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Carlos Rodrigues Brandão
DIÁRIO DE CAMPO
a antropologia com alegoria! .
brasiliense
1982
centenário de monteiro lobato
Campinas, 21 de maio de 1982,
Caro Caio,
Como é que se escreve o sentimento do mundo? Carlos
Drumond de Andrade vive preocupado com isso. Darcy Ribeiro
também. Como é que se escreve a emoção? A própria, eu digo.
Não a teoria que analise a dos outros. E, de outra parte, o que é
que nos liga à vida e ao amor de uns pelos outros senão essa
estranha habitante de uma fala tão dificil?
Por exemplo, em todos os dias menos os domingos as
mulheres “'bóia-fria” dos caminhões “de turma” desembarcavam
aos bandos nos bairros “de baixo” em Itapira. Elas vinham vesti-
das com roupas sujas do trabalhador volante e traziam anexos de
sacolas e facões do corte da cana. Cobertas dos pés à cabeça de
lonas, panos e palhas, algumas deixavam de fora só o vão dos
olhos. Eu vi aquelas mulheres muitas vezes enquanto estive pes-
quisando lá. Nas tardes mansas de domingo conversei com duas
ou três. A roupagem de guerrilhas daquelas moças é ao mesmo
tempo trivial, gigantesca e terrível. Mulheres-marias corn facões e
armaduras andando nas ruas de terra de uma cidade em São
Paulo,
Eu não descobri como anotar aquilo, que me tocava tanto,
nas folhas dos diários de campo que carregava pre todo canto e
que, uma vez em casa, passava a limpo cam vagar, trabalhando
os dados colhidos e clareando uma fetra cada vez menos legível
para mim mesmo, Um dia, no entanto, numa folha de trás de um
dos cadernos da pesquisa escrevi “as mulheres do caminhão de
“
E
turma — situações de corpo e de roupa”. Um escrito que não seria
incluído em Os Deuses do Povo. Um poema que afinal foi um
modo menos ortodoxo de dizer não tanto a situação vista, mas o
sentimento de vê-la.
Outro exemplo. Faz pouco tempo, viajando do México a
Michoacán — à Meseta Tarasca — eu ia com um amigo paraguaio
num trem diurno, que levou 73 horas para atravessar os 400 qui-
!ômetros de um lugar 20 outro. Mais da metade dos viajantes eram
índios tarascos que iam e vinham da Meseta à Capital para vender
bens de artesania e voltar pra casa com os da sobrevivência. Uma
velha índia ia sentada no chão do trem, acompanhada de uma
criança que o tempo quase todo dormiu no berço de suas pernas
dobradas. A velha tarasca viajava absolutamente indiferente a
nós. No meio da viagem efa juntou algumas pimentas com restos
de frango e molho em quatro ou cinco “'tortillas” e almoçou com a
criança os “tacos” que fabricou ali mesmo, na frente de todos. De
repente ela cantava baixinho uma cantiga de uma tristeza enorme
em sua lingua. Aquele momento transfigurou toda a viagem e eu
que la — para o seminário que nos esperava 200 quilômetros
adiante — um livro sobre educação popular, achei árida e imbecil a
minha leitura, enquanto os escritos da vida que a teoria do livro
ressecava e dizia sos fragmentos fluía viva e inteira à minha
volta.
Onde é que cabe falar da cantiga e das razões de cantar dessa
velha tarasca no chão do trem a caminho de uma cidade'chamada
Pátzcuaro?
iai Pois aí vai o Diário de Campo. 7a/ como disse quando con-
versamos em São Paulo sobre ele pela primeira vez, aí vai pelo cor-
reio essa vontade de pensar a antropologia como alegoria, o que
não é mais do que a vontade de escrever, com os símbolos do
poema, “o pensado e o vivido” dos personagens da própria
Antropologia: o homem, seus simbolos, seus mundos, sua vida. O
diário são as folhas de trás dos cadernos de anotações de pesqui-
sas, viagens e reuniões. São folhas de uma fala oculta. Escritos
carregados de afeição, que acompanharam 20 longo destes últi-
mos anos os outros escritos dos livros que eu fiz, e que nunca
conseguiram neles um lugar seu.
Os poemas do Diário de campo foram sendo escritos sem um
plano prévio. Dentro do ofício do antropólogo, acho que afinal eles
são o meu diário dos diários de campo. Se o material das tantas
folhas dos escritas de pesquisa deu os estudos de antropologia, o
material das últimas gerou esses estudos através da poesia. Ape-
nas um conjunto de poemas, o de “A trama da rede”, foi progra-
mado e feito por encomenda. São péguenos pocimas escritos para
texto de um filme sobre trabalhadores de fabriquetas de redes em
Fortaleza. Os poemas deram título ao filme e o filme deu sentido
A
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os poemas. Todos os outros são relatos de vivências dos mo-
mentos mais livres e afetivos de viagens e trabalhos de pesquisa.
Quando resolvi juntar as folhas de trás de uma porção de
cadernos e reunir os escritos-poemas, não foi difícil distríbuí-los
em pequenos ciclos. Eles já estavam escritos assim. Alguns ciclos
são sobre camponeses, lavradores-sem-terra e posseiros do Norte
em luta por terra. A mesma gente que habita de modo não muito
diverso os meus livros de pesquisas. Outros são sobre essas mes-
mas gentes, mas agora fora do trabalho e vestidas com roupas de
fitas e cantos dos dias de festa (dia 30 de maio é Festa do Divino
em São Luís do Paraitinga; se puder ir, não perca). Outro ciclo &
sobre os índios da Meseta Tarasca. Eu convivi com eles em 1966
e depois voltei lá mais umas três vezes. Outro é sobre os índios
que sobrevivem entre as fúrias e as artimanhas dos brancos do
Brasil. O último ciclo fala do Chile — terra de Neruda. Por causa do
livro para o Encanto Radical, aproveitei uma viagem de Encontro
para fazer, dentro dela, uma viagem a Neruda. Estive em Isla
Negra e fui a Temuco, onde ele viveu pedaços da infância.
Tudo isso pra dizer a você que os escritos do Diário descre-
* vem maneiras de sentir pessoas, lugares, situações e objetos.
Você não vai encontrar nada mais do que já conhece de outras lei-
turas de antropologia. -
A diferença, se existe alguma, além da forma da fala, é que
aqui, livre do rigor da teoria, não preciso explicar o que compreen-
| do, mas compreender o que Sifito. A seu modo o Edmund Leach
“disse isso assfi “a abordagem alternativa que adotei aqui é a
suposição de que a única etnografia da qual um antropólogo social
tem um conhecimento íntimo é a gue deriva de sua própria expe-
riência de vida”. (Cultura e Comunicação, p. 8.)
Não estranhe as misturas das alquimii Diário. A chave
de tudo pode estar nos incontáveis companheiros de travessia
E CONVOQUEL, Ora Coma sujeitos do livro — dos poemas — ora
como explicadores nas notas que acompanham vários textos. Ali
estão alguns tfilósofos-poetas gregos e também João Cabral de
Melo Neto. Ali estão Merx, Neruda, Mauss e Guimarães Rosa,
fado a lado. Ali estão também poetas e pensadores do povo que,
sempre que possível, aparecem com seus nomes, tal como nós.
Os que conheci pessoalmente e de quem falo aqui e ali são as pes-
soas que, tanto quanto os pensadores costumeiros das bibliogra-
fias, disseram e ensinaram lições de vida que não quero esquecer.
Me explico? Afinal, Caio, todas as linguagens são possíveis e
a fronteira entre a ciência e a poesia pode ser grande ou pode ser
nenhuma. Os gregos que a todo momento convoco para as notas
dos poemas sabiam dizer uma coisa com a outra. Sabiam fazer o
pensar como o poema e cruzar a pesquisa com a beleza. Sabiam,
portanto, dizer o saber como poesia, que das tribos da Austrália às.
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