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Guias e Dicas
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50 Pensadores Que Formaram o Mundo Moderno - Stephen Trombley, Notas de estudo de Economia

Discorre sobre o perfil de 50 protagonistas que definiram a era atual.

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 30/03/2017

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sandro-silveira-10 🇧🇷

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Baixe 50 Pensadores Que Formaram o Mundo Moderno - Stephen Trombley e outras Notas de estudo em PDF para Economia, somente na Docsity! Es € + TE GAYS SS SD SR EN espirituais marcantes cujas ideias definiram a época em que vivemos. fado a] PA er EL DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." DO DAD 20 PENSADORES QUE FORMARAM DERNO si TROMBLEY Para Peg Culver tanto em sua circunferência como em seu conteúdo. Este era um requisito para construir o sistema da metafísica de acordo com um plano confiável”. Este fundamento levou Kant à sua obra-prima: sua Crítica da razão pura (1781, substancialmente revisada em 1787). Inspirado no pensamento iluminista a respeito da liberdade – e experimentando de perto os efeitos da guerra quando sua cidade natal, Königsberg, foi ocupada pela Rússia durante a Guerra dos Sete Anos (1756–63) –, Kant defendia que conhecimento e liberdade caminhavam de mãos dadas. Ele explorou esses temas em duas outras críticas: a Crítica da razão prática (1788) e a Crítica do julgamento (1790). A Crítica da razão pura identifica as leis que regem a ciência, enquanto preservam o livre-arbítrio. A Crítica do julgamento considera os juízos estéticos, assim como questões teleológicas sobre o propósito de sistemas e organismos naturais. Um dos aspectos mais duradouros da filosofia de Kant é sua ética, com seu imperativo categórico. O imperativo categórico diz que eu preciso agir de modo que a ação que escolho deveria se tornar uma lei universal, capaz de ser aplicada a qualquer pessoa que se encontrasse em circunstâncias similares. Aqui Kant argumenta contra uma ética consequencialista, como o utilitarismo. A ética utilitária defende que o percurso correto da ação é aquele que dá a maior quantidade de bem-estar para a o maior número de pessoas. O utilitarismo é consequencialista porque me incita a buscar as melhores consequências, o que, na opinião de Kant, não é mais do que faria o eu animal. Para ele, o utilitarismo não é uma teoria moral, uma vez que deixa de dar a devida atenção à diferença entre animais e pessoas, ou seja, entre animais e mente. Ao buscarmos o imperativo categórico em nossas ações, estamos usando o que Kant chama de razão prática pura para chegar a um princípio que ditaria nossas ações. Isso é chamado de ética deontológica: encontrar e obedecer a uma regra moral, em vez de definir o bem a partir de suas consequências. A filosofia de Kant do idealismo transcendental – segundo a qual o sujeito que apreende atribui somente significado parcial ao mundo externo – viria a determinar os caminhos para o desenvolvimento futuro do idealismo alemão e de grande parte da filosofia continental dos séculos XX e XXI. A era das revoluções A era do Iluminismo foi também a era das revoluções. As guerras civis inglesas (1642-51) fizeram confrontar parlamentaristas e monarquistas. A Revolução Americana (1775-83) viu colonos do Novo Mundo rebelarem-se contra o domínio do monarca inglês, inspirados nas ideias do filósofo inglês John Locke e do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-78) a respeito do contrato social; esta foi a criação dos Estados Unidos da América. A Revolução Francesa foi estimulada por ideias políticas iluministas a respeito dos direitos dos cidadãos. O rei Luís XVI (1754-93) foi executado, e hoje a França é uma república democrática, embora tenha havido muitas idas e vindas pelo caminho. A execução de reis (a Inglaterra executou Carlos I em 1649) foi o último prego no caixão do poder por direito divino. Em 1848, o mundo já tinha adentrado de vez a Era do Homem, mas as primeiras rachaduras na nova organização social pós-Iluminismo começaram a aparecer. Uma nova ciência levou a novas tecnologias e à Revolução Industrial. Máquinas passaram a multiplicar mecanicamente a quantidade de bens antes produzidos à mão. Trabalhadores deixaram seu estilo de vida agrário (assim como o mercado agrícola) e incharam as cidades, onde estavam as fábricas. Como consequência, tiveram de enfrentar superlotação, doenças e crimes – tudo isso estimulado pela pobreza de operários com longas jornadas de trabalho e baixos salários. Eles sofriam um novo tipo de cansaço, novas lesões e novos insultos à sua autoestima. Enquanto isso, proprietários de manufaturas – os capitalistas – enriqueciam cada vez mais. A diferença entre a renda dos industrialistas ricos e a dos trabalhadores, pobres e explorados, tornou o conflito inevitável. A doutrina materialista, que supõe que os homens são produtos das circunstâncias e da educação – e que, portanto, homens transformados são produtos de circunstâncias transformadas e educação transformada –, esquece-se de que são justamente os homens que transformam as circunstâncias e de que o próprio educador precisa ser educado. Deste modo, essa doutrina acaba, necessariamente, por dividir a sociedade em duas partes, uma das quais é posta acima da sociedade. A coincidência da mudança de circunstâncias com a atividade humana ou mudança de si próprio [Selbstveränderung] só pode ser considerada e racionalmente compreendida como prática revolucionária. Karl Marx, Teses sobre Feuerbach (1845) Para a Europa, 1848 foi um ano de revoluções, com revoltas na França, nos Estados da Itália e Alemanha (que ainda não haviam sido unificados), Hungria e Irlanda. Um dos resultados da filosofia iluminista, que trouxe ciência, tecnologia, política e jurisprudência, foi uma nova classe de proprietários baseada no capital, uma classe média de dirigentes e uma classe operária de trabalhadores explorados. A filosofia deu uma resposta. O socialismo de Karl Marx (1818–83) e Friedrich Engels (1820–95) foi uma contestação direta à miséria que acompanhava o capitalismo e a acumulação de riqueza por parte de poucos em detrimento de muitos. Porque o ser da filosofia encontra-se essencialmente no elemento daquela universalidade que abriga em si o particular, o fim ou o resultado final – mais ainda no caso da filosofia do que no de outras ciências – parece ter expressado o próprio fato de modo absoluto, em sua própria natureza. G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito (1870) Após um longo período durante o qual Kant foi o mais influente filósofo alemão, tendo sido amplamente interpretado por idealistas – como Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e F. W. J. Schelling (1775-1854) –, G. W. F. Hegel (1770-1831) foi o próximo a erigir um sistema de pensamento completo. Sua atenção estava focada na criação de uma teoria unificada de tudo por meio da razão; seu historicismo e sua preocupação com as inter-relações entre entidades e questões políticas e sociais influenciaram grandemente Karl Marx e Max Weber (1864-1920). Essa vertente de pensamento era uma das quatro que viriam a dominar o século XX: (1) ideologia política; (2) biologia e genética; (3) psicologia e (4) física pós-newtoniana. Fascismo Os nacional-socialistas alemães, ou nazistas, constituíam um partido fascista – eram diametralmente opostos aos socialistas inspirados em Karl Marx. O fascismo é algumas vezes considerado mais uma tendência do que um programa sistemático, e, de fato, é difícil identificar uma explicação filosófica coerente para a ideologia nazista (algumas tentativas são mero catálogo de preconceitos). O fascismo, da maneira como se desenvolveu em diferentes países – Itália, Alemanha, Espanha –, foi uma reunião desorganizada de crenças extremistas, popularizadas em um período de profunda crise financeira. Para os alemães, que sofriam com o peso do Tratado de Versalhes, o fascismo se definiu por suas escolhas de bodes expiatórios: judeus, socialistas e o consumismo dos Estados Unidos. Componentes A filosofia contra o fascismo Em oposição aos pensadores que projetaram a guerra, quatro exemplos podem ser mencionados, dois dos quais foram alunos de Edmund Husserl, que definiu o núcleo moral da filosofia alemã em crise e demonstrou como ela podia ser desenvolvida. São eles: Edith Stein, Hannah Arendt, Karl Jaspers e Dietrich Bonhoeffer. Bonhoeffer foi um teólogo luterano cujo livro póstumo, Ética (1955) – grande parte do qual escrito durante o período nazista –, imagina um mundo no qual a ordem política e social é de natureza cristã. Agindo como agente duplo para a resistência alemã dentro da Abwehr (polícia secreta alemã), Bonhoeffer fez parte de um plano para matar Hitler. Como cristão, ele justificou sua ação reconhecendo sua culpa e se sacrificando em um ato que, embora constituísse um pecado, foi cometido em nome do bem maior. Ele foi preso, encarcerado por dezoito meses e, finalmente, enforcado no campo de concentração de Flossenbürg. Edith Stein lutou tanto como mulher quanto como judia no sistema universitário alemão. Ela se tornou assistente pessoal de Edmund Husserl e prometia se tornar uma fenomenologista de destaque, mas se converteu ao catolicismo romano e tornou-se freira. Por algum tempo, ela conseguiu evitar a deportação devido ao status de freira; mas pouco depois de ser transferida para um convento nos Países Baixos, a SS a encontrou (assim como à sua irmã, que estava com ela) e a deportou para Auschwitz, onde ela morreu em 1942. Seu trabalho sobre a empatia foi influenciado não somente por Husserl e pela tradição agostiniana, mas também por sua experiência como enfermeira assistente na Primeira Guerra Mundial e pelas mortes nesse conflito de pessoas que ela amava. A luta por dominação total de toda a população do mundo, a eliminação de toda realidade não totalitária concorrente, é inerente aos próprios regimes totalitários; se não perseguirem o comando global como objetivo último, é muito provável que eles percam qualquer poder já conquistado. Hannah Arendt, As origens do totalitarismo (1951) Karl Jaspers é o herói desconhecido da filosofia de meados do século XX – um Mahler para o Wagner de Heidegger. Sua filosofia existencialista era, como aquela de Stein e Bonhoeffer, baseada na comunicação por meio do amor e em movimentos empáticos para com o outro. Ele resistiu com firmeza aos nazistas e protegeu sua esposa judia, ao lado da qual sobreviveu à guerra. Também assumiu a supervisão de Hannah Arendt, ex-aluna e amante de Heidegger. Também no trabalho dela, aparece o tema agostiniano do amor. Depois de fugir da Alemanha, e então da França, Arendt fixou-se em Nova York, onde se tornou a mais eminente filósofa política, trabalhando na tradição fenomenológica segundo as modificações realizadas por Heidegger. Em 1948, Jaspers deixou a Alemanha para assumir um cargo na Basileia, onde permaneceu até a morte. A ciência em aceleração A teoria da relatividade de Einstein nos deu um ponto de vista privilegiado, a partir do qual podemos enxergar o progresso do pensamento em nossa época. Ao longo dos dois mil anos em que os homens olharam para o mundo pelos olhos de Aristóteles, Ptolomeu (90-168), Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642), o conhecimento foi acumulado por meio de rápidos insights que davam aos cientistas algo sobre que pensar por várias centenas de anos. Mas o mundo pós-newtoniano já não era assim. Desde a divisão do átomo, as descobertas da física, da química, da engenharia e de suas subsequentes contribuições à tecnologia ocorreram em ritmo vertiginoso. A crescente especialização das ciências físicas deixou para trás a era de amadores iluministas como Isaac Newton (1642–1727); somente especialistas podem acompanhar o ritmo e os detalhes do avanço de uma área como a física de partículas ou a astrofísica. O perigo desta abordagem extremamente precisa, que evidencia com clareza problemas científicos individuais, é que o contexto mais amplo pode sair de foco. Corremos o risco de nos perdermos. Ao buscarmos conhecimento e excelência na ciência tendo em vista somente o conhecimento, deixamos para trás o contexto no qual a ciência é realizada – por pessoas, em comunidades. Um dos papéis da filosofia é lembrar a ciência desse contexto sociopolítico mais amplo. É preciso lembrar ainda que o conhecimento é hoje adquirido e financiado por aqueles que se interessam em possuí-lo. Na verdade, foi sempre assim. No início da era científica, os monarcas – e, depois, as democracias – eram os senhores e os beneficiários do conhecimento científico. Hoje, corporações controlam grande parte das descobertas científicas, assim como suas futuras aplicações, gozando de um poder não limitado pelos regulamentos que pertencem ao governo. O poder das corporações é menos visível que o dos governos, e elas pouco podem ser responsabilizadas. A ciência se tornou, como nunca antes, um ato político. A virada genética Enquanto os físicos estavam ocupados explodindo o mundo e, ao mesmo tempo, descobrindo como se dera sua existência, biólogos e geneticistas estavam voltando-se para o mundo interno. A física explora o mundo que está além de nós, seja ele diminuto ou enorme. A biologia – particularmente a genética – entra em nossos corpos para descobrir como eles funcionam. E com a genética temos a possibilidade de alterar o que acontece dentro de nossos corpos ao manipularmos o DNA, que reúne os blocos de construção de toda a vida. Charles Darwin (1809-82) inaugurou uma tendência que teria um impacto sobre a humanidade comparável ao da obra de Karl Marx. Se a humanidade evoluiu de acordo com a seleção natural de Darwin, foi um acaso genético e uma necessidade ambiental que criaram as espécies, e não Deus. A divindade ainda pode ser buscada na origem das unidades últimas da matéria, em quarks e cascas de elétrons (Hans Kung estava certo ao perguntar aos ateístas por que há algo em vez de nada), mas não na origem das espécies. Por mais que embelezemos esta simples conclusão com metáforas e imaginação, ela continua sendo o legado filosófico do último século de pesquisa científica. E. O. Wilson, Da natureza humana, (1978) A teoria de Darwin da seleção natural – que, popularmente, significa que os humanos descenderam dos macacos – continua a insuflar debates e a evidenciar a distância que existe entre conhecimento e crença mítica. Essa disjunção gerou um clima anti-intelectual no final do século XX que faz o progresso desde a Inquisição parecer duvidoso. Enquanto isso, a ciência segue em frente em ritmo extraordinário. O trabalho que começou com a catalogação empreendida por Aristóteles de plantas e animais de acordo com gêneros e espécies foi levada adiante com a publicação de Sobre a origem das espécies através da seleção natural (1859), de Darwin, e com o trabalho de Gregor Mendel (1822-84) e outros geneticistas, o que levou à descoberta do mecanismo de características hereditárias. A explosão de pesquisas estimulada por essas descobertas – nos campos da biologia, química e genética (e combinações dessas áreas) – conduziu ao isolamento do DNA como conjunto de blocos constituintes da vida e, finalmente, ao trabalho do Projeto Genoma Humano (1990-2003), que mapeou os genes que compõem o genoma humano. morto, e seus olhos estão esmaecidos. Foi a experiência do mistério – mesmo se misturada ao medo – que deu origem à religião. Um conhecimento da existência de algo em que não podemos penetrar, nossas percepções da mais profunda razão e da mais radiante beleza, que somente em suas formas mais primitivas são acessíveis às nossas mentes: são esse conhecimento e essa emoção que constituem a verdadeira religiosidade. Neste sentido, e somente nele, eu sou um homem profundamente religioso... Estou satisfeito com o mistério da eternidade da vida e com um conhecimento, um sentido, da maravilhosa estrutura da existência – assim como a humilde tentativa de entender ao menos uma porção minúscula da Razão que se manifesta na natureza. Albert Einstein, Como vejo o mundo (1934) D 1 Immanuel Kant 22 de abril de 1724 – 12 de fevereiro de 1804 Filósofo alemão que é a figura central no pensamento moderno; sua filosofia crítica sintetizou fé religiosa e autonomia humana, e influenciou todas as áreas da investigação filosófica, da matemática à estética. urante o ano de 1927-8, em que atuou como professor, o matemático e filósofo inglês Alfred North Whithead (1861-1947) deu a prestigiosa palestra Process and Reality [Processo e Realidade], durante as Gifford Lectures, na Universidade de Edimburgo. Nessa palestra, ele fez uma declaração que se tornou famosa: “A caracterização mais geral da tradição filosófica europeia é que ela consiste em uma série de notas de rodapé referentes à obra de Platão”. Uma caracterização mais precisa da filosofia europeia moderna poderia ser que ela consiste em uma série de notas de rodapé referentes à obra de Kant. Não há sequer uma área da filosofia moderna – de lógica matemática à fenomenologia – que Kant não explore. Todos os que seguem seus passos precisam, em algum ponto de suas carreiras, definir-se como favoráveis ou contrários a posições kantianas. O pensamento moderno começa com Kant. Se Platão introduziu os temas eternos do questionamento filosófico e Aristóteles (384-322 a.C.) concebeu o primeiro sistema filosófico, Kant construiu o mais abrangente e detalhado sistema de filosofia desde a revolução científica. Seu trabalho coloca perguntas que continuam fixas na imaginação dos filósofos de hoje. Sua influência é sentida em todas as áreas da filosofia e transborda para outras disciplinas tão diversas quanto o direito e a astronomia. O amadurecimento do homem Em 1784, Kant abordou a questão de Deus e o pós-Iluminismo em seu ensaio “Resposta à pergunta: o que é o Iluminismo?” Nele, Kant questionou: qual é o papel atual da autoridade da Igreja e do Estado em relação à liberdade individual? Que papel as autoridades religiosas e seculares deveriam exercer nas vidas dos cidadãos? Em sua resposta, Kant traçou um resumo sucinto de sua filosofia altamente complexa e sistemática, preocupada acima de tudo com a questão da liberdade humana: “O Iluminismo é a emergência do homem de sua imaturidade autoimposta. Imaturidade é a incapacidade do indivíduo de usar a compreensão sem orientação alheia. Esta imaturidade é autoimposta quando sua causa reside não na ausência de compreensão, mas na falta de determinação e coragem para usá-la sem a orientação de um outro.” Ele seguiu resumindo toda a sua filosofia do conhecimento e da liberdade: “A preguiça e a covardia são as razões pelas quais uma proporção tão extensa dos homens, mesmo quando a natureza já os emancipou há muito de orientação externa, permanece alegremente imatura durante toda a vida. Pelos mesmos motivos, é sempre muito fácil para outros colocarem-se como seus guardiões.” Conhecimento e liberdade Na concepção de Kant, os problemas do conhecimento e da liberdade andam de mãos dadas. Além disso, ambos levantaram as questões filosóficas mais profundas para ele: se, por meio do conhecimento, descobrirmos regras ou leis que regem o mundo natural, como o homem pode ser livre? As ações do homem não são governadas pelas regras de causa e efeito? Elas podem até mesmo ser predeterminadas? Trabalhando com essas questões, Kant publicou seus três principais tratados: Crítica da razão pura (1781; fez revisões importantes para a segunda edição de 1787), Crítica da razão prática (1788) e Crítica da faculdade de julgar (1790). Em sua Crítica da razão pura, Kant tenta fornecer uma base para as leis da ciência, ao mesmo tempo em que estabelece o sujeito humano como um agente racional caracterizado pelo livre-arbítrio. Na Crítica da razão prática, ele argumenta que o livre-arbítrio do homem, embora possa ser teoricamente comprovado, somente resulta, de fato, da nossa consciência desse livre- arbítrio emanando de dentro de nós. É a nossa consciência que nos liga à lei moral, e nosso conhecimento da lei moral não é imposto a partir do exterior por Deus ou qualquer outro agente. Na crítica da faculdade de julgar, Kant está preocupado com juízos estéticos e questões teleológicas, como: “Qual o propósito de sistemas ou organismos naturais?” Com isso, ele deixa a porta trabalho, Opus postumum (1804), ao dizer que o próprio homem “cria os elementos de conhecimento do mundo, a priori, a partir dos quais – na condição, ao mesmo tempo, de habitante do mundo – ele constrói uma visão de mundo na ideia”. O que isso significa, em essência, é que os elementos do conhecimento, as categorias pelas quais entendemos o mundo, existem a priori, ou seja, sem referência à experiência. O conhecimento a priori está em nós, como um dado. Então, Kant afirma na Crítica da razão pura: “É perfeitamente justificável dizermos que somente aquilo que está em nós pode ser imediata e diretamente percebido e que somente minha própria existência pode ser objeto de uma mera percepção”. Como consequência disso, “a existência de um objeto real fora de mim nunca pode ser dada direta e imediatamente à percepção, mas pode apenas ser acrescentada em pensamento à percepção, o que constitui uma alteração do sentido interno, inferido, portanto, como sua causa externa”. Kant afirma que jamais percebemos realmente coisas externas, mas apenas inferimos sua existência, embora objetos externos sejam a causa aproximada da inferência de sua existência. Portanto, o idealismo transcendental de Kant difere daquele formulado por Berkeley ou por Descartes. Também não é um absurdo, Kant adverte seus críticos, uma visão de mundo contestadora. “Não se deve supor”, escreve ele na Crítica da razão pura, “que um idealista é alguém que nega a existência externa de objetos dos sentidos; tudo que ele faz é negar que eles são conhecidos por percepção imediata e direta”. Imperativo categórico A preocupação de Kant com questões de conhecimento e liberdade o levou naturalmente à ética e à pergunta final: “O que é a coisa certa a fazer?” Kant rejeitava a ética utilitarista de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, que sustenta que as boas ações são aquelas que levam à maior quantidade de felicidade (o “cálculo hedonista” de Bentham) para o maior número de pessoas. Em A metafísica dos costumes (1785), Kant contestou o utilitarismo ao propor que, se permitirmos que nosso comportamento seja regido por motivos utilitaristas, poderemos valorizar outras pessoas sob a luz do “bem” para o qual elas podem ser usadas – tratando-as, portanto, como meios para um fim, e não como fins em si. Ele também refutou a doutrina do absolutismo moral, que sustenta a existência de normas absolutas de conduta que resultam em comportamentos “certos” e “errados”, qualquer que seja o contexto. A resposta de Kant ao utilitarismo e ao absolutismo moral foi o desenvolvimento do imperativo categórico, uma regra segundo a qual o homem deveria agir eticamente: “Aja somente conforme aquela máxima que, ao mesmo tempo, você possa desejar que se torne uma lei universal”. O imperativo categórico é bem ilustrado pela famosa distinção ética “é /deveria ser”. Para Kant, nosso comportamento ético (“deveria ser”) não necessariamente deveria resultar de um estado particular de coisas (“é”). Nosso sentido de dever ético jamais deveria incluir o que nos é impossível fazer; neste sentido, “deveria ser” implica “pode ser”. A ética deontológica de Kant é um caso de “poder fazer”: se eu deveria fazer isso e aquilo, então me é logicamente possível fazê-lo; e, deste modo, eu posso fazê-lo. Kant como cientista Se Kant nunca houvesse escrito seus três grandes tratados nem nenhum de seus outros trabalhos importantes, como os Prolegômenos a toda metafísica futura (1783), os Primeiros princípios metafísicos da ciência natural (1786) ou A metafísica dos costumes (1797), ele teria encontrado um lugar na história da ciência pelo desenvolvimento da teoria Kant-Laplace, que descreve a formação do universo. Somente se menciona isso para mostrar que a influência de Kant é sentida em todos os campos do pensamento moderno. Em Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784), ele teorizou que nosso sistema solar foi formado como resultado de uma nebulosa rotativa, cuja força gravitacional a comprimiu em um disco giratório, lançando para fora o Sol e os planetas. A teoria de Kant foi amplamente ignorada ao longo de sua vida. Até que em 1796 o astrônomo e matemático francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827) desenvolveu uma teoria similar, de forma independente do trabalho de Kant. Mais tarde, cientistas notaram o precedente de Kant e chamaram a teoria de “hipótese Kant-Laplace”. É a base para a hipótese de nebulosa geralmente aceita pelos cientistas como explicação para a formação do sistema solar. Na Crítica da Razão Prática, Kant disse: “Duas coisas preenchem a mente com admiração e espanto sempre novos, quanto mais frequente e firmemente refletimos sobre elas: os céus estrelados sobre mim e a lei moral dentro de mim”. Estas palavras estão esculpidas em sua lápide. O legado de Kant Kant representa o ponto culminante, a perfeição do Iluminismo. Em Kant, todos os traços do pensamento medieval religioso são postos de lado, e o homem é trazido para a dianteira de sua própria situação. Sua liberdade se estende como a partir de sua percepção de si mesmo como um agente autônomo; e desta compreensão flui seu papel como ator político e ser ético. Com sua teoria do idealismo transcendental, Kant demonstrou como o homem cria seu mundo; como conhecimento e experiência não existem separados dele, mas sim por causa e por meio dele. Sua importância e influência não têm como ser superestimadas. A experiência é sem dúvida o primeiro produto que nosso entendimento traz adiante... No entanto, está longe de ser o único campo ao qual nosso entendimento pode ser restringido. Ela nos diz, para ter certeza, o que é, mas nunca que é preciso ser assim, e não de outra maneira. Justamente por esta razão, ela não nos dá qualquer universalidade verdadeira, e a razão – que é tão desejosa desse tipo de cognições – é mais estimulada do que satisfeita por ela. Agora, tais cognições universais, que ao mesmo tempo têm o caráter de necessidade interna, precisam estar claras e seguras por conta própria, independentemente da experiência, motivo pelo qual são chamadas de cognições a priori: considerando que aquilo que é meramente tomado de empréstimo da experiência é, como colocado, processado pela cognição somente a posteriori, ou empiricamente. Immanuel Kant, Crítica da razão pura (1781/1787) A filosofia antiga adotou um ponto de vista totalmente inadequado do ser humano no mundo, pois transformou-o em uma máquina, que – como tal – era completamente dependente do mundo ou de coisas e circunstâncias externas; ela fez do homem, assim, nada mais que uma parte meramente passiva do mundo. Agora a crítica da razão apareceu e determinou para o homem um lugar totalmente ativo no mundo. O próprio ser humano é o criador original de todos os seus conceitos e representações, e deve ser o autor único de todas as suas ações. Immanuel Kant, O conflito das faculdades (1798) Tendo decidido não estudar em Oxbridge, porque se recusara a tomar as ordens sacras (como era então requisitado), Mill foi educado em casa por seu pai, o filósofo escocês James Mill (1773-1836), que era o maior apoiador de Bentham. A educação de Mill foi excepcionalmente rigorosa e bem-sucedida, uma vez que ajudou a formar o mais importante filósofo britânico do período. Mas foi também excessivamente dura, o que fez com que Mill sofresse um colapso nervoso quando tinha vinte anos de idade, um acontecimento que ele descreve em sua Autobiografia (1873). Mill se tornaria, anos depois, avô de Bertrand Russell (1872-1970), colocando-o no epicentro de uma dinastia filosófica britânica. As influências de Mill são diversas e, para um lógico, anormalmente amplas. A poesia de William Wordsworth (1770-1850), com sua ênfase em consciência transcendental, foi um auxílio em sua recuperação do colapso nervoso. De fato, a devoção de Mill a Wordsworth fez dele um filósofo com coração; considerando todo o seu conhecimento em lógica e empirismo, o trabalho de Mill mostra uma profunda simpatia com seu companheiro. Embora Mill e Kant representem tradições filosóficas distintas, a afinidade de Mill com Wordsworth – cujo longo poema The Prelude [O Prelúdio] (1789- 1850) pode ser considerado uma reflexão sobre o idealismo transcendental de Kant – indica certa predisposição ao espírito kantiano. Mill era também francófilo e passava muito tempo lá (de fato, ele morreu e foi enterrado na França, em Saint-Véran). Ele acompanhou de perto o trabalho do pai do positivismo, Auguste Comte (1798-1857), mas não concordou com suas ideias na medida em que Comte desejava. Em Paris, Mill entrou em contato com as primeiras ideias socialistas de Henri de Saint- Simon (1760-1825). Conheceu ainda o economista político inglês David Ricardo (1772-1823), que era amigo íntimo de seu pai, e observou seu pensamento, que desenvolvia a primeira teoria econômica sistemática, incluindo a teoria do valor-trabalho (que sustenta que os valores das commodities são medidos pelo custo de trabalho da sua produção) – uma ideia que influenciou Karl Marx em grande medida. Mill, por sua vez, fez uma importante contribuição para a economia política com seu livro Princípios de economia política, publicado em 1848, o ano das revoluções europeias. Um sistema de lógica Subjacente ao seu pensamento popular está um corpus de trabalho mais especializado em lógica, do qual Sistema de lógica (1843) é o mais importante. Mill era um empirista radical e acreditava que as verdades da lógica e da matemática – o que ele chamava de “verdades necessárias” – podiam ser derivadas da experiência e do processo psicológico do associacionismo. Associacionismo é uma doutrina epistemológica que afirma que a associação de ideias ou experiências a coisas ou acontecimentos na memória é a responsável por nossa compreensão deles. A psicologia associacionista de Mill, que sustentava seu sistema de lógica, foi herdada de seu pai, principal expoente no século XIX de uma ideia primeiramente desenvolvida por Platão e Aristóteles, e então pelos empiristas britânicos John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-76). Mill fazia distinção entre conotação (significado “real”) e denotação (função atributiva, que se refere a uma descrição como um livro bom, uma bebida gelada). Então, Mill separou as preposições entre as verbais/analíticas e as reais/sintéticas, rejeitando qualquer apelo a suposições a priori. Para Mill, a matemática podia ser reduzida a generalizações de experiências anteriores. A política de Mill: liberalismo e radicalismo O assunto de Mill em Sobre a liberdade é “a natureza e os limites do poder que podem ser legitimamente exercidos pela sociedade sobre o indivíduo”. Para Mill, cada indivíduo é soberano “sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e sua mente”. Ele identificava diversas manifestações de tirania que ameaçavam a liberdade individual, incluindo a tirania dos governantes, a tirania social e a tirania da maioria. Mesmo onde a sociedade se protege da tirania dos governantes, a liberdade individual pode ser ameaçada pela tirania social: “A sociedade pode executar e executa seus próprios mandatos: e se ela emitir mandatos errados no lugar de corretos, ou quaisquer mandatos que sejam a respeito de coisas em que não deveria se intrometer, ela pratica uma tirania social mais formidável que muitas espécies de opressão política”. Mill estabeleceu a visão de que indivíduos deveriam ser livres para agir como quisessem, com a condição de não causarem mal aos outros. A pedra angular de seu liberalismo era o conceito de liberdade de expressão, do qual era um defensor apaixonado. Seus pontos de vista foram considerados tão fundamentais pelos autores da Constituição dos Estados Unidos (1789) que eles formam a Primeira Emenda ao documento: “O Congresso não fará lei alguma no sentido de estabelecer religiões ou proibindo seu livre exercício; ou cerceando a liberdade de expressão, ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos”. Uma consequência da posição de Mill a favor da liberdade de expressão foi sua rejeição à censura. Enquanto James Mill era um radical político que defendia o sufrágio masculino universal, o filho Mill foi muito mais longe e defendeu – na verdade, criou agitação pelo – sufrágio feminino universal. Mill tinha familiaridade com o trabalho da feminista, e primeira socióloga, Harriet Martineau (1802-76), que, para além de seu próprio trabalho como comentadora de questões políticas e sociais, traduziu os trabalhos de Comte para o inglês. Por muitos anos, Mill desfrutou a amizade de Harriet Tay lor (1807-58), com quem se casou depois da morte de seu marido. Tay lor e Mill trabalharam juntos para desenvolver as ideais que Mill publicaria em A sujeição das mulheres. “No que diz respeito à aptidão das mulheres, não apenas para participar das eleições, mas para elas próprias ocuparem cargos ou exercer profissões”, escreveu ele, “esta consideração não é essencial para a pergunta prática em questão: uma vez que qualquer mulher que tem sucesso um uma profissão aberta prova, justamente por este fato, que é qualificada para ele”. A habilidade de imaginar e promover as posições das mulheres, negros e pessoas de origens modestas foi desenvolvida em parte por seu cultivo das sensibilidades da poesia, que ele adquiriu ao ler Wordsworth e Samuel Tay lor Coleridge (1772-1834). Mill é único entre os filósofos ingleses que aliava temas do Iluminismo e do Romantismo – uma tendência que impregna seus escritos com uma preocupação pelos outros que é melhor caracterizada pelo termo “decência”. Como membro liberal do parlamento, Mill exemplificou sua visão de que a ação é a articulação natural do pensamento. Neste sentido, influenciou os pragmáticos americanos, incluindo C. S. Peirce, William James e John Dewey. Enquanto sua lógica e sua epistemologia estão carregadas de interesse histórico, as visões políticas de Mill e seu feminismo continuam sendo relevantes atualmente. A presença de Mill na política e cultura do século XIX é tão poderosa, seus escritos, tão diversos e detalhados, que pode ser difícil enxergar seus pensamentos como um todo. Há, no entanto, um tema unificador muito forte: seu esforço de uma vida inteira para unir as visões do Iluminismo, em meio às quais ele foi criado, à reação do século XIX a essas ideias, uma reação por vezes romântica, outras vezes histórica e conservadora e muitas vezes, as duas coisas. John Skorupski, Why Read Mill Today? [Por que ler Mill hoje?] (2006) Do mesmo modo que é útil a humanidade ser imperfeita, e que, portanto, haja diferentes opiniões, é útil que haja diferentes experiências de vida; que espaço livre seja dado a uma variedade Fichte e Kant Fichte foi uma criança prodígio nascida em circunstâncias modestas na Saxônia. Ele atraiu o interesse de um clérigo, que se tornou seu benfeitor após descobrir que Fichte era capaz de recitar de memória um sermão inteiro depois de ouvi-lo apenas uma vez. Fichte foi mandado para o famoso internato em Pforta, onde Friedrich Nietzsche (1844-1900) estudaria mais tarde. Apesar de Fichte ter cursado as universidades de Jena e Leipzig, a morte de seu benfeitor deixou-o sem fundos, e ele não se formou. Infeliz, Fichte trabalhou como tutor, ensinando filosofia kantiana, mas dois anos após a publicação de sua Tentativa, foi nomeado para o cargo de professor de Filosofia Crítica na Universidade de Jena. No idealismo transcendental de Kant, existe um mundo fora do sujeito que inclui “coisas em si” (noumena), além de coisas segundo elas nos parecem em nossa experiência (phenomena). Para Fichte, isso não é verdade. A consciência não é baseada no mundo das coisas fora de si, mas sim na sua própria consciência de si mesma. É desta situação que todo o entendimento se origina. Fichte começou a elaborar seu sistema no livro ambiciosamente intitulado Fundamentos de toda a ciência do conhecimento (1794/5, 2ª Ed. 1802). Foi o primeiro de vários trabalhos nos quais ele desenvolveria a noção de Wissenschaftslehre, entendida de formas diferentes como sua doutrina da ciência ou teoria do conhecimento, na qual toda a filosofia está baseada em uma subjetividade radical. Fichte tentou sistematizar o idealismo, fazendo todo o conhecimento depender da consciência do que ele chamava de ego absoluto – seu conceito de Deus. Do ego absoluto, emergem nossos egos individuais – ou históricos – e empíricos. O objetivo da Wissenschaftslehre é descobrir o ego individual a partir de sua fonte no ego absoluto. Nacionalismo alemão Enquanto Fichte pode ser considerado um filósofo difícil e altamente técnico, ele foi ao mesmo tempo um popularizador de ideias e um orador de sucesso. Prestou muita atenção à Revolução Francesa, que apoiou até Napoleão ocupar a Prússia em 1806. Isso levou à sua série de “Discursos ao povo alemão”, que foram extraordinariamente influentes no desenvolvimento de um sentido crescente de identidade nacional alemã. Ao definir um bom alemão, Fichte diz o que um bom alemão não é: um judeu, por exemplo. No seu discurso “Contribuição para Corrigir o Julgamento Público da Revolução Francesa” (1793), Fichte se referiu aos judeus como um “Estado dentro do Estado”, um ponto de vista cuja história Hannah Arendt traçou em As origens do totalitarismo (1951). Ao descrever os judeus como um “Estado dentro do Estado”, Fichte alimentou a ideia de que os judeus não são confiáveis, no melhor dos casos, e de que são desleais, no pior. Disse que as únicas condições que seriam aceitáveis para dar aos judeus direitos civis seriam “cortar fora todas as suas cabeças em uma noite e colocar sobre seus ombros novas cabeças, que não deveriam conter sequer uma ideia judaica”. O sentido de Martin Heidegger de propósito histórico da Alemanha foi influenciado por Fichte. Heidegger acreditava que o povo alemão era especial porque, como os gregos antigos, eles compartilhavam um idioma primordial: o alemão era a base de uma cultura definida por poetas como Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843) e filósofos do destino como Friedrich Nietzsche. Em seu “Décimo Terceiro Discurso à Nação Alemã” (1806), Fichte argumentou que as fronteiras naturais dos Estados são linguísticas, e não geográficas: “Aqueles que falam a mesma língua estão ligados uns aos outros por uma infinidade de laços invisíveis pela própria natureza, muito antes do início de qualquer arte humana”. A nação, constituída por pessoas ligadas por um idioma comum, tem de ser mantida inteira e pura. “Este todo, se desejar absorver e misturar a si qualquer outro povo de língua e descendência distintas, não pode fazê-lo sem tornar-se confuso.” A nação alemã é abençoada, na visão de Fichte, por estar separada das outras por “uma língua comum e um modo de pensar comum”, assim como pela geografia (“separada o suficiente dos outros povos – no meio da Europa, como um muro que divide raças não aparentadas”). Raça, língua e cultura são identificadas e reunidas por Fichte como elementos-chave do nacionalismo alemão e exerceriam papel na promoção de um sentido extremo desse nacionalismo após a derrota do país na Primeira Guerra Mundial, promovendo um ponto de união para os nazistas durante sua ascensão ao poder. Schelling: superando o Eu Após Fichte, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) é o filósofo que continua a desenvolver o idealismo kantiano até sua primazia ser desafiada por Hegel. A intenção de Schelling, como descrita em seu Sistema do idealismo transcendental (1800), era criar uma filosofia da natureza a partir da qual ele pudesse deduzir um sistema de razão objetivo. Ele acreditava que a natureza era o Eu (mente) no processo de tornar-se. Em seus últimos trabalhos, Schelling desenvolveu uma teologia na qual ideias emanam de Deus, enquanto a busca do homem é definida como em separação de Deus e então retorno a Ele. Estas ideias reaparecem na obra de Arthur Schopenhauer e influenciaram Friedrich Nietzsche. O livro de Schelling A essência da liberdade humana (1809) teve enorme impacto sobre Martin Heidegger; o teólogo existencialista, Paul Tillich (1886-1965), foi também profundamente influenciado por Schelling. Como seu contemporâneo Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), ele era contra toda forma de reducionismo ou tentativas de retratar o e entender o mundo por meios mecânicos ou quantitativos. Em vez disso, a razão é vista como uma determinação infinita do consciente pelo inconsciente. Tudo segue na direção do Absoluto, que é realizado na arte. Com relação a isso, tanto Fichte como Schelling armaram o palco para Hegel. Nossa tarefa é descobrir o primordial e absolutamente incondicionado princípio inicial de todo o conhecimento humano. Ele não pode ser provado nem definido, se de fato é um princípio primário absoluto. Ele destina-se a expressar aquele Ato que não pode aparecer e não aparece entre os estados empíricos da nossa consciência, mas está na base de toda consciência e, sozinho, torna- a possível. Ao descrever este ato, há menos risco de alguém talvez falhar em pensar o que deveria – a natureza da nossa mente já deu conta disso – do que de pensar o que não deveria. Isso torna necessário refletir sobre aquilo pelo que alguém, à primeira vista, poderia tomá-lo e ainda abstrair de tudo que não pertence a ele. Johann Gottlieb Fichte, A ciência do conhecimento (1792) Não há nada mais comum a respeito de palestras de filosofia do que ouvir reclamações sobre sua ininteligibilidade... onde o assunto é em si mesmo ininteligível e confuso, a mais alta arte da oratória ainda seria incapaz de torná-lo inteligível. F. W. J. Schelling, Sobre o estudo acadêmico da filosofia (1842) humanidade de Cristo e pelo mistério de sua divindade por meio de Deus, o Pai. Embora viesse depois a se referir a “Espírito” em vez de “Deus”, ele atribuiria a “Espírito” um propósito teleológico. Nesses primeiros escritos sobre cristianismo, podem-se encontrar as raízes do historicismo de Hegel, que ele desenvolveria mais completamente em seu trabalho maduro. A filosofia da história de Hegel Em seu último ano de vida, em uma série de palestras dadas em 1830/31, Hegel falou sobre a ideia de Deus e do propósito divino guiando a história (essas palestras seriam publicadas após sua morte como Filosofia da história). Ele falou de Deus como “não uma mera abstração, mas um princípio vital capaz de realizar a si próprio”. Ainda mais longe, Deus determina a história: “Deus governa o mundo; o trabalho real do seu governo – a realização de seu plano – é a História do Mundo”. Não existem atos aleatórios ou acidentes para Hegel. Tudo é planejado. “Ante a luz pura dessa Ideia divina – que não é mero Ideal –, o fantasma de um mundo cujos eventos são um encontro incoerente de circunstâncias fortuitas desaparece completamente.” É fácil enxergar como Marx remodelou a filosofia da história de Hegel para adequá-la aos seus propósitos materialistas ao simplesmente substituir “Deus” por “luta de classes”. O mais eloquente adversário do historicismo hegeliano no século XX foi Karl Popper, que, em A sociedade aberta e os seus inimigos (1945), apontou Hegel como um dos três antepassados do totalitarismo, ao lado de Platão e Marx, porque – diz Popper – Hegel tomou uma visão determinista da história. Pode-se argumentar igualmente que Hegel tinha uma visão otimista da história e acreditava que o progresso real era possível. O método de Hegel Em Fenomenologia do espírito (Phänomenologie des Geistes), Hegel joga com o duplo significado da palavra alemã Geistes, que pode significar “espírito” ou “mente” (o livro foi traduzido das duas maneiras em inglês). Essa obra é a primeira parte da tentativa de Hegel de chegar a um relato do conhecimento sistemático e científico. Seu subtítulo – Ciência da experiência da consciência – deixa-nos saber que Hegel deseja levar o tema da consciência para além do alcance da metafísica e para dentro do reino da investigação científica. Em sua fenomenologia da mente, Hegel descarta as epistemologias de pensadores do Iluminismo, de René Descartes (1596-1650) a Kant, por conta do fundacionalismo destes (seu desejo de encontrar uma base firme sobre a qual o conhecimento possa ser compreendido progressivamente). Ao tomar a consciência por si mesma, assim como seus objetos – a consciência sendo consciente de ter objetos –, Hegel descortina um novo caminho para a compreensão do conhecimento. É neste contexto que seu famoso método dialético entra em jogo. A formulação da tríade tese-antítese-síntese, frequentemente mencionada em discussões a respeito de Hegel, foi na verdade o trabalho do filósofo alemão e comentador hegeliano Heinrich Moritz Chaly bäus (1796-1862). Essa tríade descreve o movimento pelo qual a consciência, conforme estuda a si mesma, desloca-se em frente e progressivamente, em direção a uma nova síntese. Para Hegel, a dialética é um processo sem fim, o primeiro motor do pensamento. Mas sua caracterização diferia da de Chaly bäus, que usava os termos abstrato-negativo-concreto. Esta formulação é muito mais que a tese- antítese-síntese, porque permite que todas as teses iniciais sejam falsas. Na medida em que o abstrato move-se através do estágio negativo da dialética, ele sofre um processo de mediação; só então chegamos ao concreto, ponto em que todo o exercício recomeça. Hegel chamou o processo que impulsiona este sistema de supressão. A chave para o pensamento de Hegel é sua elaboração da consciência individual tornando-se consciente de si mesma e de seus objetos e de como cada consciência individual torna-se ciente de outros seres conscientes. Ao ser consciente do outro reconhecendo minha consciência, eu me torno um ser social, e isto se transforma no fundamento de todas as relações sociais e a precondição para a liberdade (que pode ser vista como o tema principal do pensamento de Hegel). Na Fenomenologia, Hegel introduz o tema da dialética mestre/escravo. Quando duas pessoas se encontram, há uma luta entre suas subjetividades, com uma tentando ganhar ascendência sobre a outra. No fim, a relação mestre/escravo se resolve porque ambas as partes reconhecem sua interdependência. Nesta parábola, que Hegel denomina “Senhorio e Servidão”, ele descreve como as subjetividades, confrontando-se entre si, envolvem-se em uma “luta até a morte” pela ascendência sobre a outra. Mas o mestre jamais consegue realmente ganhar ascendência sobre o escravo, do qual ele depende para conseguir serviços, bens etc. Do mesmo modo, o escravo enxerga em certo momento que não é um escravo, porque os frutos de seu trabalho criam o mundo no qual ele e o mestre vivem. Na dialética hegeliana, essas contradições são suprimidas na autoconsciência, que conduz à intersubjetividade e a um mundo compartilhado, que é a base para a organização social. Para Hegel, a Fenomenologia era um prelúdio para A ciência da lógica (1812-17). Levando o idealismo transcendental de Kant mais longe, Hegel defendeu na Fenomenologia que aquilo que chamamos de realidade é tão influenciado por nossa percepção dela que, em última instância, ela é mente. Tudo no mundo pode ser explicado pela ordem subjacente que a consciência faz da realidade. Essa ordem é lógica. A ciência da lógica, para Hegel, é uma tentativa de entender a estrutura subjacente do mundo que criamos. Filosofia do direito Em Princípios da filosofia do Direito (1820), Hegel combinou sua compreensão da consciência e a lógica que organiza nosso mundo para se dirigir ao negócio prático do direito e da política. O filósofo acreditava que o direito tinha importância primordial na organização de uma sociedade que deseja evitar o despotismo. Só enxergava a liberdade humana sendo realizada por meio da participação como cidadão na vida cívica e social. Hegel identificava três esferas nas quais o “direito” opera: direito abstrato, moralidade e eticidade. Direito abstrato diz respeito às nossas relações com os outros, e Hegel identifica o princípio básico da “não interferência” para descrever como deveríamos respeitar os direitos dos outros (e o que esperamos em retribuição). Moralidade envolve nosso entendimento da nossa própria subjetividade (ou “particularidade”), tal qual descrito na Fenomenologia, como a base sobre a qual podemos reconhecer a subjetividade dos outros e, assim, respeitar seus direitos como se eles fossem nós. Hegel descreve três aspectos do problema da moralidade: propósito e responsabilidade; intenção e bem-estar; e “o bem” da consciência. Na terceira esfera, “eticidade”, Hegel sintetiza a experiência subjetiva do indivíduo com os grupos progressivamente maiores nos quais ele ou ela existe: a família, a sociedade civil, o Estado. É uma pesquisa particularmente inclusiva sobre como o sujeito individual se relaciona com o resto do mundo. Hegel teve uma influência enorme no desenvolvimento do idealismo britânico e da filosofia europeia ao longo dos séculos XIX e XX. Friedrich Nietzsche desenvolveu o tema da moralidade do mestre e moralidade do escravo em Genealogia da moral (1887). Eu e Tu (1923), de Martin Buber, deve muito à dialética mestre/escravo, assim como Simone de Beauvoir fez uso extensivo dela em O segundo sexo (1949), sua pesquisa sobre a posição da mulher na história. Talvez a mais importante elaboração desse tema possa ser encontrada na filosofia e psiquiatria do filósofo alemão Karl Jaspers, que refina o conceito de subjetividades separadas e autoconscientes e sua relação com outras subjetividades por meio do que ele denomina “luta amorosa”. Talvez porque Hegel seja tão intimamente associado pelo senso comum à sua apropriação por Marx, ele tenha sofrido o mesmo destino de Marx no mundo pós-marxista e pós-comunista do século XXI. Mas, assim como a análise marxista será revivida por pesquisadores em busca de uma solução para a A 5 Auguste Comte 19 de janeiro de 1798 – 5 de setembro de 1857 Pensador francês que deu origem ao positivismo e lançou as bases da sociologia. uguste Comte é o criador de uma linha de pensamento que rejeitava a metafísica de Immanuel Kant e Hegel, a favor de uma abordagem que excluía do estudo qualquer coisa que não fosse diretamente observável. Esta abordagem, que ficou conhecida como positivismo, levou Comte a desenvolver o que chamou de “A Lei dos Três Estados”, que defendia que a jornada intelectual histórica do homem, que termina no positivismo (o terceiro estado), começa com o “Estado Teológico”, caracterizado pela crença em deuses, passando pelo intermediário “Estado Metafísico”. Comte buscava entender o comportamento social por meio de seu método positivista, tomando emprestada de Charles Darwin uma metáfora evolutiva. Sua contribuição altamente original pavimentou o caminho para a criação da sociologia, por Émile Durkheim, como disciplina acadêmica formal e ainda para sua elaboração, feita por Max Weber, como uma metodologia não empírica, que dava conta da subjetividade na pesquisa sociológica. Secretário de Saint-Simon Depois de ser expulso da École Poly technique, em Paris, por ter participado de um protesto estudantil, e após estudar medicina por um curto período em Montpellier, Comte trabalhou como secretário do socialista Henri de Saint- Simon (1760-1825) de 1817 a 1824. Com Saint-Simon, Comte teve a oportunidade de desenvolver seu próprio pensamento e de publicar artigos não assinados no periódico L’Organisateur, de propriedade do patrão. Em 1823, Saint-Simon – que vinha agindo de forma errática havia algum tempo – tentou o suicídio dando seis tiros na cabeça, o que lhe deixou cego pelos seus dois últimos anos de vida. Em 1824, Comte cortou relações com Saint-Simon. Vários dos artigos de Comte haviam sido publicados com o nome do patrão, mas ele chegou ao limite quando Saint-Simon tentou publicar a primeira parte do seu Curso de filosofia ositiva (6 vols, 1830-42) com seu próprio nome. (A partir de então, Comte rejeitaria Saint-Simon publicamente.) A ligação entre os dois era singularmente infeliz, uma vez que o próprio Comte sofria de depressão. Em 1826, ele foi tratado em um asilo dirigido pelo psiquiatra Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), que o diagnosticou com um distúrbio maníaco; ele prescreveu tratamentos com água fria e sangria. Em 1827, Comte abandonou os cuidados de Esquirol e tentou suicídio diversas vezes, mais notavelmente ao saltar da Pont des Arts, em Paris. Lei dos Três Estados A Lei dos Três Estados de Comte, descrita em seu Curso de filosofia positivista, apresenta uma ideia evolutiva do desenvolvimento intelectual do homem: “A lei é esta: cada uma das nossas principais concepções, cada vertente do nosso conhecimento, passa sucessivamente por três diferentes condições teóricas: a teológica ou fictícia; a metafísica ou abstrata; e a científica ou positiva”. O estado teológico é desmembrado em três partes, caracterizadas por fetichismo, politeísmo e, finalmente, monoteísmo. No estado de pensamento metafísico, ou abstrato, o homem tenta explicar os fenômenos por meio de “forças” e “essências”. Este pensamento é mais sofisticado, mas não origina resultados precisos, mensuráveis. É somente no estado científico, ou positivo, que nossa compreensão do mundo é obtida por meio da observação. Comte comparou essa evolução do pensamento europeu à do desenvolvimento humano individual: infância (estado teológico), juventude (estado metafísico), idade adulta (estado científico). A segunda lei de Comte é conhecida como a Lei Enciclopédica ou Epistemológica. Uma vez mais, ela toma uma abordagem evolutiva, agora para descrever a ordem em que se desenvolveram as ciências, cada uma delas lançando uma base para a próxima. A primeira é a matemática, da qual se derivam (em ordem crescente de complexidade) a astronomia, a física, a química, a biologia e, finalmente, a sociologia (o estudo científico da sociedade). Os seis volumes do Curso de Comte são isso – um curso inteiro em todos esses temas. Positivismo e sociologia Comte via o positivismo como uma maneira de combater a incerteza que reinava após a Revolução Francesa. Tudo havia sido posto em questão: a instituição da Igreja, a fé individual em Deus, a monarquia, o Estado, o papel do povo. A sociologia descobriria as leis por trás da interação social humana. Identificaria como instituições e grupos sociais funcionavam, permitindo aos sociólogos não apenas entender mas também prever o que acontece em sistemas sociais. O sucesso de Comte fora da França deve-se à tradução e ao resumo dos seis volumes de seu Curso feitos pela teórica social inglesa Harriet Martineau (1802-76) em A filosofia positiva de Auguste Comte (2 vols, 1853). Martineau foi a primeira socióloga mulher e ativista que utilizou uma abordagem positivista para se opor à escravidão e exigir a emancipação das mulheres. Na Inglaterra, o trabalho de Comte foi defendido por John Stuart Mill, mas somente até certo ponto. Comte buscou continuamente a aprovação de Mill, que pôde segui-lo por conta da tentativa do filósofo de elevar seu positivismo ao status de uma “religião de humanidade”. Comte criou um calendário positivista que dividia o ano em treze meses, que receberam os nomes de grandes homens, como Arquimedes e Dante (1265-1321), assim como os dias da semana, que receberam os nomes de outros homens distintos. (Ele propôs que anos bissextos tivessem um festival para celebrar a vida de mulheres santas.) Adeptos da religião de humanidade de Comte construíram uma Capela de Humanidade na França no final do século XIX, e há três delas no Brasil – de fato, a bandeira brasileira carrega o lema do positivismo de Comte: “Ordem e Progresso”. O lema de Comte era vivre pour altrui, ou “viva para os outros”; é a fonte da palavra altruísmo e um epitáfio apropriado para um pensador cuja influência se estende até o século XXI. Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diferentes esferas de atividade, desde seu princípio mais simples até o nosso tempo, acredito que descobri uma grande lei fundamental, à qual a mente está sujeita por uma necessidade invariável... Esta lei consiste no fato de que cada uma de nossas concepções principais, cada vertente do nosso conhecimento, passa em sucessão por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstrato e o estado científico ou positivo. Auguste Comte, Discurso sobre o espírito positivo (1830) sociedade da Nova Inglaterra). Os americanos transcendentalistas resistiam aos ensinamentos da Igreja e defendiam uma intuição individual que levaria a um estado de transcendência espiritual sobre o mundo físico. O transcendentalismo era um movimento antiempirista. Um dos fundadores do transcendentalismo foi Ralph Waldo Emerson. A filosofia de Thoreau não pode ser entendida se apartada de Emerson, que viajou pelo continente europeu em 1832, antes de procurar alguns dos mais importantes intelectuais britânicos de sua época, incluindo William Wordsworth, Samuel Tay lor Coleridge, John Stuart Mill e o satirista e ensaísta escocês Thomas Carly le. Wordsworth, em particular, havia sido impregnado pelo idealismo transcendental de Kant, e seu longo poema The Prelude [O Prelúdio] demonstrava ideias kantianas sobre como o sujeito constitui o mundo. Embora Emerson e os transcendentalistas americanos rejeitassem o empirismo de Mill, eles aderiram à sua teoria de justiça, com sua ênfase na resistência individual ao controle do Estado, assim como suas posições contrárias à escravidão e a favor da emancipação feminina. Carly le introduziu Emerson à obra de Johann Wolfgang von Goethe e o encorajou a perseguir ideais transcendentalistas em uma época de racionalismo e ceticismo crescentes. Revigorado por sua jornada europeia, Emerson voltou aos Estados Unidos, onde exerceria papel importante como agente literário de Carly le. O trabalho de Emerson não é sistemático, em vez disso, foca assuntos recorrentes que caracterizam a tradição americana, com atenção especial para os temas do individualismo e da liberdade. Como transcendentalista, Emerson tem como tema a relação do homem e da sua alma com o mundo natural – um tema que viria a ser explorado por Thoreau. A obra mais conhecida de Emerson é o ensaio Self-Reliance [Autossuficiência] (1841), no qual ele pressagia o experimento de Thoreau em Walden: Existe um momento na aprendizagem de todo homem – quando ele atinge a convicção de que inveja é ignorância, que imitação é suicídio – que ele precisa considerar a si mesmo, tanto para melhor quanto para pior, de acordo com o seu destino; que embora o vasto universo esteja repleto de coisas boas, nenhuma semente nutritiva de milho pode chegar a ele senão pelo trabalho que ele emprega no pedaço de terra que lhe é dado para lavrar. Na época em que Emerson escrevia, os Estados Unidos estavam em sua infância; de muitas maneiras, ainda eram dependentes da Europa no que dizia respeito à cultura. Emerson, e depois Thoreau, começaram a inverter essa tendência. O exemplo mais convincente é a influência que Emerson exerceu sobre Friedrich Nietzsche (1844-1900). Aqui nos deparamos com um filósofo nascido e criado nos Estados Unidos, influenciando um pensador do Velho Mundo que conquistaria lugar no primeiro time do pensamento alemão e cujo trabalho continua sendo amplamente lido. Os diários de Nietzsche lembram sua admiração por Emerson e contêm passagens dos ensaios History [História] e Self-Reliance [Autossuficiência], que ele copiou de traduções alemães. Estudiosos descobriram recentemente mais de uma centena de referências diretas a Emerson nos cadernos do filósofo, e a influência em seu livro, A gaia ciência (1882), foi significativa. Com Emerson, os Estados Unidos já não eram meros importadores de cultura europeia; agora, eram também exportadores. O trabalho de Emerson é um marco significativo no amadurecimento intelectual da América. Walden e metodologia Após se formar em Harvard, em 1837, Thoreau trabalhou sem sucesso como professor escolar por vários anos, até ser empregado por Emerson como tutor de seus filhos. Ele assumiu também as funções de editor, jardineiro e empregado polivalente de Emerson; Thoreau enxergava o trabalho físico ou intelectual bem feito para si mesmo ou devidamente recompensado pelo empregador como uma atividade transcendental. Prefigurou a teoria da alienação de Marx, segundo a qual o trabalho perde seu valor em si para o sujeito e se torna uma atividade forçada que precisa ser praticada para atender a necessidades materiais. Com efeito, a necessidade é um tema central de Walden. O experimento de Thoreau de uma vida simples em uma floresta próxima às margens do lago Walden começou em 4 de julho de 1845 e durou dois anos e dois meses. Seu método é reduzir-se à posição de um sujeito desprovido de confortos materiais que precisa recriar seu lugar na natureza. Nesta condição, Thoreau redescobre as necessidades básicas do homem: abrigo, comida e sociedade. Ele se põe a fazer essas coisas para si próprio, construindo uma casa pequena e colhendo sua própria comida. Na maior parte do tempo, vive sozinho, mas se permite alguma companhia e relações sociais. Ao relatar seus pensamentos e ações, Thoreau identifica e elabora temas que se tornariam centrais para a filosofia do século XX, como o papel do sujeito na observação científica e a natureza da interação do homem com o meio ambiente. Ele prefigurou o interesse do Ocidente de finais do século XX na filosofia indiana com suas leituras do Bhagavad-Gita (100 a.C.) e do Código de Manu (500 a.C.), cujas influências podem ser identificadas no Walden. Os métodos de Thoreau para explorar a necessidade no Walden são singulares. Se as Meditações sobre Filosofia Primeira (1641), de Descartes (1596-1650), foram uma redução mental, que despiu o conhecimento até restringi-lo ao cogito ergo sum (“Penso, logo existo”), Walden é uma redução mental e física, na qual Thoreau inicia por um estado selvagem e restaura progressivamente as necessidades humanas. Esta análise o conduz a um ceticismo profundo quanto a habilidade do Estado em atender, ou até mesmo em acomodar, tais necessidades essenciais; de fato, o Estado pode acabar provando-se hostil a elas. As reflexões de Thoreau sobre o papel do indivíduo em relação ao Estado são um exemplo de como sua filosofia ao mesmo tempo se volta para o futuro e restaura uma conexão com o passado: particularmente com os trabalhos de Platão, em especial A República (380 a.C.). Há uma satisfação singular em ler Thoreau por conta do modo como seus livros podem ser vistos como uma obra que flui do passado em direção a um futuro que se tornou nosso próprio presente. O ambientalismo deve muito não somente ao trabalho filosófico de Thoreau, mas também às suas observações científicas como naturalista, sobretudo no que diz respeito à dispersão de sementes e regeneração florestal (um interesse especial seu depois que ele iniciou acidentalmente um incêndio florestal que consumiu trezentos acres de mata). Desobediência civil Em 1848, Thoreau apresentou uma série de palestras intitulada “Os direitos e deveres do indivíduo em relação ao governo”, cujas ideias centrais apareceriam em seu ensaio “Resistência ao governo civil” (que teve o título alterado para “A desobediência civil” em 1849). A desobediência civil é uma defesa clássica da consciência que descreve resumidamente a visão de Thoreau de que uma fronteira precisa ser estabelecida entre o dever do indivíduo e as demandas do Estado. Ele considerava a guerra dos Estados Unidos contra o México uma tentativa de expandir a escravidão, um ponto de vista que era partilhado com o ex-presidente americano John Quincy Adams (1767-1848). Como consequência, Thoreau recusou-se a pagar um imposto e foi encarcerado por uma noite em junho de 1848 (parece que uma tia pode ter pagado o imposto e assegurado a libertação de Thoreau da cadeia, o que leva a crer que ele teria preferido permanecer lá por mais algum tempo). Martin Luther King citou A desobediência civil como uma das principais inspirações na sua elaboração do movimento pelos direitos humanos nos Estados Unidos. O ativista de direitos humanos indiano, Mahatma Gandhi, considerava a obra um texto-chave não somente por sua lógica irrefutável, mas também porque documentava um plano de ação, assim como um modo era conciliar o ensino da teologia com a filosofia. Feuerbach não demorou a se cansar disso e expressou o desejo de estudar com Hegel em Berlim, uma mudança que seu pai desaprovava. De qualquer modo, Feuerbach foi para a capital da Alemanha, tendo dito ao seu pai que estudaria com o grande teólogo e estudioso de hermenêutica Friedrich Schleiermacher (1768-1834), mas indo de fato estudar com Hegel. Após um período com o novo mestre, Feuerbach estudou ciência natural na Universidade Friedrich-Alexander. Sua conversão gradual da teologia para a antropologia estava completa. O homem é de importância central para si mesmo, dizia Feuerbach, e é a fonte de sua própria divindade e transcendência. Não existe salvação a ser encontrada em Deus ou na religião. Tudo que existe é a humanidade, racional e sensual. Ele observou em seus trabalhos autopublicados: “Verdade, realidade e sensação são idênticas. Somente o ser sensual é um ser verdadeiro e real” (Vol. II, 1844-6). Feuerbach publicou diversos trabalhos filosóficos em rápida sucessão enquanto era professor em Erlangen, mas sua carreira acadêmica terminou quando ele foi revelado como autor do livro, publicado anonimamente, Pensamentos sobre morte e mortalidade: dos papéis de um pensador, junto com um apêndice de epigramas teológico-satíricos (1830). Nesse livro, Feuerbach argumentava contra a sobrevivência de uma alma pessoal após a morte (para ele, a consciência individual retornava para uma espécie de consciência coletiva universal). Ele dizia ainda que nossa humanidade é nossa única qualidade, e que ela não é eterna, e seus epigramas satíricos zombavam de teólogos proeminentes da época. A universidade respondeu com sua demissão; ele não ensinaria novamente. Religião desmistificada A perda de seu cargo não perturbou Feuerbach de imediato, pois ele havia conseguido um bom casamento com a herdeira de uma fábrica de porcelana. Livre das restrições e padrões de um compromisso com a universidade, ele se viu apto a concentrar-se na formulação completa de sua filosofia antropocêntrica. A essência do cristianismo (1841), com seu foco na habilidade do homem de criar a si mesmo e seu lugar no universo, teve efeito imediato e dramático na vida intelectual da Alemanha. Treze anos depois, o livro foi traduzido para o inglês pelo romancista George Eliot (1819-80), que ajudou a expandir ainda mais sua influência não apenas na filosofia, mas também no pensamento popular. Feuerbach era agora leitura obrigatória para um público pós-hegeliano que começava a considerar um mundo sem Deus. A essência do cristianismo começa com uma proposição declarada de forma simples, à maneira de Hegel: “O homem – este é o mistério da religião – objetiva seu ser e então novamente faz de si mesmo um objeto para a imagem objetivada de si mesmo, assim convertida em sujeito”. A importância deste começo não tem como ser exagerada, porque foi ele que atraiu uma nova geração de pensadores e lhes permitiu manter o rigor racional da Fenomenologia do espírito (1807), de Hegel, e ao mesmo tempo rejeitar a orientação metafísica e cristã da filosofia hegeliana. Usando o que ele chamou de método transformativo, Feuerbach “mantém Hegel na cabeça” no que diz respeito à religião (assim como Marx “manteria Hegel na cabeça”, substituindo idealismo por materialismo). Na Fenomenologia do espírito, de Hegel, é a objetivação feita pelo Espírito Absoluto de si mesmo que conduz ao autoconhecimento; n’A essência do cristianismo, de Feuerbach, o espírito finito – temporal, e não eterno – objetiva a si mesmo na forma de Deus e então compreende que essa objetivação é na verdade a realização de sua própria natureza. Feuerbach e Marx No fundo, religião aliena o homem de si mesmo: isto foi o que Marx tomou de Feuerbach quando caracterizou a religião como “a expressão de sofrimento real e o protesto contra o sofrimento real. Religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação sem espírito. É o ópio do povo” (Crítica da filosofia do direito de Hegel, 1843). Mas Feuerbach, ao contrário de Marx, não acreditava que a época era a correta para uma revolução. Marx fez uma crítica famosa a ele em suas Teses sobre Feuerbach (1845), das quais a sétima afirma que Feuerbach “não vê que o ‘sentimento religioso’ é por si só um produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence na verdade a uma forma social particular”. Feuerbach contradisse Marx no grande ano revolucionário de 1848, defendendo uma forma de revolução pessoal na qual indivíduos avaliam suas próprias consciências. Ao reconhecer a sensualidade e o poder do amor em relações interpessoais, mudanças em uma escala maior se seguiriam. Com isso, Feurbach oferece um prelúdio às culturas alternativas dos anos 1960 e, em particular, ao pensamento de Herbert Marcuse (1898-1979), que defendia a emancipação humana por meio de uma compreensão freudiana da sexualidade e um entendimento marxista da política. Considerando toda a sua rejeição a Deus como divino, Feuerbach exerceu profunda influência na teologia moderna. Os últimos anos de sua filosofia foram focados em relações Eu-Tu, o reconhecimento de cada indivíduo da consciência do outro e a humanidade comum que compartilhamos. Esse conceito foi tão importante para o filósofo judeu austríaco Martin Buber que Eu e Tu (1923) tornou-se o título da sua obra mais popular. Buber, sim, acreditava em Deus – e argumentava que era no momento de relações Eu-Tu que mais facilmente se encontrava Deus. Religião é a separação do homem de si mesmo; ele define Deus ante si como a antítese de si próprio: Deus não é o que homem é – homem não é o que Deus é. Deus é o infinito, homem, o ser finito; Deus é perfeito, homem, imperfeito; Deus é eterno, homem, efêmero; Deus é todo-poderoso, homem, fraco; Deus é santo, homem, pecador. Deus e homem são extremos: Deus é o absolutamente positivo, a soma de todas as realidades; homem é o absolutamente negativo, abrangendo todas as negações. Mas, na religião, o homem contempla sua própria natureza latente. Assim, é preciso mostrar que essa antítese, essa diferenciação entre Deus e homem, com a qual a religião se inicia, é uma diferenciação entre o homem e sua própria natureza. Ludwig Feuerbach, A essência do cristianismo (1841) Feuerbach é o primeiro e o maior dos críticos modernos da filosofia fora da tradição positivista. Ele faz uma crítica devastadora da filosofia profissional e professoral. Mais ainda, sua crítica é sistemática e exaustiva, e não meramente retórica ou aforística, como a de Schopenhauer ou Nietzsche. Embora seja corriqueiro encontrar citações dos apartes aforísticos de Feuerbach (e.g., “Minha religião não é religião; minha filosofia não é filosofia”), o que é mais impressionante e de mais substância é o detalhe e o caráter de sua crítica da filosofia. É uma crítica histórica, que lhe confere escala e um conteúdo extraordinariamente rico. Marx W. Wartofsky, Feuerbach (1977) características da Terra são resultados de eventos repentinos, cataclísmicos). Lyell aguçou o interesse de Darwin em geologia e, por conseguinte, em fósseis. Fósseis eram evidências importantes para Darwin porque forneciam um registro de plantas e animais distribuídos em vastas distâncias e ao longo de períodos muito extensos. O slogan do uniformitarianismo – “o presente é a chave para o passado” – ecoou profundamente em Darwin, de modo que peças do quebra-cabeça “como as espécies se formam” começaram a organizar-se em sua mente. Descendência com modificação As evidências de fósseis coletadas durante sua jornada no Beagle forneceram a Darwin a ideia de descendência com modificação, sugerida por sua observação de variações entre espécies afins nas Ilhas Galápagos. As claras provas temporais possibilitadas pelos fósseis não apenas mostravam a progressão da vida, mas também forneciam uma evidência de sua diversificação – considerando que formas animais e vegetais apareciam em lugares e tempos específicos, e somente nesses lugares – e também da extinção, uma vez que o registro não se perpetuava. Outro elemento na interpretação feita por Darwin dos registros fósseis foi seu estudo da morfologia de plantas e animais. Ao traçar semelhanças entre grupos, Darwin foi capaz de formular a ideia de um ancestral comum. Darwin necessitava de uma explicação dos meios pelos quais as espécies de fato evoluíam. Inicialmente, voltou-se ao trabalho do naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), que oferecia a hipótese de que as espécies adquiriam traços característicos que promoviam sua sobrevivência e então os transmitiam a futuras gerações. Esta teoria, conhecida como lamarckismo, defende a hereditariedade de características herdadas. Como explicação científica, o lamarckismo era deficiente. O que era necessário era uma explicação do real mecanismo pelo qual as características passavam de uma geração para outra. A resposta estava na nova ciência da genética. Genética O monge autríaco Gregor Mendel (1822–84), que trabalhava em relativo isolamento, havia conduzido experimentos com hibridação de plantas usando ervilhas. Ele descobriu as leis que regulam a herança de características, lançando as bases para a ciência da genética. As descobertas de Mendel forneceram um entendimento científico de como traços particulares eram passados de uma geração a outra, assegurando que um organismo particular alcançaria maturidade sexual e se reproduziria, preservando-se, desse modo, da extinção. O trabalho de Mendel não era conhecido por Darwin, portanto o próximo passo na solução do quebra-cabeça evolucionário, incluindo um entendimento do papel exercido pela mutação genética, teria de esperar até que as conclusões de Mendel fossem redescobertas de forma independente nos anos 1890 pelo botânico holandês Hugo Marie de Vries (1848-1935) e também pelo botânico alemão Carl Erich Correns (1864-1933). O trabalho com a genética dominaria as ciências da vida no século XX e informariam o livro de Julian Huxley (1887-1975) Evolution: The Modern Synthesis [Evolução: a síntese moderna] (1942). Dois momentos-chave na genética são a descoberta, em 1953, da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA por James Watson (1928-) e Francis Crick (1916-2004) e a conclusão do sequenciamento de todo o genoma humano no Projeto Genoma Humano (1990-2003), iniciado por Watson e completado pelo geneticista americano Francis Collins (1950-). Antes do genuíno trabalho científico em genética, uma versão muito simplificada da teoria de Darwin era frequentemente utilizada com propósitos políticos no final do século XIX e início do XX. Herbert Spencer (1820-1903) cunhou o termo “sobrevivência do mais apto” depois de ler Sobre a origem das espécies – uma frase muito usada por imperialistas e teóricos de direita para promover o capitalismo laissez-faire e justificar a eliminação de grupos com base em classe social e raça. No final do século XIX, o termo “darwinismo social” tornou-se popular para justificar diversas aplicações da ideia de sobrevivência do mais apto, sobretudo a perfectibilidade da raça humana por meio de luta e competição. O primo de Darwin Francis Galton (1822-1911) cunhou o termo eugenia – o “melhoramento” da “raça”, como Galton e outros geneticistas diriam, por meio da reprodução dos “mais aptos” (eugenia positiva) ou por meio da esterilização sexual dos “inaptos” (eugenia negativa). Como consequência, vários países – os Estados Unidos, em particular – esterilizaram compulsoriamente os “inaptos” na primeira metade do século XX. Na Alemanha, o primeiro ato de Hitler após se autodeclarar Führer foi a publicação de um decreto de 1933 ordenando a esterilização de judeus, homossexuais e outras pessoas “inaptas”. As descobertas de Darwin definiram a agenda para o trabalho dos principais biólogos do final do século XX e início do XXI. E. O. Wilson (1929- ) cunhou o termo sociobiologia – “a extensão da biologia populacional e da teoria da evolução à organização social” –, que descreveu em Sociobiologia: a nova síntese (1975). Wilson faz referência à “epopeia evolutiva”, o que significa que a ciência suplantou o mito em sua explicação do mundo, mas que a explicação, ainda assim, mantém uma característica dramática, épica. Em O futuro da vida (2002), ele observa que a maioria das espécies da Terra ainda está para ser descoberta. Resistência do criacionismo Antes de Darwin, a explicação predominante do mundo natural era o criacionismo, baseado no relato bíblico dado pelo Livro do Gênesis: Deus criou o mundo e tudo que há nele. De acordo com o criacionismo, o mundo tem aproximadamente 6 mil anos de idade (o fóssil mais antigo já encontrado tem 2,7 bilhões de anos). A oposição religiosa à teoria de Darwin foi imediata e continua existindo atualmente, sobretudo nos EUA. Em 1925, a teoria da evolução foi parar em um tribunal, no julgamento que contrapunha o estado do Tennessee ao professor Scopes e que ficou conhecido como Julgamento do Macaco de Scopes. O professor de biologia do ensino médio John Scopes foi acusado de violar uma lei federal que proibia o ensino da evolução. Foi um caso notável porque, na verdade, era a ciência que estava sendo julgada. O tiro dos criacionistas acabou saindo pela culatra: o julgamento recebeu ampla publicidade e a maioria dos americanos apoiou Scopes e a evolução. Cem anos depois, a situação foi invertida. Os defensores do criacionismo passaram a chamá-lo de “ciência da criação” ou “design inteligente”, argumentando que os currículos escolares deveriam destinar-lhe tempo igual ao da evolução. Os discípulos de Darwin Stephen Jay Gould (1941-2002) fez uma das principais contribuições para o nosso entendimento da evolução em Equilíbrio pontuado (1972), um artigo escrito em coautoria com o paleontólogo Niles Eldredge (1943-). Gould e Eldredge propuseram a teoria do equilíbrio pontuado, observando que a evolução ocorre de maneira intermitente, e não em taxas constantes (gradualismo), o que justifica a aparente “lacuna” nos registros fósseis. O principal trabalho de Gould é The Structure of Evolutionary Theory [A estrutura da teoria evolutiva] (2002). Ele é conhecido por ter liderado um movimento crítico contra a sociobiologia por conta de sua visão determinista do comportamento humano. Richard Dawkins afirma em O gene egoísta (1976) que a principal unidade de seleção é o gene. Em O relojoeiro cego (1986), ele descreve as tentativas dos criacionistas de exigir “tempo igual” ao da teoria evolutiva. Defende o ateísmo em Deus, um delírio (2006), argumentando que a crença no milagre é incompatível com a ciência. Pesquisas recentes nos Estados Unidos mostram que 87% das pessoas acreditam em alguma forma de criacionismo; somente 13% “acreditam” na evolução sem “a mão orientadora de Deus” no processo. Mais que qualquer outra ideia visionária, a teoria da evolução de Darwin coloca ciência e conhecimento contra religião e fé. Ela chama atenção para o fato de que S 9 Søren Kierkegaard 5 de maio de 1813 – 11 de novembro de 1855 Pensador dinamarquês que estabeleceu temas-chave do existencialismo e afirmou que a verdade deveria ser encontrada na experiência subjetiva do mundo, e não compreendida puramente por métodos objetivos. øren Kierkegaard identificou e explorou os principais temas do existencialismo mais de cem anos antes que as figuras dominantes dessa tendência viessem a publicar uma palavra. Os conceitos de nada, angústia e pavor foram descritos por Kierkegaard muito antes que Martin Heidegger (1889-1976) – com pouco mais que um aceno para sua fonte – os elaborasse em Ser e tempo (1927). A visão de Jean-Paul Sartre (1905-80) do homem como “uma paixão inútil”, que ele descreve em O ser e o nada (1945), é também uma referência a Kierkegaard. Educação “insana” O pai de Kierkegaard era um homem rico, sombrio e movido por um sentimento de culpa que chegou a afetar o jovem Kierkegaard ao ponto de este referir-se à própria educação como “insana”. Inicialmente, Kierkegaard estudou teologia para agradar o pai, mas depois a abandonou em favor de uma vida de bon vivant. Após a morte do pai, Kierkegaard iniciou formalmente o estudo de filosofia, graduou-se e ficou noivo. Depois de um ano, terminou o noivado, e sua angústia a respeito do assunto tornou-se a força motriz por trás de seus primeiros trabalhos, três dos quais foram publicados em 1843: Ou isso ou aquilo, Temor e tremor e A repetição. O volume de material publicado por Kierkegaard foi prodigioso, mas os trabalhos que tiveram mais influência durante sua vida foram Migalhas filosóficas (1844), O conceito de angústia (1844), Estágios no Caminho da Vida (1845) e Pós-escrito conclusivo não científico (1846). Dois trabalhos póstumos continuam exercendo influência no século XXI: Doença até a morte (1849) e Prática no cristianismo (1850). Pseudônimos e comunicação indireta Depois de desfazer seu noivado, Kierkegaard levou uma vida de solteiro focada em trabalho duro e reflexão profunda. No entanto, a gravidade de seus temas da fé e do desespero é entrecortada por um sério ludismo. Em muitos de seus trabalhos, Kierkegaard adotou pseudônimos: Victor Eremita, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, Johannes Climacus, Vigilius Haufniensis, Anti-Climacus e H. H. O uso de pseudônimos era parte do seu método de comunicação indireta, com o qual Kierkegaard encorajava os leitores a pensarem por conta própria – a descobrirem sua subjetividade em vez de simplesmente receberem a “verdade” conforme entregue pela autoridade (o “autor”). Em vez de fazer proselitismo, Kierkegaard utiliza diferentes personas para oferecer perspectivas concorrentes de um mesmo problema, deixando ao leitor o trabalho de escolher aquilo em que acreditar. Subjetividade, paradoxo e “o salto da fé” Kierkegaard é o filósofo da subjetividade. Ele acredita que o Eu é livre para fazer escolhas, para criar a si próprio. Falhar em ter consciência de si e das possibilidades de liberdade é estar em um estado de desespero. Entretanto, todos em algum ponto de suas vidas caem em desespero, o que pode se apresentar como a oportunidade de ser eles mesmos. Em Doença até a morte (1843), Kierkegaard escreve: “Desespero é uma doença do espírito, do Eu, e assim pode assumir uma forma tripla: desespero de não estar consciente de possuir um Eu (desespero chamado assim inapropriadamente); desespero de não querer ser quem se é e desespero de querer ser quem se é.” O conceito de Kierkegaard de ser e subjetividade lhe permitiu aceitar o paradoxo como base da fé religiosa. Ele formulou o conceito normalmente referido como “salto da fé” (embora sua expressão literal fosse “salto para a fé”). Os mistérios do cristianismo não podem ser explicados pela razão, disse Kierkegaard, e não precisam ser. Eles existem fora da razão. São paradoxais. É preciso acreditar, mas não se consegue provar. É preciso acreditar como Abraão, que estava preparado para sacrificar o único filho em resposta à ordem de Deus. O pensamento de Kierkegaard é diametralmente oposto ao de Hegel, que propôs um enorme sistema lógico de razão pura, a partir da qual o homem e seu mundo seriam entendidos objetivamente, como por uma perspectiva divina. Kierkegaard argumentou que isso nunca seria possível; que o sujeito humano está sempre situado na perspectiva permitida por seu corpo, sua localização no espaço, sua própria consciência. Essa rejeição a uma perspectiva divina e a pseudo-objetividade que dela resulta, ao lado de uma tolerância pelo paradoxo, influenciaram em grande medida o pensador francês do século XX, Maurice Merleau-Ponty, e estas ideias são centrais para sua Fenomenologia da percepção (1945). Kierkegaard exerceu influência enorme na teologia protestante dos séculos XX e XXI. A filosofia contida em Eu e tu, de Martin Buber, deve muito a Kierkegaard, assim como a desmitologização de Rudolf Bultmann (1884-1976) – a visão de que a única necessidade da fé cristã é o fato do Cristo crucificado. E o teólogo germano- americano Paul Tillich (1886-1965), que teve enorme influência, levou adiante o conceito de Kierkegaard do “ser” como a chave para compreender a relação do homem com Deus. Como são estéreis minha alma e pensamento, e ao mesmo tempo atormentados incessantemente por vazias, arrebatadoras e agonizantes dores do parto! Estará meu espírito fadado a calar-se eternamente? Estarei eu obrigado a murmurar para sempre? Necessito é de uma voz tão penetrante quanto o olhar de Linceu, aterrorizante como o suspiro dos gigantes, persistente como um som da natureza, zombeteira como uma rajada de vento que espalha a geada fria, maliciosa como o desprezo insensível de Eco, com uma extensão tonal que alcance desde os graves mais profundos até os mais pungentes agudos, modulando do sussurro de uma santidade suave à violenta fúria da raiva. É disso que eu preciso para respirar, para dar expressão ao que está na minha mente, para agitar as entranhas da minha ira e da minha simpatia. – Mas minha voz é apenas rouca como o grito de uma gaivota ou moribunda como a bênção sobre os lábios do mudo. O que está por vir? O que reserva o futuro? Não sei, não tenho investigação que identificava o status do lugar ocupado pelo homem na história e lhe dava as ferramentas não somente para analisar sua situação, mas também para alterá-la. Uma educação burguesa Marx vinha de uma família burguesa. Seus pais eram judeus e viviam em Trier, cidade alemã na região vinícola do rio Mosel; seu pai fora obrigado a se converter ao luteranismo para manter seu cargo de advogado. Marx havia encontrado um benfeitor no primeiro Barão von Westphalen e se casou com sua filha, Jenny. Apesar das exortações de seu pai à frugalidade, os modos perdulários de Marx seriam fonte de problemas financeiros ao longo de sua vida. Por conta disso, ele conheceu na pele os efeitos da pobreza: necessidade econômica, saúde fraca e mortalidade infantil. Em 18 de junho de 1862, escreveu ao amigo Engels: “Todos os dias minha esposa diz que gostaria de estar com as crianças na segurança do túmulo, e eu realmente não posso culpá-la”. Dos sete filhos de Marx, um morreu durante o parto, dois morreram antes de chegarem ao primeiro aniversário e um morreu com oito anos de idade. Aos dezessete, Marx foi estudar direito na Universidade de Bonn, mas dedicou boa parte de seu tempo por lá a escrever poemas românticos dedicados a Jenny von Westphalen. Depois de um ano, ele foi para a Universidade de Berlim, onde se juntou aos jovens hegelianos em sua crítica às visões de Hegel sobre Deus e o Estado. Em 1841, o rei prussiano Frederico Guilherme IV (1795-1861) convocou Schelling para assumir a antiga cadeira de Hegel em filosofia com a ordem de extirpar a semente venenosa do hegelianismo. Em um grande momento filosófico, Marx, Engels, Kierkegaard e Mikhail Alexandrovich Bakunin (1814-76) estavam presentes na mesma sala de aula em Berlim para ouvir a primeira das palestras anti-hegelianas de Schelling. O rei prussiano fora previdente em seu temor aos jovens hegelianos: o fervor deles era um prelúdio para o socialismo de Marx e Engels e para o anarquismo de Bakunin. Colaboração com Engels Marx e Engels conheceram-se brevemente em 1842, quando Marx era editor do Rheinische Zeitung. Eles se encontraram de novo em Paris em 1844 e, a partir de então, tornaram-se colaboradores por toda a vida. O pai de Engels possuía parte de uma fábrica têxtil em Manchester, onde Engels trabalhou, primeiro como funcionário encarregado de funções gerais e depois como sócio (trabalho que ele detestava, mas que exercia para ajudar a manter Marx). O primeiro livro de Engels foi A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845), no qual descreveu injustiças econômicas do capitalismo, tais como a pobreza, o trabalho infantil e a destruição do meio ambiente. Os dois formavam uma parceria perfeita: Engels tinha um estilo de prosa elegante, e Marx, uma mente altamente original e um profundo conhecimento acadêmico. Após a morte de Marx, Engels editou o segundo e o terceiro volumes de O capital. Marx foi influenciado pela dialética de Hegel – o conceito de tese- antítese-síntese –, mas rejeitou o idealismo hegeliano, cravando assim o último prego no caixão de um movimento filosófico alemão que dominara o pensamento desde Kant. (Embora rejeitasse as conclusões de Hegel, Marx manteve seu método, tendo sustentado sempre que ele era um aluno de Hegel e tomando-o, de fato, como seu mestre.) O fim do idealismo alemão foi sinalizado pela crítica de Feuerbach a Hegel, e Marx declarou, em 1845, nas suas Teses sobre Feuerbach (publicadas em 1888): “Os filósofos somente interpretaram o mundo de maneiras diversas; a questão é mudá-lo”. Socialismo e filosofia Apesar de Marx ter lutado com filósofos, a atenção que ele lhes dirigiu ao longo de sua vida mostrou que o respeito superava o desprezo; embora seu objetivo fosse alterar o mundo por meio da ação consciente dos princípios primordiais e da história (incluindo o pensamento que acompanhou sucessivamente as épocas históricas). Marx organizou as ideias do socialista galês Robert Owen (1771-1858) e do seu homólogo francês Henri de Saint- Simon (1760-1825) em um programa de pensamento e ação coerente. Em O manifesto comunista, Marx codificou sua concepção materialista da história (seus seguidores deram-lhe mais tarde o nome de “materialismo histórico”) com o argumento de que “a história de toda a sociedade até o presente é a história das lutas de classes”. Esse livro curto incluía ainda um plano de dez etapas para a criação de um Estado comunista, entre as quais estava a extinção da propriedade privada e a centralização do crédito. Origens clássicas do marxismo A tese de doutorado de Marx Diferença da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro (1841, publicada em 1902) lançou as bases para sua filosofia materialista ao examinar o atomismo de Epicuro (341-270 a.C.) e Demócrito (460-370 a.C.). Nela, Marx defende que um mundo material existe independentemente de qualquer percepção humana desse mundo. Mais tarde, ele refinou essa ideia em O capital, argumentando que “o ideal nada mais é que o mundo material refletido pela mente humana e traduzido em formas de pensamento”. A famosa crítica de Marx à religião, caracterizada como “o ópio do povo”, é parte de uma análise muito mais complexa das relações sociais e da necessidade de ilusão, que aparece em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843): O homem faz a religião, a religião não faz o homem. A religião é, de fato, a autoconsciência e o sentimento de si do homem que, ou ainda não se encontrou ou tornou a se perder. Mas o homem não é um ser abstrato, agachado fora do mundo. O homem é o mundo do homem – o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem religião, que é uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral desse mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica em forma popular, seu point d’honneur espiritual, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene e sua base universal de consolação e justificação. É a realização fantástica da essência humana, uma vez que a essência humana não adquiriu qualquer realidade verdadeira. A luta contra a religião, portanto, é uma luta indireta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. O sofrimento religioso constitui ao mesmo tempo a expressão do sofrimento real e um protesto contra ele. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições sem alma. A religião é o ópio do povo. Alienação O legado de Marx na Europa Ocidental O fim da Segunda Guerra Mundial deixou um enorme vácuo no pensamento filosófico e econômico das universidades de toda a Europa Ocidental. Essa lacuna foi preenchida – sobretudo na França – pelas mais variadas teorias de base marxista. Metade dos professores de filosofia da Alemanha haviam sido nazistas, e sua extinção da vida acadêmica no pós-guerra significava que a filosofia contemporânea alemã – com a exceção de Heidegger e alguns outros – não mais dominava a disciplina, como fizera desde os tempos de Kant. Em primeiro lugar, a maioria dos existencialistas franceses era marxista, e escolas de pensamento lideradas por marxistas começaram a florescer por toda a Europa. O filósofo e crítico literário húngaro Georg Lukács (1885-1971) estabeleceu uma tradição conhecida como “marxismo ocidental” com a publicação de História e consciência de classe (1923), defendendo os métodos de Marx em oposição aos dogmas associados ao “marxismo”. Mais tarde, o pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937) desenvolveu o marxismo ocidental com sua elaboração da ideia de hegemonia, segundo a qual o capitalismo controlava a sociedade não somente por meio da propriedade dos bens de produção e da violência, mas também por meio de um instrumento mais sutil: a hegemonia cultural, que fazia os valores burgueses tornarem-se dominantes. Benito Mussolini (1883-1945) considerava Gramsci uma ameaça tão grande ao seu regime fascista que o fez ser condenado a vinte anos de prisão. O promotor ressaltou o temor que o Estado tinha desse intelectual ao proclamar que “por vinte anos precisamos impedir esse cérebro de funcionar”. Gramsci foi libertado em condições de saúde precárias após oito anos preso e morreu pouco tempo depois. Seus Cadernos do cárcere (1948/ 1951) foram publicados postumamente e continuam a ser amplamente lidos. Na França, Louis Althusser (1918-90) liderou um movimento denominado “marxismo estrutural”, que procurava integrar o método marxista ao estruturalismo de Claude Lévi-Strauss (1908- 2009). A carreira de Althusser teve fim depois que ele estrangulou sua esposa em 1980. Marx foi uma força dominante no estudo acadêmico de filosofia, política e economia no século XX, e não se pode dizer que qualquer filósofo tenha exercido maior impacto nos eventos mundiais. A criação de Estados socialistas e regimes comunistas são um resultado direto de seu pensamento e da sua obra escrita. Não há evento mais importante na história moderna do que o conflito entre União Soviética e Estados Unidos, que dominou a geopolítica do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, até a queda da União Soviética, em 1991. Durante a maior parte do século XX, a tendência dominante no pensamento europeu e, em certa medida, também nos Estados Unidos foi o marxismo ou alguma variação dele. A ascensão do conservadorismo americano iniciado pela presidência de Richard Nixon (1913-94), combinada ao desmantelamento da União Soviética, contribuiu para marginalizar o pensamento de Marx no estudo da filosofia política e de outras disciplinas. No entanto, o colapso bancário de 2008 nos Estados Unidos e na Europa fez economistas correrem em desespero de volta a Marx em busca de uma explicação para a Grande Recessão. É seguro dizer que, à medida que a crise do capitalismo prosseguir no século XXI, Marx continuará sendo um relevante teórico de sua organização e um previdente de seu destino. Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, seu ser social que determina sua consciência. Karl Marx, O capital (1859) A história de toda a sociedade até o presente é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, burguês de corporação e artesão – em resumo, opressor e oprimido – estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora escondida, ora aberta, uma luta que a cada vez terminava com uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou com a ruína ordinária das classes em luta... Os comunistas apoiam por toda parte qualquer movimento revolucionário contra as condições sociais e políticas vigentes... Eles declaram abertamente que seus objetivos podem ser alcançados somente pela eliminação violenta de todas as ordens sociais existentes. Que as classes dominantes tremam diante de uma revolução comunista. Os proletários não têm nada a perder senão suas correntes. Eles têm um mundo para conquistar. Trabalhadores do mundo, uni-vos! Karl Marx e Friedrich Engels, O manifesto comunista (1848) Karl Marx estava certo – o socialismo funciona. O que acontece é que ele considerou a espécie errada. Por que ele não funciona com humanos? Porque nós gozamos de independência reprodutiva e conquistamos a máxima aptidão darwiniana ao nos preocuparmos com nossa própria sobrevivência e garantirmos nossa própria prole. E. O. Wilson, entrevista na Universidade de Harvard, 27 de março de 1997 instinto e para uma adaptação inadequada ao mundo vivo. A afronta filosófica: nosso Eu consciente não é o mestre de sua própria casa. Rüdiger Safranski, Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia (1989) 2 Parte das escrituras hindus, consideradas instruções religiosas, em que se discutem meditação e filosofía. N 12 C. S. Peirce 10 de setembro de 1839 – 19 de abril de 1914 Lógico e cientista americano que estabeleceu os princípios do pragmatismo. ão existe filósofo americano com talentos mais diversos que Charles Sanders Peirce. Suas contribuições para a lógica, o método científico e a semiótica tiveram efeito duradouro no raciocínio de pensadores sobre esses assuntos. Como seu mestre e inspiração intelectual, Immanuel Kant, Peirce buscou uma compreensão sistemática do mundo e de tudo que há nele. Dedicou sua vida a alcançar clareza de pensamento, uma tarefa diária. Ao contrário da maioria dos cinquenta pensadores de que tratamos neste livro, é impossível apontar algumas das publicações de Peirce como leitura “recomendada”. O trabalho de sua vida é uma colcha de retalhos formada por artigos e ensaios amplamente reunidos, mas uma edição útil e definitiva de seu trabalho ainda é aguardada.3 Jacob Bronowski (1908-74) certa vez definiu um gênio como alguém com duas grandes ideias. Peirce teve pelo menos três: lógica predicativa, semiótica e pragmatismo. Além disso, ele fez contribuições práticas e duradouras à matemática, astronomia, química, geodesia, agrimensura, cartografia, meteorologia, espectroscopia, psicologia, filologia, lexicografia, história da ciência e economia matemática. Peirce foi educado durante boa parte de sua vida dentro de casa, por seu pai Benjamin Osgood Peirce (1854-1914), que ocupou a cátedra Hollis de matemática e filosofia natural, em Harvard, de 1888 até sua morte, e é tido como um dos principais responsáveis pela criação do departamento de matemática de Harvard. Além de suas realizações acadêmicas, o pai de Peirce era um homem prático, cofundador do Instituto Smithsoniano e do US Coast and Geodetic Survey [Centro de pesquisa geodésica americano] (no qual Charles trabalharia durante a maior parte de sua vida profissional). As origens do pragmatismo de Peirce podem ser encontradas no estilo da instrução de seu pai, que incluía difíceis problemas matemáticos e científicos, cujas respostas eram submetidas a escrutínio rigoroso. Peirce formou-se em Harvard aos vinte anos de idade, com um diploma de química. Pelos dois anos seguintes, trabalhou como cientista para o centro de pesquisa geodésica americano, e, de 1879 a 1884, foi também professor de lógica no departamento de matemática da Universidade Johns Hopkins. Rejeitado pela academia Apesar de ser um gênio – porque Peirce foi sem dúvida um gênio, talvez até mesmo a maior mente filosófica americana de todos os tempos –, ele perdeu seu cargo na Johns Hopkins e jamais seria nomeado novamente para uma função acadêmica. Peirce era um homem não convencional, e depois que sua primeira mulher o deixou, ele passou a viver com a mulher que se tornaria sua segunda esposa. Juliette Peirce havia sido conhecida anteriormente como Anette Froissy e também como Juliette Pourtalai; suas origens eram obscuras, e as autoridades da Universidade Johns Hopkins acreditavam que ela era uma cigana. A escandalosa relação de Peirce com Juliette custou-lhe o emprego. Ele podia, ainda, ser um colega de trabalho difícil e agressivo, talvez porque sofresse de nevralgia do nervo trigêmeo, uma doença crônica que causa dores penetrantes na face. Peirce utilizava cocaína, morfina e álcool para se tratar, e não há dúvidas de que isso contribuiu indiretamente para seu desligamento da universidade. Apesar de sua produtividade prolífica – ele deixou 100 mil páginas de manuscritos não publicados –, Peirce conquistou muito pouco reconhecimento ao longo de sua vida e morreu doente e na pobreza. Continuação de ideias kantianas Peirce leu a Crítica da razão pura (1781) pela primeira vez quando tinha dezesseis anos – estudou a obra por três anos, dominando o texto e se contrapondo às questões que ele levantava (ele continuaria a estudar esse texto ao longo de toda a vida, voltando a Kant frequentemente à medida que desenvolvia seu próprio pensamento). O primeiro e precoce estudo de Peirce sobre lógica o levou a considerar o de Kant “pueril”; rejeitou o apriorismo de realidade perpetuamente – eles próprios são signos” (Robert W. Preucel, Archaeological Semiotics [Semiótica arqueológica]). Ao morrer, Peirce deixou quase 100 mil páginas manuscritas não publicadas, e a tarefa de organizá-las e publicá-las de modo que a arquitetura de seu pensamento se torne clara é longa e desafiadora. Pode-se apostar com segurança, no entanto, que quando essa tarefa for terminada, a obra de Peirce dará aos futuros pensadores um volume enorme de material a ser considerado. Mas como posso saber o que vai acontecer? Você certamente não acredita que será por clarividência... No entanto, é verdade que, sim, eu sei que aquela pedra vai cair assim que eu soltá-la, como um fato. Se eu realmente sei alguma coisa, isso que eu sei tem que ser real. Seria bastante absurdo dizer que eu poderia saber como serão determinados eventos sobre os quais não poderei exercer mais controle do que aquele que exercerei sobre esta pedra depois que ela tiver deixado minha mão; que eu possa assim perscrutar o futuro não mais que por meio de uma força familiar à pura ficção. Eu sei que esta pedra vai cair se ela for liberada porque a experiência me convenceu de que objetos desse tipo sempre caem; e se alguma pessoa presente tiver qualquer dúvida sobre essa questão, ficarei feliz em fazer o experimento – e farei com ela uma aposta de cem para um nesse resultado. C. S. Peirce, Pragmatism as a Principle [Pragmatismo como um princípio] (1903) 3 O Peirce Edition Project da Universidade de Indiana-Universidade Purdue, em Indianápolis, está elaborando os Escritos de Charles S. Peirce: uma edição cronológica. E 13 William James 11 de janeiro de 1842 – 26 de agosto de 1910 Psicólogo americano que definiu a natureza da consciência como um fluxo, apresentou as ideias do pragmatismo a um público amplo e explorou as variedades da experiência religiosa. m seu livro Princípios de psicologia (1890), William James forneceu o primeiro documento moderno original e abrangente sobre o tema em inglês. Em seu próprio estilo, ele popularizou e desenvolveu o pragmatismo de C. S. Peirce e foi visto pelo público em geral como o criador da doutrina (embora Peirce fosse seu progenitor desconhecido). James abordou o fenômeno da crença religiosa na era do cientificismo, publicando em 1902 As variedades da experiência religiosa. Ele descreveu nossa percepção do tempo como um “fluxo de consciência”. Essa descoberta teve efeito profundo nos estilos de escrita de sua aluna Gertrude Stein (1874-1946) e dos romancistas Marcel Proust (1871-1922), Virginia Woolf (1882-1941), James Joy ce (1882-1941) e William Faulkner (1897-1962). Como resultado, um amplo público veio a se familiarizar com essa ideia seminal do século XX. Nascido em uma família rica da Nova Inglaterra, William James foi uma criança nervosa, de juventude marcada por crises de profunda depressão; em diversas ocasiões, ele chegou a pensar em suicídio. Seu pai, Henry James Sr. (1811-82), foi um teólogo que seguia as ideias do filósofo e místico cristão sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772); era, ainda, amigo de Ralph Waldo Emerson, que se tornaria avô de William. William se beneficiou de frequentes viagens à Europa, em algumas delas foi apresentado a intelectuais e escritores da época, muitos dos quais também visitavam o salão de James em Nova York – o irmão mais novo de William era o romancista Henry James (1843-1916). Depois de pensar em praticar pintura, James acabou decidindo estudar medicina. Ele nunca atuou como médico, mas seu treinamento científico, aliado ao gosto pela metafísica, levou-o a criar uma obra única, que deixou uma impressão duradoura no pensamento contemporâneo. Ciência e religião A importância de William James e seu papel na ascensão da filosofia americana devem ser contemplados no devido contexto histórico. A crescente influência da ciência (e das tecnologias que dela resultaram), no final do século XIX, apresentou uma série de crises para a filosofia europeia. Na Alemanha, lar do idealismo, a ciência parecia eclipsar a filosofia de Kant e Hegel e toda a metafísica que lhe dizia respeito. Isso fez Edmund Husserl (1859-1938) refletir, em seu livro não terminado A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, que a ascensão do empirismo científico ameaçava o esforço para entendermos nosso mundo por meios alternativos e não redutivos. Martin Heidegger desconfiava da ciência e da tecnologia, que ele associava ao materialismo decadente dos Estados Unidos. Na França do século XIX, ideias científicas continuavam a se chocar com os ensinamentos da Igreja católica romana, que ainda gozava de enorme influência. Até mesmo na Inglaterra predominantemente protestante, a teoria da evolução de Charles Darwin (1809-82) dividia profundamente os intelectuais, muitos dos quais a consideravam incompatível com a fé cristã. Se fosse preciso descrever em uma frase a contribuição de William James, seria possível dizer que ele desenvolveu um estilo de pensamento que permitiu às mentes questionadoras irem aonde a ciência as tentava levar sem medo de assim precisarem abandonar a crença religiosa. Pragmatismo: hipóteses e verdade Em uma palestra pública, James discursou sobre a situação de um “leigo comum” no início do século XX. Ele perguntou: “Como ele considera sua situação neste abençoado ano do nosso Senhor de 1906?” A situação dele, diz James, é esta: “Ele quer fatos; quer ciência; mas também quer religião”. James passou toda a sua carreira tentando dar as duas coisas ao seu leigo hipotético, e o pragmatismo é a chave para entender como ele conseguiu isso. A questão do pragmatismo, segundo James, é saber quais efeitos terá um pensamento ou ação e como uma pessoa reagirá a esses efeitos. O fornecidas pela neurologia e outras ciências, e depois explora aspectos como o misticismo. James limita seu estudo original à experiência religiosa individual, e não à história das seitas religiosas; essa abordagem possibilita uma discussão muito mais ampla sobre o poder do sentimento religioso, incluindo o que diz respeito à santidade e ao misticismo. Embora ele não aderisse à fé cristã convencional, e embora certamente não fosse um místico, James era solidário àqueles que carregam essas crenças e que têm experiências místicas. Em Variedades, ele confessou: Se meu tratamento de estados místicos lançará mais luz ou escuridão, não sei, pois minha própria constituição fecha-me à sua satisfação quase inteiramente, e posso falar deles somente em segunda mão. Mas, forçado a examinar o assunto tão externamente, serei tão objetivo e receptivo quanto puder; e acredito que ao menos terei sucesso em lhes convencer sobre a realidade de tais estados e da importância primordial de sua função. Ao ressaltar a primordial importância de experiências e crenças das quais não toma parte, James evidencia o aspecto mais duradouro de seu pensamento: que as ciências e crenças religiosas são “chaves genuínas, capazes de abrir o cofre do universo para aquele que possa usar qualquer uma delas de forma prática”. De acordo com a visão de James, o mundo é “complexo a ponto de consistir em diversas esferas de realidade que se interpenetram e que, assim, podemos abordar alternadamente ao utilizarmos diferentes concepções e assumirmos diferentes atitudes”. A filosofia é ao mesmo tempo a mais sublime e a mais trivial das atividades humanas. Ela trabalha nas mais estreitas fendas e descortina as mais amplas paisagens. Ela “não assa nenhum pão”, como já foi dito, mas pode inspirar nossas almas com coragem. E por mais que seus modos pareçam às pessoas comuns repugnantes, assim como suas dúvidas e desafios, seus sofismas e dialética, nenhum de nós pode viver sem os feixes de luz que ela faz piscar sobre as perspectivas do mundo. Estas iluminações, ao menos – assim como a escuridão e o mistério que lhe acompanham e fazem contraste –, dão ao que ela diz um interesse que vai muito além do profissional. William James, Pragmatismo (1907) F 14 Friedrich Nietzsche 15 de outubro de 1844 – 25 de agosto de 1900 Filólogo e filósofo alemão que declarou a morte de Deus e mostrou como o homem deve reavaliar valores vigentes. riedrich Nietzsche estudou filologia e, por isso, é às vezes renegado por aqueles que acreditam que um filósofo deve ter um diploma em filosofia. Ele é, no entanto, o mais popular e influente filósofo alemão do final do século XIX, em parte porque seu estilo de escrita aforística tornou-lhe (enganosamente) acessível a um público geral. Ele é famoso sobretudo por haver declarado a morte de Deus – um reconhecimento de que o homem precisa se responsabilizar pela própria vida por meio de esforço e vontade. Os temas principais da filosofia de Nietzsche prosperaram fora da academia e, como os de Karl Marx e Sigmund Freud, conquistaram um lugar na consciência pública. Em O nascimento da tragédia (1872), Nietzsche estabeleceu uma oposição entre o que ele chamou de impulsos apolíneos e dionisíacos na Grécia Antiga. “Dionisíaco”, para ele, significava o aspecto irracional, caótico e criativo da existência do homem, enquanto, por oposição, “apolíneo” se referia à distância crítica da razão, que afasta o homem da sua experiência vital do dionisíaco. Trabalhando em ideias primeiramente elaboradas por Arthur Schopenhauer, Nietzsche formulou o conceito de vontade de poder, uma força vital que ao mesmo tempo precede a existência humana e lhe serve de impulso. A morte de Deus necessitava do que Nietzsche chamava de reavaliação de todos os valores. Ele defendia que a natureza da percepção e do entendimento era relativa e questionava a noção de “verdade” objetiva ou absoluta. Seu conceito de eterno retorno é baseado na ideia de que cada momento deveria ser vivido como se fosse acontecer novamente para sempre, em um círculo infinito. Seu conceito de “super- homem” (Übermensch) – talvez o mais conhecido deles – se referia à visão uma espécie de imperativo categórico pós-teísta. Se Kant defendia que as pessoas deveriam agir somente de acordo com a máxima segundo a qual um ato deveria se tornar uma lei universal, então Nietzsche defendia que elas agissem como se aquele ato fosse se repetir eternamente. Este é o grande propósito que cabe ao homem seriamente após Deus. É o antídoto de Nietzsche para o niilismo de sua época, e é uma luz com a qual ele vislumbrou os novos territórios da experiência e da compreensão humana que viriam a ser explorados por fenomenologistas e existencialistas. Nietzsche lança as bases para a ontologia de Sartre e para os temas que ele explora em suas obras literárias. O desafio constante de Nietzsche é nos mostrar o abismo; a cada esquina, ele nos pergunta: E agora? Mania, sífilis e morte A vida de Nietzsche foi caótica. Sua saúde era frágil, e ele gastou muita energia para ofender a sensibilidade da sociedade cultural e intelectualmente dominante de sua época; por sua devoção ao pensamento, ele destruiu sua carreira como professor. Após dez anos ensinando na universidade, entregou- se totalmente à tarefa de escrever, enquanto vagava pela Europa. Ele se envolveu em um infeliz triângulo amoroso com Lou Andreas-Salomé (1861- 1937) – uma femme fatale nascida na Rússia que mais tarde se associou a Freud e acabou se tornando psicanalista – e um de seus amigos, o filósofo alemão Paul Rée (1849-1901). Ele teve também uma relação tempestuosa com sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, uma antissemita radical que viajou ao Paraguai em 1886 para ajudar a fundar uma colônia ariana pura. Durante seus últimos dez anos de vida, Nietzsche vagou entre casas de repouso e montanhas, sempre escrevendo. Em 3 de janeiro de 1889, durante uma estadia em Turim, ele viu um homem chicoteando um cavalo. Nietzsche enlaçou o pescoço do animal com os braços, na tentativa de protegê-lo, e então teve um colapso. Sua mãe o levou para a Basileia e depois para uma clínica em Jena. Após a morte dela, Nietzsche passou a viver com a irmã em Weimar. Ele sofria terrivelmente com os efeitos de uma sífilis terciária, e uma série de derrames o levou à morte em 1900. A difamação de Friedrich Nietzsche Elisabeth Förster-Nietzsche passou a ter o controle sobre a publicação da obra de seu irmão e estabeleceu um arquivo de seus textos. Ela os editou de modo a dar-lhes uma abordagem que fizesse referência aos nazistas. Adolf Hitler (1889-1945) fez com que tirassem uma foto sua ao lado de um busto de Nietzsche. Mas a verdade é que Nietzsche detestava o nacionalismo alemão e o antissemitismo. Sua “política” – se é que ele tinha alguma – era a de um esteta, um esnobe. Ele venerava a arte. Uma de suas principais ferramentas era a ironia, e, em certa medida, Nietzsche foi um grande humorista. Ele gritava e ria dos que estavam no topo, às vezes com sua própria voz, outras vezes com a voz de um de seus “personagens”. Neste e em outros aspectos, Nietzsche se assemelhava ao seu predecessor no desenvolvimento do existencialismo, o dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-55). O estilo aforístico de Nietzsche, que dava à sua filosofia um caráter pungente e mordaz, é facilmente citado fora de contexto. A pior falha de interpretação de Nietzsche é a que o considera um antissemita, quando, na verdade, ele foi o oposto: um antiantissemita. O biógrafo de Nietzsche, Rüdiger Safranski, faz uma citação reveladora do filósofo nazista Ernst Krieck: “No fim das contas, Nietzsche foi um opositor do socialismo, um opositor do nacionalismo e um opositor do pensamento racial. Sem levar em conta essas três inclinações do seu pensamento, ele poderia ter sido um nazista extraordinário.” A grande contribuição de Nietzsche foi nos mostrar como pensar. Ele examinou problemas de diversas perspectivas e os modificou com a intenção de verificar se novos ângulos trariam novas soluções. Música e dança estão presentes em toda a sua filosofia, guiando o leitor em uma busca dionisíaca pelo conhecimento. Apartado da sociedade em seus anos derradeiros, Nietzsche foi certa vez observado por sua senhoria através do buraco da fechadura de sua porta – ele estava dançando nu. Em Assim falou Zaratustra, ele escreveu: “Eu somente poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar”. Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, os mais assassinos entre todos os assassinos? Friedrich Nietzsche, A gaia ciência (1882) Todos os filósofos compartilham este mesmo erro: partem do homem contemporâneo e, pela análise que dele tecem, acreditam poder atingir seus objetivos. Eles pensam automaticamente no “homem” como uma verdade eterna, como algo imutável no interior de um redemoinho, como uma medida incontestável de coisas. Tudo que o filósofo diz sobre o homem, no entanto, é, no fundo, não mais do que um testemunho a respeito do homem de um período extremamente limitado. Falta de senso histórico é o erro original de todos os filósofos. Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano (1878)
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