual penso e ajo, da qual falo através de raciocínios que não trazem objetos de apreensão e de afirmação teórica. Voltada para o correlato noemático, e depois para o mundo em sua concreção plena, a observação fenomenológica (que Husserl sempre considerará como apreensão teórica se fazendo na constituição transcendental), reflexão que se deveria dizer descritiva, vai ser definida como explicitação (Auslegung, Meditações cartesianas, § 57 ss.). É afastando-se da perspectiva última de uma retomada teórica total do sentido pelo pensamento que Heidegger se separa de Husserl. A “maravilha” (ele retoma o termo) não deve se buscar no ego puro, mas na constituição mesma da existência (Existenzverfassung). Para fazer aparecer o sentido de ser de tudo o que se dá, é necessário o retorno à existência do homem concreto, à totalidade concreta desse ente que não é da ordem do dado sempre objetivamente oferecido (Carta a Husserl, de 22 de outubro de 1927). O alcance existencial do pensamento de Heidegger em seu começo é evidente, como o testemunha a definição mesma da filosofia: “A filosofia é ontologia fenomenológica universal que parte da hermenêutica do ser-aí; enquanto analítica da existência, esta fixou o termo do fio condutor de todo questionamento filosófico, termo de onde esse questionamento surge e ao qual retorna.”34 Não se poderia dizer melhor que a filosofia é fundamentalmente ontologia, que seu método é fenomenológico, e que a existência é seu ponto de partida e seu horizonte. A hermenêutica da existência, a compreensão das possibilidades do ente que somos, substituiu portanto a constituição das objetidades, ainda que esta fosse entendida como explicitação. O que essa hermenêutica deve explicitar (o termo é conservado) não é mais os atos de apreensão da consciência, mas as possibilidades concretas do existir (o que faz pensar nas “virtualidades” de que fala Jaspers). Heidegger descreverá assim a existência que mergulha no tédio quando está às voltas somente com o mundo das coisas dadas. Sein und Zeit [Ser e tempo] evita o termo reflexão, inventando outros para indicar a inautenticidade da compreensão imediata e corrente de si que se obtém por reflexão no sentido físico35 a partir das coisas intramundanas. Mas essa analítica não é menos orientada pelo cuidado de denunciar a evasão no eterno ou no absoluto metafísico do supramundano. A motivação disso é tanto existencial quanto ontológica. A analítica existencial deve tomar suas distâncias tanto em relação às representações simbólicas, míticas ou religiosas, quanto em relação às explicações psicológicas da atividade intramundana. Se a angústia permite ouvir de novo a antiga e premente questão do ser, o chamado à consciência atesta a longínqua proveniência dessa convocação que a filosofia, até então, havia se contentado em chamar de imperativa. É existencial o propósito de descrever o aparecer desse acontecimento, é existencial proceder a uma exhibitio originaria que decorre, fenomenologicamente, da experiência de uma exigência. O que é exigido do homem concreto é ser-aí, não para fazer isso ou aquilo, mas para chegar à sua mais íntima liberdade. A análise do tédio no Curso de 1929/1930 descreve negativamente o vazio criado pela ausência de uma essencial e opressiva aflição (Bedrängnis). Fazer sentir essa ausência de uma filosofia autêntica, descrevendo a mediocridade de uma época agitada mas sem verdadeira ação de pensamento (o que mais tarde se chamará esquecimento do ser), tal era então o estilo da meditação de Heidegger, que retomava de Husserl o programa da redução, mas não sua natureza e seus métodos. Se o Dasein não se dá sem mundo, ele tampouco se alcança por uma reflexão praticada a partir dos objetos dados no mundo. Para o existente, não se trata nem de alcançar-se entregando-se ao mundo das coisas (mundo que ele deve começar por descrever), nem de afirmar-se originariamente como subjetividade absoluta. Eis por que a interpretação existencial não procede nem por construção nem por reflexão, mas de maneira hermenêutica. Essa hermenêutica atinge a possibilidade existencial autêntica do Dasein ao fazer ver como decisivas as experiências da angústia e do chamado à consciência. É nelas, de fato, que se comprova o poder-ser autêntico existencialmente possível e existencialmente exigido (Sein und Zeit, p.267). Heidegger analisa essa comprovação tendo em vista a problemática ontológica, mas também para mostrar sua dimensão existencial. A comprovação pelo Dasein de seu poder autêntico (a resolução) representa para a filosofia uma motivação. Em troca, a filosofia contribui para mostrar a autenticidade dela. É nesse ponto, como observou P. Ricoeur36, que o existenciário e o existencial se juntam. O que não deixa de colocar em perigo a pretensa neutralidade das aquisições da analítica existencial. V. Sartre: reflexão pura e reflexão cúmplice Se Marcel ignora os procedimentos propriamente fenomenológicos, Jaspers, por sua vez, vai incluir o pensamento husserliano na “filosofia dos professores”, denunciando sua esterilidade porque ele “ignora Kierkegaard e recusa a Nietzsche a qualidade de filósofo”.37 A ausência dessa ignorância e desse menosprezo explica certamente a proximidade de Jaspers e de Heidegger nos seus primórdios. Quanto ao pensamento de Sartre, ele se encontra, do ponto de vista da reflexão filosófica, na confluência de todas as tendências mencionadas até aqui. É como o precipitado no qual se depositam sedimentos da filosofia reflexiva francesa e do pensamento fenomenológico alemão. Mas ele tenta retomar tudo, mais uma vez, pela base. Para Bergson, nossa participação no elã, no jorro contínuo da vida, só se dá por um esforço doloroso, por uma espécie de dilatação que faz que a metafísica consiga, através da intuição, “elevar”, diz A evolução criadora, a intuição sensível e o conhecimento científico. Para a filosofia reflexiva, a reflexão procede de uma certeza originária, e nisso ela é como o ser do eu, que nasce de uma afirmação que o engendra e o regenera. O ritmo de concentração e de expansão é a vida mesma, na qual a reflexão encontra uma prefiguração de si. Sejam quais forem o ponto de partida e os desvios necessários, a ideia da experiência como foco da reflexão se impõe nessas condições, de tal maneira que “a cada um desses focos corresponde um sujeito que, mais do que preexistir à reflexão, se define e se constitui por ela”.38 Uma tal concepção da reflexão como retomada, restauração, recuperação, implica que o ser mesmo da consciência é relação a si, que a consciência imediata prefigura e anuncia a reflexão, que esta, como interrupção da vida espontânea e passagem à intemporalidade, é a todo momento possível e que, entre o redobramento reflexivo que se apropria dos atos do espírito e a intuição que o apreende, toda diferença é anulada. A concepção e a prática sartrianas da reflexão se diferenciam das de Husserl, pois recusam a ideia de uma imanência do ego. À diferença de Heidegger, Sartre tematiza, numa dialética existencial reflexivamente orientada, a implicação concreta (e não apenas estruturalmente analisada) da realidade humana no mundo das coisas e das pessoas, nas obras, na história social e política, na inércia em que se atola a liberdade. À diferença da filosofia reflexiva, ele não mais considera como possível a total retomada de si por uma segunda consciência. No entanto, Sartre mantém intacta a estrutura reflexiva do para-si. Entre os comentadores franceses da época, confrontados à monumental elaboração de O ser e o nada, muitos se disseram incapazes de ser convencidos por suas construções filosóficas e, ao mesmo tempo, surpresos de reconhecer o virtuosismo de uma arte, até então sem precedente em filosofia, que enredava situações e argumentações. Por sua novidade e sua vivacidade, as descrições – especialmente da má-fé e do ser-para-outrem – suscitavam a admiração. Mas as explicações com pretensão ontológica (de uma ontologia na verdade impossível) decepcionavam. Via-se nelas, sob uma nova forma (o para-si e o em-si), o retorno do antigo dualismo: ao idealismo da consciência constituinte de todo sentido (consciência dita nadificante) opunha-se o realismo da matéria e do social. Na verdade, esse balanço, essa oscilação de um a outro criava uma ambiguidade deliberada que, de certa maneira, já havia sido anunciada pelos primeiros trabalhos de Sartre sobre o imaginário. Portanto, é preciso considerar a seguinte situação: o estatuto da reflexão, explicitamente tematizado por Sartre, é condicionado, no plano da racionalização ontológica, pela dualidade do para-si e do em-si, do nada e do ser. Mas ao mesmo tempo a reflexão condiciona essa dualidade, pois é ela que está na origem das formas diversas da dualidade: consciência e objeto, ser e conhecer, sujeito e estados do sujeito. Estamos aí diante do que numerosos comentários, vindos de horizontes muito diferentes, consideraram como incoerente ou contraditório. Esse diagnóstico pode ser assim resumido: o em-si é absolutamente dado e no entanto é relativo ao para-si. Tudo repousa no para-si e no entanto, não sendo o que ele é, ele é passivo em relação ao em-si. Como liberdade, a nadificação só pode se produzir na facticidade, isto é, no cerne do em-si. Contentemo-nos por ora em mostrar o núcleo da aporia de onde surgem as antíteses ou as alternativas que levam alguns observadores a verem em Sartre um “antifilósofo ou, se quiserem, o filósofo de uma geração inimiga da filosofia. Ele junta-se ao campo em que Pascal e Kierkegaard desprezam a sabedoria e zombam da razão”.39 A questão tem seu lugar preciso no surgimento, que nada pode fundar, da consciência dita não obstante reflexiva, surgimento que desde o início faz do sujeito uma consciência do mundo e uma busca do ser (título da introdução de O ser e o nada), e não uma consciência de si. Não é surpreendente que questões e novo em que a dialética não seria incompatível com a intuição. Esse pensamento, que é todo um programa, se introduzirá entre um Hegel reabilitado pelo século XX e um Husserl que, para além da teoria da constituição, “redescobre aquela identidade do ‘entrar em si’ e do ‘sair de si’ que, para Hegel, definia o absoluto”.44 Sujeito de um comportamento, consciência perceptiva, ser no mundo, intencionalidade subjacente à das representações, eis aí “o que outros chamaram existência”.45 Mas dessa existência não há apreensão imediata. Os próprios pensadores da intuição, por diferentes que sejam – Bergson e Husserl –, foram levados a constatar uma simbiose do tempo e do ser. O tempo, a gênese manifestavam-se na intuição. O que provocava uma mutação do sentido até então atribuído à dialética. Visar ao imediato ou à coisa mesma não significa que se renuncie à mediação. A reflexão não pousa intacta no solo virgem do irrefletido. Sair de si é primeiramente manter o mundo a distância, mas isso para melhor nos apoderarmos de nós mesmos na relação com o mundo. Pode-se, nessa conjuntura, observar uma aproximação inesperada entre a sequência husserliana (epoché [suspensão do juízo] – redução – retorno ao mundo da vida) e o esquema kierkegaardiano do duplo movimento (resignação infinita, renúncia ao mundo e retorno ao mundo finito – ou ainda: isolamento por individuação, mas encadeado por uma relação nova à continuidade do mundo e da história). Ao suspender a atitude natural, o rigor reflexivo da fenomenologia começa por investigar as correlações noético-noemáticas. Mas, embora polarizado pela eidética, ele acaba por descobrir espírito e sentido aquém dessa correlação. E é isso que exige uma sobre-reflexão. Pois, se a reflexão acredita poder definir-se ela mesma no momento em que parte para atingir o irrefletido, ela não pode deixar de se modificar durante o caminho. O que lhe aparecia como que a distância, embora sempre a seu alcance, não para de se retirar, de se subtrair a seus propósitos. Assim como Marcel fala de uma reflexão segunda como intuição cega, assim como Jaspers constata uma reflexão sobre si que se depara finalmente com a marca de um fracasso, Merleau-Ponty – num longo capítulo de sua obra póstuma e instruído pelo exemplo de Husserl que, sem saber, buscava o existir sob a intencionalidade – vai tirar as lições das desventuras da reflexão pura em Sartre. Renunciando a pensar dentro do quadro dualista de tipo sartriano, com a oposição do ativo e do inerte, Merleau-Ponty percebe que a habitação num mundo opaco e selvagem, a leitura laboriosa da história passada e presente não deve abandonar o cuidado de um pensamento apaixonado por estruturas, embora derivando de um cogito que renuncia a se recuperar integralmente de maneira reflexiva. Tanto para ele como para Husserl, tratava- se de “revelar o avesso das coisas que não constituímos”46, de falar filosoficamente daquilo que, para o pensamento, permanece na sombra. Enquanto Sartre quer cavar o solo da existência para desenterrar a raiz do sentido, Merleau-Ponty, leitor de Schelling e das filosofias da natureza, está em busca da historicidade primordial. Ele deve avançar na zona em que não se sabe onde termina a natureza e onde começa a se exprimir o homem. Sartre permanecia alheio a uma busca do invisível no visível, ainda que chegue a falar de uma camada de ser bruto que produz e sustenta a ação do pensamento. Segundo Merleau-Ponty, embora Sartre buscasse “uma relação com o Ser que se fizesse no interior do Ser”, ele nunca renunciou ao primado da negatividade, à oposição do “categórico Para-si e do categórico Em-si”; como o positivismo e a filosofia reflexiva, ele julgava que “nenhum resultado da reflexão pode comprometer retroativamente aquele que a opera”.47 Apesar de suas divergências, e em razão do remanejamento permanente da noção e do trabalho da reflexão, e mesmo considerando que o existencialismo não era mais nos anos 1960 a palavra de ordem que fora vinte anos antes, pode- se pensar que o resultado do itinerário filosófico de Merleau-Ponty está numa evidente continuidade com sua convicção primeira: “O mérito da filosofia nova é justamente buscar na noção de existência o meio de pensá-la”.48 21. MERLEAU-PONTY. Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1948. p.127. (N.A.) 22. KIERKEGAARD. Post-scriptum. Trad. modificada. Oeuvres complètes, XI. p.13. (N.A.) 23. Ibid. p.7, 50, 103, 113. (N.A.) 24. Ibid. p.13. XI. p.189. (N.A.) 25. Ibid. X. p.75. (N.A.) 26. Sur mon activité d’écrivain. Oeuvres complètes, XVII. p.268. (N.A.) 27. Post-scriptum. Oeuvres complètes, X, p.158, nota 154, XI. p.9. (N.A.) 28. MARCEL. Du refus à l’invocation. Paris: Gallimard, 1940. p.36. (N.A.) 29. MARCEL. Journal métaphysique. Paris: Gallimard, 1927. p.45. (N.A.) 30. MARCEL. Être et Avoir. Paris: Aubier, 1935. p.141. (N.A.) 31. JASPERS. La situation spirituelle de notre époque. Trad. de J.Ladrière (modificada). Louvain: Nauwelaerts, 1952. p.191. (N.A.) 32. GADAMER, H.G. Annés d’apprentissage philosophique. Trad. de E. Poulain. Paris: Criterion, 1992. p.244-247. (N.A.) 33. DUFRENNE; M.; RICOEUR; P. Karl Jaspers et la philosophie de l’existence. Paris: Le Seuil, 1957. p.323. (N.A.) 34. HEIDEGGER. Sein und Zeit. p.38. (N.A.) 35. Rückstrahlung, reluzent, Rückdeutung, em Sein und Zeit. p.16, 21, 585. (N.A.) 36. RICOEUR, P. Temps et récit. Paris: Le Seuil, 1985. Tomo III. p.100. (N.A.) 37. JASPERS. Philosophie. p. XVI; La situation spirituelle... p.168. (N.A.) 38. NABERT, J. Éléments pour une éthique. Paris: Aubier, 1962. p.63. (N.A.) 39. ALQUIÉ, F. Solitude de la raison. Paris: E. Losfeld, 1966. p.106. (N.A.) 40. SARTRE, J-P. L’Être et le Néant. Paris: Gallimard, 1943. p.207. (N.A.) 41. Situations, X. Paris: Gallimard, 1976. p.104. (N.A.) 42. MERLEAU-PONTY. Signes. Paris: Gallimard, 1960. p.192. (N.A.) 43. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964, p.320. (N.A.) 44. Signe. p.204. (N.A.) 45. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. n.4. p.141. (N.A.) 46. Signes. p.227. (N.A.) 47. Le visible et l’invisible. p.99, 268. (N.A.) 48. Sens et non-sens. 1948. p.143. (N.A.) Confrontadas ao ser-no-mundo e ao saber do mundo em totalidade, a existência e a transcendência – aquilo que a metafísica chama, em termos míticos, alma e Deus – se apresentam como o que não é, mas que pode ser e mesmo deve ser o que decide no tempo o ser eterno. E é isso a existência que cada um é para si mesmo, diferente de todas as outras em e por sua liberdade, não como sujeito psicológico, mas como possibilidade. “O sujeito empírico é inteiramente temporal, a existência é, no tempo, mais que o tempo.”57 O que o termo existentia designa tradicionalmente se aplica a todo ente apreensível, subsistente e realizado, coisa ou objeto que, em Ser e tempo, Heidegger nomeia com a “expressão interpretativa de Vorhandenheit” (p.42), que designa o simplesmente dado que está aí ao alcance da mão, disponível no interior do mundo constituído. Isso permite reservar o termo existência ao ser do ente que somos e que devemos ser no mundo, isto é, o Dasein. Das diversas maneiras de fazer entender em outras línguas a significação que esse termo adquire na problemática particular do autor, nenhuma se impôs, e assim o vocábulo alemão tornou-se usual a ponto de figurar no dicionário Le Grand Robert de la langue française, edição de 1985. Não convém, evidentemente, traduzi-lo por “realidade humana”, como fez em 1937 seu primeiro tradutor (H. Corbin), seguido nisso por Sartre. Para afastar toda conotação substantiva, importa sobretudo conservar ao Dasein seu teor verbal e infinitivo, a transitividade do verbo ser comandando o pensamento da existência, do acontecimento e da possibilidade. Não se pode deixar de sublinhar o caráter formal das análises desenvolvidas por Heidegger na obra monumental publicada em 1927. Se convém chamar existenciária a compreensão de si que cada existir tem de si mesmo e para si mesmo, dir-se-á existencial a análise formal da “existencialidade” (p.12). O que exprime desse ponto de vista “a constituição de existência do Dasein” (op. cit., p.43) é a indicação formal de estruturas ontológicas conectadas umas às outras (Zusammenhang), que podem ser explicitadas em toda a “transparência teórica” (p.12), enquanto a compreensão de si de ordem ôntica, dita existenciária, não implica de modo algum a transparência. “Chamamos de existência o ser ao qual o Dasein pode se relacionar dessa ou daquela maneira e se relaciona sempre de uma maneira ou de outra” (p.12). O Dasein se determina sempre e toda vez como ente a partir de uma possibilidade que ele é e tal como se compreende em seu ser. Cada estrutura pode ser dita concreta em virtude dessa compreensão que se deve evitar de reduzir a um ato teórico entre outros, dirigido a um objeto qualquer. “No compreender reside existencialmente o modo de ser do Dasein como poder-ser” (p.143), e portanto também devendo ser o que ele é. É o que permite avançar a proposição, muitas vezes criticada porque não compreendida, segundo a qual esse ser, esse “dever ser” que é a existência, é simplesmente a essência do Dasein: “A essência (Wesen) do Dasein reside em sua existência” (p.42). Essa fórmula será várias vezes retomada e retrabalhada posteriormente por Heidegger, sobretudo na Carta sobre o humanismo, que critica a expressão de Sartre na qual se quis ver enunciado o “princípio do existencialismo: a existência precede a essência (...). Mas a inversão de uma proposição metafísica continua sendo uma proposição metafísica”.58 Nessa pretensa inversão do essencialismo (platônico) se exprimiria a forma última da moderna metafísica da subjetividade. O ente que deve-ser é algo que se entende no infinitivo denotativo de infinição, mas também de uma presença no sentido em que o prae latino, em praesens, significa mais que o simples ser-aí do que já está apresentado ou representado, a saber, o que precede, “o que está adiante de mim (...) e não admite demora”.59 Foi sugerida a tradução de Dasein por presença.60 Por seu valor verbal de abertura ao que vem, mas também por aquilo que ressoa no presente como dom e acolhimento de tudo o que o tempo oferece e reserva, a tradução por presença foi defendida de maneira bastante argumentada pela tradutora de Ser e tempo em língua portuguesa.61 Ser e tempo, esse longo e laborioso empreendimento de formalização, coincide, mas somente num certo sentido, com a ideia kierkegaardiana de existência do Si como relação a si sempre vivida pelo indivíduo singular. De fato, lê-se no § 12: “O Dasein é o ente que, ao se compreender em seu ser, se relaciona com esse ser. É assim indicado o conceito formal de existência. O Dasein existe. Além disso, o Dasein é o ente que eu mesmo sou a cada vez” (p.53). Essa aproximação justifica-se apenas parcialmente, porque aqui não se trata de ver, como em Kierkegaard, essa relação colocada por um outro, em que o existir reaparece não somente como ex-sistere mas como ex alio sistere. Se, na analítica existencial, a existência aparece como marcada pelo fora-de-si, isso se dá sob o signo da temporalidade, que é o horizonte de toda compreensão do ser. A existência do ente, que é ser-adiante-de-si ao mesmo tempo que no mundo, não é no tempo, é temporalização. E o sentido existencial dessa temporalidade pode ser dito numa só palavra: “o cuidado” (p.41), a cura retomada do latim greco-cristão da “antropologia agostiniana” (p.199, nota). O que justifica e motiva essa formalização sistemática da ideia de existência, do ser do homem, não é senão o embaraço, já atestado por Platão (Sofista, 244 a), provocado pela “questão do sentido do ser” (p.1), questão abordável somente a partir dessa existência que representa indiscutivelmente “o que cabe interrogar em primeiro lugar” (p.41). Assim, Ser e tempo não é primordialmente uma antropologia existencial, é uma ontologia fundamental que, sobre a base da distinção do ser e do existente, quer descobrir na temporalidade ekstática deste último o “horizonte” (p.17) em que se pode dar uma resposta que ponha fim ao embaraço de Platão. É a partir daí que se deveria esclarecer “a possibilidade do projeto ekstático do ser em geral” (p.437), pois “o tempo levanta questão da mesma maneira que o ser”.62 Compreende-se então que, vinte anos mais tarde, quando se acreditou perceber uma mudança de orientação, uma virada no pensamento de Heidegger, o termo existência seja, não substituído, mas novamente explicitado pelo de instância ou instancialidade (Inständigkeit). Sem podermos indicar aqui as numerosas e variadas ocorrências do termo nas obras ulteriores, assinalaremos apenas o texto de 1949 em que essa noção é relacionada ao cuidado, cujo sentido não é senão a temporalidade mesma. Existência é então entendido como in-sistir e ser-aí a partir da e na exposição à abertura do Ser mesmo. O ex não significa mais ékstasis [movimento para fora] ou saída da “interioridade que seria a da imanência da consciência e do espírito”. O fora que se produz, disjunção ou espaçamento, é o da abertura do Ser com que se ocupa o pensamento que “pensa em direção e a partir da verdade do Ser”.63 Essa mudança de orientação certamente exigida, embora dificilmente previsível para os leitores de Ser e tempo, é a tarefa do “pensamento que abandona a subjetividade”, “pois tudo se inverte” quando se para de falar “a língua da metafísica”.64 Essa língua não será abandonada por todos os leitores de Husserl e do livro de 1927 de Heidegger; como testemunha, entre outros, o percurso em sentido contrário indicado pelo título de um livro publicado também em 1947: Da existência ao existente [De l’existence à l’existant], de E. Levinas. Em O ser e o nada, Sartre substitui desde o início o Dasein segundo Heidegger pela consciência que é “um pleno de existência, e essa determinação de si por si é uma característica essencial dela”. O erro de Descartes foi “não ter visto que o absoluto se define pelo primado da existência sobre a essência”. Esse “absoluto de existência” não é substancial, ele é “o sujeito da mais concreta das experiências” (p.22-23). O aparecimento da existência, do para-si, é “o acontecimento absoluto”, ele é “fundamento do seu ser-consciência ou existência, mas não pode em hipótese alguma fundar sua presença” (p.127). Donde, ao mesmo tempo, sua facticidade e sua responsabilidade total em relação a seu ser. Deixando à metafísica o encargo de formar hipóteses sobre o porquê e o como desse “acontecimento absoluto que vem coroar a aventura individual que é a existência do ser” (p.715), a ontologia se ocupa da dualidade do “ser idêntico do em-si”, que não se pode romper para se fazer projeto de fundamento de si, e do para-si que “é efetivamente projeto perpétuo de fundar-se a si mesmo enquanto ser e fracasso perpétuo desse projeto” (p.714). Esse dualismo subsistirá até na filosofia moral, reconhecendo o absoluto da história e o absoluto da concordância consigo. “O desvelamento do Ser é contato de dois absolutos, orientados um em relação ao outro.”65 Dualismo ainda quando a historicidade primeira do “acontecimento absoluto”, de que falava O ser e o nada, ecoa nos “dois absolutos (...), o absoluto da interioridade” e “o ser-em-si da totalização de envolvimento”.66 II. Existência carnal A fenomenologia husserliana haveria de dar uma significação filosófica essencial à corporeidade. A ausência significativa, em Ser e tempo, do tema do corpo (o Leib alemão, que pode também ser traduzido por carne) marca simplesmente uma lacuna daquilo que na época foi recebido, se não como uma antropologia, ao menos como uma filosofia da existência. Husserl e depois Merleau-Ponty sublinharam o caráter determinante do sentir, do estado de A relação com outrem, em Jaspers, se inclui no tema da comunicação, fundamental para ele. O tema do “tornar-se manifesto” (Offenbarwerden) é retomado da figura do demoníaco em O conceito de angústia de Kierkegaard. A angústia diante do Bem se apodera do demoníaco, do espírito que se fecha em si mesmo, que se retira em si, quando a liberdade é abertura e comunicação. No capítulo “Solidão e união”, Jaspers escreve: “Na comunicação, eu me torno manifesto a mim mesmo com outrem. Mas esse tornar-se manifesto é ao mesmo tempo, e em primeiro lugar, o devir real do Eu como Si” (Filosofia, p.315, tradução modificada). Uma nítida distinção se impõe entre a comunicação objetiva, caracterizada por diversos tipos de fusão no seio de comunidades ditas substanciais, e a comunicação existencial. A comunicação na ideia ou a ação coletiva são de uma ordem completamente diferente da “proximidade absoluta entre o meu ‘mim mesmo’ e o do outro, em que nenhuma substituição é mais possível” (p.308). “Não posso me tornar eu mesmo sem entrar em comunicação, e não posso entrar em comunicação sem ser solitário” (p.313-314). O Eu sem comunicação não seria mais que escoamento frágil, deslocamento caótico ou bloco vazio e imóvel. Solidão e união significam igualmente uma certa dureza do Si e uma distância sempre a desaparecer e a renascer. A comunicação só rompe a solidão ao possibilitar, precisamente a partir daí, uma nova e possivelmente mais original relação. É no esforço que faz a existência para atingir a certeza de ser ela mesma que se introduz mais insidiosamente a possibilidade do desespero. Querer ser livre para si só é cair numa das duas formas de desespero analisadas por Kierkegaard: querer desesperadamente ser si-mesmo, ou querer desesperadamente não ser si- mesmo. Na ideia do combate como situação-limite, como Agon espiritual (p.446), aparece também o combate sem violência, “o combate pela existência no amor” (p.453), que é questionamento de si e do outro sobre o fundamento de uma solidariedade invisível sem a qual não há existência virtual alguma. Só a liberdade, fonte de todo esclarecimento da existência, engajada nesse combate que só se sustenta por ele mesmo, e que, sem fundamento nem justificação conceitual, ajuda a “superar o desespero das situações-limite” (p.480), a não se obstinar no fechamento e na angústia. Como no caso de muitas noções às quais o existencialismo deu vida, a relação com outrem deve sua renovação a Husserl e a Heidegger. Ao substituírem os esquemas tradicionais da moral ou da filosofia social, os da intersubjetividade, do ser-com (Mitsein) ou do ser-um-com-o-outro (Miteinandersein) representam nesse domínio a aquisição propriamente fenomenológica que se associou a diversas modulações herdadas de Kierkegaard, como a sátira à sociedade do nivelamento e a reabilitação do existente singular. As análises de Ser e tempo são anteriores à quinta Meditação cartesiana de Husserl. Essa abordagem justamente célebre da “esfera de ser transcendental entendida como intersubjetiviadde monadológica” começava por afirmar que “o outro eu (o primeiro não-eu) é o estranho primeiro em si” (§ 49), mas isso para chegar à teoria da apresentação do outro entendida como apercepção por analogia. Em Heidegger, a ontologia fundamental separa desde o início a existência própria ou autêntica da cotidianidade média, da vida ordinária regida pela impessoalidade do a gente, fazendo essa existência contrastar com o nivelamento em que tudo geralmente é partilhado por todos. À neutralidade do a gente ou dos outros, na qual o ser-aí pode se dissolver, à dispersão na mediocridade cotidiana (assim existencialmente caracterizada, o que não significa moralmente julgada), o Si-mesmo se arranca no que ele tem de próprio, mas também como ser-com preocupado com o outro. Se chegamos assim à análise da solicitude, é tomando como ponto de apoio o ser-aí, que é sempre e a cada vez o meu. A definição da liberdade apela essencialmente à possibilidade, para o Dasein, de existir em vista de si mesmo, de estar adiante de si, de ser para suas possibilidades existenciais mais próprias e, em última instância, de existir decididamente em direção ou para a morte. Mas essa ipseidade68 não significa isolamento, nem tampouco que a relação com outrem, o ser-com, acontece simplesmente de fato, como algo posterior. Isso seria apenas uma banal constatação de ordem ôntica: não estou sozinho no mundo. “A proposição fenomenológica: o Dasein é essencialmente ser-com, tem um sentido ontológico-existencial (...). O ser sozinho é um modo deficiente do ser-com, sua possibilidade é a prova deste último” (p.120). A filosofia de Sartre é uma filosofia da liberdade. Quer se trate da origem da negação, da finitude, da temporalidade (ver cap. III), das relações concretas com outrem, da corporeidade, do ser-em-situação, a questão da liberdade é sempre determinante. Quando a Crítica da razão dialética afirma que “o campo prático-inerte é o campo de nossa servidão”, é para esclarecer: “Isso quer dizer que todo homem luta contra uma ordem que o esmaga”, pois a rigorosa necessidade do processo histórico mostra que o homem “enquanto totalizador é sempre ao mesmo tempo o totalizado”. Sartre permanecerá sempre ligado a um pensamento do sujeito, quer se trate da “morte do homem”, da influência crescente das ciências humanas, de um sujeito humilhado ou descentrado; ao falar das opressões e tiranias, ele dirá: “o essencial não é o que fizeram do homem, mas o que ele faz daquilo que fizeram dele”.69 Talvez mais até do que a produção filosófica, a obra do dramaturgo e do romancista ilustra essa preocupação permanente com os tormentos e a expressão da liberdade, como o “Teatro de situações” e principalmente o monumental romance – concebido de 1938 a 1944, durante a guerra e o cativeiro na Alemanha, no momento da formação do grupo de resistência Socialismo e liberdade, até a libertação de Paris – Os caminhos da liberdade. A liberdade não consiste de modo algum na escolha intemporal de um caráter inteligível, ela é vivida como um arrancar-se do seu passado, no instante, na situação sempre renovada em direção a um futuro imprevisto portador de angústia. Essa convicção governa também a escolha do dramaturgo que prefere, em vez do teatro dito de caracteres, o teatro de situações e mesmo de situações- limite, nas quais, de maneira certamente mais dramática, os heróis são, como cada um de nós, liberdades às voltas com armadilhas. Sem apoio no passado, sem garantia no presente, “a liberdade é escolha do nosso ser, mas não fundamento do nosso ser” (O ser e o nada, p.558). Essa contingência é marcada por uma estrutura ontológica muito significativa, segundo a qual a preocupação do para-si, que é de fato preocupação “para mim, me revela um ser que é meu ser sem ser-para-mim” (p.275). É ao eu que se preocupa consigo que outrem aparece. Como a liberdade, a existência de outrem é “um acontecimento primeiro, certamente, mas de ordem metafísica, isto é, que diz respeito à contingência do ser” (p.358). O único limite com o qual pode se deparar a liberdade vem da relação com outrem. A fenomenologia do olhar e do tato (a análise da carícia, que suscitará alguns êmulos, faz parte da descrição das relações concretas com outrem a propósito do desejo, p.459 ss.) desempenha aqui um papel determinante, ao mesmo tempo em que é constitutiva da ontologia do para-si. Nem minha liberdade nem a de outrem podem se deixar abordar sem periclitar. Só posso ser amado ao me fazer objeto e, fascinando o outro, ao reduzir sua liberdade. Como só há escolha fenomênica (p.559) e liberdade absoluta, não pode haver amor absoluto. O fato de a análise sartriana das relações com outrem, em razão de sua concepção da liberdade, só poder ser feita em termos de conflito não significa que para ele toda relação concreta seja conflitante. Veremos mais adiante como as pesquisas dos Cadernos para uma moral modificavam e, no fundo, retificavam a concepção de O ser e o nada sobre a relação com outrem (mencionada acima a propósito da relação carnal). Deve-se notar, porém, que O ser e o nada não excluía que nossa livre existência fosse retomada e desejada por uma liberdade absoluta que ela ao mesmo tempo condicionasse e que nós mesmos desejássemos livremente. Estaria aí “o fundo da alegria do amor, quando ela existe: sentirmo-nos justificados por existir” (p.439). Desde suas primeiras publicações sobre a imaginação, o pensamento de Sartre é regido pela ideia do poder nadificador do espírito, que designa sua total liberdade. O estatuto da liberdade é definido em suas linhas essenciais em O ser e o nada, mas é em referência ao problema da história, do espírito objetivo, que ele encontra seus últimos esclarecimentos. É porque não há saber do fim da história, é em razão dessa ignorância do destino geral, reservado à humanidade, que a liberdade só existe em situação e que não há “verdade da consciência (de) si, mas uma moral, no sentido em que esta é escolha e existência que se dá regras para existir, na e por sua existência”.70 IV. Facticidade e transcendência Desde os anos 1919-1920, como lembra em Ser e tempo (p.72, nota), Heidegger desenvolveu simultaneamente a manifestação do fenômeno do mundo-ambiente e a hermenêutica da facticidade. Se transcender significa literalmente transpor, ultrapassar, ir além, é em razão de uma possível abertura. O Dasein existe em vista de si mesmo e para o que pode se realizar (projeto) no mundo onde ele está lançado, no seu ser-no-mundo e com outrem. Tal é, existencialmente, a estrutura do cuidado, unidade da existencialidade, da facticidade e da decaída (isto é, da inserção na preocupação cotidiana em meio às coisas do mundo). Ontologicamente, o sentido do cuidado é temporalidade. Na sujeito e que é essencialmente uma filosofia da liberdade. A liberdade do para-si não significa que ele seja para si mesmo seu próprio fundamento, pois, se é necessário que a realidade humana exista sob a forma do ser-aí, o fato de sua existência é inteiramente contingente (p.371, 564) – contingência de um fato dito com uma conotação moral ou jurídica “injustificável” (p.122). É em razão dessa gratuidade, como sendo em excesso, que a liberdade “força a realidade humana a se fazer em vez de ser” (p.516) e se apreende a si mesma na e pela angústia. Tal é o sentido da fórmula bem conhecida do homem condenado a ser livre. “Se definimos a liberdade como o que escapa ao dado, ao fato, há um fato que escapa ao fato. É a facticidade da liberdade” (p.565). Concretamente, isso se exprime na experiência cotidiana de que só há liberdade numa situação necessariamente dada: meu nascimento, meu corpo, meu lugar etc. Todo o capítulo intitulado “Liberdade e facticidade: a Situação” (p.561-638) descreve as múltiplas facetas da situação, conceito principal da análise; se só há liberdade em situação, não há situação, nesse sentido, a não ser pela liberdade. “Contingência e facticidade são a mesma coisa” (p.567). Tudo se reduz, em última instância, à famosa prova ontológica que afirma, já na Introdução da ontologia fenomenológica, que o fenômeno do ser exige “um fundamento que seja transfenomênico” (p, 16), a consciência nascendo “voltada a um ser que não é ela” (p.28). Em sua contingência, o ser em-si, que se impõe no momento da experiência da náusea, “assedia o para-si sem nunca deixar-se apreender; é o que chamaremos a facticidade do para-si” (p.125). V. A angústia, a fé, o absurdo A angústia. O conceito de angústia não pôde deixar de aparecer mais de uma vez no que precede, e primeiramente em razão da significação nova que lhe deram, no século XIX, Schelling e Kierkegaard, cuja obra O conceito de angústia (1844) chamou particularmente a atenção dos filósofos da existência. O livro é único no gênero pela multiplicidade de seus estilos, como anuncia logo de início o autor, pseudônimo, Vigilius Haufniensis: “No meu entender, quando nos propomos a escrever um livro, fazemos bem em examinar sob diversos aspectos a questão que queremos abordar”.74 Psicologia (a vontade e as pulsões, a diferença sexual), exegese bíblica, prolegômenos à teologia dogmática, reflexões morais (a culpabilidade), antropologia, recordação da filosofia dos gregos, elogio e crítica dos sistemas modernos, evocações históricas (o caso Callas) e ficção narrativa acham-se misturadas nessa obra como nunca estiveram na literatura filosófica. Retemos aqui apenas o § 5 do primeiro capítulo, precisamente intitulado: “O conceito de angústia”, com sua forma simples e dupla ao mesmo tempo. Primeiro há o estado de inocência (Adão): na serenidade e no repouso da alma naturalmente unida ao corpo, não há discórdia nem luta, nada contra o qual seja necessário travar combate. Mas o que é então esse Nada e “que efeito ele pode produzir? Ele engendra a angústia” (op. cit., p.144). Como no sonho, há o outro, o outro do Eu em paz consigo mesmo, um Não-Eu tão pouco determinado como é um nada, inapreensível pelo espírito, que por enquanto está aí apenas no estado sonhador, portanto muito diferente da existência amedrontada ou apavorada por alguma coisa. Esse Nada que choca e seduz é que me angustia. Segunda forma, se podemos dizer: esse Nada que flutua diante do olhar (de Adão) é interiorizado, internalizado. E a liberdade não é senão a infinita, “a angustiante possibilidade de poder” (ibid., p.146-147). São O conceito de angústia e os Discursos edificantes de Kierkegaard que Heidegger (Ser e tempo, p.190 e 235 em nota) cita com elogio. Podemos dizer que Heidegger prolonga o conceito de angústia ao inscrevê-lo na análise existencial do cuidado entendido como “o ser mesmo do Dasein”. Mas a diferença não é menos evidente, porque, na ontologia fundamental de Heidegger, está ausente a dimensão, que é constitutiva da problemática kiekegaardiana, da corporeidade (Leiblichkeit), daquele Leib que os leitores de Husserl traduzem por “carne”. A angústia, considerada não como fenômeno que afeta a vitalidade psicológica mas em sua significação ontológica, é a tonalidade afetiva fundamental, o Stimmung [ambiente] que se apodera do Dasein, que literalmente lhe cai em cima e o assalta quando ele se acha no mundo às voltas com os objetos de sua preocupação. Essa angústia se diferencia tanto do medo provocado por algum acontecimento intramundano quanto do temor de um aquém ou de um além deste mundo. Pelo isolamento que provoca e pela neutralização da atenção focalizada nessa ou naquela expectativa, ela isola não por transformar o existente num sujeito fora do mundo, mas, ao contrário, e em virtude do “solipsismo existencial” (p.188), por revelar o Dasein a si mesmo como ser-livre, entregue a seu próprio poder-ser enquanto ser-no-mundo. No para-quê, no em-vista-de-quê sobrevém a angústia – e no extremo a angústia da morte – é o Dasein mesmo em seu poder-ser como tal, quando o diante-de-quê é o mundo como tal (ver p.188, 251). Há aqui alguns traços manifestamente retomados de Kierkegaard: a angústia não é o medo, nela se exprime a liberdade como possibilidade de poder. Diferença evidente: a angústia segundo Kierkegaard não é diante do mundo, é o fato de existir no mundo enquanto ser encarnado, alma e corpo, e corpo sexuado. Mais tarde, como vimos, o motivo da angústia reaparece em Heidegger com uma significação bem diferente, pois ela se torna o que permite ao homem fazer a prova do nada que manifesta sua essência como Ser. Talvez se possa aqui perceber uma certa analogia com Schelling, quando a subjetividade, querendo compreender-se, experimenta sua impotência diante do prius do supraente, quando a razão é tomada de estupefação (attonita) e como que posta fora dela mesma. Mutatis mutandis, esse êxtase [ékstasis, movimento para fora] não deixa de ter semelhança com a angústia, não mais a angústia do Dasein na finitude de sua temporalização e em sua mundanidade, mas a angústia que se apodera “do homem que em sua essência mesma” é pego na insistência (Inständigkeit) que o submete à mais alta reivindicação, a fim de que “no Nada ele aprenda a fazer a prova do Ser”.75 Apesar da amplitude das significações do ser-com-outrem que afeta toda disposição e mesmo toda compreensão, é sempre do ser-no-mundo que se trata, da significatividade do intramundano, do mundo do Dasein que é mundo comum (Mitwelt). Podemos nos perguntar se o isolamento experimentado na angústia pelo Dasein que está sempre em-vista-de-si-mesmo, angústia frente ao mundo ao qual está votado quando ele é subtraído à sua cotidianidade, se essa solidão não anuncia um outro isolamento, o do pensador que, após ter analisado existencialmente a temporalidade do Dasein e seu destino, é agora levado a meditar sobre o destino do Ser. Marcel professa uma filosofia da esperança e da alegria de viver, gaudium essendi, que não exclui a inquietude segundo Santo Agostinho, pois ela é da ordem do ser. Ao contrário, a satisfação, assim como a angústia, é da ordem do ter. Submetida a uma análise simplesmente psicológica, a angústia não significa senão retraimento e antecipação febril. Ao cabo de uma rápida confrontação entre Kierkegaard e Heidegger, um e outro menos violentamente atacados do que Sartre, Marcel se posiciona “contra as afirmações kierkegaardianas: parece-me que a angústia é sempre um mal (...). As filosofias da existência fundadas na angústia saíram de moda”.76 A posição de Jaspers, bem mais matizada, descreve uma “bipolaridade da angústia”77, angústia vital e angústia existencial. A primeira é a angústia frente à morte, convulsão do querer-viver que se insurge diante da iminência do não-ser. A segunda, angústia em relação ao ser verdadeiro, não pode de maneira alguma ser superada pelo recurso a uma segurança objetiva, ela precisa ser vivida pelo retorno constante ao impulso em direção ao absoluto. É na comunicação de existência a existência, em situações históricas dadas, que a consciência absoluta pode se esclarecer, que a existência, em vez de cair numa vertigem destruidora, pode enfrentar a angústia na finitude da vida e reatar com sua origem, com o dom da vida que lhe foi dado. A certeza do ser constantemente a reconquistar é alheia tanto ao furor de viver quanto ao desespero do não-ser. Ela está no fundamento de um possível domínio sereno de si diante do nada que persiste na morte. Somente ela pode relativizar e refrear os sobressaltos da angústia vital da vida empírica. Essa angústia existencial, que se preocupa apenas consigo mesma, é a da existência orientada pela relação com a transcendência, e nela se percebem vestígios da leitura de Kierkegaard, aliás evocado nesse sentido.78 Em 1939, Sartre define a angústia citando Kierkegaard – “angústia diante da liberdade” – e evocando Heidegger que, embora falando de outro modo – “angústia diante do nada” –, não diz outra coisa. A angústia é “uma estrutura existencial da realidade humana, não é outra coisa senão a liberdade tomando consciência de si mesma como sendo seu próprio nada”.79 Estão, assim, intimamente ligadas à náusea, apreensão existencial de nossa facticidade, e à angústia, apreensão existencial de nossa liberdade. Os mesmos autores e os mesmos termos reaparecem em O ser e o nada (p.66, 77). Nas descrições mais elementares de O existencialismo é um humanismo, a angústia é a do homem que, sem recurso possível a valores que teriam sua origem em algum céu inteligível, é o ser desamparado que precisa escolher ele mesmo seu ser e que, ao escolher-se, compromete-se com toda a humanidade. Certamente ele pode, prática da intencionalidade que poderíamos descrever como sensibilidade permanente ao que se oferece em diversas modalidades da passagem, da pulsação, da oscilação. É o que diz o conceito de metaestável, que caracteriza a estrutura existencial facticidade/transcendência, analisada acima. O para-si, não sendo fundamento do seu ser, é no entanto “forçado a decidir sobre o sentido do ser, nele e fora dele”; eis por que “ele se apreende na angústia”, mas também por que “na maioria das vezes escapamos da angústia na má-fé” (O ser e o nada, p.642). “O problema da má-fé é um problema de crença”, isto é, de adesão a um objeto não dado ou dado na imprecisão. A boa fé é o movimento espontâneo, impulso de confiança que Hegel chama imediato, segurança firme ou certeza oscilante que, ao passar ao regime da mediação, cessa de ser crença. A má-fé permanece num estado de flutuação, às voltas com evidências não persuasivas; persistindo nessa não-persuasão, resignada em não se transformar em boa fé, ela decidiu “que a estrutura metaestável era a estrutura do ser” (p.109). Os exemplos concretos de condutas de má-fé são alguns dos melhores trechos da ontologia fenomenológica. Filosoficamente, prevalece aqui o motivo essencial dessa filosofia da existência, “a intraestrutura do cogito pré-reflexivo”, ou seja, que a realidade humana “é o que ela não é e não é o que ela é” (p.108). A crença já é consciência da crença, portanto cogito “intraconsciencial”, autoapercepção de uma consciência irrefletida, ou seja, inevitavelmente, “crença perturbada” (p.117). A má-fé reaparece nos Cadernos para uma moral, desmascarada como astúcia praticada “na maior parte do tempo” pela “maior parte das pessoas” (p.13, 20, 578). A passagem à reflexão pura ou não cúmplice, ligada ao motivo da conversão à autenticidade, é evocada especialmente a propósito da relação com outrem. “O dever, num grau de abstração mais elevado e de maior má-fé, aparece quando a pessoa concreta é substituída pelo a gente [em francês, on]” (p.269). O absurdo. A noção de absurdo em Kierkegaard se inscreve no registro que foi dito teológico ou mesmo apologético, a exemplo de Tertuliano, de Agostinho, de Lutero ou de Pascal, quando o pensador dinamarquês simplesmente se quis escritor e “poeta do religioso”. É bem conhecida a tese da fé, e também da repetição, como movimento da existência efetuado em virtude do absurdo.84 Mas o que Kierkegaard põe na boca de um outro autor pseudônimo tem um teor mais filosófico. Ele explica que, se é ridículo querer levantar os véus do incompreensível, também é presunçoso, e mesmo cômico, ostentar uma existência paradoxal fora de propósito, propondo “uma duvidosa promoção do imbróglio e do contrassenso”. O paradoxo religioso do crente cristão consiste em que, para crer contra a razão, ele tem grande necessidade da razão. O inverossímil não é um amontoado de absurdos. O enigma da estrutura com a qual a razão deve lidar, não podendo nem dissolvê-la em contrassenso, nem sublimá- la em evidência, é o paradoxo religioso. O absurdo é “uma determinação conceitual negativa, mas ela é tão dialética quanto qualquer outra determinação positiva.”85 Em 1944, numa defesa e ilustração do existencialismo, Sartre denunciava o confusionismo dos críticos que “confundiam na mesma reprovação os existencialistas e os filósofos do absurdo”. Essa filosofia, dizia ele, “é coerente e profunda. Albert Camus mostrou que era capaz de defendê-la sozinho.”86 Camus era visto nessa época como o tipo mesmo do “pensador subjetivo”, segundo a fórmula kierkegaardiana. Foi ele que deu com mais vigor e talento literário um sentido “existencialista” ao tema do absurdo. O estrangeiro e O mito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo, livros publicados em 1942 e que logo viraram clássicos para o grande público, foram imediata e longamente analisados e comentados por Marcel e por Sartre. Embora admirando a lucidez e o virtuosismo do escritor, Marcel se insurgia contra o que ele diagnosticava como “apologética às avessas”, provavelmente motivado por um “idealismo solipsista” tingido de “niilismo ontológico”. Para Sartre, O estrangeiro era “uma obra clássica, uma obra de ordem, composta a propósito do absurdo e contra o absurdo”. Confrontado ao injustificável, “o homem absurdo é um humanista que conhece apenas os bens deste mundo”.87 O antagonismo que transparece nessas duas leituras manifesta sob uma luz particular o clima intelectual de uma certa Paris sob a ocupação alemã. Segundo Camus, o absurdo não é do mundo nem do homem, ele resulta do confronto com a irracionalidade, o silêncio do mundo e o desejo de clareza cujo apelo ressoa no coração do homem. Esse confronto se apresenta para o homem que, cercado de muros absurdos, experimenta tanto mais fortemente o sentido do absurdo quanto mais decididamente resiste a ele. Atormentado mas clarividente, o homem pode triunfar se encontra nessa viva consciência a força de enfrentar com lucidez e de superar pelo desprezo a experiência do absurdo. Como toda negação contém uma floração de sim, o pensamento, que Camus diz humilhado, permanece vivo mesmo num mundo sem unidade nem finalidade, sem mais-além divino, pois o homem, “senhor de seus dias”, permanece, como Sísifo, um lutador sempre em marcha: sua “pedra rola mais uma vez (...). É preciso imaginar Sísifo feliz.”88 Como a dúvida metódica, o sentimento do absurdo faz tábula rasa, mas pode também orientar novas buscas, pois dele nasce a evidência de uma inevitável revolta diante do espetáculo da desrazão, das condições injustas impostas aos homens. “Grandes aventureiros do absurdo não nos faltaram. Mas a grandeza deles, afinal, está em recusar as complacências do absurdo para conservar apenas suas exigências.”89 Em sua reflexão sobre o absurdo, Camus se interessa pelo que ele considera como uma família de espíritos acometidos de angústia diante de um universo onde reinam a contradição e as antinomias. Assim aparecem Heidegger, Jaspers (o fracasso e as situações-limite), Leon Chestov, autor russo muito prezado pelos existencialistas franceses90, Kafka (a quem é dedicado o apêndice de O mito de Sísifo, intitulado “A esperança e o absurdo”), mas sobretudo Kierkegaard. Camus devia pensar em Abraão descendo a montanha de Morija quando escreveu, vendo Sísifo tornar a descer à planície (p.163): “É durante esse retorno, essa pausa, que Sísifo me interessa.” Como Nietzsche, também Kierkegaard pensava filosoficamente em figuras, pondo em cena Abraão e Jó, Sísifo, Prometeu e Tântalo. Ao retomar de Kierkegaard a ideia do desespero como “o estado mesmo do pecado”, Camus descreve o absurdo vivido pelo homem consciente como “o estado metafísico que não leva a Deus. Talvez essa noção se esclareça se eu arriscar esta enormidade: o absurdo é o pecado sem Deus”.91 As ligações de parentesco esboçadas entre as obras de Kierkegaard, Chestov e Kafka é certamente discutível. Ao vê-las “inteiramente voltadas para o absurdo e suas consequências”, ele acha estranho que tais obras “resultem afinal nesse imenso grito de desespero” (p.181-182). A surpresa se explica porque Camus, não adotando em seu livro nem “a posição”, nem “a atitude de espírito” requeridas para examinar o “problema essencial que é o da fé” (p.57, nota), deve se contentar em observar que “não há mais lugar para a esperança” (entenda-se: neste mundo) para os que fazem “do absurdo o critério do outro mundo” (p.56-57). Em contraponto a essa interpretação dos autores escolhidos como guias, que convém abandonar no momento oportuno, é afirmada uma experiência do absurdo como prova de uma vida abandonada pela “graça divina”, portanto como aquele “desespero” que, segundo Kierkegaard, “o espírito absurdo adota sem tremer (...). Tudo bem considerado, uma alma determinada sempre se arranjará com isso” (p.61). Sartre não estava enganado ao incluir Camus na grande linhagem dos moralistas franceses, aliás também admirados por Nietzsche. É deles, mais do que “de um fenomenólogo alemão ou de um existencialista dinamarquês92”, que ele herda o cuidado de equilibrar “a evidência e o lirismo, única coisa capaz de nos dar acesso ao mesmo tempo à emoção e à clareza”.93 De fato, as releituras conjuntas de Kierkegaard e de Husserl deixam o leitor filósofo um tanto surpreso, quando o intérprete revela uma espécie de suicídio do pensamento, suicídio filosófico (p.46 ss.), nesses pensadores que teriam chegado aos limites da razão raciocinante, abdicação à qual procedem esses “príncipes do espírito” (p.23). O que foi dito antes dá a entender as razões do recurso de Camus a Kierkegaard. O mesmo não acontece em relação ao fundador da fenomenologia do século XX, em quem Camus, vendo a filosofia proceder simplesmente à “descrição do vivido”, à análise das modalidades da consciência intencional, conclui que a fenomenologia “junta-se ao pensamento absurdo” (p.63). Mas, em última instância, a epistemologia faz as vezes de metafísica em Husserl (p.64, nota); seu racionalismo triunfante só tem sentido em virtude de um salto que permanece incompreensível “no mundo aburdo” e que representa “uma metafísica da consolação” (p.67). Não reconhecendo nem o “deus abstrato de Husserl, nem o deus fulgurante de Kierkegaard”, “o absurdo é a razão lúcida que constata seus limites” (p.69, 71). Renunciando a “apaziguar a melancolia plotiniana”, a “acalmar a angústia moderna nos cenários familiares do eterno, o espírito absurdo tem menos chance” (p.70). Ele se obriga a não escapar do instante precário que precede o salto na fé ou na razão conciliadora; a honestidade exige que ele se mantenha “nessa aresta vertiginosa”(p.72). Embora o autor admitisse que, nesse ensaio literário arriscado, talvez tivesse “levado longe demais um tema manejado com mais prudência por seus criadores” (p.66-67), Sartre não pôde deixar de observar que “o sr. Camus se compraz em citar textos de Jaspers, ascese exprimem. Assim é entrevista aquela beatitude “efetivamente alcançada que nos fala dos primórdios dos séculos, na Índia, na China, no Ocidente, uma linguagem impressionante” (p.513). Esse abandono do mundo é “análogo ao suicídio”. A negatividade dessa terrível solidão pode ter algo de heroico e valer como “uma interrogação dirigida à felicidade” (p.514). Como Jaspers, Marcel medita sobre a morte a partir da morte do próximo, do ser amado. “Confessar seu amor é dizer: tu não morrerás.” Percebe-se aí a proximidade com Jaspers no plano existencial. O tema da comunicação repercute aqui o da fidelidade, que é “o reconhecimento, não teórico ou verbal, mas efetivo, de uma certa permanência ontológica” (Ser e ter, p.173). Mas, ao contrário de Jaspers, Marcel nunca renunciou a fundar metafisicamente a “solidariedade íntima entre as preocupações existenciais e as preocupações personalistas. O problema da imortalidade da alma [é o] pivô da metafísica” (p.11). Imortalidade ou sobrevivência, o tema reaparece constantemente nos escritos de Marcel, juntamente com – em virtude da encarnação: sou meu corpo – a impossível justificação, não moral mas “hiperfenomenológica”, do suicídio (p.206). Embora radicalmente oposto ao pensamento de Sartre, por repousar sobre o mistério da imortalidade, a relação com a morte, segundo Marcel, exclui também a ideia heideggeriana da morte como sendo da ordem do meu poder- ser. Segundo O ser e o nada (p.616), Heidegger foi quem deu à “humanização da morte” uma forma filosófica. Portanto, se Sartre nega qualquer significação à expectativa da morte, é num sentido bem diferente de Heidegger. Sendo negação de toda expectativa e destruição de todo projeto, “a morte não poderia ser minha possibilidade própria; ela não poderia ser sequer uma de minhas possibilidades” (p.624). Não é diferente com o suicídio que, para o para-si, só pode ter uma significação nula, pois o futuro no qual se projeta o homem que o escolhe lhe será, por isso mesmo, retirado. “O suicídio não poderia ser considerado como uma finalidade de vida da qual eu seria o próprio fundamento” (ibid.). Ao discutir algumas fórmulas de Heidegger em Ser e tempo, Sartre desenvolve a tese segundo a qual a morte, não estando no fundamento da liberdade, “só pode tirar da vida toda significação” (p.623). Sendo situação-limite apenas como o avesso de meus projetos, a morte é o absurdo mesmo e é iludir-se pensá-la “como um acorde de resolução ao final de uma melodia” (p.617). A mortalidade só pode ser alheia à estrutura ontológica do para-si, sou mortal apenas para outrem, não me sabendo mortal senão pela mediação de uma morte não minha. “Se a morte escapa a meus projetos por ser irrealizável, eu escapo à morte em meu projeto mesmo” (p.632). A finitude é uma estrutura ontológica, mas o nascimento e a morte, que são apenas contingência, dizem respeito exclusivamente à facticidade. Essa posição extrema, e certamente única numa filosofia dialeticamente argumentada, faz da morte uma evidência e mesmo uma certeza que permanece puramente abstrata, termo correlativo e simétrico exigido de uma consciência que é de uma ponta à outra liberdade. Toda tentativa de interiorização da morte, seja ela filosófica como no realismo platônico de Morgan em Sparkenbrook, seja ela poética (Rilke) ou romanesca (Malraux), é assim radicalmente recusada (p.615-616). Nada melhor para mostrar a distância que há aqui em relação a Heidegger, que escreveu em 1949: “Importa absolutamente pensar ao mesmo tempo a in-stância na abertura do Ser, o encarregar-se da in-stância (cuidado) e a perseverança no extremo (ser para a morte), e isso como a essência plena da existência”. A distância só podia se acentuar a partir do momento em que o pensamento do Ser se impõe ao Dasein como exigindo “a aceitação decidida do mistério”.98 Ao afirmar que agora “o Ser é o único cuidado do filósofo alemão”, Sartre denunciará o que ele chama de positivismo do inverificável, “a posição mística que define o homem pelo mistério”.99 Em Camus, a questão da morte se coloca a propósito do suicídio, que é “o único problema filosófico realmente sério” (p.15), e do assassinato, do qual ele falará a propósito da história. As observações sobre o suicídio pedagógico e lógico de Kirilov100 são muito esclarecedoras, na medida em que essa decisão e sua justificação, não desprovidas de humor, são a obra de um ambicioso muito refletido que, no plano metafísico, é e não pode não ser um homem vexado (p.141). Como o absurdo não é nem do mundo, nem apenas do sentimento vital, mas do confronto dos dois, a rejeição do suicídio se impõe do mesmo modo que a esperança quimérica. Seriam duas formas de evasão, duas maneiras de pôr fim ao confronto entre “a interrogação humana e o silêncio do mundo”. Assassinato e suicídio testemunham igualmente “a indiferença à vida que é a marca do niilismo”.101 49. KIERKEGAARD. Johannes Climacus ou: de omnibus dubitandum est. Un conte. Oeuvres complètes, I. p.329-330, 358. (N.A.) 50. Post-scriptum. Oeuvres complètes, XI, p.29-30. (N.A.) 51. Stades sur le chemin de la vie. Oeuvres complètes, IX, p.444, nota 438. (N.A.) 52. SCHELLING. Philosophie de la Révélation. Tomo I. p.186. (N.A.) 53. Post-Scriptum. Oeuvres complètes, IX, p.31. (N.A.) 54. SCHELLING. Oeuvres métaphysiques (1805-1821). Trad. de J.-F. Courtine. Paris: Gallimard, 1980. p.144, 188. (N.A.) 55. Les Âges du monde. Trad. de P.David. Paris: PUF. p.250. (N.A.) 56. KIERKEGAARD. La maladie à la mort. Oeuvres complètes, XVI, p.172. (N.A.) 57. JASPERS. Philosophie. p.25, 268. (N.A.) 58. HEIDEGGER. Lettre sur l’humanisme. Trad. de R. Munier. Paris: Aubier, 1957. p.67. (N.A.) 59. BENVENISTE, E. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966. p.135. (N.A.) 60. BIRAULT, H. De l’être, du divin et des dieux. Paris: Le Cerf, 2005. p.300. (N.A.) 61. SCHUBACK, M. Sá Cavalcante. La perplexité de la présence. Notes sur la traduction de Dasein. Les Études philosophiques. Paris, n.3, p.257-279, 2002. (N.A.) 62. HEIDEGGER. Questions. Trad. de C. Roëls. Paris: Gallimard, 1976. Tomo IV. p.182. (N.A.) 63. Questions. Trad. de R. Munier. Paris: Gallimard, 1968. Tomo I. p.34-35. (N.A.) 64. Lettre sur l’humanisme. p.65. (N.A.) 65. SARTRE, J-P. Cahiers pour une morale. Paris: Gallimard, 1983. p.512. (N.A.) 66. SARTRE, J-P. Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard, 1985. Tomo II. p.340. (N.A.) 67. Homo viator. Paris: Aubier, 1963. p.5. (N.A.) 68. Caráter individual que distingue um ser de todos os outros. (N.T.) 69. SARTRE, J-P. Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960. Tomo I. p.369, 157; Sartre répond. L’Arc, nº 30, 1966, p.95. (N.A.) 70. SARTRE, J-P. Vérité et existence. Paris: Gallimard, 1989. p.93. (N.A.) 71. Questions, I. p.141. (N.A.) 72. Ibid. p.62. (N.A.) 73. Lettre sur l’humanisme. p.91. (N.A.) 74. KIERKEGAARD. Le concept d’angoisse. Oeuvres complètes, VII, p.109. (N.A.) 75. HEIDEGGER. Questions, I. p.78. (N.A.) 76. MARCEL. L’homme problématique. Paris: Aubier, 1955. p.186. (N.A.) 77. JASPERS. Philosophie. p.440-441, 471-472. (N.A.) 78. JASPERS. Introduction à la philosophie. Trad. de J. Hersch. Paris: Plon, 1952. p.57, 90. (N.A.) 79. SARTRE, J-P. Carnets de la drôle de guerre (18 de dezembro de 1939). Paris: Gallimard, 1995. p.342, 344; citação de KIERKEGAARD, Le concept d’angoisse, p.146. (N.A.) 80. KIERKEGAARD. La maladie à la mort. p.248. (N.A.) 81. Post-scriptum. Oeuvres complètes, X. p.176 ss., 189. (N.A.) 82. HEIDEGGER, Introduction à la métaphysique. Trad. de G. Kahn (modificada). Paris: Gallimard, 1967. p.19. (N.A.) 83. HEIDEGGER. Beiträge zur Philosophie. Frankfurt: Klostermann, 1989. p.369. (N.A.) 84. KIERKEGAARD. Crainte et tremblement. Oeuvres complètes, V, p.129; Le concept d’angoisse. Oeuvres complètes, VII, p.120, nota. (N.A.) 85. Post-scriptum. Oeuvres complètes. XI, p.248-249; Journal, III, p.309. (N.A.) 86. CONTAT, M.; RYBALKA; M. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970. p.654. (N.A.) 87. MARCEL. Homo viator. p.277, 279; SARTRE, J-P. Situations. Paris: Gallimard, 1947. Tomo I. p.121, 113. (N.A.) 88. CAMUS. Le mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 1961. p.166. (N.A.) 89. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1985. p.22. (N.A.) 90. CHESTOV, L. Kierkegaard et la philosophie existentielle? Vox clamantis in deserto. Trad. do russo de T. Rageot e B. de Schloezer. Paris: Vrin, 1936. (N.A.) 91. Le mythe de Sisyphe. p.179-180, 60-61. (N.A.) 92. SARTRE, J-P. Situations. Tomo I. p.102. (N.A.) 93. Le mythe de Sisyphe. p.16. (N.A.) 94. KIERKEGAARD. Sur une tombe (1845). Oeuvres complètes, VIII. p.61-89. amor conjugal, é essencialmente marcada pela “determinação do tempo (...). Assim o amor conjugal encontra seu inimigo no tempo, sua vitória no tempo, sua eternidade no tempo: eis aí a tarefa” (op. cit., IV, p.125). Sem podermos dizer aqui mais sobre a sutileza da dialética, que implica repetição e resignação infinita, assinalaremos simplesmente esse traço da fé religiosa que não é evasão nas brumas etéreas da eternidade. “Toda a questão tem a ver com a temporalidade, com a finitude.”105 Se é possível dizer que a existência ética é uma luta e uma vitória constantemente obtida sobre o tempo, o mesmo não acontece em relação à temporalidade vivida pelo crente e em relação ao sentido do instante que se manifesta na revelação cristã. Os gregos não concebiam o instante senão como “átomo da eternidade”, eternidade situada anteriormente e que somente a reminiscência pode alcançar, “de modo que nem o tempo nem a eternidade recebiam seu pleno direito”. Não há história verdadeira senão a que o instante inaugura. “O instante é essa mistura em que o tempo e a eternidade estão em contato, estabelecendo assim o conceito de temporalidade, no qual o tempo interrompe constantemente a eternidade, e no qual a eternidade não cessa de penetrar o tempo (...). O eterno designa em primeiro lugar o futuro, o futuro é esse incógnito em que o eterno, incomensurável ao tempo, quer no entanto permanecer em contato com ele.”106 É manifestamente uma noção não grega da eternidade que é invocada aqui, juntamente com uma dialética do tempo e da eternidade. Heidegger dirá que, apesar da experiência existencial do instante perfeitamente descrita por Kierkegaard, a temporalidade mais originária, que a interpretação existencial do tempo irá propor, é ainda passada em silêncio. Observaremos no entanto, de passagem, que Heidegger, a propósito da doutrina nietzscheana do eterno retorno, volta à irrupção da eternidade no tempo e, consequentemente, à discriminação dos êxtases [ékstasis] temporais resultantes, quando fala da “colisão do futuro e do passado. É nessa colisão que o instante desperta a si mesmo”.107 II. Heidegger Deixando de lado seus numerosos comentários eruditos e interpretações violentas das grandes filosofias da Antiguidade e dos tempos modernos, a obra de Heidegger se desdobra inteiramente entre duas datas e dois títulos: Ser e tempo (1927), Tempo e ser (1962). O primeiro livro representa a etapa preparatória, o caminho que é preciso percorrer para poder tratar do tema anunciado logo de início: Ser e tempo (p.39). Heidegger retomou e examinou a questão do tempo em muitos outros livros e nos cursos (cuja tradução francesa ainda está longe de estar acabada) nos quais são comentadas as filosofias sem as quais novos avanços não seriam imagináveis, principalmente Aristóteles, Santo Agostinho, Kant e Hegel. Como em Kierkegaard, mas evidentemente apenas sob o ângulo da existencialidade, a discussão do conceito hegeliano do tempo (op. cit., p.428 ss) é particularmente reveladora do sentido de todo o empreendimento. A interpretação da temporalidade do Dasein não apenas se distingue totalmente da concepção hegeliana do tempo, mas é radicalmente orientada “em sentido contrário” (p.405). Alguns traços da temporalidade do Dasein já foram descritos precedentemente: a angústia, o ser-para-a-morte, o cuidado (cujo sentido ontológico não é outro senão a temporalidade). A eles se acrescentam o estar em dívida com o Dasein que, na facticidade do ser-no-mundo, está sempre em atraso em seu próprio poder-ser, o que é testemunhado constantemente pelo chamado, pela voz da consciência que se faz ouvir na preocupação cotidiana, que interpela a existência inautêntica normalmente vivida sob o regime do a gente (p.273). Como é impossível descrever aqui a arquitetura, que podemos dizer barroca, de Ser e tempo, sugerimos a leitura de um livro no qual o conjunto dos temas e suas complexas articulações são apresentados de maneira ao mesmo tempo concisa e matizada.108 Já que o próprio Heidegger observa que, “em seu resultado”, a interpretação que ele propôs da temporalidade do Dasein – e do tempo do mundo que lhe pertence – “parece se conciliar” com o pensamento de Hegel, é oportuno esclarecer o sentido aqui redefinido do tempo do mundo. O Dasein, como ser-no- mundo, descobre o ente intramundano, a mundanidade do mundo, sistema de relações, complexo de referências significantes que se oferece à compreensão. Essa estrutura do mundo, dita unidade de significatividade (Bedeutsamkeit), deve ser apreendida em seu teor fenomênico e não apenas em “formalizações que nivelam os fenômenos” (p.88). Ela possui sua temporalidade própria, o tempo público. Tempo calculável do mundo da preocupação, tempo do calendário e dos relógios, com o qual cada existente e todas as formas de vida em comum devem contar no cotidiano. Esse tempo tornado público em sua estrutura de significatividade é “o tempo do mundo”, ele “pertence ao mundo interpretado de maneira ontológica e existencial” (p.414). “O Dasein, na medida em que se temporaliza, é também um mundo” (p.365). Em outras palavras: é como fundado na temporalidade ekstática horizontal do Dasein que o mundo pode ser dito transcendente, que se manifesta sua constituição ontológica. Esse tempo do mundo foi explicado pelas filosofias ou no sentido da objetividade, ou no da subjetividade. O que Heidegger propõe a pensar é um tempo mais objetivo que todo objeto e mais subjetivo que todo sujeito (p.419). Estranha noção essa do tempo “que constitui uma intratemporalidade”, a das coisas dadas ou manipuláveis no mundo (que permanecem, num certo sentido, “não temporais” – p.420), embora sendo a condição de possibilidade mais arcaica da temporalidade do Si em sua existência e facticidade (que, como tal, existe “no tempo” – p.376). Estranha a ponto de podermos nos perguntar se ele é um ente ou um fantasma, questão-limite não menos última e radical do que “a conexão entre ser e verdade” (p.420). Esse “mundo” mais subjetivo que toda subjetividade, esse “tempo do mundo”, parece claramente acenar em direção ao “projeto ekstático do ser em geral”. Daí a abertura da interrogação com a qual termina Ser e tempo: “O tempo mesmo se manifesta como horizonte do ser?” (p.437). Seja como for, e para ficarmos nessa obra indiscutivelmente votada a se inscrever no campo das filosofias da existência, o que é fundamental, do ponto de vista da temporalidade, não é o agora em sua presença (a partir do qual sempre foi pensada a eternidade – o nunc stans, p.427, nota), mas o instante em sua dimensão ekstática horizontal, que mostra o presente como brotando do futuro. A concepção do tempo como “fluxo constantemente dado do agora” (p.424), do tempo nivelado que flutua livremente sem fundamento algum, é dita trivial. Entenda-se: é válida em seu nível mais comumente difundido, aquele que é levado em conta por Hegel que, por essa razão, comparece aqui de novo. Junto com Hegel, são convocados muitos pensamentos que o precederam e para os quais somente o presente é verdadeiramente. E o desconhecimento da temporalidade é inevitável quando, de uma maneira ou de outra, o conceito de tempo é apreendido e incluído numa dialética formal. Essa formalização extrema, que provoca inevitavelmente o nivelamento dos agora, era acompanhada e mesmo exigia a distinção de duas entidades, o espírito e o tempo, o primeiro em seu devir histórico “caindo no tempo”.109 Ora, afirma Heidegger, o espírito não é primeiramente, para depois cair na história. “Ele existe como temporalização originária da temporalidade” (p.436). A ideia de temporalização originária está no fundamento de toda a análise do Dasein que, como a mônada de Leibniz, não tem necessidade de janelas para ver do lado de fora, “não sai de sua esfera interior onde estaria inicialmente encerrado” (p.62), ele já é o fora, segundo o que dizem a transcendência e o ekstatikon. Sem entrar na questão de saber se, nesse caso, Merleau-Ponty “tem uma melhor compreensão de Leibniz” do que Heidegger110, e a fim de sublinhar a diferença com Hegel, para quem o espírito é primeiramente concebido para si e em si de tal maneira que aparece no tempo “enquanto ele não elimina o tempo” (p.434), resta precisar brevemente o sentido existencial da historicidade, aliás abordado antes do capítulo final sobre a intratemporalidade como origem do conceito trivial de tempo. Embora o alemão tenha somente uma palavra para dizer isso, muitos tradutores franceses têm o hábito de distinguir a historicidade da ciência histórica e a historialité [historialidade] do Dasein, a saber, o evento/advento (Geschehen), a “mobilidade específica” da extensão temporal e existencial, única capaz de poder se abrir a uma “compreensão ontológica da historicidade” (p.375). Para além das abordagens ônticas perfeitamente justificadas do homem sujeito da história, ou lançado no turbilhão da história, para além das peripécias das vidas subjetivas ou coletivas que se tornam objetos de um relato ou de uma crônica, trata-se aqui das condições ontológicas “da subjetividade do sujeito historial em sua constituição essencial” (p.382). Historialmente têm lugar, no concreto do devir histórico, a finitude, a existência autêntica, a repetição do que foi, a resolução, a orientação para o futuro, o ser-para-a-morte, tudo isso se inscrevendo na “coesão da vida entre nascimento e morte” (p.373) – fórmula de Dilthey com frequência retomada posteriormente em sentidos diversos111 – mas também numa comunidade de destino. Os termos alemães para destino ou destinação (Geschick, Schicksal) têm o mesmo radical que a história (Geschichte). Nesse contexto aparecem as ideias do povo como destino partilhado, da “comunicação e do combate em que toda ação.”115 Intimamente ligada ao pensamento e à prática da reflexão, a temporalidade não está menos ligada às práticas da liberdade, como se observa no aparecimento de um novo conceito: a conversão, “que nasce do fracasso mesmo da reflexão cúmplice”.116 Todas as escolhas que faço se integram “na unidade do meu projeto fundamental” (O ser e o nada, p.549), inclusive as metamorfoses do projeto original, isto é, as conversões, tais como os “instantes extraordinários e maravilhosos” (p.555) de Filoctetes ou de Raskólnikov117, quando o projeto precedente desmorona no passado e irrompe a decisão em direção a um novo futuro. Tal é a unidade dos três ékstasis, o futuro não sendo senão nosso ser mesmo, a escolha fundamental sendo tanto absoluta quanto frágil, pois é ao abandoná-la que damos um sentido ao nosso passado. A temporalidade exprime, ao mesmo tempo, a coesão e a dispersão, a diáspora do para-si. “Assim, liberdade, escolha, nadificação e temporalização são uma única e mesma coisa” (p.543). Longe de se reduzir aos momentos sucessivos, segundo a concepção continuísta da consciência, o instante deve ser reabilitado como o que nos ameaça constantemente, como o que é ao mesmo tempo “um começo e um fim” (p.544). É o que se observa na conversão, quando anunciamos a nós mesmos o que somos pelo porvir. Sartre gostava de se referir ao Sócrates de Valéry, nascido vários, morto um só.118 É o que exprime também a liberdade, que em sua finitude mesma se temporaliza e cuja irreversibilidade exprime a temporalidade de uma vida que se faz única. “O mortal nasce vários e se faz um só” (p.631). Assim abordada na problemática do para-si, a historicidade vai adquirir uma dimensão bem diferente quando Sartre integrar à sua reflexão e à sua escrita todo o peso da época: a drôle de guerre119, a prisão na Alemanha, a Resistência, a libertação da França, a guerra fria, os campos de concentração e de extermínio. Não resta mais que uma única saída, uma única obrigação: Escrever para sua época.120 Não se pode dizer que tenha havido em Sartre uma passagem do existencial ao existenciário, questão inevitavelmente colocada a Heidegger tanto no domínio da fé religiosa quanto da política.121 Mas Sartre abandona uma primeira moral otimista, heroica e romântica, moral estética e nietzscheana com uma ponta de austeridade protestante122, ruptura que amplia consideravelmente o campo da historicidade vivida. É aqui que nasce a temática do engajamento, que teve tanta repercussão. “Após a Libertação – e por razões bem compreensíveis – o romance engajado dominava a vida literária.”123 “O existencialismo, ao menos em sua versão francesa, é primeiramente um abandono dos embaraços da filosofia moderna em favor de um engajamento sem reserva na ação.”124 Reconhecendo tudo o que implica a densidade da história, feita de contingência e de liberdade, Sartre menciona Pascal como uma exceção “em nossa grande tradição clássica que, desde Descartes, é inteiramente hostil à história”.125 Aqui encontra seu motivo a luta contra o determinismo, o sociologismo, o neopositivismo ou o estruturalismo de alguns marxistas.126 A história não é mais um tema de confronto do existencialismo ao marxismo. Não esqueçamos que esse momento foi precedido por críticas ferozes lançadas na Alemanha por G. Lukacs e depois por E. Bloch. Cumpre assinalar que este último não deixava de homenagear “o pensamento intrinsecamente honesto de Kierkegaard”, quando o opunha ao “subjetivismo apodrecido do existencialismo reacionário e pequeno burguês” de Heidegger, ou quando denunciava “o nada de Jaspers e o de Heidegger, ‘tingidos’, ornados de plumas que não são as suas”.127 Um dos primeiros ecos dessas manifestações características da época se encontra na evocação, por Adorno, da “querela” do humanismo. Quando, em Paris, o pensamento da existência descia “às salas de conferência e às caves, ressoando ali com menos respeitabilidade (...), o establishment alemão suspeitava o existencialismo de ser subversivo”. É nessas rivalidades e nessas aporias que, segundo Adorno, se inscreve “o motivo filosófico da virada de Sartre para a política”, isto é, uma vez bem comprovada a impossibilidade de prolongar ao infinito a ‘ontologização do ôntico’”.128 Lemos, em Questões de método, texto de 1957 retomado no primeiro volume da Crítica da razão dialética129, fórmulas abruptas que poderiam sugerir que há na obra de Sartre uma ruptura ou uma virada: “O marxismo continua sendo a filosofia do nosso tempo” (p.29), enquanto o existencialismo “é uma ideologia, um sistema parasitário que vive à margem do Saber” (p.18). Em O ser e o nada, “o surgimento do para-si no ser, esse acontecimento absoluto, era visto como ‘fonte de toda história’ (p.715). (...) A pessoa humana tem um passado monumental e que se encontra em suspenso (...). A historialização perpétua do para-si é afirmação perpétua de sua liberdade” (p.582). Mas essa historialização é inseparável do para-si como ser-para-outrem, que é também acontecimento absoluto e temporalização original, ou seja, ante-histórico e, nesse sentido, ‘fato primeiro e perpétuo’” (p.343). Os Cadernos para uma moral retomam a ideia do acontecimento absoluto, mas acrescentando que “a moral deve ser histórica” (p.14). O tema da história se torna, com isso, preponderante. A “moral concreta (síntese do universal e do histórico)” (p.15) não pode ser uma moral formal que não consideraria as situações materiais dadas, uma moral que não levaria em conta a energia concretamente aplicada em direção à universalidade do reinado dos fins. “Donde o problema: História moral. A História implica a moral (sem conversão universal, não há sentido na evolução ou nas revoluções). A moral implica a História (não há moralidade possível sem ação sistemática sobre a situação)” (p.487). Não se poderia subestimar a novidade desse livro que permaneceu no estado de canteiro de obras aberto. Além do cuidado de infletir, completando-a, a análise do “Inferno das paixões” (descrito em O ser e o nada, p.515), além da consideração da obra como meio da relação com outrem no mundo (p.130, 149, 511), a concepção trágica da história se torna predominante, trágico que o homem exprime como “absoluto não histórico no seio da História” (p.96) e que se traduz pela impossibilidade de uma totalização acabada, oferecida a uma sabedoria contemplativa. A reciprocidade de envolvimento da interioridade e da exterioridade, da moral e da História, do para-si da intersubjetividade (amor) e do em-si da exterioridade absoluta (a morte que faz de mim a presa dos vivos), é então o leitmotiv de um pensamento filosófico que se busca. Tratava-se, no caso, de pensar a relação entre situação e totalização, afastando todo dogmatismo dialético. O único volume da Crítica da razão dialética publicado por Sartre estabeleceu os princípios da problemática filosófica nesse assunto. Existência e liberdade só se manifestam praticamente, isto é, sobre o fundo de uma necessidade na qual o homem se relaciona como organismo prático com seu ambiente. No Para-si, como prático-inerte no campo da singularidade, essa alienação é o momento a partir do qual se estrutura a ação. Levar em conta a materialidade inerte do homem é também manter como essencial a práxis individual, a liberdade do homem histórico no elemento da matéria trabalhada e social. Que o marxismo continua sendo filosoficamente insuperável enquanto a necessidade pesar sobre a produção da vida é uma convicção à qual Sartre jamais renunciou. Ela não está em contradição com a condenação do socialismo concentracionário, condenação que, a partir de 1970, reafirma a fidelidade à ideia de revolta das práxis individuais. O esquerdismo revolucionário não chegou a romper com “a autonomia da ideologia existencial” (p.107). A liberdade da consciência seria a única a poder tornar inteligível a história humana, se é que um programa assim é realizável, como parece duvidar o existencialista consequente. A matéria trabalhada só é o motor da história graças à passagem da dialética-natureza à “dialética-cultura como aparelho construído contra o reinado do prático-inerte” (p.376). O protesto contra toda sociedade opressiva é uma forma de recusa à enviscação no inerte. Nenhuma razão positivista ou analítica poderá justificar essas significações. Somente uma razão dialética, para a qual contam a subjetividade e a liberdade da práxis histórica, pode analisar a interiorização da natureza, sem a qual não há mediação alguma entre o inerte e a práxis. V. Camus O tema do iogue e do comissário, proposto por Koestler, sua discussão por Merleau-Ponty em Humanismo e terror (1947) e por Camus em O homem revoltado (1951), as disputas de Sartre com ambos, pertencem mais à história das ideias políticas do que à reflexão filosófica sobre a existência. Do mesmo modo que O mito de Sísifo, O homem revoltado de Camus provocou reações significativas, como as de Sartre e de Marcel. Embora felicitando Camus por realçar o índice existencial da revolta, por mostrar que o niilismo equivaleria a uma divinização da história, Marcel considerava como contraditória a ideia de uma “metafísica da consciência ulcerada”, que seria justificação última da revolta, entendida como “Mãe das formas, fonte da verdadeira vida (que) nos mantém sempre de pé no movimento informe e furioso da história”.130 113. ARENDT, H. Vies politiques. Trad. de Adda et al. Paris: Gallimard, 1974. p.88. (N.A.) 114. SARTRE, J-P. Cahiers pour une morale. p.13. (N.A.) 115. Em Sartre, Vérité et existence. p.12. Nota de A.Elkaïm-Sartre. (N.A.) 116. Cahiers pour une morale. p.489. (N.A.) 117. Personagens de uma tragédia de Sófocles e de Crime e castigo de Dostoiévski, respectivamente. (N.T.) 118. Situations, IV. p.66; Carnets de la drôle de guerre. Paris: Gallimard, 1995. p.268, 272. (N.A.) 119. Fase inicial da guerra, em 1939, caracterizada pela ausência de combates. A expressão costuma ser traduzida por “guerra estranha”. (N.T.) 120. Texto inédito de 1946. Ver CONTAT, M.; RYBALKA, M. op. cit. p.670 ss. (N.A.) 121. BULTMANN, R. citado por G. Neske. Erinnerung an Martin Heidegger. Pfullingen: Neske, 1977. p.95-96. (N.A.) 122. Ver Carnets de la drôle de guerre. p.268-286. (N.A.) 123. SARRAUTE, N. em BENMUSSA, S. Nathalie Sarraute, Qui êstes-vous?. Ly on: La Manufacture, 1987. p.186. (N.A.) 124. ARENDT, H. La crise de la culture. Trad. de J.Bontemps. Paris: Gallimard, 1972. p.17. (N.A.) 125. Questions, IV. p.113. Cahiers pour une morale. p.64. (N.A.) 126. Ver o texto de 1966. CONTAT, M. RYBALKA, M. op. cit. p.425, 742. (N.A.) 127. BLOCH, E. Le principe espérance. Trad. de F.Wuilmart. Paris: Gallimard, I, 1976, p.93; III, 1991, p.299. (N.A.) 128. ADORNO, T.W. Dialectique négative. Trad. de Collège de philosophie. Paris: Payot, 1978. p.102. (N.A.) 129. Publicada em 1960, seguida, em 1985, do 2º volume, que não representa o desenvolvimento acabado do projeto original. (N.A.) 130. MARCEL. Homo viator. p.356 e 367, citação de L’homme révolté, p.376. (N.A.) 131. Les temps modernes, agosto de 1952, retomado em Situations, IV. (N.A.) 132. WITTGENSTEIN, L. Leçons et conversations. Trad. de J.Fauve. Paris: Gallimard, 1971. p.114. (N.A.) 133. KAFKA, F. Journaux, Oeuvres complètes. Pléaide, 1984. Tomo III. p.475. (N.A.) 134. MERLEAU-PONTY. Le visible et l’invisible. p.305. (N.A.) CONCLUSÃO Linguagem, filosofia e literatura Não é por simples cuidado com ornamentação ou embelezamento que os filósofos – Kant, Hegel ou Schopenhauer entre muitos outros – invocam os poetas épicos, líricos ou dramáticos. E, rompido o fio da tradição metafísica, não surpreende que as filosofias da existência se aproximem ainda mais, em suas questões e em seu estilo, das obras literárias. Isso se aplica evidentemente a Heidegger, a Marcel, admirador de Rilke, a Camus, romancista antes de ser ensaísta, a Merleau-Ponty, cujos apelos a Valéry, Claudel ou Proust nunca são acidentais, e a Sartre, para quem as obras de Baudelaire, Mallarmé, Genet e Flaubert contaram tanto quanto as dos filósofos. Como acontece em toda literatura, não é só entre as linhas, é entre os livros que se deve perceber, naquela linguagem que Merleau-Ponty dizia indireta, o excesso da existência em tudo o que já foi dito. Ao dizer o que diz, a linguagem recolhe, metamorfoseando-as, não apenas experiências, mas também expressões anteriores. “Como o tecelão, o escritor trabalha pelo avesso: ele se ocupa apenas com a linguagem, e é assim que de repente se vê rodeado de sentido.”135 As filosofias da existência retomaram a questão da linguagem não apenas tematicamente, como foi feito desde o Crátilo de Platão ou a Poética de Aristóteles até a filosofia analítica contemporânea, mas, por assim dizer, praticamente, através da criação e da crítica literárias. Teatro e romance parecem mais aptos do que o ensaio, ainda que filosófico, para tornar viva a experiência da liberdade que é a história, ou seja, tempo e linguagem. O jorro da existência, no qual se interpenetram o absoluto e o relativo, o intemporal e o histórico, se dá a ver e a ler espetacularmente no desenrolar de ficções, enquanto os tratados teóricos podem dar a impressão de manifestar apenas elementos algébricos. É o que a obra romanesca de Sartre sugeria a Simone de Beauvoir em “Literatura e metafísica”.136 De maneira mais doutoral, Gadamer sublinhava que “a obra de arte literária é, entre todas as manifestações da linguagem, a que mantém uma relação privilegiada com a interpretação, e assim se aproxima da filosofia”.137 “Quando um autor possui da essência da comunicação um conceito que lhe é próprio, quando toda a sua singularidade, quando toda a sua significação histórica vêm se concentrar nesse ponto, abrem-se então diante dele vastas perspectivas – ó escola de paciência!”138 Kierkegaard, o mal denominado “pai do existencialismo” – quem, menos do que ele, teve a vocação da paternidade? –, era evidentemente um escritor. A mistura de ficções, de fragmentos poéticos, de explanações abstratas, de argumentação retórica, de meditações altamente reflexivas faz da prosa dos pseudônimos kierkegaardianos uma linguagem enrolada em si mesma num jogo de remissões infinitas. O escritor oferece um discurso despojado de toda autoridade, sabendo que não há apresentação direta de uma relação a si definitivamente posta na transparência. A “filosofia da Existência não pode tomar a forma perfeita de uma obra determinada, nem encontrar sua realização na existência de um pensador. É Kierkegaard que está na origem de sua forma atual; aliás, ele deu a ela uma extensão incomparável.”139 Doutrinas esotéricas e produções exotéricas140: a distinção não é nova, e ela reaparece aqui nas progressões paralelas do filosófico e do literário. Vimos o quanto, em Jaspers, a questão da comunicação e do seu estilo representava um tema de reflexão filosófica e ao mesmo tempo uma preocupação maior: o esclarecimento da existência podia e devia se concretizar por tomadas de posição públicas de ordem política. À margem de suas publicações filosóficas, Marcel é o autor de uma obra abundante de crítica literária e quis ser também homem de teatro e dramaturgo. Mas o que ele chamava seu “teatro da alma em exílio” permaneceu “letra morta para a multidão e por muito tempo esbarrou na indiferença dos diretores de salas de teatro”.141 Já o teatro de Sartre teve em seu tempo mais sucesso e, não importa o que se julgue sobre o engajamento que ele entendia servir, suscita ainda o interesse dos encenadores. Heidegger se exercitou na poesia, mas sobretudo seguiu longamente os rastros dos poetas, Hölderlin em primeiro lugar, mas também Rilke, Char ou Trakl. “A palavra dos pensadores, ele dizia, não tem autoridade. Essa palavra não conhece autores no sentido de escritores. A palavra do pensamento é pobre em imagens e sem atrativos.”142 Contudo, se ele a fez ouvir longamente, foi com a certeza de poder transmitir-lhe alguma calma, de fazer entrever obscuridades, enigmas, ou mesmo prometer alguma luz. Mesmo assim, e como vemos em A caminho da linguagem, é possível que, diante da questão fundamental, da questão do ser, a linguagem filosófica venha a se metamorfosear radicalmente: “A verdade que pensa (das denkende Dichtung) é na verdade a topologia do ser. Ela diz a este o lugar onde ela se manifesta.” Ao falar dos perigos que ameaçam o pensamento entendido como “produção filosófica”, Heidegger abria exceção ao “bom e salutar perigo (que) é a vizinhança do poeta que canta”.143 Mas ele fez mais do que manter com o poeta uma boa vizinhança, como o testemunha este questionamento que lhe endereçou Max Kommerell, professor de literatura alemã e especialista de Hölderlin: “Como se explica que esse filósofo se veja contido nesse poeta, através não apenas do mundo que o desampara, mas também do que ele busca? E que, por uma espécie de suicídio superior, no momento mesmo em que seu último saber se esvazia de todo signo, descobre no anúncio poético os signos sem hiato, signos que ele pode retomar e que, quando não pode, lhe dão o poder de novos signos que são agora os seus?”144 A náusea (La nausée, 1938) e As palavras (Les mots, 1964) entraram na história da literatura do século XX de maneira a resistir ao desgaste do tempo. O crítico severo da “literatura engajada do existencialismo”, Julien Gracq (La littérature à l’estomac [A literatura no estômago], 1950), não se proibiu, dez anos mais tarde, de saudar o autor de A náusea: “Onde o encontramos sempre, onde B IBLIOGRAFIA AUDRY, C. (dir.). Pour et contre l’existentialisme. Paris: Éd. Atlas, 1948. BEAUFRET, J. De l’existentialisme à Heidegger. Paris: Vrin, 1986. BEAUVOIR, S. de. L’existentialisme et la sagesse des nations (1948). Paris: Gallimard, 2008. BURNIER, M.A. Les existentialistes et la politique. Paris: Gallimard, 1966. GRENIER, J. 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Publicou, entre outras obras, Kierkegaard et la non-philosophie (Gallimard, “Tel”, 1994). Texto de acordo com a nova ortografia. Título original: L’existentialisme Tradução: Paulo Neves Capa: Ivan Pinheiro Machado. Fotos: Em cima, da esquerda para direita: Albert Camus, Soren Kierkegaard e Karl Jaspers. Embaixo, da esquerda para direita: Maurice Merleau-Ponty, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre. Preparação de original: Lia Cremonese Revisão: Joseane Rücker CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C658e Colette, Jacques, 1929- Existencialismo / Jacques Colette; tradução de Paulo Neves. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2013. (Coleção L&PM POCKET; v. 822) Inclui bibliografia ISBN 978.85.254.2951-3 1. Existencialismo. I. Título. II. Série. 09-4204. CDD: 142.78 CDU: 141.32 © Presses Universitaires de France, L’existentialisme Todos os direitos desta edição reservados a L&PM Editores Rua Comendador Coruja 314, loja 9 – Floresta – 90220-180 Porto Alegre – RS – Brasil / Fone: 51.3225.5777 – Fax: 51.3221-5380 PEDIDOS & DEPTO. COMERCIAL: vendas@lpm.com.br FALE CONOSCO: info@lpm.com.br www.lpm.com.br
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