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R.C. Sproul-O Conhecimento das Escrituras, Notas de estudo de Teologia

comentário bíblico

Tipologia: Notas de estudo

2016
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Compartilhado em 30/11/2016

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rildo-nobrega-7 🇧🇷

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Baixe R.C. Sproul-O Conhecimento das Escrituras e outras Notas de estudo em PDF para Teologia, somente na Docsity! R.C.Sproul 0 conhecimento escrituras Passos para um estudo bíblico sério e eficaz é O Conhecimento das Escrituras, O 2003 Editora Cultura Cristã. Publicado cm inglês com o título Knowing Scripture, by InterVarsity Press, O 1977, by InterVarsity Christian Fellowship. Traduzido c publicado com permissão de InterVarsity Press, PO.Box 1400 Downers Grove, IL 60515 USA. 1º edição em português — 2003 3.000 exemplares Tradução Heloisa Cavallari Ribeiro Martins Revisão Meire Portes Santos Madalena Torres Editoração Rissato Editoração Capa Lela Design ISBN 857622002-4 Publicação autorizada pelo Conselho Editorial Cláudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vicira, André Luís Ramos, Mauro Fernando Meister, Otávio Henrique de Souza, Ricardo Agreste, Sebastião Bueno Olinto, Valdeci Santos Silva EDITORA CULTURA CRISTA Rua Miguel Teles Junior, 394 Cambuci 01540-040 — São Paulo - SP - Brasil G.Postel 15.136 - São Paulo — SP -01599-970 Fone: (011) 3207-7059 — Fax (01) 3209-1255 wuni.cep.org.br — cop&cep.org br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra 6 o O Conhecimento das Escrituras Autoria e data . Erros gramaticais 4 REGRAS PRÁTICAS PARA A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA 67 62 65 1º Regra - Como qualquer outro livro....... 67 2º Regra - Lendo existencialmente . 69 3º Regra - O histórico e o didático . 73 4º Regra - O implícito e o explícito 80 5º Regra - O significado das palavras 84 6º Regra - Observe com atenção os paralelismos na Bíblia 92 7º Regra - Diferenças entre provérbio e lei . = 96 8º Regra - Observe a diferença entre o espírito e a letra. 98 9º Regra - Cuidado com as parábolas ...... 102 10º Regra - Cuidados com as profecias de predição . 105 5 A CULTURA E A BÍBLIA Condicionamento cultural e a Bíbli Condicionamento cultural e o leitor . Princípio e costume ................ Orientações práti 6 FERRAMENTAS PRÁTICAS PARA O ESTUDO DA BÍBLIA 123 109 109 12 HS “117 Traduções da Bíblia ........ . 123 Bíblias anotadas ... 125 Traduções clássicas 127 Comentários 130 Concordân: Traduções estrangeiras ........ Programa de leitura bíblica par: 133 Quando ao grego e o hebraico ......... «o 136 Conclusão ........eeeestsaieeeeeseeereeereerereeerereneess 138 . 132 133 PREFÁCIO e eu fosse o diabo (sem comentários, por favor), um dos meus primeiros objetivos seria impedir que as pessoas se interessassem pela Bíblia. Sabendo que ela é a Palavra de Deus e tem como propósito ensinar as pessoas a conhecer, amar e servir ao Deus da Palavra, faria todo o possível para cercá-la de equivalentes espirituais a armadilhas, cercas de espinho e ci- ladas, para afugentar as pessoas. Com vaidosa presunção, sem dúvida, como se estivesse recebendo um elogio, admitiria que o velho e sábio Jonathan Edwards deixou-me absolutamente cons- ciente de minhas intenções quando escreveu: “O diabo jamais se disporia a promover no coração das pessoas uma grande ad- miração pela Palavra divina, a qual Deus designou como a gran- de e permanente norma... Ousaria o espírito do erro, em sua constante tentativa de enganar os seres humanos, despertar ne- les um alto apreço pela regra infalível e incliná-los a valorizá-la ca familiarizarem-se com ela? O diabo sempre demonstrou pro- fundo desprezo e odiou o livro santo, a Bíblia: c tem feito tudo o que está em seu poder para extinguir a sua luz... Ele está empe- nhado numa luta contra a Bíblia e odeia cada uma de suas pala- vras.” Eu lutaria todos os dias para provar a veracidade das pa- lavras de Edwards. - O Conhecimento das Escrituras Como? Bem, tentaria dissuadir todos os pastores e sacer- dotes de pregar e ensinar a Bíblia e espalharia o sentimento de que o estudo pessoal deste livro antigo é um fardo extra que os cristãos modernos podem dispensar sem grande prejuízo. Pro- pagaria dúvidas a respeito da verdade, da importância, do bom senso e da honestidade da Bíblia e, se porventura alguém ainda insistisse em lê-la, eu os induziria a admitir que o benefício da leitura se resume aos sentimentos nobres e trangúilos que ela evoca e não em atentar para aquilo que as Escrituras realmente proclamam. De todas as formas tentaria impedi-los de usar disciplinadamente suas faculdades mentais para compreender a dimensão de sua mensagem. Se eu fosse o diabo avaliando meu trabalho nos dias de hoje, creio que ficaria satisfeito com o progresso alcançado. Mas ficaria muito infeliz ao ver este livro escrito por meu amigo — quero dizer, amigo de J. I. Packer -0“R. C”. Por mais de um século a teologia protestante tem vivido em conflito a respeito da Bíblia. O primeiro foco de agitação foi a inspiração, com seu corolário — a inerrância. Há cinquenta anos o debate voltou-se para a revelação, o método e o conteú- do da comunicação de Deus por meio de Escrituras suposta- mente falíveis. Atualmente o interesse central é a interpretação, e o subjetivismo, tendo ontem concluído que a Bíblia não é nem verdadeira nem confiável, hoje a interpreta fundamentado na alegação de que sua mensagem para nós não apresenta nem con- sistência nem clareza. Os resultados desta postura são, frequentemente, desorientadores e confusos. Contra esse cená- rio o vigoroso trabalho escrito por Sproul, como introdução e auxílio à tarefa de interpretação pessoal das do que bem-vindo. Quais são as qualidades essenciais deste volume? Clareza, bom senso, competência na matéria e um entusiasmo crepitante que transforma o autor, um bom comunicador, num comunicador excelente. A Bíblia o fascina e sua fascinação nos contagia. Prove e comprove! O trabalho de Sproul sobre estudo bíblico o levará rituras, é mais 2 -—— = O Conhecimento das Escrituras moldada de acordo com os interesses particulares do leitor. Muito frequentemente a conclusão parece ser: “Pode-se citar a Bíblia para provar qualquer coisa”. Haverá saída para esta confusão? Leitores sérios podem descobrir princípios que os guiem em meio aos pontos de vista conflitantes vindos de todos os lados? Responder a algumas des- tas perguntas é o objetivo para o qual este livro foi planejado. Embora muitas das questões tenham uma dimensão erudi- ta, não fui movido pelo desejo de entrar num debate acadêmico sobre a ciência da hermenêutica. Ao contrário, minha motiva- ção primária foi oferecer orientação básica, de bom senso, para auxiliar leitores sérios a estudar as Sagradas Escrituras com pro- veito. Em concordância com a visão que a Bíblia tem de si mes- ma, este livro procura enfatizar a origem e a autoridade divinas das Escrituras. Em razão disto tentei fornecer regras de interpre- tação que servirão como teste e ponto de equilíbrio contra nossa tendência demasiado comum de interpretar a Bíblia conforme nossos preconceitos. O livro termina com um levantamento das ferramentas disponíveis para auxiliar tanto aos novatos como aos mais experimentados estudiosos da Bíblia. Sobretudo gostaria que este fosse um livro prático propor- cionando assistência aos leigos. Na realidade, tenho uma pro- funda esperança de que os cristãos continuarão a estudar as Es- crituras, contribuindo, como têm feito, para a vida da igreja. Possa este livro constituir-se num encorajamento a perseverar com ale- gria e entendimento. Tenho uma dívida de gratidão para com muitas pessoas que me auxiliaram neste projeto. Meu especial agradecimento a Mary Semach por digitar o manuscrito. Desejo também reco- nhecer o auxílio de Stuart Boehming, que ajudou fazendo as necessárias revisões, e ao Prof. David Wells, cujas recomenda- ções foram valiosas na correção do manuscrito. R.C€. Sproul The Ligonier Valley 1. Por que estudar a Bíblia? or que estudar a Bíblia? Pode parecer uma pergunta fora de propósito e tola, considerando-se que você, provavel mente, não estaria lendo este livro a não ser que já esti- vesse persuadido de que o estudo da Bíblia é necessário. Nossas melhores intenções, no entanto, são constantemente enfraquecidas por nossos caprichos e disposição de ânimo. E o estudo da Bíblia fica esquecido pelo caminho. Por isto, antes de examinarmos as orientações práticas para o estudo da Bíblia, será bom revermos algumas das razões que nos compelem a este estudo. Dois mitos Primeiro consideraremos algumas das razões invocadas para não se estudar a Bíblia. Estas “razões” frequentemente revelam mi- 14 - - O Conhecimento das Escrituras tos passados como truísmos! por força de constante repetição. O mito classificado em primeiro lugar na galeria de nossas des- culpas é a afirmação de que a Bíblia é muito difícil para o enten- dimento de pessoas comuns. Mito n.º 1 - A Bíblia é de tão difícil compreensão que ape- nas teólogos altamente especializados e com treinamento téc- nico podem ocupar-se de seu estudo Este mito tem sido repetido constantemente por pessoas sérias. Dizem clas: “Sei que não posso estudar a Bíblia, pois todas as vezes que tento lê-la não a consigo compreender”. Quando alguém diz isso provavelmente deseja ouvir: “Mui- to bem! Eu o compreendo. Realmente é um livro difícil e, a não ser que se tenha uma formação teológica, num seminário, por exemplo, talvez o melhor seja não tentar explorá-la”. Ou quem sabe a pessoa preferisse ouvir: “Reconheço que a Bíblia é uma leitura muito pesada, muito profunda. Parabéns por seu esforço incansável, seu trabalho ardoroso na tentativa de solucionar a charada sobrenatural da Palavra de Deus. É triste que Deus haja escolhido uma linguagem tão obscura e esotérica para comuni- car-se conosco, algo que apenas os especialistas podem discernir”. Temo que estas sejam as respostas que muitos de nós desejam ouvir. Sentimo-nos culpados e ansiamos por aquietar nossas consciências, por negligenciar nosso dever como cristãos. Quando verbalizamos este mito nós o fazemos com espan- tosa desenvoltura. É algo tão constantemente repetido que não esperamos vê-lo contestado. Na verdade, sabemos que, como adultos maduros, vivendo num país civilizado, tendo chegado a um grau razoável de educação, somos capazes de compreender a mensagem da Bíblia. Se somos capazes de ler o jornal, temos capacidade também para ler a Bíblia. Na verdade, eu ousaria afirmar que há mais palavras e conceitos difíceis expressos nas manchetes dos jornais do que na maioria das páginas da Bíblia. "Truísmo: verdade incontestável ou evidente por si mesma. Coisa tão óbvia que não precisa ser mencionada: banalidade, obviedade. N. do E. Por que estudar a Bíblia? apenas uma elite de especialistas profissionais conseguiria do- minar? Deus realmente fala em termos primitivos porque está se dirigindo a primitivos. Ao mesmo tempo, há profundidade sufi- ciente nas Escrituras para manter o especialista mais erudito e perspicaz seriamente envolvido em suas questões teológicas durante toda a vida. Se primitivo é um termo adequado para descrever o con- teúdo das Escrituras, obsceno o é ainda mais. Todas as obsceni- dades do pecado são registradas na Bíblia em linguagem clara e franca. E o que poderia ser mais obsceno do que a cruz? Aqui vemos obscenidade em escala cósmica. Na cruz Cristo toma sobre si a obscenidade humana para redimi-la. Se você é um daqueles que se apegou aos mitos da dificul- dade ou do tédio, talvez isto se deva à sua atitude de atribuir às Escrituras como um todo as dificuldades encontradas em algu- mas passagens específicas. É possível que algumas porções te- nham sido particularmente difíceis e obscuras. Outras podem tê-lo deixado aturdido e frustrado. Possivelmente tais passagens devam ser deixadas a cargo dos especialistas. Se você considera difíceis e complexas certas passagens das Escrituras, seria ne- cessário insistir em que toda a Bíblia é tediosa e cansativa? O Cristianismo bíblico não é uma religião esotérica. Seu conteúdo não está oculto em símbolos vagos que requerem um tipo especial de “percepção” para decifrá-los. Não há necessi- dade de nenhuma proeza intelectual ou dom espiritual para com- preender a mensagem básica das Escrituras. Isto pode ocorrer em religiões orientais em que o entendimento está limitado a algum guru remoto que habite uma choça nas alturas do Himalaia. Talvez o guru tenha sido atingido por um raio envia- do pelos deuses, revelando-lhe algum profundo mistério do uni- verso. Você empreende uma viagem para inquirir sobre o mis- tério e o guru, num sussurro calmo, lhe diz que o mistério da vida é “bater palmas com uma mão só”. Isso é esotérico. Tão esotérico que nem mesmo o guru compreende. E não compre- ende porque é um absurdo. Absurdos muitas vezes soam pro- 18 - O Conhecimento das Escrituras fundos por serem ininteligíveis. Quando ouvimos uma afirma- ção incompreensível somos, muitas vezes, levados a considerá- la como demasiado profunda ou importante quando na realida- de é apenas algo ininteligível como “bater palmas com uma mão só”. A Bíblia não se expressa dessa forma, mas usa formas de linguagem que possuem significado para se referir a Deus. Al- gumas dessas formas podem ser mais difíceis do que outras, mas não têm a intenção de comunicar afirmações sem sentido, que apenas um guru seria capaz de esquadrinhar. O problema da motivação É importante notar que o tema deste livro não é como ler a Bíblia, mas, como estudá-la. Entre ler e estudar existe uma enorme dife- rença. Podemos ler descansadamente, de modo informal, algo que fazemos exclusivamente por prazer, para nosso entretenimento. Mas estudar sugere esforço, trabalho sério e diligente. Aqui está o ponto central de nossa negligência. Falhamos em nosso dever de estudar as Escrituras, não tanto por nossa dificuldade em compreendê-la, nem tão pouco por achá-la tedi- osa ou aborrecida, mas porque é trabalho, esforço. Nosso pro- blema não é falta de inteligência nem de paixão. O problema é a preguiça. Somos preguiçosos. Karl Barth, o famoso teólogo suíço, escreveu certa vez que todos os pecados humanos têm suas raízes em três problemas básicos. Sua lista de pecados rudimentares inclui: pecados de orgulho, desonestidade e indolência. A regeneração espiritual não elimina instantaneamente nenhum desses males básicos. Mesmo sendo cristãos deveremos lutar contra tais dificuldades ao longo de toda nossa trajetória terrena. Ninguém está imune. Se vamos nos dedi disciplina do estudo bíblico, devemos reconhecer, desde o início, que careceremos da graça de Deus para perseverar. A indolência tem habitado em nós desde a maldição da queda. Nosso trabalho hoje é mesclado com suor e esforço. Er- vas daninhas crescem mais facilmente que grama. É mais fácil Por que estudar a Bíblia? 19 lero jornal do que estudar a Bíblia. A maldição do trabalho não será automaticamente removida simplesmente porque nossa ta- refa é estudar a Bíblia. Com fregiiência faço preleções sobre estudo da Bíblia. Nor- malmente pergunto aos membros do grupo de estudo quais, en- tre os participantes, são cristãos há um ano ou mais. Depois per- gunto: Dentro deste grupo quantos já leram a Bíblia toda, de capa a capa? Em todos os casos a maioria absoluta responde negativamente. Eu ousaria adivinhar que dentre aqueles que professaram sua fé há um ano ou mais, oitenta por cento não leram a Bíblia toda. Como explicar isto? Apenas apelando para a queda radical da raça humana poderíamos começar a respon- der tal pergunta. Se já leu a Bíblia toda, você faz parte de uma pequena minoria de cristãos. Se você já estudou sua Bíblia, seu grupo representa uma minoria ainda menos expressiva. É incrível cons- tatar que quase todas as pessoas têm uma opinião formada sobre a Bíblia, entretanto, muito poucos se esforçaram por estudá-la. Algumas vezes parece que as únicas pessoas realmente interes- sadas em empregar tempo e esforço para estudar as Escrituras são exatamente as que se armam com os machados mais afiados para investir contra ela. Muitos a estudam com o objetivo de encontrar possíveis brechas que lhes dêem razão para fugir de sua autoridade. A ignorância bíblica não está, de forma alguma, limitada aos leigos. Tenho feito parte de juntas eclesiásticas responsá- veis pela preparação e avaliação de seminaristas prestes a assu- mir seu ministério pastoral. O grau de ignorância bíblica de- monstrado por muitos destes estudantes é apavorante. Os currícu- los dos seminários não têm contribuído de forma consistente para aliviar o problema. Muitas igrejas ordenam, todos os anos, ho- mens virtualmente ignorantes quanto ao conteúdo das Escrituras. Fiquei chocado quando fiz o teste de conhecimento bíbli- co requerido para admissão ao seminário no qual me formei. Após completar o exame senti-me profundamente embaraçado 2 — — — — O Conhecimento das Escrituras prática de aprender a viver de maneira agradável a Deus. Um exame rápido da Literatura de Sabedoria no Antigo Testamento demonstra com clareza essa ênfase. Provérbios, por exemplo, afirma que a sabedoria começa com o “temor do SENHOR”. (Pv 1.7;9.10). Temor não significa um medo servil, mas uma atitu- de de reverência e fascínio necessários para alcançarmos pieda- de autêntica. O Antigo Testamento faz distinção entre sabedo- ria e conhecimento. Somos instados a adquirir conhecimento, mas a ênfase maior recai sobre a aquisição de sabedoria. Co- nhecimento é necessário se desejamos obter sabedoria, porém os termos não são idênticos. Pode-se possuir conhecimento sem ter sabedoria, entretanto não se pode alcançar sabedoria sem conhecimento. A pessoa sem conhecimento é ignorante. Sem sabedoria será considerada tola, insensata. Na linguagem bíbli- ca, insensatez é uma questão moral e passível de julgamento divino. Em seu sentido mais profundo, sabedoria significa ser sábio com respeito à salvação e, nesse sentido, é uma questão teológica. Paulo está afirmando que, por meio das Escrituras, podemos alcançar o tipo de sabedoria que está relacionada ao nosso propósito e destino último como seres humanos. Sabendo de quem o aprendeste. A quem estaria Paulo se referindo com esta expressão “de quem”? Seria à avó de Timó- teo? Ou ao próprio Paulo? Tais opções são duvidosas. O “de quem” refere-se à fonte definitiva e final da sabedoria adquirida por Timóteo, isto é, Deus. A expressão seguinte: “Toda Escri- tura é inspirada por Deus”, esclarece a afirmação de Paulo. Inspirada por Deus. Esta passagem tem se constituído no ponto central de grande número de obras teológicas que descre- vem e analisam teorias de inspiração bíblica. A palavra crucial usada no manuscrito grego é o termo theopneustos frequente- mente traduzido pela frase “inspirada por Deus”. O termo signi- fica, mais precisamente, “exalado por Deus”, referindo-se não tanto a algo que Deus haja inspirado (para dentro), mas, sim que tenha sido expirado (para fora) por ele. Em nossa língua, tradu- ziríamos melhor o termo grego usando a expressão “expiração”, Por que estudar a Bíblia? o 23 ao invés de “inspiração”, Neste caso perceberíamos o significa- do da passagem não tanto como uma teoria da inspiração — uma teoria sobre como Deus transmitiu sua mensagem através de autores humanos — mas como uma afirmação a respeito da ori- gem ou fonte das Escrituras. O que Paulo está dizendo a Timó- teo é que a Bíblia procede de Deus. Ele é o seu autor primordial e definitivo; ela vem de Deus e carrega em si o peso de tudo aquilo que Deus é. Por isso a determinação de Paulo em que Timóteo se lembrasse “de quem as recebeste (estas coisas)”. A Escritura é útil para o ensino. Uma das prioridades mais centrais mencionadas por Paulo é a preeminência do proveito que a Bíblia tem para nós, como ela nos beneficia. O primeiro e sem dúvida o mais importante é o ensino ou instrução. Podemos ler a Bíblia e nos sentirmos “inspirados”, ou levados às lágri- mas, ou outras profundas emoções. Mas nosso melhor proveito está em sermos instruídos. Não uma instrução sobre como cons- truir uma casa, ou como multiplicar e dividir, ou qual o emprego das equações diferenciais. Ao contrário, somos instruídos nos assuntos de Deus. Esta instrução é qualificada como “proveito- sa”, porque o próprio Deus a reveste de um valor incalculável. Ela carrega em si valor e significado. Incontáveis vezes ouvi cristãos objetando: “Por que preci- so estudar doutrina e teologia, quando Jesus é tudo o que preci- so conhecer?” Minha resposta imediata é: “Quem é Jesus” Assim que começamos a responder tal pergunta estamos envol- vidos com doutrina e teologia. Nenhum cristão pode evitar a teologia. Todo cristão é um teólogo. Talvez não um teólogo no sentido técnico e profissional da palavra, mas um teólogo. A questão para nós cristãos não é se seremos ou não teólogos, mas, se seremos bons ou maus teólogos. O bom teólogo é aque- le instruído por Deus. A Escritura é útil para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça. Nestes termos Paulo afirma o valor prático do estudo bíblico. Como criaturas decaídas nós pecamos, erra- mos e estamos inerentemente deformados no que diz respeito à 24 — — O Conhecimento das Escrituras retidão. Quando pecamos precisamos ser repreendidos. Quan- do erramos, necessitamos de correção. Quando nos achamos deformados, devemos ser educados. As Escrituras funcionam como nosso principal repreensor, nosso principal corretor e edu- cador. As livrarias do mundo estão cobertas de livros sobre métodos de treinamento visando a aquisição de excelência nos esportes, a perda de peso e a boa forma e elegância física; e o domínio de habilidades e conhecimento em todas as áreas. Bi- bliotecas apresentam pílhas de livros escritos para ensinar admi- nistração financeira e as nuanças de uma sábia política de inves- timentos. Podemos encontrar muitos livros para instruir-nos em como transformar nossas perdas em lucros e nossas dívidas em vantagens. Mas onde estão os livros para instruir-nos em reti- dão? A pergunta permanece válida: “Que valerá ao homem ga- nhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma” A fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeita- mente habilitado para toda boa obra. O cristão que não se en- volve diligentemente num estudo sério das Escrituras é simples- mente incompetente como discípulo de Cristo. Para ser um cris- tão adequado e competente nas coisas de Deus é necessário fa- zer mais do que fregiientar reuniões de “compartilhamento de experiências” ou “cultos de bênçãos”. Não podemos adquirir competência por osmose.* Um cristão biblicamente analfabeto é, não só inadequado, mas também mal equipado. Na realidade, é inadequado por não estar bem equipado. Lee Trevino pode ser capaz de realizar exibições incríveis de sua prodigiosa habi- lidade como jogador de golfe, batendo as bolas com uma garra- fa presa ao taco com fita adesiva. Mas ele não usa este tipo de equipamento para dar início a um campeonato oficial. * Em bioquímica, fluxo do solvente de uma solução pouco concentrada, em direç; outra mais concentrada, que se dá através de uma membrana semipermeável; biosmose (Houaiss). Daf passou-se a empregar a palavra para referir-se à transmissão de conhecimento pelo simples contato com outros. N. do E. Por que estudar a Bíblia? 27 pragmatismo. Em nenhuma outra esfera esse espírito é mais cla- ramente demonstrado do que na política e no sistema público de educação o qual foi delineado de acordo com os princípios e métodos de educação estabelecidos por John Dewey. De maneira simples, o pragmatismo pode ser definido como uma abordagem da realidade que define verdade como “aquilo que funciona”. O pragmático está interessado em resultados e os resultados determinam a verdade. O problema com este tipo de pensamento, se deixado sem a instrução de uma perspectiva eterna, é que os resultados tendem a ser julgados em termos de objetivos de curto alcance. Experimentei isso quando minha filha foi matriculada num Jardim da Infância pertencente ao sistema público de educação. Era uma escola muito progressista nos arredores de Boston. Após algumas semanas, recebemos uma notificação da escola, comu- nicando que o diretor teria uma reunião com os pais para expli- car o programa e as atividades empregadas no Jardim da Infân- cia. Durante a reunião o diretor explicitou cuidadosamente o planejamento diário. Disse ele, “Não se sintam alarmados se seu filho, chegando em casa, lhes disser que brincou com que- bra-cabeças ou massinha de modelar na escola. Posso lhes ga- rantir que tudo na rotina diária é feito com um propósito. Das 9h às 9h17m da manhã as crianças brincam com quebra-cabeças cuidadosamente desenhados por especialistas em ortopedia e destinados a desenvolver os músculos dos três últimos dedos da mão esquerda”. Ele continuou explicando como, cada minuto do dia da criança era planejado com cuidadosa precisão para garantir que tudo fosse feito com um propósito. Fiquei realmen- te impressionado. No final de sua apresentação o diretor abriu oportunidade para perguntas. Levantei minha mão e disse, “Estou profunda- mente impressionado com o cuidadoso planejamento que orien- tou este programa. Posso compreender que tudo é feito com um propósito em vista. Minha pergunta é a seguinte: Como vocês decidem quais propósitos adotar? Que propósito final vocês utili- 28 — mm - O Conhecimento das Escrituras zam para escolher os propósitos individuais? Qual é o propósito principal de seus propósitos? Em outras palavras, que tipo de crianças vocês estão tentando produzir?” O homem ficou pálido, depois enrubesceu e, tropeçando nas palavras respondeu, “Não sei, ninguém nunca me fez esta pergunta”. Apreciei a honestidade de sua resposta e a genuína humildade que ela demonstrou, mas, ao mesmo tempo, sua res- posta deixou-me apavorado. Como podemos ter propósitos sem um propósito? Aonde iremos para descobrir o teste final para nosso pragmatismo? Aqui está o ponto onde a revelação transcendental é da mais crítica importância para nossas vidas. Este é o lugar onde o conteúdo das Escrituras se mostra mais relevante para nossas práticas. Apenas Deus pode nos dar a ava- liação final da sabedoria e do valor de nossas práticas. A pessoa que despreza a teoria e se considera prática, não é sábia. Aquele que apenas se interessa por objetivos de curto prazo pode enfrentar um grave problema ao considerar a imen- sa duração da eternidade. Devemos acrescentar ainda que não existe prática sem uma teoria subjacente. Fazemos o que faze- mos porque temos uma teoria a respeito do valor de nossa ativi- dade. Nada demonstra com mais profundidade as nossas teorias do que a nossa atividade prática. Talvez nunca consideremos seriamente as nossas teorias nem as submetamos a uma rigorosa análise crítica, mas todos nós as temos. Como no caso do cristão que deseja Cristo sem teologia, a pessoa que procura a prática sem teoria acabará enredada com uma teoria má, o que resultará numa prática ruim. Porque as teorias encontradas na Bíblia procedem de Deus, a Bíblia é eminentemente prática. Nada poderia ser mais prático do que a Palavra de Deus, pois ela procede de uma teoria estabelecida a partir de uma perspectiva eterna. A fraqueza fatal do pragmatismo é superada pela revelação. O cristão sensual Muitas vezes senti-me tentado a escrever um livro cujo título seria: O Cristão Sensual. A Mulher Sensual, O Homem Sen- Por que estudar a Bíblia? 29 sual, O Casal Sensual, O Divorciado Sensual, assim por dian- te, a perder de vista; todos se tornaram campeões de venda. Por que não O Cristão Sensual? O que é um cristão sensual? Um dicionário define sensual como “relativo aos sentidos, ou objetos sensíveis; altamente sus- ceptível à influência pelos sentidos”. O cristão sensual seria aque- le que vive baseado nos seus sentidos e não em sua compreen- são da Palavra de Deus. Não se consegue motivá-lo para o ser- viço nem para a oração ou o estudo a não ser que ele se “sinta chamado”. A eficiência de sua vida cristã depende da intensida- de de seus sentimentos no instante presente. Quando num esta- do de euforia ele é um furacão de atividade espiritual, quando está deprimido é um incompetente em sua vivência religiosa. Está constantemente buscando novas e variadas experiências espirituais e as usa para avaliar a Palavra de Deus. Seus “senti- mentos íntimos” tornam-se o teste definitivo de verdade. O cristão sensual não necessita estudar a Escritura pois ele já sabe, através de seus sentimentos, qual seja a vontade de Deus. Ele não deseja conhecer a Deus, mas sim busca experimentá-lo. O cristão sensual equipara a fé singela da criança com ignorân- cia supondo que, quando a Bíblia nos chama a demonstrar esta confiança simples, está realmente advogando uma fé sem con- teúdo, sem entendimento. Ele não sabe que a Bíblia recomenda: “... na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede homens amadurecidos” (1Co 14.20). Não compreende a repetida ênfase de Paulo: “... não quero, irmãos que ignoreis...” (Rm 11.25). O cristão sensual segue seu caminho despreocupado e ale- gremente até encontrar-se com o sofrimento da vida, que não é assim tão alegre e, então, ele se curva. Habitualmente termina adotando um tipo de “teologia relacional” (a mais terrível praga do Cristianismo moderno), onde relacionamentos e experiências pessoais tomam a precedência sobre a Palavra de Deus. Se as Escrituras nos convocam a agir de forma que possa prejudicar um relacionamento pessoal, então as Escrituras devem ceder. A » . O Conhecimento das Escrituras não fosse eficiente para nós porque ela procede dos disparates divinos. Deus simplesmente não sabe o suficiente para dizernos o que devemos fazer se quisermos alcançar a felicidade. Talvez ele almeje nosso bem estar, mas absolutamente não possui a sabedoria necessária para instrui-nos de forma adequada. Ele teria prazer em ajudar-nos, mas as complexidades da vida e da situação humana o deixam completamente atônito. Talvez Deus seja infinitamente sábio e conhecedor do que é bom para nós. Talvez ele compreenda as complexidades da pessoa humana melhor do que os filósofos, moralistas, políti- cos, professores, pastores e psiquiatras, mas ele nos odeia. Deus conhece a verdade, mas leva-nos por caminhos tortuosos e, as- sim, ocupa sozinho a posição do único ser feliz em todo o cos- mo. Talvez sua lei seja a expressão do desejo de deliciar-se jubiloso com a nossa miséria. Sua malevolência para conosco o faz assumir o papel do Grande Enganador. Absurdo! Se esta fosse a verdade, a única conclusão possível seria a de que este Deus é o Diabo, e o Diabo é Deus e as Escrituras Sagradas nada mais são do que o manual de Satanás. Absurdo”? Impensável? Desejaria que fosse. Em literal- mente milhares de gabinetes pastorais pessoas estão sendo aconselhadas a agir contra as Escrituras porque o pastor quer vê-las felizes. “Sim, dona Maria, pode se divorciar de seu marido, apesar da Bíblia não aprovar isso, pois tenho certeza de que a senhora jamais irá encontrar a felicidade casada com alguém como esse homem”. Se há um segredo para a felicidade humana — e muito bem guardado — é aquele que se encontra expresso num catecismo do século 17: “O fim principal do homem é glorificar a Deus e alegrar-se nele para sempre”. O segredo da felicidade é encon- trado na obediência a Deus. Como poderemos ser felizes se não o obedecermos? Como seremos obedientes se não compreen- dermos o que há para obedecer? O resumo de tudo é que não encontraremos verdadeira felicidade enquanto permanecermos ignorantes à Palavra de Deus. Por que estudar a Bíblia? - 33 De fato, o conhecimento da Palavra não garante a nossa obediência, mas, pelo menos, estaremos cientes do que devería- mos fazer em nossa busca pela realização humana. A questão da fé não é tanto se cremos em Deus, mas se confiamos no Deus em quem afirmamos acreditar. Uma questão de dever Por que devemos estudar a Bíblia? Mencionamos brevemente o valor prático, a importância ética e o caminho para a felicidade. Examinamos alguns mitos apresentados para não se estudar a Bíblia. Verificamos alguns aspectos do espírito do pragmatismo e do clima antiintelectual de nossos dias. O dever de estudar as Escrituras apresenta muitas facetas e razões incontáveis. Eu poderia pleitear com você que estudasse sua Bíblia para sua edificação pessoal; poderia tentar a arte da persuasão para estimulá-lo na procura da felicidade. Poderia afirmar que o estu- do da Bíblia se constituiria na mais realizadora e compensadora experiência educacional de sua vida. Poderia citar numerosas ra- z0es pelas quais você se beneficiaria com um estudo sério da Pala- vra de Deus. Mas, em última instância, a razão principal por que devemos estudar a Bíblia é o fato de que esse é o nosso dever. Se a Bíblia fosse o livro mais enfadonho do mundo, monó- tono, desinteressante e, segundo as aparências, irrelevante, ain- da assim seria nosso dever estudá-lo. Se seu estilo literário fosse esquisito e confuso, o dever ainda permaneceria. Como seres humanos vivemos sob a obrigação, por mandato divino, de es- tudar diligentemente a Palavra de Deus. Ele é o nosso Sobera- no, essa é a sua Palavra e ele ordena que a estudemos. Um de- ver não é uma opção. Se você não se decidiu ainda a responder a esse dever, peça a Deus que o perdoe e resolva atendê-lo de hoje em diante. -2. Estudo Bíblico Pessoal e Interpretação Individual odemos assumir que muitos lares em nosso país possuem uma Bíblia. Ela continua sendo o livro mais vendido no mundo. Talvez a maioria destas Bíblias sirva apenas como decoração, ou como um local conveniente para guardar fotos ou secar flores. É apropriada também para ser exibida durante a visita de um pastor. Por termos fácil acesso a ela é fácil também esquecermos o terrível preço que foi pago para que tivéssemos hoje o privilégio de possuir uma Bíblia em nossa língua, a qual podemos ler por nós mesmos. Martinho Lutero e a interpretação individual Dois dos grandes legados da Reforma foram o princípio da in- terpretação particular (ou livre exame) e a tradução da Bíblia para o vernáculo. Os dois princípios seguem lado a lado e foram alcançados somente após grandes controvérsias e perseguições. Muitas pessoas pagaram com a vida sendo queimadas em praça pública (especialmente na Inglaterra) pela ousadia de traduzi- 38 O Conhecimento das Escrituras Talvez o termo crucial da declaração de Trento seja distorcendo. Trento afirma que ninguém tem o direito particular de distorcer as Escrituras. Sobre isto os reformadores concorda- vam de todo o coração. Interpretação particular nunca signifi- cou que indivíduos têm o direito de distorcer as Escrituras. Jun- to com o direito à interpretação vem a grave responsabilidade de uma interpretação acurada. O livre exame nos dá o direito de interpretar, mas não de distorcer. Quando contemplamos o período da Reforma e constata- mos a brutal resposta da Inquisição e as perseguições contra aqueles que traduziram a Bíblia para o vernáculo a fim de torná- la disponível para o leigo, ficamos horrorizados. Admiramo-nos de como os príncipes da Igreja Católica Romana puderam agir de forma tão corrupta, torturando as pessoas por lerem a Bíblia. Sentimo-nos chocados com tais relatos. O que, no entanto, é frequentemente ignorado em tais reflexões históricas, é o fato de que havia muitas pessoas bem-intencionadas envolvidas nes- sas perseguições. Roma estava convencida de que, se a Bíblia fosse colocada nas mãos de leigos não propriamente capacita- dos e se fosse permitido que tais pessoas interpretassem o Livro, distorções grotescas surgiriam, o que desviaria o rebanho con- duzindo-o, talvez, ao tormento eterno. Por isso, para impedir o rebanho de entrar num curso de absoluta destruição, a Igreja recorreu ao castigo corporal, chegando mesmo à execução. Lutero estava consciente dos perigos existentes na mudan- ça defendida pela Reforma, mas estava também convencido da clareza das Escrituras. Assim, embora os perigos de distorção fossem grandes, ele sentia que o benefício de expor as multi- dões às mensagens basicamente claras do Evangelho conduzi- ria muitos mais à salvação do que à ruína. Lutero estava dispos- to a assumir o risco de acionar a válvula que poderia abrir uma “comporta de iniqiiidade”. A interpretação particular abriu a Bíblia para o leigo, mas não dispensou o princípio de um ministério bem preparado. Voltando aos dias do Antigo e do Novo Testamentos, os Estudo bíblico pessoal e interpretação individual 39 Reformadores reconheceram que no ensino e na prática de am- bos os Testamentos o rabino, o escriba, e todo o ministério de ensino, ocupavam uma posição significativa e importante. Que os professores devem ser competentes em línguas originais, cos- tumes, História e análise literária, continua sendo uma caracte- rística importante da igreja cristã. A famosa doutrina do “sacer- dócio universal” dos crentes formulada por Lutero tem sido frequentemente mal entendida. Ela não implica em que não haja diferença entre clérigos e leigos. A doutrina mantém, simples- mente, que cada cristão individual tem um papel a desempenhar e uma tarefa a realizar para manter o ministério total da igreja. Num certo sentido somos chamados para ser “Cristo para nosso próximo”. Mas isto não significa que a igreja não possua mes- tres e supervisores. Muitas pessoas têm se desencantado com a igreja organi- zada de nossos dias. Alguns exageram na direção da anarquia eclesiástica. Como produto da revolução cultural dos anos 60, com o advento do “movimento de Jesus” e da igreja subterrá- nea, ouviu-se o grito da juventude: “Não preciso recorrer a nin- guém para ter um pastor. Não creio numa igreja organizada ou num governo estruturado para o corpo de Cristo”. Nas mãos de tais pessoas o princípio da interpretação particular poderia sig- nificar uma licença para o subjetivismo radical. Objetividade e subjetividade O grande perigo da interpretação particular é a clara e presente possibilidade do subjetivismo na interpretação bíblica. Esse pe- rigo é mais difundido do que podemos perceber à primeira vis- ta. Eu o vejo presente de forma sutil ao longo das discussões e debates teológicos. Recentemente participei de um painel ao lado de especia- listas em Bíblia. Estávamos discutindo os prós e contras de uma passagem do Novo Testamento cujo significado e aplicação es- tavam sendo argiiidos. Em seu pronunciamento de abertura um dos especialistas em Novo Testamento disse: “Penso que deve- 40 - O Conhecimento das Escrituras mos ser abertos e honestos em nossa abordagem do Novo Tes- tamento. Em última análise cada um de nós lê o que deseja ler, e está tudo bem”. Não pude acreditar que estava ouvindo aquilo. Fiquei tão estupefato que não refutei. Meu choque mesclou-se com um senso de futilidade sobre qualquer possibilidade de che- garmos a uma troca significativa de idéias. É raro ouvir um mes- tre colocar sua opinião tendenciosa de forma tão aberta em pú- blico. Todos nós podemos lutar com nossa tendência pecami- nosa de injetar em nossa leitura bíblica aquilo que desejamos en- contrar, mas espero que não cometamos este erro sempre. Creio que há meios disponíveis para avaliar e coibir tal tendência. Também na esfera popular prevalece essa fácil aceitação do subjetivismo na interpretação bíblica. Muitas vezes, após discutir o significado de uma passagem, as pessoas rebatem minhas afir- mações com um simples: “Bem, essa é a sua opinião”. O que significa tal observação? Em primeiro lugar, é perfeitamente ób- vio para todos os presentes que uma interpretação apresentada por mim é minha opinião. Fui eu quem acabou de expressá-la. Mas não creio que seja isso que as pessoas querem dizer. Uma segunda possibilidade é que a expressão indique uma refutação silenciosa invocando culpa associada ao erro. Deixan- do claro que a opinião oferecida é minha, a pessoa talvez sinta que apenas isto é suficiente para refutá-la, uma vez que todos conhecem a pressuposição, isto é: qualquer opinião expressa por R.C. Sproul é errada, pois ele nunca esteve nem estará certo. Por mais hostis que as pessoas sejam às minhas opiniões, não creio que esse seja o significado quando dizem: “Essa é a sua opinião”. Penso que a terceira alternativa é, provavelmente, o que as pessoas querem dizer: “Essa é a sua interpretação, e ela está certa para você. Eu não concordo e penso de modo diferente, mas minha interpretação é igualmente válida. Embora nossas interpretações sejam contrárias e contraditórias, ambas podem estar corretas. Aquilo que você aprova está certo para você, e o que eu aprovo está certo para mim.” Isto é subjetivismo. Estudo bíblico pessoal e interpretação individual 43 nenhum apoio ou corroboração objetiva. “Se você quer crer naquilo que o satisfaz, muito bem; eu vou crer no que eu quiser crer”. Tal afirmação parece indicar uma atitude humilde, mas é uma humildade apenas superficial. Pontos de vista particulares precisam ser avaliados à luz das afirmações e da evidência que vem de fora de nós, pois, ao nos aproximar da Bíblia, trazemos conosco um excesso de ba- gagem interna. Ninguém na face da terra tem uma compreen- são perfeitamente pura da Palavra de Deus. Todos nós temos algumas opiniões e mantemos algumas idéias que não são de Deus. Talvez se soubéssemos precisamente quais das nossas opiniões seriam contrárias a Deus estaríamos até dispostos a abandoná-las. Mas, escolher por nós mesmos quais são elas é muito difícil. Por isso, nossos pontos de vista precisam da cai- xa de ressonância e do esmeril vindos da pesquisa e da com- petência de outras pessoas. O papel do professor Nas igrejas reformadas do século 16 havia uma distinção entre dois tipos de presbíteros: presbíteros regentes e presbíteros do- centes. Presbíteros regentes eram chamados para dirigir e admi- nistrar os interesses da congregação. Presbíteros docentes ou pastores eram responsáveis, primordialmente, pelo ensino e a preparação dos santos para o ministério. Aúltima década tem representado um importante período de renovação da igreja em muitos lugares. Organizações paraeclesiásticas como Faith at Work [Fé Operante] têm contri- buído muito para restaurar a importância dos leigos na vida da igreja local. Conferências sobre renovação leiga têm sido reali- zadas com fregiência. A ênfase não recai mais tanto sobre grande pregadores, mas sobre ótimos programas estabelecidos por e para leigos. Não estamos mais na era dos grandes pregadores, e sim na era da grande congregação. Um dos mais significativos resultados do movimento de renovação leiga é o advento dos pequenos grupos de estudo 44 em O Conhecimento das Escrituras bíblico nos lares. Nesta atmosfera de afinidade e informalidade pessoas que, de outra forma, não se interessariam pelo estudo da Bíblia, têm feito grandes avanços no seu aprendizado das Escrituras. A dinâmica dos pequenos grupos estimula os leigos. Nesses encontros de estudo bíblico eles se ensinam uns aos ou- tros ou partilham suas próprias idéias. Tais grupos têm repre- sentado uma experiência muito bem sucedida para a renovação da igreja. E o serão ainda mais à medida que as pessoas adqui- ram melhor e maior competência em sua compreensão e inter- pretação da Bíblia. É formidável que as pessoas estejam abrin- do suas Bíblias e estudando-as juntos. Mas também pode ser algo extremamente perigoso. Partilhar conhecimento é edificante para a igreja, partilhar ignorância pode ser destrutivo e manifes- tar a síndrome do cego guiando outro cego. Embora pequenos grupos e estudos bíblicos nos lares pos- sam ser muito eficientes para promover a renovação da igreja e a transformação da sociedade, em algum ponto deste processo os membros destes grupos necessitam receber ensinamentos mi- nistrados por pessoas instruídas com este objetivo. Estou con- vencido de que hoje, como sempre o foi, a igreja precisa de pastores bem instruídos e competentes. A interpretação e o estu- do particulares necessitam ser equilibrados pela sabedoria cole- tiva dos mestres. Por favor, não me compreendam mal. Não estou pedindo à igreja que retorne à situação da pré-Reforma quando a Bíblia era mantida presa nas mãos do clero. Regozijo- me de que as pessoas estejam começando a estudar a Bíblia por si mesmas e que o sangue dos mártires protestantes não tenha sido derramado em vão. Estou afirmando, no entanto, que é sá- bio que os leigos envolvidos em estudos bíblicos o façam em conexão ou sob a autoridade de seus pastores e professores. Foi o próprio Cristo quem constituiu assim a sua igreja, concedendo a alguns o dom do ensino. Este dom e este ministério devem ser respeitados para que Cristo seja honrado por seu povo. É importante que tais professores possuam a formação ne- cessária. De fato, ocasionalmente vemos surgir um professor Estudo bíblico pessoal e interpretação individual 45 que, embora não tendo uma preparação adequada, demonstra uma excepcional percepção intuitiva da Palavra de Deus. Tais pessoas, no entanto, são extremamente raras. Com mais fregiên- cia enfrentamos o problema de pessoas assumindo o papel de professor embora simplesmente não estejam qualificadas para ensinar. Um bom professor deve ter sólido conhecimento e a capacidade necessária para desenlear passagens difíceis das Es- crituras. Neste caso a necessidade de ter o domínio da lingua- gem bíblica, de história e teologia é de essencial importância. Se examinarmos a história do povo judeu no Antigo Tes- tamento veremos que uma das ameaças mais severas e contínu- as em Israel era a ameaça do falso profeta e do falso mestre. Com maior fregiência os israelitas caíram diante do poder se- dutor de um mestre mentiroso do que pelas mãos dos filisteus e dos assírios. O Novo Testamento dá testemunho do mesmo problema na igreja cristã primitiva. O falso profeta é semelhante ao pastor mercenário, sempre mais preocupado com seu salário do que com o bem-estar das ovelhas. Ele não se incomoda de desenca- minhar as pessoas levando-as para o erro ou para o mal. Nem todos os falsos profetas ensinam erroneamente por perversida- de, muitos o fazem por ignorância. Devemos fugir tanto do maldoso quanto do ignorante. Do outro lado, uma das maiores bênçãos para Israel era a presença de profetas e mestres enviados por Deus, que ensina- vam o povo segundo a mente do Senhor. Ouça a solene advertência de Deus a Jeremias: Tenho ouvido o que dizem aqueles profetas, proclamando mentiras em meu nome, dizendo: Sonhei, sonhei. Até quando sucederá isso no coração dos profetas que proclamam mentiras, que proclamam só o engano do próprio coração? Os quais cuidam em fazer que o meu povo se esqueça do meu nome pelos seus sonhos que cada um conta ao seu companheiro, assim como seus pais se esqueceram do meu nome por causa de Baal. O profeta que tem sonho, conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo? Diz o 48 == (O Conhecimento das Escrituras ma Corte. Uma de suas tarefas mais importantes é interpretar a Constituição dos Estados Unidos. Sendo um documento escrito, a Constituição necessita de interpretação. No princípio, o proce- dimento para interpretar-se a Constituição seguia o chamado mé- todo gramático-histórico. Isto é, a Constituição era interpretada estudando-se as palavras do documento em si à luz do significado que tinham na época em que o documento foi formulado. A partir do trabalho de Oliver Wendell Holmes,* o método de interpretação da Constituição mudou radicalmente. A atual crise na lei e de confiança pública no mais alto tribunal da na- ção, está diretamente relacionada com o problema subjacente do método de interpretação. Quando a Corte interpreta a Cons- tituição à luz de atitudes modernas ela, na realidade, muda a Constituição por força de uma nova interpretação. O resultado líquido é que, de uma forma sutil, a Corte se torna uma agência legislativa, e não interpretativa. O mesmo tipo de crise tem ocorrido com a interpretação bíblica. Quando os estudiosos da Bíblia utilizam métodos de interpretação que implicam numa “atualização da Bíblia” atra- vés de uma nova interpretação, o significado original das Escri- turas fica obscurecido e a mensagem é apresentada de acordo com opiniões moldadas pelas tendências contemporâneas. A analogia da fé Quando os Reformadores se apartaram de Roma e proclama- ram sua convicção de que a Bíblia deveria ser a autoridade su- prema da igreja (Sola Scriptura), foram também muito cuidado- sos em sua preocupação em definir princípios básicos de inter- pretação. A primeira regra de hermenêutica foi denominada “ana- logia da fé”. Analogia da fé significa que as Escrituras interpre- * Oliver Wendell Holmes. Jr., notável jurista americano (1841-1935), brilhante e comunicativo, dotado de bom senso de humor. dirigiu a Suprema Conte dos Estados Unidos por trinta anos. Pedra fundamental de sua filosofia jurídica era sua opinião de que “a vida da lei não é a lógica, mas a experiência”. Daí, segundo ele, a Corte deveria observar os fatos de uma sociedade em transformação em vez de apegar-se a fórmulas e slogans gastos: a lei deveria se desenvolver com a sociedade, N. do E. Hermenêutica, a ciência da interpretação ee 49 tam as Escrituras: Sacra Scriptura sui interpres (As Sagradas Escrituras são seu próprio intérprete). Em termos simples, isto significa que nenhuma passagem das Escrituras pode ser inter- pretada de tal forma que o significado alcançado seja conflitante em relação ao ensino claramente exposto pela Bíblia em outras passagens. Por exemplo, se um versículo pode apresentar duas interpretações diferentes sendo que, uma delas é contrária ao ensino da Bíblia como um todo, enquanto a outra está em har- monia com este ensino, então esta última deve ser adotada e a anterior descartada. Este princípio baseia-se numa confiança prévia e básica na Bíblia como Palavra inspirada de Deus, sendo, portanto, con- sistente e coerente. Uma vez assumido o princípio de que Deus nunca se contradiria, é injurioso pensar que o Espírito Santo pudesse escolher uma interpretação que colocaria a Bíblia des- necessariamente em conflito consigo mesma. Em nossos dias tais escrúpulos têm sido largamente abandonados por aqueles que negam a inspiração da Escrituras. É comum encontrarmos intérpretes modernos que não apenas interpretam as Escrituras contra as próprias Escrituras, mas que forçam seu argumento nes- ta direção. Os esforços de teólogos ortodoxos para harmonizar passagens difíceis são ridicularizados e largamente ignorados. Mesmo não se considerando a inspiração, o método da ana- logia da fé é uma abordagem saudável para a interpretação de qualquer literatura. A simples norma de decência comum deve- ria proteger qualquer autor de acusações injustificadas de autocontradição. Se temos a opção de interpretar os comentári- os de alguém ou de forma coerente ou num sentido contraditó- rio, parece-me que, em caso de dúvida, o autor deve ser consi- «derado inocente. Tenho sido interrogado por pessoas a respeito de passa- gens em meus livros nos seguintes termos: “Como pode o se- nhor afirmar tal coisa no capítulo seis quando, no capítulo qua- tro sua posição é diferente?” Após minha explicação do que eu realmente quis dizer no capítulo seis, a pessoa compreende que 50 - O Conhecimento das E: turas os dois pensamentos na realidade não estão em conflito. A pers- pectiva no capítulo seis é ligeiramente diferente da empregada no capítulo quatro e, à primeira vista, parecem conflitantes, mas, usando a “filosofia da segunda olhada”, o problema se resolve. Todos nós já passamos por esse tipo de incompreensão e deve- ríamos ser mais sensíveis quanto às palavras dos outros como desejaríamos que eles o fossem a respeito das nossas. Sem dúvida, é possível que minhas palavras sejam contradi- tórias, portanto, esta abordagem de maior sensibilidade e a “filo- sofia de considerar inocente,” devem ser aplicados somente nos casos em que há dúvida. Quando está claro que houve contradi- ção em minhas palavras, então só posso receber críticas. Em qual- quer caso, quando não tentamos interpretar as palavras de forma consistente, aquilo que lemos se torna uma massa confusa. Quan- do tal atitude ocorre na interpretação bíblica, as Escrituras se tor- nam um camaleão mudando a cor de sua pele de acordo com a variação do ambiente daqueles que a estão interpretando. Torna-se, portanto, claro que nossa consideração sobre a natureza e origem da Bíblia terá um efeito significativo sobre como vamos interpretá-la. Se a Bíblia é a Palavra inspirada de Deus, então a analogia da fé não é uma opção, mas uma exigên- cia para sua interpretação. Interpretando a Bíblia literalmente “O senhor não acredita na Bíblia literalmente, não é” Esta é uma pergunta que me fazem com fregiiência. O modo como é formulada e o tom de voz utilizado para expressá-la mostram claramente que não se trata de uma pergunta, mas de uma acu- sação. O subentendido é: “Certamente o senhor não seria tão ingênuo ao ponto de interpretar a Bíblia literalmente nos dias de hoje, não é” Quando ouço tal pergunta sinto-me como se esti- vesse sendo depositado, sem a menor cerimônia, nos arquivos do Processo Scopes.“ * O original traz Scopes monkey trial. Refere-se ao julgamento do professor John Scopes, acusado em julho de 1925 de violar a lei estadual ensinando a teoria da evolução. O processo ganhou mais popularidade por meio de Inherit the Wind Hermenêutica, a ciência da interpretação e 53 historicidade do livro. Assim, o primeiro grupo rejeita a historicidade do livro de Jonas por razões literárias, e o segundo por razões filosóficas e teológicas. A análise literária não pode resolver objeções filosóficas quan- to à possibilidade ou não de Jonas ter sido engolido por um peixe. Tudo o que ela pode fazer é fornecer-nos uma base para decidir- mos se o autor estava realmente alegando que tal fato ocorreu. Se uma pessoa não crê na possibilidade de milagres, ela não tem nenhuma base para argumentar que o autor não poderia afirmar que houve um milagre (a não ser, sem dúvida, que fosse preciso um milagre para alegar que um milagre aconteceu!). Outro exemplo de problemas que surgem a partir de con- flitos literários pode ser encontrado no uso que a Bíblia faz de hipérboles. Hipérbole significa, etimologicamente, “ir além”? Um dicionário a define como “uma afirmação exagerada de for- ma fantasiosa e exorbitante para causar um efeito”. O uso da hipérbole é um fenômeno lingiístico comum. Por exemplo, os escritores do Novo Testamento afirmam: “... percorria Jesus to- das as cidades e povoados, ensinando...” (Mt 9.35). Estaria o evangelista tentando dizer que cada pequena vila foi visitada? Talvez, mas é duvidoso. Nós usamos esses recursos literários da mesma forma. Quando o time de futebol americano de Pittsburgh ganhou o supertorneio anual pela primeira vez, os fãs saíram em multidão para celebrar a vitória e recepcionar os jogadores. Alguns jorna- listas publicaram: “A cidade toda saiu às ruas para cumprimentá- los”. Teriam os jornalistas a intenção de dizer que todos os resi- dentes de Pittsburgh saíram de casa para recepcionar os jogado- res? Com certeza não. Suas palavras eram hiperbólicas. Conheço um estudioso altamente competente das Escritu- ras que rejeita a noção de inerrância da Bíblia porque Jesus se enganou quando disse que a semente de mostarda era a menor das sementes. Desde que sabemos que existem sementes meno- Do gr. huperbolê és Inperbole.és “hipérbole (figura de retórica)”; Houaiss. N. do E. 54 - O Conhecimento das Escrituras res, temos de admitir que Jesus e o Novo Testamento erraram quando fizeram tal afirmação. Mas acusar Jesus ou as Escrituras de erro quando se está claramente diante de uma hipérbole é deixar de envolver-se com a análise literária. A análise literária pode, também, desfazer algumas dificul- dades resultantes da personificação. Personificação é um artifí- cio poético pelo qual objetos inanimados ou animais recebem características humanas. O impessoal é descrito em termos pes- soais. A Bíblia descreve montes dançando e árvores batendo palmas. Tais figuras de linguagem são, geralmente, fáceis de reconhecer e não causam grandes dificuldades de interpretação. Em alguns casos, entretanto, a questão da personificação tem causado sérios debates. Por exemplo, o relato do Antigo Testa- mento sobre o incidente em que a mula de Balaão falou. Seria isto uma súbita intromissão de linguagem poética no meio de uma narrativa histórica? Será que o animal falante indicaria a presença de fábula no texto bíblico? Ou encontramos aqui a indicação de um milagre ou providência especial que teria sido preservada como parte do registro da ação divina na História? A maneira subjetiva de responder a tais questões é prejulgá-las a partir do ponto de vista que admite ou não mila- gres. Uma maneira objetiva de responder às questões sobre o que está registrado é aplicar regras literárias ao texto. Este epi- sódio particular acontece no Antigo Testamento, no meio de uma passagem que não apresenta traços de poesia ou fábula. O contexto imediato traz todas as marcas de narrativa históri- ca. A mula falante, entretanto, é um aspecto significativo do texto como um todo, por isto apresenta alguns problemas. Novamente, o propósito desta argumentação não é decidir se a mula falou ou não, mas ilustrar como a questão da personifica- ção pode levar a controvérsias. Se classificamos algo como personificação sendo que o texto apresenta todas as marcas de narrativa histórica, somos culpados de eisegese. Se a Bíblia alega que algo realmente acon- teceu, não temos o direito de “explicar o fato” classificando-o Hermenêutica, a ciência da interpretação — 5 como personificação. Seria uma violência literária e intelectual. Se não cremos que haja acontecido, digamos isto claramente e consideremos como uma invasão de superstição primitiva no registro do Antigo Testamento. Um problema de personificação que tem provocado uma controvérsia furiosa e fanática é a serpente falante do relato de Gênesis sobre a Queda. A Igreja Reformada Holandesa atra- vessou uma crise séria relacionada com a visão que um eminen- te professor de Teologia tinha sobre o assunto. Quando Karl Barth visitou a Holanda durante o auge dessa controvérsia, per- guntaram-lhe: “A serpente falou ou não” Barth respondeu: “O que foi que ela disse?” A hábil resposta de Barth tinha o propó- sito de afirmar: “Não importa se a serpente falou ou não. O que importa é o que foi dito e qual o impacto dessas palavras na descrição da Queda”. Sem dúvida Barth estava certo se o relato bíblico da Queda não é histórico, nem tem a pretensão de sê-lo. Suas palavras, no entanto, não satisfizeram os holandeses, pois a preocupação deles não era se houve ou não uma serpente que falou, mas sim quais seriam as razões pelas quais o professor negava a historicidade da narrativa. Os capítulos iniciais do Gênesis apresentam reais dificul- dades para aqueles que desejam apontar com precisão os gêne- ros literários utilizados. Parte do texto traz as marcas inequívo- cas da literatura histórica, outras partes, entretanto, exibem o tipo de imagem mental encontrada na literatura simbólica. Adão é colocado numa localidade geográfica real, e é retratado como um ser humano real. É muito significativo o fato de Adão ser apresentado no contexto de uma genealogia familiar, o que, para o israelita, seria altamente impróprio para um personagem mito- lógico. Em outras passagens das Escrituras Adão é colocado ao lado de personagens cuja historicidade não está, de modo al- gum, em dúvida. Todas essas seriam, no que diz respeito às normas da análise literária, razões importantes para considerar- se Adão como um personagem histórico (Há, sem dúvida, ra- 15es teológicas adicionais para tanto, mas neste trabalho estamos 58 - - O Conhecimento das Escrituras ristas bíblicos usando um método fantasioso e excêntrico de alegorização em sua interpretação das Escrituras. Por ocasião da Idade Média, este método quádruplo estava firmemente esta- belecido. A quadriga examinava cada texto em quatro sentidos: literal, moral, alegórico e anagógico.!º O sentido literal da Escritura era definido como o signifi- cado claro e evidente. O sentido moral representava a instrução dada aos homens sobre como deveriam comportar-se. O senti- do alegórico revelava o conteúdo da fé, e o anagógico expressa- va uma esperança futura. Assim, passagens que mencionavam Jerusalém, por exemplo, comportavam quatro sentidos diferen- tes. O sentido literal referia-se à capital da Judéia e ao santuário central da nação. O sentido moral de Jerusalém é a alma do homem (o “santuário central” da pessoa humana). Seu signifi- cado alegórico é a igreja (o centro da comunidade cristã). O significado anagógico é o céu (a esperança final e morada futu- ra do povo de Deus). Portanto, uma simples referência a Jerusa- lém poderia significar quatro coisas ao mesmo tempo. Se a Bí- blia mencionasse que alguém subiu para Jerusalém, isto poderia indicar que a pessoa foi a uma real cidade terrena, ou que sua alma “subiu” para um estado de excelência moral, ou que deve- mos ir à igreja ou que, algum dia iremos para o céu. É incrível constatar até que ponto pessoas inteligentes che- garam utilizando um método de interpretação bizarro como este. Mesmo Agostinho e Tomás de Aquino, que eram favoráveis a que se restringisse a Teologia ao sentido literal, muitas vezes deixaram-se levar numa especulação desvairada, via quadriga. Apenas um relance no tratamento alegórico de Agostinho sobre a parábola do Bom Samaritano será suficiente para se ter uma noção deste método em operação. Investigando além do signifi- cado claro e evidente das Escrituras, exegetas bíblicos surgiram com todo tipo de idéias estranhas. Lutero protestou contra este e outros abusos. “ Anagógico: em que há anagogia, passagem do sentido literal ao místico. N. do E Hermenêutica, a ciência da interpretação 59 Embora Lutero rejeitasse múltiplos significados para pas- sagens bíblicas, ele não restringia a aplicação das Escrituras a uma única possibilidade. Conquanto uma passagem bíblica te- nha um único significado, ela pode apresentar um grande nú- mero de aplicações às várias nuanças de nossas vidas. Conheço um professor de seminário que, no primeiro dia de aula, dava aos estudantes a tarefa de ler um versículo do Novo Testamento e escrever cinquenta lições aprendidas do estudo daquele versículo. Os estudantes trabalhavam até tarde da noite compa- rando anotações febrilmente para cumprir a exigência do pro- fessor. Voltando à aula na manhã seguinte o professor reconhe- cia o trabalho dos alunos e lhes prescrevia outras cingiienta li- ções sobre o mesmo texto para o dia seguinte. O objetivo, sem dúvida, era inculcar na mente dos alunos a profundidade e ri- queza de verdades que podem ser encontradas numa única pas- sagem das Escrituras. O professor estava demonstrando que, embora as Escrituras tenham um significado único, sua aplica- ção pode ser rica e variada. Ambos, a analogia da fé e o princípio de pesquisa do sen- tido literal (Sensus literalis), são salvaguardas contra especula- ções descontroladas e interpretações subjetivistas. Como foi definido, o sentido literal não tem o propósito de indicar que toda a Bíblia deva ser forçada, de maneira rígida e grosseira, a conformar-se a um padrão de narrativa histórica. De fato, o sen- tido literal é precisamente uma salvaguarda contra tal atitude, assim como protege a Bíblia da tendência contrária, de redefini- la impondo significados figurados a passagens que não têm este propósito. Podemos distorcer as Escrituras em qualquer das duas direções. Um método pode ser mais sofisticado do que o outro, mas não menos enganoso. O método gramático-histórico Intimamente relacionado com a analogia da fé e o sentido literal das Escrituras, está o método de interpretação chamado sramático-histórico. Como o nome sugere, este método focali- 600 === O Conhecimento das Escrituras za sua atenção não apenas nas formas literárias, mas também nas construções gramaticais e nos vários contextos históricos dentro dos quais a Bíblia foi escrita. Documentos escritos che- gam a nós dentro de algum tipo de estrutura gramatical. A poe- sia tem certas regras de estrutura, assim como cartas comerciais também as possuem. Para estudar as Escrituras é importante sa- ber a diferença entre um objeto direto e um predicado nominal ou um predicativo. Não apenas é importante conhecer a gramá- tica da língua nacional, como é útil saber algumas peculiarida- des da gramática grega e hebraica. Por exemplo, se a população tivesse um conhecimento mais amplo da gramática grega, os Testemunhas de Jeová teriam muito maior dificuldade para pro- pagar sua interpretação do primeiro capítulo do Evangelho de João, segundo a qual esta seita nega a divindade de Cristo. As estruturas gramaticais determinam se as palavras de- vem ser interpretadas como perguntas (interrogativas), ordens (imperativas), ou afirmações (indicativas). Por exemplo, quan- do Jesus diz: “Sereis minhas testemunhas” (At 1.8), a frase indi- ca uma predição de Jesus a respeito de uma atuação futura, ou o pronunciamento de uma ordem soberana? A forma em portu- guês não é clara. Entretanto, a estrutura grega das palavras dei- xa perfeitamente claro que Jesus não está fazendo predições fu- turas, mas emitindo uma ordem. Outras ambigiidades de linguagem podem ser elucidadas adquirindo-se um conhecimento funcional de gramática. Por exemplo, quando Paulo, no início de sua carta aos Romanos, afirma ser um apóstolo chamado para comunicar o “evangelho de Deus”, o que significa este de? Refere-se ao conteúdo do evangelho ou à sua fonte? Este de significa “sobre” ou é um possessivo? A pesquisa gramatical determinará se Paulo está dizendo que ele vai comunicar o evangelho sobre Deus ou se vai pregar um evangelho que vem de Deus e pertence a Deus. Há uma grande diferença entre as duas possibilidades, que ape- nas poderá ser resolvida pela análise gramatical. Neste caso a Hermenêutica, a ciência da interpretação em 63 preciso quanto possível na determinação do lugar e da data em que um livro foi escrito. Tais esforços de datar e atribuir autoria têm representado um importante fator de controvérsia teológica, em razão dos métodos empregados. Quando as questões de data são abordadas de uma pers- pectiva estritamente naturalista, livros que alegam incluir pro- fecia de predição são colocados numa data contemporânea ou posterior aos eventos que estão preditos. Aqui vemos um cri- tério extraliterário e histórico sendo impropriamente imposto sobre o livro. Autoria e data estão intimamente ligados. Se sabemos quem escreveu determinado livro e sabemos durante qual período da História aquela pessoa viveu, então, logicamente, sabemos em que ocasião o livro foi escrito. Esta é a razão por que os estudi- osos discutem tanto sobre quem escreveu Isaías ou 2 Timóteo. Se o livro de Isaías foi escrito pelo profeta Isaías, estamos diante de uma impressionante peça de profecia de predição que exigi- ria um alto conceito de inspiração. Se Isaías não escreveu todo o livro que traz seu nome, um conceito inferior das Escrituras se- ria justificado. Chega a ser quase divertido verificar como as cartas de Paulo têm sido tratadas pela alta crítica nos tempos modernos. O pobre Paulo teve quase todas as suas epístolas alternadamente retiradas dele e devolvidas novamente. Um dos métodos menos científicos usados para criticar a autoria é chamado de a inci- dência de hapax legomena. A expressão hapax legomena refe- re-se ao aparecimento de palavras em determinado livro que não são usadas em nenhum outro escrito do autor. Por exemplo, se encontramos em Efésios trinta e seis palavras que não aparecem em nenhum outro escrito de Paulo, podemos concluir que Paulo não escreveu, ou não poderia ter escrito a carta aos Efésios. A tolice de colocar muita ênfase sobre a hapax legomena tornou-se clara para mim quando precisei aprender o holandês rapidamente para prosseguir meu trabalho de pós-graduação na Holanda. Estudei holandês pelo “método indutivo”. Eu deveria 640 O Conhecimento das Escrituras ler vários volumes de Teologia escritos por G. C. Berkouwer. Iniciei meu estudo lendo o volume sobre A Pessoa de Cristo em holandês. Começando na primeira página, procurei a primeira palavra no dicionário. Escrevi a palavra em holandês de um dos lados de uma ficha e a tradução em inglês do outro lado, dando início, assim, à minha tarefa de aprender o vocabulário de Berkouwer. Depois de prosseguir ao longo de todo o livro so- bre A Pessoa de Cristo, eu tinha mais de seis mil palavras ficha- das. O volume seguinte a ser estudado era A Obra de Cristo, pelo mesmo autor. Encontrei mais de três mil palavras neste li- vro que não apareciam no primeiro. Seria isto suficiente evidên- cia de que A Obra de Cristo não fora escrita por Berkouwer? É interessante notar que o teólogo holandês escreveu A Obra de Cristo apenas um ano depois de haver escrito A Pessoa de Cris- to. Ele estava trabalhando com o mesmo tema geral, isto é, Cristologia, e escrevendo basicamente para o mesmo público, ainda assim havia milhares de palavras no segundo volume que não foram encontradas no primeiro livro. Observe-se também que o volume do material escrito por Berkouwer no primeiro livro é muito maior do que a quantidade total dos escritos de Paulo que sobreviveram. As cartas de Paulo eram muito mais breves, foram escritas visando públicos muito diferentes, tratavam de uma grande diversidade de assuntos e ques- tões, e levaram um longo período de tempo para serem escritas. Ainda assim, há aqueles que ficam alvoroçados quando desco- brem um punhado de palavras numa dada epístola que não são encontradas em nenhum outro escrito. A não ser que Paulo tives- se o vocabulário de um garoto de 6 anos de idade e nenhum talen- to literário, tais especulações absolutamente descontroladas não deveriam merecer nenhuma atenção de nossa parte. Recapitulando: uma interpretação correta e íntegra exige uma análise cuidadosa de gramática e do contexto histórico de um escrito. Este trabalho deve ser feito. A alta crítica tem contri- buído muito para o avanço de nosso conhecimento e compreen- são da formação linguística, gramatical e histórica da Bíblia. Às Hermenêutica, a ciência da interpretação ————— 65 vezes as pressuposições naturalistas usadas por muitos destes exegetas empanam grande parte de seu trabalho, mas a análise é necessária e somente por meio desse tipo de análise podemos tero controle e a verificação necessárias para restringir os estu- diosos que se excedem. Erros gramaticais Antes de passarmos para os princípios práticos e básicos de in- terpretação, permitam-me mencionar mais um problema relaci- onado com gramática. Uma análise cuidadosa das estruturas gra- maticais utilizadas no Novo Testamento tem provocado um mal estar razoavelmente disseminado no tocante à inspiração bíbli- ca. Quando lemos o livro do Apocalipse encontramos um estilo de redação inculto e rude na sua estrutura gramatical. Percebe- mos numerosos “erros” de gramática. Isto tem levado alguns a atacar a inspiração assim como a noção de inerrância das Escri- turas. Porém, ambos os princípios, da inspiração e da inerrância, nos termos em que foram estabelecidos, permitem erros de gra- mática. A Bíblia não foi escrita em “grego do Espírito Santo”. Inspiração nunca quis dizer, para a ortodoxia protestante, que o Espírito “ditou” as palavras e o “estilo” dos autores humanos. Nem tão pouco são eles considerados como máquinas ou autô- matos completamente passivos diante da operação do Espírito Santo. Inerrância também não significa a abolição de erros gra- maticais. O termo inerrância é usado para indicar a “absoluta veracidade” das Escrituras. Quando Lutero diz que as Escritu- ras nunca erram, suas palavras significam que a Bíblia nunca erra com respeito à verdade que ela proclama. Podemos ver isto no sistema judicial de nosso país, no que tange ao crime de per- júrio. Se um homem inocente for argiiido sobre sua culpa diante do juiz e responder: “Noís num apagô ninguém hora ninhuma”, cle não poderá ser acusado de perjúrio por ter usado uma lin- guagem ruim para declarar sua inocência. Os três princípios básicos de interpretação são auxílios para nosso enriquecimento pessoal. A analogia da fé mantém a Bíblia toda em considera- 680 O Conhecimento das Escrituras Mas, se a Bíblia deve ser interpretada como qualquer outro livro, e a oração? Não deveríamos buscar a assistência do Espí- rito Santo para interpretar o seu livro? Não temos a promessa da iluminação divina para a leitura deste livro de uma forma que o torna diferente de qualquer outra leitura? Quando levantamos perguntas sobre oração e iluminação divina entramos em áreas nas quais a Bíblia é, de fato, diferente de outros livros. Para o benefício espiritual da aplicação das Es- crituras às nossas vidas, a oração é indispensável. Para iluminar o significado espiritual de uma passagem a direção do Espírito Santo é absolutamente necessária. Mas, para discernir a diferen- ça entre uma narrativa histórica e uma metáfora, a oração não é, em si mesma, um auxílio muito expressivo, a não ser que ore- mos suplicando a Deus que nos conceda mentes esclarecidas e corações puros para sobrepujar nossos preconceitos. A santificação de nossos corações é vital a fim de que nossas men- tes estejam livres para ouvir o que nos diz a Palavra de Deus. Deveríamos orar também pedindo a Deus que nos auxilie a su- perar nossa predisposição à indolência e nos transformar em estudantes diligentes de sua Palavra. Visões místicas não são, em geral, muito úteis no trabalho básico de exegese. Pior ainda é o método espiritual chamado “mergulho da sorte.” A expressão refere-se ao método de estudo bíblico pelo qual a pessoa ora pedindo a orientação de Deus e segura sua Bíblia permitindo que ela se abra ao acaso em qualquer página. Então, com os olhos fechados, a pessoa “mergulha” seu dedo na página e recebe a resposta de Deus por meio do versículo que seu dedo aponta. Lembro-me de uma jovem cristã que, du- rante seu último ano da faculdade, procurou-me em estado de êxtase. Ela estava experimentando as dores do “pânico de final do curso”, pois a formatura se aproximava e não havia nenhu- ma promessa de casamento em vista. A jovem vinha orando diligentemente por um marido e, finalmente, recorreu ao “mer- gulho da sorte” ansiando pela resposta de Deus. Seu dedo pa- rou em Zacarias 9.9: Regras práticas para a interpretação bíblica — 69 Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta. Com esta resposta direta de Deus a jovem estava confiante de que a cerimônia de casamento era uma certeza e seu príncipe encantado estava a caminho. Talvez ele não chegasse num belo cavalo branco, mas um jumentinho já estaria de bom tamanho. Esse não é um método íntegro e saudável de usar-se a Bí- blia. Não creio que nem Zacarias nem o Espírito Santo tivessem esse tipo de mensagem em mente quando as palavras foram registradas. Sinto-me constrangido em dizer, no entanto, que cerca de uma semana mais tarde nossa jovem começou a namo- rar um rapaz com quem se casou dentro de alguns meses. Creio que o desenrolar dos fatos teve mais influência da sua nova con- fiança em namorar do que da providência de Deus confirmando uma promessa divina. Regra 2 - Leia a Bíblia existencialmente Menciono esta regra temendo e tremendo. Ela pode ser distorcida de forma grosseira e tornar-se mais um problema do que um auxílio. Antes de expor o que entendo por ler a Bíblia existenci- almente, permitam-me explicar o que não quero dizer: Não quero dizer que devemos utilizar o moderno método “existencial” de interpretação das Escrituras, pelo qual as pala- vras são retiradas de seu contexto histórico e interpretadas num sentido subjetivo. Rudolf Bultmann, por exemplo, advoga um tipo de hermenêutica existencial por meio da qual ele busca o que chama de revelação “precisa”. Segundo esta visão, a reve- lação tem lugar não no plano histórico, mas sim no momento da minha própria decisão pessoal. Deus fala a mim no hic et nunc — aqui e agora. Segundo essa abordagem aquilo que de fato aconte- ceu na História não é de importância primordial. O que interessa é uma “teologia da intemporalidade”. Frequentemente ouvimos % o — O Conhecimento das Escrituras teólogos desta escola afirmando que nem mesmo a encarnação histórica de Jesus é de vital importância. O importante é a men- sagem para nós hoje. Jesus pode “significar” não uma pessoa histórica, mas um símbolo de “liberação”. O problema com este tipo de abordagem é que, na realida- de, é de absoluta importância sabermos se a vida, morte e res- surreição de Jesus tiveram lugar na História ou não. Como Pau- lo indica em 1 Coríntios 15, se Cristo não ressuscitou “é vã a nossa fé”. Sem uma ressurreição histórica somos deixados com um Senhor morto e um evangelho sem nenhum poder. As boas novas terminariam com morte e não com vida. Portanto, com essa regra, não estou de forma alguma endossando o moderno método relativista, subjetivista e anti-histórico adotado pelos existencialistas. Estou empregando o termo existencial num sen- tido diferente. Quando uso a expressão existencialmente, quero afirmar que, ao lermos a Bíblia, devemos nos sentir apaixonada e pes- soalmente envolvidos com a leitura. Proponho esta atitude não apenas para o propósito de aplicação pessoal, mas também para compreensão do texto. O que estou sugerindo é o tipo de empatia pela qual tentamos nos colocar na pele dos personagens sobre quem estamos lendo. Muito do material bíblico é apresentado de forma extrema- mente reduzida e breve. Considerem a seguinte narrativa: Nadabe e Abiú, filhos de Arão, tomaram cada um o seu incensário, e puseram neles fogo, e sobre este, incenso, e trouxeram fogo estra- nho perante a face do Senhor, o que lhes não ordenara. Então, saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor. E falou Moisés a Arão: Isto é o que o Senhor disse: Mostra- rei a minha santidade naqueles que se cheguem a mim e serei glori- ficado diante de todo o povo. Porém, Arão se calou (Lv 10.1-3). O que houve aqui? Em três pequenos versículos o drama do pecado e subseguente execução dos filhos de Arão é narrado sucintamente. Pouco se diz sobre a reação de Arão. Tudo o que lemos é que Moisés interpretou as razões do julgamento de Deus Regras práticas para a interpretação bíblica ——— —— 3 chauvinista, um misógino! e um anti-feminista. Alguns demons- tram tal hostilidade contra o apóstolo neste assunto que o vene- no pinga de suas canetas e não suportam ouvir uma palavra do que ele diz. Usando este método existencial da empatia pode- mos chegar a uma compreensão melhor de Paulo — o homem — e, melhor ainda, daquilo que ele realmente escreveu. Adela Rogers St. John escreve sobre um personagem fictí- cio que desejava ler as epístolas do Novo Testamento pela pri- meira vez. Para ter uma impressão inédita da leitura, ele pediu à sua secretária que as datilografasse e enviasse para sua casa pelo correio. Ele então leria as cartas como se tivessem sido escritas para ele. Isto é o método empático em ação. Regra 3- As narrativas históricas devem ser interpretadas pelas passagens didáticas Já examinamos as características básicas das formas narrativas históricas. Para melhor compreendermos essa regra devemos definir a forma didática. O termo didático vem da palavra grega que significa ensinar ou instruir. Literatura didática é aquela que ensina ou explica. Muito dos escritos de Paulo apresentam um caráter didático. O relacionamento entre os evangelhos e as epís- tolas tem sido definido, em termos simples, pela apresentação dos evangelhos como os escritos que registram o que Jesus fez, e as epístolas como as que interpretam o significado de suas ações. Tal descrição traz uma simplificação excessiva, pois os evangelhos muitas vezes ensinam e interpretam à medida em que narram. Mas é verdade que a ênfase nos evangelhos é o registro de eventos ao passo que as epístolas estão mais preocu- padas com o interpretar o significado dos eventos em termos de doutrina, exortação e aplicação. Desde que as epístolas são principalmente interpretativas e estão colocadas após os evangelhos na organização do Novo Testamento, os Reformadores mantiveram o princípio de que as epístolas deveriam interpretar os evangelhos, e não o contrário. ou aversão às mulheres. N. do 74 — — — — O Conhecimento das Escrituras Esta regra não é absoluta, mas é um princípio geral muito útil. Tal ordem de interpretação é intrigante para muitas pessoas uma vez que os evangelhos registram não apenas os atos de Jesus mas também seus ensinos. Quereria isto dizer que às palavras e ensinos de Jesus se atribui menor autoridade do que aos apósto- los? Certamente não é esta a intenção do princípio. Nem as epís- tolas nem os evangelhos receberam dos reformadores a atribui- ção de maior autoridade de um sobre o outro. Ao contrário, ambos têm a mesma autoridade embora possa haver uma dife- rença na ordem de interpretação. Com o desgaste da confiança na autoridade bíblica que constatamos em nossos dias, tem se tornado elegante colocar a autoridade de Jesus em contraste com a autoridade das epísto- las, especialmente as epístolas de Paulo. As pessoas parecem não compreender que não estão colocando Jesus contra Paulo, mas sim um apóstolo como Mateus ou João, contra outro após- tolo. Devemos nos lembrar que Jesus não escreveu nenhuma palavra do Novo Testamento e dependemos inteiramente do tes- temunho apostólico para conhecer aquilo que Jesus fez e disse. Há não muito tempo encontrei-me com um grande amigo dos tempos da faculdade. Não nos víamos há quase vinte anos e conversamos muito tempo para nos atualizar a respeito da vida um do outro. No decorrer da conversa ele me contou como sua opinião havia mudado a respeito de muitos assuntos. Meu ami- go mencionou especialmente como suas opiniões sobre a natu- reza e a autoridade da Bíblia haviam se modificado. Disse-me ele que não mais acreditava que a Bíblia fosse inspirada e que se ressentia de alguns de seus ensinos, especialmente alguns dos ensinos de Paulo. Perguntei-lhe no que ele ainda cria, que não havia mudado. Sua resposta foi, “Ainda creio que Jesus é o meu Senhor e o meu Salvador”. “Como Jesus exerce o senhorio sobre sua vida?”, pergun- tei-lhe com cuidado. Ele não compreendeu o sentido de minha pergunta até que eu a reformulei. Indaguei como Jesus trans- Regras práticas para a interpretação bíblica — 75 mitiria qualquer informação que fizesse parte do conteúdo de seu ensino, e lembrei a ele: “Disse Jesus: Se me amais, guardareis os meus mandamentos. Vejo que você ainda o ama e deseja obedecê-lo, mas, onde você encontra os seus mandamentos? Se Paulo não transmite acuradamente a verdade de Cristo e os ou- tros discípulos estão igualmente enganados, como você desco- bre a vontade de seu Senhor” Ele hesitou por um momento e então replicou, “Através das decisões da igreja quando reunida em concílio”. Não lhe perguntei qual igreja ou qual concílio, uma vez que tantos se ressentem de tal pergunta. Apenas sugeri que tal- vez fosse hora de fazermos uma nova visita à Dieta de Worms.” Muitos protestantes esqueceram-se da razão por que protesta- ram e fizeram a volta completa do círculo até ao ponto de nova- mente elevarem as decisões atuais da igreja acima da autoridade dos apóstolos. Quando isto acontece, temos um Cristianismo de cabeça para baixo. Se os escritores do evangelhos merecem a nossa confiança, talvez possamos confiar em sua exatidão e fi- delidade quando registraram as palavras de Jesus referindo-se aos apóstolos e profetas como fundamento da igreja. No que diz respeito ao meu amigo, aquele fundamento foi destruído e um novo foi instituído em seu lugar, isto é, as opiniões contemporã- neas das autoridades eclesiásticas. Se Paulo, Pedro e os outros autores do Novo Testamento receberam sua autoridade apostó- lica do próprio Cristo, como podemos criticá-los no seu ensino e ainda alegar que seguimos a Cristo? Foi essa exatamente a questão levantada por Jesus contra os fariseus. Eles afirmavam honrar a Deus enquanto rejeitavam aquele a quem Deus enviara c a respeito do qual dava testemunho. Alegavam ser filhos de Abraão e lastimavam aquele que era a razão da exultação de Dieta de Worms: encontro a que Lutero compareceu após sua excomunhão por Roma. Ali o Imperador Carlos V exigiu que Lutero se retratasse de suas posições. O reformador negou-se a fazê-lo, declarando que mesmo os concílios podem errar e que só se retrataria se convencido de seu erro mediante o ensino da Palavra de Deus. N. do E. 78 — ——— O Conhecimento das Escrituras registro das atividades de Davi ou de Paulo, aprendemos muito, uma vez que são as atividades de homens que alcançaram alto grau de santificação, mas, deveríamos imitar o adultério de Davi, ou a desonestidade de Jacó? Deus nos livre. À parte de extrair traços de caráter e normas éticas das narrativas, há também o problema de se extrair doutrina. Por exemplo, na narrativa do sacrifício de Isaque no Monte Moriá, Abraão foi barrado no último momento por um anjo de Deus que lhe disse, “Abraão, Abraão, não estendas a mão sobre o rapaz e nada lhe faças; pois agora sei que temes a Deus, por- quanto não me negaste o filho, o teu único filho” (Gn 22.11,12). Observe as palavras “agora eu sei”. Será que Deus não sabia com antecedência qual seria a atitude de Abraão? Teria ele ficado observando do céu, esperando ansioso o resultado da prova de Abraão? Será que Deus caminhou para lá e para cá nas salas celestiais pedindo boletins de informação aos anjos a respeito do desenrolar do drama”? Sem dúvida, tudo isto é ab- surdo. As porções didáticas das Escrituras impedem tais inferências. Entretanto, se estabelecêssemos nossa doutrina de Deus unicamente sobre narrativas tais como esta, teríamos de concluir que nosso Deus “está sempre aprendendo e nunca chega ao conhecimento da verdade”. Formular doutrinas unicamente a partir de narrativas é um negócio perigoso. Infelizmente devo dizer que parece haver uma forte tendência neste sentido dentro da teologia evangéli- ca popular de nossos dias. Devemos ser cuidadosos e resistir a tal tendência. O Problema da Linguagem Fenomenológica na Narrati- va Histórica. A Bíblia é escrita em linguagem humana. É o úni- co tipo de linguagem que podemos entender, pois somos huma- nos. As limitações da linguagem humana estão presentes ao longo de todo o texto bíblico. De fato, muito tem sido escrito sobre isto nos últimos anos. O ceticismo tem, algumas vezes, chegado ao ponto de declarar que toda linguagem humana é inadequada para expressar a verdade de Deus. Tal ceticismo é injustificado Regras práticas para a interpretação bíblica em 79 na melhor das hipóteses, e cínico na pior. A linguagem humana pode não ser perfeita, mas é adequada. Entretanto, estas limitações tornam-se mais aparentes quan- do lidamos com linguagem fenomenológica, especialmente em narrativas históricas. Linguagem fenomenológica é aquela que descreve os fatos como eles se mostram a olho nu. Quando os escritores bíblicos descrevem o mundo ao seu redor, eles o fazem em termos das aparências externas, e não com vistas a uma precisão científica ou tecnológica. Quantas controvérsias explodiram a respeito da Bíblia en- sinar ou não que a terra, e não o sol, era o centro do sistema solar? Lembram-se de Galileu, que foi e«comungado por ensi- nar e defender o heliocentrismo (o sol como centro do sistema solar) contra o geocentrismo (a terra como centro do sistema solar), posição assumida e aprovada pela Igreja de seu tempo? A questão provocou uma grave crise envolvendo a credibilidade das Escrituras. Entretanto, em nenhum lugar encontramos uma porção didática das Escrituras ensinando que a terra é o centro do sistema solar. De fato, nas narrativas, o sol é descrito como movendo-se no seu curso pelo céu. Era esta a aparência dos fatos para os povos antigos, e é assim para nós ainda hoje. De certa forma divirto-me ao ouvir a mistura de jargão téc- nico e linguagem fenomenológica usada em nosso moderno mundo científico. Observem as reportagens diárias sobre previ- são do tempo. Hoje em dia não temos mais uma simples previ- são do tempo, mas um levantamento meteorológico. Ouvindo tais levantamentos, fico espantado com os mapas e gráficos e com a nomenclatura técnica usados pelo homem do tempo. Ouço as informações sobre centros de alta pressão, perturbações aero- náuticas e vórtices. Sou informado sobre a velocidade do vento e sobre a pressão barométrica. A previsão para o dia seguinte é apresentada em termos de quocientes de probabilidade de preci- pitação. Então, no final do levantamento o repórter diz: “O nas- cer do sol amanhã ocorrerá às 6h e 45m”. Fico pasmado! Seria o caso de telefonar para a direção da TV protestando contra esta escandalosa tentativa de recuperar o geocentrismo? 80 — e O Conhecimento das Escrituras Devo protestar contra a fraude e o erro da reportagem por- que o homem do tempo falou em nascer do sol? Como expli- car? Quando ainda usamos expressões como pôr-do-sol e nas- cer do sol, estamos descrevendo os fatos de acordo com as apa- rências e ninguém nos acusa de mentirosos. Você pode imagi- nar ler as porções narrativas de 2 Crônicas descrevendo o mun- do exterior em termos de pressão barométrica e quocientes de probabilidade de precipitação? Se lemos as narrativas da Bíblia como se fossem textos científicos estamos em sérios apuros. Isto não quer dizer que não haja porções didáticas na Bí- blia que abordem seriamente questões de ciência. Sem dúvida háe, nestas, muitas vezes, encontramos conflitos reais em ques- tões de Psicologia e em teorias biológicas sobre a natureza e origem do homem. Mas muitos outros conflitos nunca seriam levantados se reconhecêssemos o caráter da linguagem fenomenológica usado nas narrativas. Regra 4- O Implícito Deve Ser Interpretado pelo Explícito Quando trabalhamos com linguagem fazemos distinção entre aquilo que é implícito e o que é explícito. Muitas vezes a dife- rença é uma questão de grau e a distinção pode estar obscureci- da. Mas, normalmente, conseguimos determinar as diferenças entre o que é de fato dito, e aquilo que não é dito, embora esteja implícito. Estou convencido de que, se esta única regra fosse aplicada de maneira coerente pelas comunidades cristãs, a gran- de maioria das diferenças doutrinárias que nos dividem seria resolvida. É neste ponto de confluência entre o implícito e o explícito que facilmente nos tornamos descuidados. Tenho lido numerosas referências ao estado dos seres angélicos como sendo assexuados. Onde a Bíblia diz que os anjos são assexuados? A passagem normalmente usada para sustentar tal afirmação é Marcos 12.25. Aqui Jesus diz que no céu as pessoas não se casam nem se dão em casamento, mas serão todas como os anjos. A afirmação indica que os anjos não se casam, mas, será que infere também que os anjos são Regras práticas para a interpretação bíblica — o 83 nele crê tenha a vida eterna”, são citadas no debate. Se a Bíblia diz: “todo o que crê”, isto não implicaria que qualquer pessoa pode crer e responder a Cristo por si mesmo? A expressão “todo aquele” não implica numa capacidade moral universal? Tais passagens podem sugerir a implicação de uma capa- cidade universal, entretanto, devem ser rejeitadas se forem conflitantes com o ensino explícito. Iniciemos a análise de tais passagens atendo-nos àquilo que éreal e explicitamente dito; “para que todo o que nele crê tenha a vida eterna”. O versículo ensina que todos na categoria de crentes (A) estarão na categoria daqueles que têm a vida eterna (B). Todos os A serão B. Mas o que diz o texto sobre quem seriam aqueles que hão de crer, que estarão na categoria A? Absolutamente nada. Nada é dito sobre o que é necessário para crer, ou sobre quem crerá e quem não crerá. Em outra passagem da Escritura lemos: “Ninguém poderá vir a mim, se pelo Pai não lhe for concedido” (Jo 6.65). Este texto diz algo explicitamente sobre a capacidade do ser humano de vir a Cristo. A frase é uma negativa universal com uma cláusula de exceção adicionada. Isto é, a passagem claramente afirma que ninguém pode (é ca- paz de) ir a Cristo, e a cláusula de exceção completa: a não ser que isto seja concedido pelo Pai. O versículo ensina explicita- mente que um pré-requisito necessário deve acontecer antes que a pessoa seja capaz de vir a Cristo. O pré-requisito é que “seja concedido pelo Pai”. Mais uma vez, o objetivo não é resolver a controvérsia entre calvinistas e arminianos, mas mostrar que, neste caso, as implicações não podem ser usadas para cancelar um ensino explícito. Implicações extraídas de afirmações comparativas tam- bém são problemáticas. Verifiquemos a famosa passagem de | Coríntios que tem levado muitos a tropeçar. Paulo escreve sobre as virtudes do celibato e do casamento: “... quem casa sua filha virgem faz bem; quem não a casa faz melhor” (ICo 7.38). Quantas vezes já ouvimos que Paulo se opunha ao ca- samento, ou que afirmava ser o casamento um mal? Será real- 84 — O Conhecimento das Escrituras mente isto que ele diz? Obviamente não. Paulo faz uma compa- ração entre o bom e o melhor, não entre o bom e o mau. Se afirmamos que alguma coisa é melhor do que a outra, isto não implica em que uma é boa e a outra é má. Existem níveis com- parativos de bondade. O mesmo problema de valores comparativos surgiu no de- bate sobre línguas estranhas nos anos 60. Paulo diz: “O que fala em outra língua a si mesmo se edifica, mas o que profetiza edifica a igreja. Eu quisera que vós todos falásseis em outras línguas; muito mais, porém, que profetizásseis, pois quem profetiza é superior ao que fala em outras línguas, salvo se as interpretar para que a igreja receba edificação” (ICo 14.4,5). Ouvi distorções do texto vindas de ambos os lados do debate. Aque- les que se opõem às línguas ouviram Paulo dizer que a profecia é boa as línguas são más. Outra vez, os membros desse grupo não perceberam a comparação feita entre bom e o melhor. Ouvi também aqueles que aprovam as línguas falando como se estas fossem mais importantes que a profecia. Intimamente relacionada com a regra de interpretar o im- plícito pelo explícito está a regra correlata de interpretar o obs- curo à luz daquilo que está claro. Se interpretamos o que é claro à luz do obscuro, resvalamos para um tipo de interpretação esotérica, própria das seitas. A regra básica é a do cuidado: lei- tura cuidadosa daquilo que o texto está de fato afirmando nos livrará de muita confusão e distorção. Nenhum grande conheci- mento de lógica é necessário, apenas a simples aplicação do bom senso. Mas, às vezes, o calor da controvérsia nos faz per- der o bom senso. Regra 5 - Determine cuidadosamente o significado das palavras Além de tudo que a Bíblia é, ela é um livro que comunica infor- mação verbalmente. Isto significa que as Escrituras estão reple- tas de palavras. Pensamentos são expressos pela maneira como essas palavras se relacionam. Cada palavra individual contribui Regras práticas para a interpretação bíblica —————— 85 com algo específico para completar o conteúdo expresso. Quanto melhor compreendermos as palavras individuais usadas nas de- clarações bíblicas, melhor compreenderemos a mensagem total das Escrituras. A comunicação exata e o claro entendimento são dificulta- dos quando as palavras são usadas de maneira imprecisa ou am- bígua. O mal uso das palavras e o mal entendido do conteúdo seguem lado a lado. Todos nós já experimentamos a frustração de tentar comunicar alguma coisa a alguém, mas não conseguir en- contrar a combinação certa de palavras para tornar claro o que desejamos comunicar. Também já experimentamos a frustração de sermos mal entendidos apesar de havermos usado as palavras apropriadas, pelo fato de nossos ouvintes terem uma compreen- são errônea quanto ao significado das palavras usadas. Fregientemente os leigos reclamam que os teólogos usam muitas palavras difíceis. O jargão técnico é, com freqiiência, frustrante e irritante. Termos técnicos podem ser, eventualmen- te, usados não tanto para comunicar os significados de maneira mais precisa, mas para impedir que nossas informações sejam muito facilmente entendidas, ou para impressionar as pessoas com nosso vasto conhecimento. Por outro lado, os especialistas tendem a desenvolver uma linguagem técnica dentro de seus campos de especialidade em benefício de maior precisão, e não de confusão. Nossa linguagem diária é usada de modo tão abrangente que as palavras assumem significados muito elásti- cos para serem úteis numa comunicação mais precisa. Podemos constatar a vantagem da linguagem técnica no campo médico embora, às vezes, nos sintamos incomodados com ela. Se adoeço e digo ao meu médico, “Não me sinto bem” ele imediatamente me pedirá para ser mais específico. Se após um exame físico completo ele me diz, “Você tem um distúrbio estomacal” será a minha vez de pedir-lhe que seja mais específi- co. Há muitos tipos de distúrbios estomacais, variando desde a leve indigestão até o câncer incurável. Em Medicina, ser espe- cífico e técnico pode salvar vidas. 88 O Conhecimento das Escrituras que tinha pernas tortas. Se hoje chamarmos uma jovem de “cute” será bom que ela não seja uma atriz acostumada a atuar em pe- ças de Shakespeare! A palavra “formidável” em dicionários mais antigos tinha o sentido de algo que nos amedronta, hoje ela re- presenta algo que nos causa admiração. Assim, os termos mu- dam completamente seu sentido no espaço de alguns anos. Pro- vavelmente a palavra foi usada de forma incorreta por tantas pessoas e durante tanto tempo, que o uso errado tornou-se o “uso costumeiro”. Um último exemplo, a palavra gay. Há al- guns anos atrás, se uma pessoa fosse chamada de “gay”, isto significava apenas que se tratava de uma pessoa alegre e feliz. Palavras com múltiplo sentido — Há uma enorme quanti- dade de palavras na Bíblia que têm múltiplo sentido. Somente o contexto pode determinar o sentido particular de tais palavras. Por exemplo, a Bíblia nos fala constantemente sobre vontade de Deus. Há pelo menos seis maneiras diferentes em que esta ex- pressão é usada. Algumas vezes, a palavra vontade refere-se aos preceitos que Deus revelou ao seu povo. Isto é, vontade significa os “deveres prescritos para o povo”. O termo é usado também para descrever a “ação soberana de Deus que causa ou faz acontecer aquilo que ele deseja que aconteça”. Chamamos a isso “vontade eficaz de Deus” porque ela causa aquilo que ele deseja. Há também o sentido pelo qual vontade quer dizer “aqui- lo que agrada a Deus, no qual ele se delicia.” Vejamos como uma passagem das Escrituras pode ser inter- pretada à luz desses três sentidos diferentes da palavra vontade: “... não querendo que nenhum pereça” (2Pe 3.9) (ou, não sendo de sua vontade que nenhum pereça). O texto poderia significar: (1) Deus legislou que não é permitido que ninguém pere- ça. Perecer é contra a lei de Deus. (2) Deus decretou soberanamente e efetua seu decreto de que ninguém, jamais perecerá. (3) Deus não se alegra quando alguém perece. Qual destas três opções lhe parece correta? Por que? Se examinarmos o contexto no qual a palavra aparece e levarmos Regras práticas para a interpretação biblica — — 89 em conta a analogia da fé e o testemunho das Escrituras, apenas uma das afirmações está certa, isto é, a terceira. Meu exemplo favorito de palavra com múltiplo sentido é jus- tificado. Em Romanos 3.28, Paulo diz: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei.” Em Tiago 2.24 lemos: “Verificais que uma pessoa é justificada por obras, e não por fé somente.” Se a palavra justificado signifi- ca a mesma coisa em ambas as passagens, estamos diante de uma contradição irreconciliável entre dois escritores bíblicos, tratando de um assunto que concerne ao nosso destino eterno. Lutero dizia que nossa justificação pela fé era o artigo pelo qual a igreja se mantém em pé ou desmorona. O significado de justificação e a pergunta sobre como ela se realiza, não é uma simples ninharia. Paulo mantém que ela se efetua pela fé, sem as obras, e Tiago afirma que é pelas obras e não pela fé somente. Para tornar a situação mais difícil, Paulo, no capítulo 4 de Romanos, afirma que Abraão foi justificado quando creu na promessa de Deus, antes mesmo de ser circuncidado. Segundo Paulo, Abraão foi justificado em Gênesis 15. Tiago escreve: “Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado quando ofereceu, sobre o al- tar, o próprio filho Isaque” (T'g 2.21). Tiago menciona a justifi- cação de Abraão como tendo ocorrido no capítulo 22. O problema da justificação é facilmente resolvido se exa- minarmos os possíveis significados da palavra e os aplicarmos dentro dos contextos das respectivas passagens. O termo justifi- car pode significar: (1) restaurar a um estado de reconciliação com Deus aque- les que se encontram sob o julgamento da lei, (2) demonstrar ou confirmar (defender). Jesus diz, por exemplo: “Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos” (Lc 7.35). O que quer ele dizer? Significa- ria que a sabedoria é restaurada à comunhão com Deus e salva de sua ira? Obviamente não. O significado claro e simples de suas palavras é que uma ação sábia produz bom fruto. A alega- ção de sabedoria é confirmada pelos resultados. Uma decisão 900 e O Conhecimento das Escrituras sábia mostra-se sábia por seus resultados. Neste caso, Jesus está usando a palavra “justificada” no sentido comum e não teológico. Como Paulo usa a palavra em Romanos 3? Neste caso não há dúvida. Paulo usa o termo em seu sentido teológico definitivo. E Tiago? Se examinarmos o contexto em Tiago, veremos que ele está tratando de uma questão diferente de Paulo. No capítulo 2.14, lemos: “Meus irmãos, qual é o proveito, se al- guém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, se- melhante fé salvá-lo?” Tiago está levantando a pergunta sobre que tipo de fé é necessária para a salvação. Ele afirma que a fé verdadeira produz obras. Ele chama a fé sem obras de fé morta, uma fé que não é genuína. Isto é, as pessoas podem afirmar que têm fé, quando, de fato, ela não existe. A alegação de fé é con- firmada ou justificada quando é manifesta pelos frutos da fé, isto é, pelas obras. Abraão é justificado ou confirmado diante da História por seus frutos. Num sentido, a alegação da justifica- ção de Abraão é justificada (legitimada) por suas obras. Os Reformadores compreenderam isto quando elaboraram a fór- mula: “Justificação só pela fé, mas não por uma fé que está só.” Palavras cujos significados tornam-se conceitos doutriná- rios. Há uma categoria de palavras que pode provocar em nós uma crise de interpretação. São aquelas palavras que vieram a ser usadas para comunicar conceitos doutrinários. Por exemplo, a palavra salvar, e sua correspondente salvação. No mundo bí- blico uma pessoa está “salva” quando experimenta livramento de qualquer tipo de dificuldade ou calamidade. Pessoas resgata- das de derrota militar, de doença ou ferimentos corporais, de difamação de caráter ou calúnia, todas experimentaram o que a Bíblia chama de “salvação”. Entretanto, salvação definitiva acon- tece quando somos resgatados do poder do pecado e da morte, e escapamos da ira de Deus. Para este tipo específico de salvação, desenvolvemos uma doutrina de salvação. O problema aparece quando voltamos ao Novo Testamento — onde encontramos a doutrina da salvação — e aplicamos esse sentido completo e de- finitivo de salvação a todos os textos onde a palavra aparece. Regras práticas para a interpretação biblica == 93 ou O que trabalha com mão remissa empobrece, mas a mão dos diligentes vem a enriquecer-se (Pv 10.4). Paralelismo sintético é um pouco mais complexo. Nesse caso a primeira parte da passagem cria um senso de expectativa que é saciado pela segunda parte. Pode também caminhar num movimento progressivo, como uma “escada” para a conclusão na terceira linha. Eis que os teus inimigos, SenHoR, eis que os teus inimigos perecerão; serão dispersos todos os que praticam a iniquidade (Sl 92.9). Embora Jesus não tenha usado poesia, a influência do paralelismo pode ser sentida em suas palavras. Dá a quem te pede, e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes (Mt 5.42). ou Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á (Mt 7.7). A capacidade de reconhecer o paralelismo freguentemente contribui para esclarecer as aparentes dificuldades no entendi- mento de um texto. Pode, também, aprofundar ou enriquecer nossa percepção de várias passagens. Na versão revista e atuali- zada de Almeida há uma passagem que tem causado embaraço para muitas pessoas. Para que se saiba até o nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou o Sentor, e não há outro. Eu formo a luz, ecrio as trevas; faço a paz, e crio o mal; eu 0 SExHoR, faço todas estas coisas (Is 45.6,7). Tenho sido, muitas vezes, questionado sobre esses versículos. Podemos ver neles um ensino claro de que Deus cria o mal? Isto não faria de Deus o autor do pecado? A solução dessa passagem problemática é simples, se reconhecermos nela a presença óbvia de um paralelismo antitético. Na primeira par- 940 O Conhecimento das Escrituras te a luz é colocada em contraste com as trevas. Na segunda a paz é posta em contraste com o mal. Qual seria o oposto de “paz”? O tipo de mal que é contrastado não com bondade, mas sim com “paz”. A New American Standard Bible [Nova Bíblia padrão americana], uma tradução mais recente, diz: “Causando bem-estar e criando calamidade”. Esta é uma tradução mais acurada deste pensamento expresso por paralelismo antitético. O ponto central da passagem é que, em última análise, Deus derrama as bênçãos do bem-estar e da paz sobre o povo justo e fiel, mas visita-o com calamidade quando age em julgamento. Isto está longe da noção de Deus como criador do mal. Outra passagem problemática que exibe um tipo de paralelismo é a Oração do Senhor. Jesus instrui seus discípulos a orar: “Não nos deixes cair em tentação”* (Mt 6.13). Tiago nos adverte: “Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e ele mesmo a nin- guém tenta” (Tg 1.13). Não estaria a ordem de Jesus sugerindo que Deus pode de fato tentar-nos, ou pelo menos induzir-nos à tentação? Estaria Jesus nos ensinando a pedir a Deus que não tente armar um cilada contra nós, ou não nos seduza ao pecado? Deus nos livre. O problema fica resolvido se examinarmos a outra parte do paralelismo. A passagem diz: “Não nos deixe... mas livra- nos do mal” [ou, segundo a versão inglesa: “Não nos induzas... mas livra-nos do mal”). Este é um exemplo de paralelismo sinô- nimo. Ambas as partes dizem, virtualmente, a mesma coisa. Ser induzido à tentação é ser exposto à investida violenta do malig- no. A “tentação” aqui, não é do mesmo tipo da mencionada por Tiago, a qual começa dentro de nós, nas inclinações internas de nossa própria impureza e imoralidade, mas é algo fora, um lugar externo de teste ou prova. Deus realmente coloca seu povo à prova, como fez com Abraão e com Jesus no deserto. * À expressão em inglês seria melhor traduzida por ” s à tentação”, N.T. Regras práticas para a interpretação biblica —— 95 Um problema adicional desse texto é a tradução da palavra “mal”. O substantivo, no grego, está no gênero masculino, e seria melhor traduzido por “maligno”. Mal, no sentido amplo, estaria no gênero neutro. Jesus realmente está dizendo: “Ó Pai, constrói uma parede ao nosso redor, protege-nos de Satanás. Não permitas que ele se aproxime de nós. Não nos conduzas a lugares onde ele possa nos apanhar”. Novamente, a chave inici- al para resolver a passagem é encontrada no paralelismo. A presença do paralelismo também pode enriquecer nossa compreensão dos conceitos bíblicos. Por exemplo, como a mente hebraica compreendia o conceito de bênção, de bem- aventurança? Ouça as palavras da bênção hebraica clássica e tente obter um lampejo dessa compreensão: O Sennor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti; o SexHor sobre ti levante o seu rosto, ete dê a paz (Nm 6.24-26). Examinando a estrutura paralela da bênção, somos enri- quecidos não apenas com uma compreensão mais profunda dela, mas também com um entendimento sobre o que os judeus com- preendiam por uma medida completa de “p: Observe como os termos “paz”, “misericórdia” e “guardar”, são usados como sinônimos. Paz significa mais que ausência de guerra. Significa experimentar a misericórdia de Deus ao sermos preservados por ele. O que significaria “ser guardado” para um povo cuja expe- riência de vida era a de peregrinos? A história dos judeus é a história dos exilados, que constantemente enfrentam as incerte- zas da vida. Ser abençoados pela misericórdia de Deus e expe- rimentar Paz estão relacionados. Mas, o que é bênção? Observe que nas duas últimas partes da bênção a noção de ser abençoado, de bem-aventurança, é substituída por imagens de contemplação da face do Senhor: “O SenHoR faça resplandecer o seu rosto... ou levante sobre ti o 98 = O Conhecimento das Escrituras é casuística e a segunda apodítica. Neste caso o texto dá instru- ções explícitas com relação ao retorno do boi ou do jumento de um inimigo. Mas, e se eu vir a vaca ou o camelo de meu inimigo perdidos, devo retorná-los também? A lei não diz isto. A lei casuística dá o princípio por meio do exemplo. Ele cobre impli- citamente vacas, camelos, galinhas e cavalos. Sc a Bíblia apre- sentasse uma lei específica para cada possível eventualidade, precisaríamos de imensas bibliotecas para guardar todos os vo- lumes legais que seriam necessários. A lei dos casos fornece a ilustração do princípio, mas o princípio em si tem um campo maior de aplicação. Regra 8 - Observe a diferença entre o espírito e a letra da lei Todos nós conhecemos a reputação dos fariseus no Novo Tes- tamento como sendo extremamente escrupulosos na observân- cia da letra da lei, ao passo que violavam seu espírito constante- mente. Existem relatos de israelitas que burlavam a lei que os impedia de viajar para muito longe no Dia de Descanso, esti- cando ou multiplicando com esperteza suas próprias distâncias permitidas para o sábado. Os rabinos haviam determinado que a distância que poderia ser percorrida no sábado deveria ser limi- tada a uma distância fixa medida a partir da residência de cada pessoa. Mas, se o legalista desejava ir mais longe que o permiti- do, durante a semana anterior ele encarregava alguns viajantes ou amigos de colocar uma escova de cabelo ou algum outro item de uso pessoal sob uma pedra com intervalos determinados de distância. Neste caso o legalista havia tecnicamente “fixado residência” em cada um destes pontos. Para viajar aos sábados, tudo o que ele precisava fazer era ir de “residência” em “resi- dência” apanhando seus pertences à medida que caminhava. Neste caso, obviamente, a letra da lei era obedecida, mas o espí- rito era simplesmente arrasado. Durante o período do Novo Testamento podemos identifi- car vários tipos de legalistas. O primeiro e mais famoso era o tipo que promulgava leis e regulamentos que iam além do que Regras práticas para a interpretação biblica eum 99 Deus havia ordenado. Jesus censurou os fariseus por atribuí- rem à tradição dos rabinos um peso de autoridade igual ao da Lei de Moisés. Atribuir autoridade divina a leis humanas é o tipo principal de legalismo. Mas, não é o único. O incidente a respeito da jornada do sábado ilustra o outro tipo fregientemente encon- trado. Obedecer a letra da lei à medida que viola seu espírito, torna a pessoa tecnicamente justa, mas, na realidade, ela conti- nua sendo corrupta. Outra maneira de distorcer a lei é tentar obedecer seu espí- rito, ignorando a letra. Letra e espírito são inseparavelmente re- lacionados. Os legalistas destroem o espírito, os antinomianos (que se opõem a qualquer tipo de regulamento) destroem a letra. A discussão da Lei Mosaica feita por Jesus no Sermão do Monte tem sido terrivelmente maltratada pelos intérpretes. Por exemplo, li recentemente um artigo de jornal escrito por um im- portante psiquiatra no qual o ensino ético de Jesus era severa- mente criticado. O psiquiatra afirmava que não podia compre- ender por que Jesus era tão admirado como professor de ética, uma vez que sua ética era extremamente ingênua, apontando especialmente para o ensino de Jesus sobre assassinato e adulté- no. O psiquiatra interpretava as palavras de Jesus sobre estes dois assuntos como se ele estivesse igualando a severidade do assassinato com raiva e a do adultério com luxúria. Qualquer professor que julgar a raiva como sendo tão nociva e prejudi- cial quanto o assassinato; ou um pensamento luxurioso tão cor- rupto quanto o adultério, tem uma concepção deturpada de éti- ca. O articulista prosseguiu demonstrando quão mais devasta- dor são os efeitos de um assassinato ou de um adultério em com- paração com a raiva e a luxúria. Se uma pessoa fica com raiva de alguém, isto pode ser prejudicial, mas, quando a raiva leva ao assassinato, as implicações são muito maiores. A raiva não tira a vida de outra pessoa deixando esposas viúvas e filhos ór- fãos. O assassinato, sim. Se tenho um pensamento lascivo, pos- so prejudicar a pureza de minha própria mente, mas não envolvi uma mulher num ato de infidelidade a seu marido, o que pode- 100 — O Conhecimento das Escrituras ria destruir seu casamento e seu lar. E a análise do psiquiatra prosseguiu dizendo que tal ensino ético constitui-se num sério prejuízo para um conceito responsável de vida. Num nível mais popular de compreensão é comum encon- trarmos o mesmo mal entendido com relação ao Sermão do Mon- te. Alguns argumentam: “Bem, já tive pensamentos lascivos a respeito dele (dela). Desde que já sou culpado diante de Deus, posso muito bem ir até o fim e cometer adultério”. Isto não é ape- nas uma distorção grosseira das palavras de Jesus, mas mistura o delito da luxúria com a dimensão total do pecado do adultério. Observe o que Jesus ensina sobre estes assuntos e veja se ele é tão ingênuo como afirmam seus críticos. Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: quem matar esta- rá sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a ujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe cha- mar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo (Mt 5.21,22). Etambém: Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qual- quer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela (Mt 5.27,28) Em nenhum momento nestas passagens Jesus afirma que raiva é tão nociva quanto assassinato, ou que luxúria é tão má quanto adultério. Ele afirma, sim, que se uma pessoa evita co- meter um assassinato, mas odeia ou insulta seu irmão, tal pessoa não cumpriu todas as implicações da lei sobre assassinato. As- sassinato é pecado, mas o ódio e o insulto também o são. O importante no ensino de Jesus é que a lei tem uma apli- cação mais ampla do que aquilo que está expresso em sua letra. Se você mata, viola a letra da lei, se você odeia a alguém, viola o espírito da lei. Diz ele: “Quem matar estará sujeito a julga- mento... todo aquele que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento”. Isto é, Jesus está afirmando que ambos, ódio e assassinato são pecado. Não que ambos provoquem os mesmos
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