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Guias e Dicas
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02-Fleischer e Schuch 2010 - etica e regulamentação na pesquisa antropologica - livro, Manuais, Projetos, Pesquisas de Antropologia

Antropologia

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2016
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Compartilhado em 18/03/2016

fabiola-souza-18
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Baixe 02-Fleischer e Schuch 2010 - etica e regulamentação na pesquisa antropologica - livro e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Antropologia, somente na Docsity! ge... FTICA E REGULAMENTAÇÃO NA PESQUISA ANTROPOLÓGICA Rjo NA UR Ro sd: PATRICE SCHUCH Sa CA iria e ane LernasAAÁ vres Conselho Editorial Cristiano Guedes Florencia Luna Matilena Corrêa Paulo Leivas Roger Raupp Rios Sérgio Rego Editoras Responsáveis Debora Diniz Malu Fontes FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Reitor José Geraldo de Sousa Júnior Vice-Reitor João Batista de Sousa EDITORA UnB Diretor Norberto Abreu e Silva Neto Conselho Editorial Denise Imbroisi José Carlos Córdova Coutinho José Otávio Nogueira Guimarães Luís Eduardo de Lacerda Abreu Nosberto Abreu e Silva Neto — Presidente Roberto Armando Ramos de Aguiar Sely Maria de Souza Costa Sumário APRESENTAÇÃO: ANTROPOLOGIA, ÉTICA E REGULAMENTAÇÃO Soraya Fleischer e Patrice Schuch......................09 PARTE I: PANORAMA DA DISCUSSÃO SOBRE ÉTICA EM PESQUISA NA ANTROPOLOGIA 1. A antropologia e seus compromissos ou responsabilidades éticas Luis Roberto Cardoso de Oliveira........................25 2. Que ética? Que ciência? Que sociedade? Claudia Fonseca...............................................39 3. Ética e planos de regulamentação da pesquisa: princípios gerais, procedimentos contextuais Ciméa Barbato Bevilaqua..................................71 4. Comentário: Multiplicando perspectivas e construindo verdades parciais Patrice Schuch.................................................91 PARTE II: EXPERIÊNCIAS CONCRETAS COM A REGULAMENTAÇÃO EXTERNA À PESQUISA EM ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA 1. Relato de uma experiência concreta com a perspectiva das ciências da saúde: construindo o anthropological blues Dora Porto.....................................................101 2. Desencontros e descaminhos de uma pesquisa sociológica em um hospital público Fernanda Bittencourt Vieira.............................127 3. A dimensão ética do diálogo antropológico: aprendendo a conversar com o nativo Luciane Ouriques Ferreira................................141 4. Até onde funciona? Uma breve reflexão sobre a atuação dos comitês de ética em pesquisa no estudo antropológico em saúde Raquel Lima..................................................159 5. Comentário: “Para quem os antropólogos falam?” Soraya Fleischer.............................................171 PARTE III: A PERSPECTIVA DOS ÓRGÃOS REGULAMENTADORES 1. A pesquisa social e os comitês de ética no Brasil Debora Diniz..................................................183 2. A ética na pesquisa antropológica no campo pericial Elaine Amorim, Kênia Alves e Marco Paulo Fróes Schettino......................................................193 3. Ética e pesquisa social em saúde Dirce Guilhem e Maria Rita Carvalho Garbi Novaes.................................................217 4. Comentário: Métodos, regulação e multidisciplinaridade nos comitês de ética em pesquisa Ximena Pamela Bermúdez...............................237 SOBRE OS AUTORES E COLABORADORES...................243 7 Agradecimentos O seminário, assim como este livro, contou com várias e diferentes disposições. Gostaríamos de agradecer esses apoios e apostas. Os palestrantes e debatedores aceitaram o desafio de escrever e conversar sobre ética em pesquisa. Primeiro, apresentaram suas interessantes ideias. Depois, dispuseram-se a revisar seus textos, à luz de novos comentários e questões. Uma afiada equipe colaborou com a organização do seminário e do livro: Bruna Seixas, Rosana Castro e Daniel Simões. O Departamento de Antropologia (DAN) da Universidade de Brasília (UnB), na figura de seu chefe, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, apoiou e promoveu a iniciativa do seminário. Os funcionários do DAN, especialmente evocados aqui na figura de Fernando Antonio Souto, foram também muito importantes na consecução logística do evento. Vários de nossos colegas do DAN liberaram e incentivaram seus estudantes para que eles comparecessem ao seminário. O Laboratório de Vivências e Reflexões Antropológicas: Direitos, Políticas e Estilos de Vida (Laviver), composto pelas professoras do DAN Antonádia Borges, Cristina Patriota, Patrice Schuch, Lia Zanotta Machado, Christine de Alencar Chaves e Soraya Fleischer, está sendo 10 Soraya Fleischer e Patrice Schuch Esse evento pretendeu explorar as relações entre dois conjuntos de perspectivas que, segundo nossa avaliação, não têm sido suficientemente abordados no campo das ciências sociais. De um lado, estão as especificidades da antropologia enquanto disciplina que, a partir de uma longa tradição em pesquisa, desenvolveu uma série de modos de produção de conhecimento em que a etnografia assume centralidade, requerendo uma sensibilidade específica que vai além de sua apropriação metodológica. Tal sensibilidade define a etnografia não como um método e muito menos por seus objetos ou universos de estudo, mas como uma espécie de “teoria em ação” (Peirano, 2009). Nesse sentido, na etnografia, as categorias e práticas da experiência cotidiana ganham destaque a partir do confronto provocado por um estranhamento existencial que se renova durante o trabalho de campo. Essa forma de entender a etnografia tem muitas implicações para a prática de pesquisa, uma das quais a impossibilidade de se adequar a modelos rígidos de procedimentos (Peirano, 1995), dificultando, por consequência, a aceitação de regulamentações metadisciplinares. De outro lado, percebemos as resoluções compulsórias que vêm sendo publicadas desde a década de 1990 no Brasil, envolvendo uma série de procedimentos de pesquisa com seres humanos, destacando-se a Resolução 196, do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996). Essas regulamentações, tal como no debate internacional, têm sido feitas sob a hegemonia das problematizações éticas realizadas a partir do campo biomédico, correndo o risco de universalizar-se para as disciplinas das ciências humanas. A especificidade do evento Ética e Regulamentação na Pesquisa Antropológica foi de reunir esses dois campos, refletindo sobre a relação entre ética e regulamentação por meio de um debate que estabeleceu uma interseção das peculiaridades de investigações em ciências humanas com as resoluções éticas vigentes sobre pesquisa no Brasil. A ideia foi explorar as possibilidades do pensamento sobre ética com base nas particularidades das pesquisas das ciências sociais e, em especial, da antropologia, engajando- se criticamente nas discussões sobre regulamentação de pesquisas no país. 11 ÉTICA As palestras e os debates que caracterizaram o seminário foram tão instigantes e tão bem arejaram nossa prática e reflexão que decidimos registrá-los na forma de um livro impresso e também em uma versão eletrônica.1 Pela relevância e atualidade do debate proposto, acreditamos que este livro contribuirá não apenas com cientistas sociais, especialmente antropólogos, mas também com profissionais de instituições diversas que porventura se relacionem de algum modo com as intervenções de pesquisadores, assim como com pessoas envolvidas diretamente com comitês de ética e práticas de regulamentação de pesquisas. Estudantes, pesquisadores, profissionais diversos e agentes de instituições de regulamentação ética podem, a partir do exposto neste livro, envolver-se numa rede de conexão argumentativa que certamente enriquecerá não apenas as reflexões, mas também as experiências concretas de relacionamento entre ética e regulamentação de pesquisas das ciências humanas no Brasil. Antes de detalhar como o evento foi organizado e como o livro reproduz seu formato, seria prudente tecer algumas linhas sobre o tema da ética na pesquisa antropológica. ÉtIca em pesquIsa: um tema novo em antropologIa? A regulamentação da pesquisa antropológica acontece a partir de várias origens. Não só os órgãos estatais de certa forma nos regulam, mas também os próprios interlocutores em campo, os comitês de ética, as editoras e revistas acadêmicas, a chefe ou o chefe de uma casa cujos moradores e parentela queremos conhecer, a diretora da escola onde queremos entrevistar os estudantes, a mídia que exige que escrevamos nossos resultados de pesquisa numa ordem inversa ou num tamanho muito menor ao que estamos acostumados, etc. São muitas as instâncias que regulam como e sob que circunstâncias devemos fazer pesquisa, e como devemos divulgar nossos trabalhos. Às vezes, essas iniciativas reguladoras partem de princípios éticos inquestionáveis. Às vezes, são meras exigências burocráticas sem sentido aparente para a pesquisa, para os pesquisados e para os pesquisadores. Isso quer dizer 12 Soraya Fleischer e Patrice Schuch que, se a pesquisa antropológica sempre pode dialogar com alguma dimensão regulamentadora, nem sempre tal regulamentação tem estreito vínculo com debates sobre a ética ou, pior, sobre as referências éticas próprias de nossa disciplina. Da mesma forma, nem sempre o debate em torno da ética na antropologia se balizou por seu cruzamento com experiências de órgãos e procedimentos oficiais de regulamentação. Ao contrário, a discussão sobre a ética e uma regulamentação oficiosa da pesquisa na antropologia brasileira é relativamente recente. Considerando que o próprio Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) passou a existir formalmente somente a partir da gestão 1986-1988 dessa entidade (Laraia, 1994), é possível afirmar que, embora a ética tenha estado sempre presente na pesquisa antropológica, o debate em torno da oficialização de sua regulamentação ainda carece de sólidas reflexões. Não faltaram acontecimentos críticos, no entanto, que provocaram reações de antropólogos no tocante à questão ética. No campo da tradição dominante de pesquisas antropológicas, a carta do antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos Franz Boas, endereçada ao editor do jornal The Nation, em 1919 – denunciando o uso da antropologia para fins de espionagem de guerra –, foi um dos principais marcadores do debate em torno da ética, indissociável das reflexões sobre o próprio estatuto da ciência, na época nascente, e sua busca pela “verdade científica”. A denúncia de Boas foi posteriormente configurada, pela Associação Americana de Antropologia, como não representativa das opiniões formais da instituição, e não é difícil compreender que, dessa forma, perdeu-se um bom momento de discussão sobre os limites éticos do fazer antropológico, suas condições, objetivos e modos de atuação. Posteriormente, na década de 1980, antropólogos nos Estados Unidos foram confrontados com mais uma discussão sobre ética, desta vez realizada a partir das novas exigências de regulamentação de pesquisas, trazidas pelo campo biomédico. Essas exigências suscitaram posições reativas por parte dos antropólogos, os quais destacaram as especificidades das pesquisas qualitativas, fundamentalmente a condução de entrevistas e o uso do método etnográfico (Diniz, 2008). 15 ÉTICA caracteriza especificidades que requerem um cuidado com a universalização de procedimentos de regulamentação para tradições científicas distintas. Seguindo esse caminho já iniciado na década de 2000, quando a ABA reuniu pesquisadores e professores de antropologia em uma série de seminários ao redor do país para discutir a relação entre antropologia e ética (Víctora et al., 2004), a intenção do seminário Ética e Regulamentação na Pesquisa Antropológica foi de promover a discussão sobre ética a partir das especificidades da antropologia. Trata-se agora, passados alguns anos da publicação do livro resultante do evento da ABA (Víctora et al., 2004), de agregar ao debate as experiências de antropólogos com comitês de ética, por exemplo, buscando- se conhecer melhor as práticas de regulamentação nestes e outros espaços e suscitar uma reflexão sobre ética que não parta das experiências de regulamentação, mas que as entrecruze com as particularidades da pesquisa antropológica. Visa-se abrir um espaço de reflexão a partir de experiências concretas, coletivizando dúvidas que talvez estejam permanecendo nas ansiedades individuais de cada pesquisador. Ao mesmo tempo, as discussões presentes neste livro almejam um amadurecimento disciplinar com relação às regulamentações éticas. À luz das novas realidades de regulamentações de procedimentos de pesquisa, propõe-se um espaço de debates que visam a um engajamento crítico e responsável no campo da ética na pesquisa antropológica. Acreditamos que as normas de orientação biomédica que, hoje, eventualmente enfrentamos na realização de pesquisas podem ser encaradas como verdadeiras balizas de diálogo, isto é, questionamentos que nos instigam a pensar em detalhes e facetas diferenciados da pesquisa em antropologia. Todos esses espelhos, mais ou menos distorcidos, podem servir para incrementarmos nossas incursões etnográficas. No entanto, isso ainda é apenas uma possibilidade; a realidade atual é de pouco conhecimento, por parte de antropólogos, da realidade e exigência das diferentes instâncias de regulamentação ética, e, por parte dessas próprias entidades, das características e especificidades da pesquisa antropológica. 16 Soraya Fleischer e Patrice Schuch Então, antes de descartarmos de imediato os agentes e atores oficiais que, por vezes inesperadamente, nos interpelam, a sugestão é tomá-los como mais um conjunto de interlocutores em campo. Eles emitem sinais e sentidos que nos remetem a novas e inexploradas ideias sobre a pesquisa. Por outro lado, sabemos que muitas das exigências e regulamentações que esses órgãos e sujeitos empoderados nos impõem nem sempre fazem sentido, por mais que tentemos relativizá-las. E é importante reiterar que questionar e problematizar essas exigências e instâncias – inclusive dirigindo esses questionamentos diretamente aos próprios órgãos – não quer dizer, em absoluto, que antropólogos se eximam de pensar e considerar questões éticas e formais. Por isso, torna-se fundamental lembrarmos como a antropologia tem uma discussão histórica sobre as implicações éticas de sua prática, assim como tem o papel de produzir instâncias de debate e divulgação sobre as especificidades de seu tipo de pesquisa. Assim, devemos apresentar às instâncias regulamentadoras e à sociedade uma diversidade dos tipos de ofício, ciência e arte que compõem a antropologia contemporânea, provocando um diálogo com tais instâncias que tensione procedimentos éticos universalizantes de uma única noção de ciência. Abrir mão desse diálogo é correr o risco de não ser conhecido, compreendido, e ficar à margem desta importante discussão. sInal verde para o dIálogo É justamente esse o espírito deste livro: pensar sobre nossa prática a fim de, cada vez mais, abrirmos espaços para debater os constrangimentos – nem sempre negativos – que circunscrevem nossas pesquisas. Vale a pena, nesse sentido, resgatar a discussão que permeou nossa comissão organizadora, ao decidir pela imagem do cartaz que divulgou o evento e que agora ilustra a capa do presente livro. O debate sobre as imagens procurou encontrar um exemplar que expressasse a existência de regras, internas e externas às pesquisas antropológicas, mas também a disposição, de todos os lados, ao diálogo e amplo trânsito. De início, pensamos na imagem de chaves, já que precisamos ter clareza dos acessos ao campo e, mais 17 ÉTICA importante, entender como esses acessos funcionam e nos podem ser garantidos. Mas, a nosso ver, essa opção transmitiria uma posição passiva, por parte da antropologia, a quem simplesmente restaria encontrar a chave “certa” para iniciar e levar adiante suas pesquisas. Pensamos também em alfinetes de segurança, que têm a intenção de reunir coisas, histórias e texturas diferentes, ilustrando os campos e atores que estão em jogo na realização de uma pesquisa antropológica. Mas, ao contrário do alfinete comum, sua ponta é protegida para evitar acidentes. Com essa imagem, no entanto, poderia parecer que os comitês, as portarias, as repartições que nos regulamentam estivessem nos blindando, no intuito de que nós e nossas pesquisas não fôssemos ofensivos, inclusive a nós mesmos. Além disso, quem seria responsável por utilizar o alfinete de segurança, perfurando e ligando as partes? Restaria a ideia de que os órgãos regulamentadores, com suas regras e procedimentos, teriam unicamente o poder de decidir se e como utilizar esses instrumentos de ligação entre áreas e realidades? Apareceu também a ideia de uma placa, posicionada diante de um mar revoltoso, aconselhando a não entrada na água e indicando o perigo de nadar ou mergulhar. A placa estava ali, visível. Mas o mar também estava ali, convidativo. Placas como essa sugerem práticas de segurança e baixo risco, mas não impedem que entremos no “mundo real” a braçadas largas e corajosas. Aqui, fica a ideia de que a regulamentação existe, mas é contornável e, mais do que tudo, que o pesquisador deve ter autonomia para decidir sobre os percursos de sua pesquisa e assumir os riscos e as justificativas que os sustentam. Embora tendêssemos a concordar com essa atitude autônoma e calcada em uma histórica matriz disciplinar, tememos que essa ideia poderia soar afrontosa, como se a antropologia operasse de forma independente de outros atores em campo e, pior, indisponível ao diálogo sobre sua prática. Por fim, para continuar nas metáforas do trânsito, surgiu a imagem do semáforo. O sinal indica que as balizas existem, em qualquer situação de convivência, evitando potenciais acidentes. Optamos por um sinal verde, indicando a passagem, o diálogo, o fluxo, a circulação de 20 Soraya Fleischer e Patrice Schuch expressivo público de estudantes, professores e expoentes externos à comunidade acadêmica que contribuíram na exposição de diversos pontos de vista e importantes interrogações nos momentos do debate, os quais, por questões de espaço, infelizmente não tivemos condições de adicionar ao livro. Desejamos que esta obra inspire uma boa leitura e muitas novas possibilidades de interlocução e reflexão. 1 O livro eletrônico pode ser encontrado no seguinte endereço: http://www.anis.org.br/arquivos_etica_antropologica.pdf. referêncIas BEVILAQUA, C. B. Etnografia do Estado: algumas questões metodológicas e éticas. Campos, v. 3, p. 51-64, 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde (CNS). Resolução 196/1996: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: CNS, 1996. ______. Resolução 304/2000: norma complementar para a área de pesquisas em povos indígenas. Brasília: CNS, 2000. CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Pesquisas em versus pesquisas com seres humanos. In: VÍCTORA, C. et al. Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004. p. 33-44. DEBERT, G. G. A antropologia e os novos desafios nos estudos de cultura e política. Revista Política e Trabalho, v. 13, p. 165-177, 1997. DINIZ, D. Ética na pesquisa em ciências humanas: novos desafios. Ciência & Saúde Coletiva, v. 13, p. 417-426, 2008. DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: experiência de treinamento em países sul-africanos. 2. ed. Brasília: LetrasLivres, Editora Universidade de Brasília, 2008. 21 ÉTICA FERREIRA, L. O. O fazer antropológico em ações voltadas para a redução do uso abusivo de bebidas alcoólicas entre os Mbyá-Guarani no RS. In: LANGDON, E.; GARNELO, L. (Org.). Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Contracapa, 2004. p. 89-110. ______. A dimensão ética do diálogo antropológico: aprendendo a conversar com o nativo. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL, VII, 2007, Porto Alegre. Anais da VII Reunião de Antropologia do Mercosul Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007. FLEISCHER, S. Antropólogos anfíbios? Alguns comentários sobre a relação entre antropologia e intervenção no Brasil. Anthropológicas, v. 18, p. 37-70, 2008. FONSECA, C. O anonimato e o texto antropológico: dilemas éticos e políticos da etnografia feita em “casa”. In: SCHUCH, P.; VIEIRA, M. S.; PETERS, R. (Org.). Experiências, dilemas e desafios do fazer etnográfico contemporâneo. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. p. 205-227. LARAIA, R. Ética e antropologia: algumas questões. Série Antropologia, v. 157, p. 1-11, 1994. PEIRANO, M. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. ______. O paradoxo dos documentos de identidade: relato de uma experiência nos Estados Unidos. Série Antropologia, v. 426, p. 1-47, 2009. SCHUCH, P. O estrangeiro em campo: atritos e deslocamentos no trabalho antropológico. Antropolítica, v. 12/13, 1º/2º sem., p. 73-91, 2003. ______. Antropologia com grupos up, ética e pesquisa. In: SCHUCH, P.; VIEIRA, M. S.; PETERS, R. (Org.). Experiências, dilemas e desafios do fazer etnográfico contemporâneo. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. p. 29-48. VÍCTORA, C. et al. Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004. 25 A antropologia e seus compromissos ou responsabilidades éticas Luis Roberto Cardoso de Oliveira Em primeiro lugar, cabe um diagnóstico: ética é um tema muito pouco discutido ao longo dos cursos de antropologia, quer na graduação, quer na pós-graduação, embora seja frequentemente debatido quando associado à atividade de pesquisa de professores e alunos. No que se segue, procurarei manter o mesmo tom da exposição oral a partir da qual o texto foi elaborado. Irei me concentrar na discussão sobre os dilemas éticos em pesquisa antropológica de maneira geral. Ao longo da exposição, farei referências à questão da regulamentação, que, no meu ponto de vista, está dirigida à atividade de pesquisa nas universidades ou em instituições de pesquisas, mas raramente atinge as atividades de ONGs e de órgãos públicos voltados para a implementação de políticas sociais. Embora tais órgãos e ONGs também realizem pesquisas de caráter antropológico e utilizem os mesmos instrumentos e técnicas de investigação, suas atividades raramente são supervisionadas pelos organismos responsáveis pela observação da regulamentação. De fato, a regulamentação parece atingir apenas as universidades e os institutos de pesquisa. 26 Luis Roberto Cardoso de Oliveira Antes de falar rapidamente sobre três compromissos ou responsabilidades éticas que permeiam a atividade do antropólogo, quero mencionar dois pontos nos quais não poderei me deter nesta intervenção, mas que têm sido suscitados com maior intensidade na comunidade antropológica, especialmente no âmbito da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). O primeiro deles tem como referência uma publicação recente da Associação Americana de Antropologia (AAA), intitulada Anthropology News, em seu número divulgado em setembro de 2009. Trata-se de uma discussão especial sobre ética em antropologia. Um dos temas discutidos na revista é a pertinência de mecanismos de sanção ou de reprimenda da atividade de antropólogos cujo trabalho foge aos princípios éticos que orientam a pesquisa antropológica. Durante quase um século, a AAA tinha mecanismos e procedimentos para penalizar antropólogos que saíam, digamos assim, da orientação básica, dos princípios éticos da disciplina. No entanto, durante todo esse período, só foi punido um antropólogo: Franz Boas, conhecido como a principal referência na formação da Escola Histórico-Cultural, que marca a disciplina nos Estados Unidos. E a AAA puniu Boas por críticas que ele fez à atuação ou à suposta atividade de antropólogos estadunidenses como espiões na Primeira Guerra Mundial. A punição a Boas foi revista apenas em 2005, muitos anos após o falecimento do antropólogo. Esse é um tema bastante interessante e complexo, porque, além das dificuldades que tanto a associação estadunidense como a brasileira têm para articular qualquer tipo de punição aos seus associados, nenhuma das duas possui instrumentos adequados para tal, visto que estariam limitadas à divulgação de uma nota pública ou, na pior das hipóteses, ao desligamento do antropólogo. Nem a ABA nem a AAA são associações que regulamentam ou que viabilizam o acesso ao trabalho dos profissionais da área. Então, acredito que esse seja um tema polêmico e de difícil equacionamento para ambas as associações. O outro ponto para o qual gostaria de chamar a atenção é o fato de que, com a ampliação do universo de atividades dos antropólogos fora das universidades e das instituições de pesquisa em sentido estrito, surge 27 ÉTICA uma série de questões que permeiam o trabalho desses profissionais, mas não são normalmente examinadas, seja pelas associações científicas, seja pelos órgãos que regulam o acesso a pesquisas. Tais atividades envolvem práticas que, do ponto de vista ético, têm importância equivalente à das que são adotadas na pesquisa acadêmica. Tenho impressão de que seria o caso dos antropólogos que trabalham, por exemplo, no Ministério Público, no Incra ou no Iphan e na Funai, para mencionar algumas áreas do serviço público, mas isso também valeria para aqueles que atuam em ONGs. Essas atividades são frequentemente identificadas com a produção de relatórios de vários tipos, a qual demanda a realização de pesquisas antropológicas. Tais pesquisas, porém, não estão sendo reguladas pelos mecanismos de revisão ética vigentes. Além disso, o acesso desses profissionais ao objeto de pesquisa não passa pelos mesmos tipos de avaliação institucional pelos quais os trabalhos acadêmicos são examinados. Nesse quadro, é possível dizer que os antropólogos têm uma visão bastante crítica à maneira como a regulação da ética em pesquisa se desenvolveu no Brasil a partir de 1996, com a publicação da Resolução 196, do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996). os três compromIssos ou responsabIlIdades ÉtIcas Embora relevantes, não terei condições de explorar nesta oportunidade os dois pontos mencionados acima, que ficam como indicações importantes ao debate sobre ética e pesquisa no Brasil. Minha intenção nesta intervenção é chamar a atenção para os três compromissos ou responsabilidades éticas que, a meu ver, permeiam as atividades de pesquisa dos antropólogos, qualquer que seja a especificidade do trabalho no qual estejam engajados. Estes são (em ordem cronológica, não em ordem de importância): o compromisso com a verdade e a produção de conhecimento em consonância com os critérios de validade compartilhados na comunidade de pesquisadores; o compromisso com os sujeitos da pesquisa, cujas práticas e representações 30 Luis Roberto Cardoso de Oliveira inicial de pesquisa. E, se o consentimento livre e esclarecido significa que os sujeitos têm que saber tudo o que será abordado e todos os temas que o pesquisador desenvolverá para publicação depois de concluir a coleta dos dados, a pesquisa será inviabilizada. Um aspecto importante é a diferença entre pesquisas com seres humanos – trabalho que se faz nas ciências sociais – e pesquisas em seres humanos, que implicam uma intervenção. Isto é, o trabalho do antropólogo envolve sempre uma relação de interlocução; já o trabalho na área biomédica envolve frequentemente uma relação de intervenção. Portanto, é muito razoável que se exija que aquele que vai sofrer a intervenção saiba o máximo possível sobre a pesquisa para poder avaliar as implicações ou consequências, em seu próprio corpo inclusive, do trabalho que será realizado. Então, há certa sintonia entre o objetivo das instituições que regulamentam a pesquisa, que é defender os direitos legítimos dos cidadãos submetidos a todo tipo de intervenção, e os objetivos da pesquisa do antropólogo, que, como mencionei a propósito dos compromissos ou responsabilidades éticas, também tem a preocupação de respeitar os direitos do cidadão que participa como sujeito, objeto da investigação. Só que existe também uma dimensão importante de dissintonia entre as distintas tradições científicas, pois o modo como respeitamos os direitos de nossos interlocutores não é igual à maneira como se faz isso na área biomédica, habituada a intervir nos participantes da pesquisa. Aliás, o compromisso ou responsabilidade ética do antropólogo com os participantes não acaba com a conclusão da investigação, mas se mantém na definição de o quê, como e quando publicar. Da mesma forma, ainda que o antropólogo não possa controlar a recepção e as implicações decorrentes da publicação dos resultados, não deve se eximir de intervir no debate público sempre que perceber manipulações indevidas de suas publicações, motivadas por interesses que ameacem direitos dos sujeitos da pesquisa (Cardoso de Oliveira, 2004). 31 ÉTICA ImplIcações ÉtIcas da(s) IdentIdade(s) assumIda(s) no campo Isso não quer dizer que não existam polêmicas em relação aos modos de observar os compromissos ou responsabilidades éticas na pesquisa antropológica. Nesse sentido, vale mencionar rapidamente uma prática de pesquisa que teve algum sucesso nos anos 1930. Trata- se de um trabalho de Foote Whyte (2005) recentemente traduzido para o português, intitulado Sociedade de Esquina, em que o antropólogo relata que uma das maneiras como ele estabelecia relações com os sujeitos da pesquisa era justamente sem se identificar como pesquisador, embora em alguns momentos ele se apresentasse dessa forma. Tal estratégia sugere uma aproximação indevida ao trabalho do espião, na medida em que o pesquisador disfarça sua identidade real para alcançar um material de pesquisa ao qual provavelmente não teria acesso sem ludibriar o interlocutor. Esse modo de estabelecer a relação entre pesquisador e pesquisado passou a ser muito criticado e não tem mais a mesma aceitação hoje em dia. Já outros casos, como a experiência de pesquisa de Favret-Saada (1985) sobre bruxaria na França, tratam de situações nas quais o antropólogo assume uma posição institucional nativa, compartilhada com a identidade de pesquisador no campo, e em que nem sempre é claro para todos os interlocutores que ele está realizando uma pesquisa (Cardoso de Oliveira, 2004). Mas, em nenhuma circunstância, ele engana seus interlocutores ou disfarça sua identidade. Apenas não se preocupa em lembrá-los ou informá-los de sua atividade de pesquisa quando está atuando na posição nativa.1 Na mesma direção, em minha tese de doutorado sobre um juizado de pequenas causas nos Estados Unidos (Cardoso de Oliveira, 1989), combinei a perspectiva tradicional da disciplina, expressa na identidade de pesquisador, como quer que ela faça sentido para o grupo estudado, com a assunção de posições institucionais nativas quando atuei como conselheiro leigo para pequenas causas e como mediador de disputas em diferentes momentos da pesquisa. Também nesse caso, não seria gramatical avisar ou lembrar meus 32 Luis Roberto Cardoso de Oliveira interlocutores de minha condição de pesquisador quando exercia atividades de mediação ou de aconselhamento, ainda que em nenhum momento minha atuação pudesse ser caracterizada como a de alguém tentando ludibriar seus interlocutores. Afinal, as três identidades ou posições sociais eram públicas. Além disso, todos os conselheiros e mediadores eram voluntários e, portanto, também exerciam outras atividades não reveladas aos interlocutores nas sessões de mediação ou de aconselhamento, de acordo com os procedimentos socialmente instituídos. A propósito, gostaria de mencionar também o trabalho recente de Scheper-Hughes (2009) sobre tráfico de órgãos, cuja apresentação faz parte do número do Anthropology News acima referido, dedicado à discussão das inovações no Código de Ética da AAA. Scheper-Hughes propõe uma antropologia com uma orientação ética diferente para o que ela chama de “etnografia engajada”. A autora tem outros trabalhos, nos quais propõe uma “antropologia militante”, com implicações similares, mas aqui ela prefere caracterizar sua perspectiva como “engajada”. É preciso dizer que Scheper-Hughes realiza seu trabalho sobre tráfico de órgãos combinando a identidade de pesquisadora com o ativismo político, estando ao mesmo tempo associada à Universidade da Califórnia, em Berkeley, e a uma organização da sociedade civil que tem por objetivo combater o tráfico de órgãos humanos. Resumindo seu argumento, a autora assinala que, para realizar seu trabalho, não pôde seguir os princípios básicos do Código de Ética da AAA, os quais enfatizam a preocupação com a transparência, o compromisso com a revelação completa dos objetivos da pesquisa e o consentimento dos sujeitos, mesmo com a flexibilização vigente, que não exige um documento assinado. Um parêntese: na alteração recente do Código de Ética da AAA, é feita uma nova interpretação sobre o consentimento livre e esclarecido, que não precisa mais ser sempre assinado.2 Além disso, chama-se a atenção para o fato de que a responsabilidade do antropólogo em relação ao consentimento e aos sujeitos da pesquisa não termina no primeiro contato, em que a pessoa concorda em se submeter à atividade de pesquisa. Ao contrário, o consentimento 35 ÉTICA devido às diferenças nas formas de produção da verdade vigentes na antropologia e no direito. Os laudos periciais têm suscitado polêmicas porque, elaborados para subsidiar processos de demarcação de terras indígenas e quilombolas, frequentemente só são apreciados positivamente pela comunidade de antropólogos quando solicitados em defesa dos interesses das minorias étnico-raciais em tela – em atenção seja a demandas do Ministério Público, que tem o dever constitucional de defender os direitos desses grupos, seja a demandas do Judiciário, que, em tese, leria o laudo como peça de esclarecimento para resolver a disputa, motivado por critérios de imparcialidade. Mas a ênfase no compromisso com a defesa dos interesses dessas minorias, às vezes colocada como uma questão de princípio, tem posto em xeque, no debate público, a qualidade técnica dos laudos antropológicos, com implicações potencialmente negativas para a defesa dos direitos de indígenas e quilombolas. Como há casos em que antropólogos rejeitam publicamente a possibilidade de fazer laudos contratados por empresas (fazendeiros ou órgãos públicos) interessadas nas terras ocupadas por indígenas ou quilombolas, essa prática pode trazer problemas na relação com o Judiciário. Isso porque, se essa perspectiva atribuída aos antropólogos for entendida como motivada por uma solidariedade absoluta para com as comunidades indígenas e quilombolas, prevalecente sobre os critérios que fundamentariam a objetividade da análise técnica do pesquisador, a importância do laudo antropológico para os processos judiciais seria fortemente abalada. Os antropólogos, em princípio, devem ter o direito de fazer laudos para quem quer que seja, desde que estes sejam laudos éticos. E o que seriam laudos éticos? Seriam laudos de acordo com pelo menos dois daqueles três compromissos ou responsabilidades éticas que mencionei inicialmente: primeiro, o compromisso com a verdade – não uma verdade absoluta, mas a verdade da maneira como ela é construída na nossa disciplina, ou seja, uma verdade baseada em pesquisa empírica, à luz dos critérios de validação da interpretação antropológica; segundo, o compromisso que estabelecemos com os sujeitos da pesquisa, o que implica, além do respeito, a preocupação 36 Luis Roberto Cardoso de Oliveira em não prejudicar os direitos e os interesses legítimos dos atores ou do grupo pesquisado. Uma vez orientado por esses dois compromissos, o antropólogo deveria poder fazer laudos para quem quer que fosse, inclusive os chamados “contralaudos”. No entanto, é importante referir que os antropólogos em geral se solidarizam com as populações indígenas e quilombolas não por causa de uma identificação intrínseca ou romântica com esses grupos, mas porque esses são segmentos que, de acordo com os instrumentos analíticos que aprendemos com a nossa disciplina, sofrem arbitrariedades e passam por processos de discriminação e abusos de todo tipo impostos por outros grupos da sociedade brasileira ou mesmo pelo Estado. Pois é exatamente esse tipo de situação, desvendada pela análise antropológica, que motiva nossa solidariedade e, às vezes, nossa indignação. E é fundamental que saibamos, em nosso trabalho, separar a solidariedade fundamentada por essa perspectiva de outros tipos de solidariedade sem o mesmo fundamento, que também têm o seu lugar, mas que não devem ser associados à produção dos laudos periciais. Minha última observação também se refere a uma das dificuldades do trabalho dos antropólogos na produção de laudos, associada ao diálogo com o direito. Em qualquer circunstância, o antropólogo tem aqueles três compromissos ou responsabilidades éticas (ainda que eu não tenha tido espaço para elaborar sobre o terceiro deles aqui), que implicam a assunção de obrigações de caráter ético-moral para com a verdade, para com os sujeitos da pesquisa e para com a sociedade ou a cidadania. No entanto, o trabalho do advogado não é pautado pelos mesmos princípios e compromissos, porque a verdade do advogado tem duas características radicalmente distintas da do antropólogo. Primeiro, ela não está fundamentada em pesquisa empírica – essa é uma diferença enorme que dá uma flexibilidade imensa para o advogado. Segundo, de acordo com os princípios éticos vigentes na prática do direito, o advogado tem a responsabilidade de defender o cliente em qualquer circunstância, devendo acionar, no contraditório, a doutrina que melhor se ajuste aos interesses do cliente (seu oponente fará o mesmo, e ambos o fariam de forma 37 ÉTICA invertida se trocassem de lugar sem passar por qualquer dilema ou constrangimento ético). Já o antropólogo, ainda que deva ter o direito de fazer laudos para quem quer que o contrate, não pode ajustar sua interpretação para defender os direitos ou os interesses de quem o contrata se isso ferir aqueles três compromissos ou responsabilidades éticas que caracterizam a prática da disciplina. Essa é uma diferença importante, nem sempre muito clara para os atores, mas que merece nossa atenção. 1 A rigor, em nenhuma pesquisa de campo bem-sucedida, na qual o antropólogo convive com o grupo pesquisado por um período razoável, ele estabelece relações apenas de pesquisa com seus interlocutores. É difícil evitar relações pessoais ou mesmo de amizade, que às vezes envolvem uma multiplicidade de papéis. Nas pesquisas em sociedades tribais, por exemplo, o antropólogo é frequentemente incorporado a uma família, estabelecendo la- ços de parentesco a partir dos quais se espera que assuma uma série de papéis tradicionais nas relações com os atores. 2 Na recente revisão do Código de Ética da AAA, o consentimento não precisa mais ser assinado e pode tomar diversas formas. A qualidade do consentimento passa a ter precedência sobre a forma: “O consentimento livre e esclarecido, para os propósitos deste código, não necessariamente implica ou requer um docu- mento escrito ou assinado em particular. É a qualidade do con- sentimento, não o formato, que é relevante” (AAA, 1998). 3 Em reportagem publicada em 24 de julho de 2009 no Daily News, a propósito da participação de Scheper-Hughes na prisão do traficante de órgãos Levy-Izhak Rosenbaum em Nova York, indica-se a colaboração da antropóloga com forças policiais no Brasil e na África do Sul, com base em suas pesquisas sobre trá- fico de órgãos nesses países (Daly, 2009). referêncIas AMERICAN ANTHROPOLOGY ASSOCIATION (AAA). Code of ethics of the American Anthropology Association. Arlington: AAA, 1998. Disponível em: <http://www.aaanet.org/ committees/ethics/ethcode.htm>. Acesso em: 28 dez. 2009 40 Claudia Fonseca procedimento com nossos informantes e a interlocução com as comunidades-alvo de pesquisa. Essas orientações são pertinentes também para nossa maneira de divulgar o estudo, ou de integrar os resultados em políticas práticas. Entretanto, há esse “fator complicador”, que extrapola o código disciplinar: como proceder quando, no desenvolvimento ou divulgação de nossas pesquisas, nos deparamos com atores no próprio campo de ciências que não entendem a “ética” nos mesmos termos que nós? Gostaria de iniciar uma resposta a essa pergunta indo além das definições do dicionário e acolhendo as reflexões de Jasanoff (2005), uma das principais pesquisadoras norte-americanas nos estudos da ciência. A partir de uma análise comparativa sobre comitês nacionais de bioética – na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos –, ela investiga como, na prática, a ética é entendida. Lembra que a ética pode ser considerada como um ramo da filosofia, um discurso propriamente disciplinar, dominado por especialistas da análise moral. Mas descreve um reconhecimento crescente de que a análise ética não pode proceder conforme um modelo acadêmico clássico, como sistema fechado de regras. Jasanoff sugere que emerge daí uma maneira de pensar a ética enquanto fórum de comunicação, de deliberação democrática, aberto (inclusive) a leigos para discutir prioridades no rumo da ciência e tecnologia. É praxe, na universidade, consignar os debates éticos a um comitê especializado, composto de respeitados pesquisadores que se reúnem periodicamente para avaliar pesquisas propostas e em andamento. Certamente, ao incluir especialistas de diversos campos, esses pequenos fóruns já enfrentam o desafio de uma discussão interdisciplinar. Resta ver se, na sobrecarga do dia a dia, sobra espaço para aprofundar as implicações desse encontro de perspectivas. Da minha parte, estou cada vez mais convencida de que questões de ética não podem ser convenientemente relegadas a reuniões mensais de um pequeno comitê na reitoria. Assim, em minha reflexão, sigo a inspiração de Jasanoff (2005), explorando a ética como fórum de debates, como espaço de deliberação democrática, aberto inclusive a leigos. 41 ÉTICA o estopIm de mInha reflexão Para melhor explicitar meu objetivo, cabe descrever o epicentro de minhas inquietações – um episódio que se deu há dois anos. Começou com um artigo de jornal publicado em novembro de 2007 sobre uma pesquisa envolvendo médicos e geneticistas de duas grandes universidades gaúchas e representantes da Secretaria da Saúde. Os pesquisadores se propunham a realizar exames de ressonância magnética para “mapear os cérebros” de cinquenta “adolescentes homicidas” encarcerados na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Garcia, 2007). O objetivo da pesquisa, o jornal informava, era descobrir “como se produz uma mente criminosa” e, assim, entender “as bases biológicas da violência” (Garcia, 2007). Na internet, em uma enxurrada de mensagens, diversos profissionais expressaram sua profunda indignação diante dos termos do artigo. As críticas foram lideradas por um grupo de psicólogos, sociólogos e antropólogos cariocas que fizeram circular (sempre na internet) um abaixo- assinado denunciando as premissas eugenistas da proposta, que estaria associada a “velhas práticas de exclusão e de extermínio” (Nota de repúdio, 2007). Os críticos referiam- se à precariedade das políticas públicas para sugerir que o desenho da pesquisa não fazia jus à complexidade do problema da violência no Brasil e, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, questionavam se os direitos dos adolescentes pesquisados não estariam sendo violados. O espírito do abaixo-assinado seria multiplicado numa série de manifestações por profissionais em diferentes partes do país. Vide, por exemplo, a nota publicada em um jornal local e, logo depois, no site do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, em que a autora denunciava o viés “reducionista” da pesquisa que “biologiza” a criminalidade. Sua questão principal ia ao cerne das preocupações com a pesquisa científica: “[..] Quais os benefícios e os beneficiários da pesquisa; quais as ameaças e ganhos advindos e quem sofrerá seus efeitos?” (Eidelwein, 2008, p. 21). Demorou para os ecos do debate no mundo virtual alcançarem a grande imprensa. Quando foi contatado, no início de janeiro de 2008, mais de um mês depois da 42 Claudia Fonseca publicação do artigo original, o repórter responsável pela matéria respondeu que “não tinha ideia de que o assunto tivesse repercutido tanto, já que esta é a primeira carta que nós recebemos aqui na editoria de ciência sobre essa reportagem” (Garcia, 2008a). Logo o jornalista propôs devolver o debate para o grande público e, assim, duas semanas depois, saiu uma página inteira na Folha de S. Paulo com a “nota de repúdio” do grupo carioca, ao lado da tréplica dos pesquisadores gaúchos e de um artigo “mediador” do repórter intitulado Psicólogos tentam impedir pesquisa com homicidas (Garcia, 2008b). A reação dos pesquisadores criticados foi imediata. Aproveitaram a publicidade para montar uma campanha de âmbito nacional a favor de sua pesquisa. Tem-se a impressão de que, desde o primeiro retorno que receberam do repórter da Folha, mobilizaram uma equipe de assessores para programar uma série de emissões na TV – em programas como Globo Repórter, Conversas Cruzadas e Fantástico – e nos jornais. Atribuíam as críticas ao “desconhecimento” – isto é, ao “feudalismo acadêmico” que levaria cientistas sociais1 a ignorar as novidades na área de neurociências –, ou a uma crença ingênua de que “os fenômenos mentais e sociais ocorrem independentemente dos cérebros dos indivíduos” (Flores, 2008). Insistiam que estavam compondo uma equipe interdisciplinar, na qual seriam incluídos psicólogos e cientistas sociais para testar os diversos fatores em jogo, e que previam todo o necessário para garantir a “ética” do procedimento – ou seja, o formulário de consentimento livre e esclarecido assinado por cada adolescente e, eventualmente, por algum familiar. A própria Folha publicou, um dia depois do “debate”, um editorial intitulado Razão e preconceito, acusando os signatários da nota de repúdio de estarem fazendo uma associação “enviesada e precipitada” da proposta de pesquisa com a “pseudociência” “sem base real” do século XIX. O jornal insinuou que, “ao estigmatizar o estudo com noções preconcebidas”, os críticos estavam criando obstáculos ao progresso da ciência (Folha de S. Paulo, 2008).2 Mas o comentário mais marcante, publicado em forma de artigo na Zero Hora, veio de um pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 45 ÉTICA nas sucessivas edições, a partir de 1964, da Declaração de Helsinque (Costa, 2008; Jasanoff, 2005). Primeiro na lista de dez itens do Código de Nurembergue constava o consentimento livre e esclarecido, isto é, o princípio de que nenhum sujeito humano deveria ser incluído numa investigação sem ter compreendido os objetivos e assentido com os riscos da pesquisa. Observadores se admiram hoje da fé que os proponentes do código depositavam na liberdade do sujeito em optar pela aceitação ou recusa de participação na experiência médica (Kottow, 2008). Mas essa fé era coerente com a visão de ciência vigente na época. Continuava-se a pressupor que a boa ciência operava numa esfera autônoma, de pessoas especializadas capazes de se autorregularem. A má ciência do regime nazista tinha sido consequência da intromissão do governo naquela esfera. O espírito crítico, a transparência e a neutralidade – atributos típicos do regime democrático – seriam ingredientes necessários e suficientes para o desenvolvimento de uma ciência ética (Merton, 1942). Foi também no contexto norte-americano que apareceram as primeiras evidências de que, mesmo no seio da sociedade democrática, havia perigo de a ciência “desandar”. Em 1966, um médico da Universidade de Harvard, Henry Beecher, publicou um levantamento de 22 projetos desenvolvidos por cientistas norte-americanos, todos altamente qualificados, em que a saúde das pessoas envolvidas tinha sido gravemente prejudicada pela pesquisa. Uma das conclusões mais alarmantes do estudo de Beecher era que boa parte da experimentação ocorria em populações vulneráveis: recrutas militares, portadores de deficiência mental, idosos, presos, crianças, etc. A pergunta que se colocava era: esses indivíduos estão em condições de negociar os termos de sua participação numa pesquisa acadêmica? Tornou-se evidente que existiam situações em que a questão ética ia muito além do simples consentimento livre e esclarecido. Petryna (2005, p. 185, tradução nossa) descreve como, nos Estados Unidos, esse questionamento provocou uma moratória de pesquisa entre populações encarceradas e um reajuste nas estratégias das companhias farmacêuticas: 46 Claudia Fonseca [...] O volume de pesquisa nas cadeias era impressionante: cerca de 90% dos remédios liberados para uso antes dos anos 1970 tinham sido testados em populações encarceradas... Com a proibição do uso de presos (para experiências médicas), as companhias farmacêuticas perderam sua base inteira de voluntários humanos. Foram obrigadas a deslocar boa parte de sua pesquisa para outras regiões: para a Europa [...] e para outros lugares com uma grande reserva de sujeitos aptos a se apresentarem como voluntários [por causa de sistemas nacionais de saúde inadequados e de acesso limitado a recursos médicos]. Assim, a partir do fim dos anos 1970, restrições éticas orientavam que o uso de detentos em experiências médicas era justificado em apenas duas circunstâncias: quando a pesquisa era voltada à melhoria do próprio ambiente prisional, ou quando revertia em benefício direto para os presos. Entretanto, duas décadas mais tarde, as atitudes estavam mudando mais uma vez. Em 1999, um pesquisador da Universidade de Stanford provocou celeuma ao apresentar os resultados de seu estudo sobre o uso de drogas para o controle comportamental de adolescentes privados de liberdade (Kahn, 1999). Tal como observou um analista, o consentimento livre e esclarecido nesse caso era “duplamente complicado”, pelo fato de os participantes da experiência serem presos e menores de idade (Kahn, 1999). Pouco tempo depois, o Instituto de Medicina (IOM, na sigla em inglês), a pedido do governo estadunidense, foi chamado a rever os critérios éticos para a pesquisa científica. Em particular, devia examinar se, naquele cenário, a moratória quanto ao uso de detentos em experiências científicas continuava apropriada. Oponentes à mudança insistiam que presos não estavam em condições de consentir livremente com qualquer coisa, que eram motivados a participar em experiências por benefícios mínimos (algumas horas fora da cadeia para fazer exames, um tratamento médico básico, etc.) ou na esperança de angariar as simpatias do juiz. Chamavam atenção também para as pressões da indústria 47 ÉTICA farmacêutica, que, cerceada por crescentes restrições à experiência médica no Terceiro Mundo, clamava pela possibilidade de recrutar “voluntários” perto de casa.5 Contudo, a evolução do contexto trouxe novas nuances ao debate. Hoje, boa parte dos especialistas em ética em pesquisa defende o uso criterioso de presos em experiências científicas. Criticam atitudes paternalistas que apresentam o detento como vítima passiva, incapaz de exercer o discernimento. Também argúem contra restrições que afastam pessoas da oportunidade de usufruir de tratamentos de ponta (Goldim, 2004; Luna, 2008). Não é, portanto, surpreendente que o comitê estadunidense encarregado de rever a ética em pesquisa tenha citado mudanças na própria literatura sobre bioética para justificar suas conclusões. O comitê insiste que as ideias de justiça e respeito por pessoas continuam centrais às considerações éticas para a pesquisa científica. Entretanto, frisando que o significado desses princípios evoluiu, sugere a mudança de uma ética “baseada em categorias” para uma ética “baseada no cálculo de risco e benefício”. Tal recomendação representa uma flexibilização sutil das possibilidades de uso de detentos na experimentação científica (Committee on Ethical Considerations for Revisions to DHHS Regulations for Protection of Prisoners Involved in Research, 2006). A partir dessa recapitulação do caso estadunidense, observamos que existe considerável controvérsia em torno de certos pontos particularmente sensíveis da ética em pesquisa. Assim, não é nada surpreendente que questões sobre a insuficiência do consentimento livre e esclarecido e a necessidade de vigilância em relação a experiências científicas entre populações vulneráveis voltem à tona em cada geração de pesquisa, produzindo, eventualmente, novos resultados. O próprio dinamismo do campo revela que não há fórmula pronta, nem código legal, que consiga garantir o bom procedimento dos cientistas. Aponta para a necessidade de discussões constantemente renovadas a fim de examinar as exigências éticas da pesquisa diante das (sempre) novas circunstâncias. 50 Claudia Fonseca quais os efeitos benéficos para os próprios adolescentes participantes da pesquisa. É difícil imaginar como projetar a imagem de “infratores” como pessoas neurologicamente comprometidas ajudará na sua reinserção social. É verdade que a proposta incluía o exame de fatores ambientais. Porém, essas considerações eram atreladas a teorias sobre os períodos cruciais de aprendizagem durante a primeira infância. E, como lembram observadores críticos, inclusive alguns da área de neurociências, tal perspectiva desloca apenas levemente o determinismo: dos genes para o ventre ou peito da mãe. Além disso, carrega conotações altamente estigmatizantes de que – por causa de carências materiais e faltas afetivas nos primeiros anos da vida – populações inteiras restam irremediavelmente subdesenvolvidas do ponto de vista cerebral (Bruer, 1999). Assim, com essa convicção de que o efeito das palavras é tudo menos inócuo, cientistas sociais reagiram contra o artigo na Folha de S. Paulo, que parecia transmitir em cada frase categorias discriminatórias. Defensores da pesquisa proposta objetaram que os críticos tinham se precipitado, que não fazia sentido tanto escarcéu em torno de uma pesquisa que estava apenas na fase inicial de elaboração. Do ponto de vista dos cientistas sociais, era a precoce divulgação da pesquisa que causava consternação. As premissas e hipóteses da proposta pareciam ser absorvidas pelos espectadores como fato, antes mesmo da produção de evidências. Alguns críticos declaravam sua intenção de impedir a realização da pesquisa proposta, mas o foco principal de indignação era, sem dúvida, a linguagem usada no artigo. Considerando que se tratava de uma disputa pela opinião pública, é irônico que a crítica tenha acabado deflagrando uma quantidade de matérias na mídia nacional em que os autores da pesquisa conseguiram disseminar suas ideias a um público receptivo. Durante semanas, os canais nacionais de televisão incluíram o debate entre as notícias cotidianas, enquanto programas como o Fantástico – formulando a hipótese da pesquisa através de imagens animadas do cérebro e outras táticas de divulgação popular da ciência – passaram a ideia de que a maioria (senão todos) dos adolescentes privados de liberdade possuem uma parte do 51 ÉTICA cérebro atrofiada. Ao que tudo indica, os autores da pesquisa criticada calcularam a força da mídia melhor do que os cientistas sociais com os quais debatiam, e acionaram uma linguagem acessível para garantir a comunicação. as cIêncIas nem maIs, nem menos exatas Os críticos à proposta original eram apresentados como cientistas sociais fechados no seu “feudo acadêmico” que não aceitavam ceder diante das novas evidências de que a biologia (ou o cérebro, ou os genes) tivesse influência sobre o comportamento. Tal como em outras polêmicas científicas que despontam na imprensa, reavivava-se o velho debate, já amplamente criticado por antropólogos contemporâneos, de natureza versus cultura (Ingold, 1996; Latour, 1994). Enquadrava-se o conflito em termos de uma “guerra das ciências” que previa uma relação de rivalidade entre os especialistas das ciências exatas e os das ciências humanas. Sem dúvida, de ambos os lados, o calor do debate sugeria tensões latentes que remetiam a tradições disciplinares profundas. Porém, tal observação não se confunde com a ideia de uma oposição simples, nem de uma homogeneidade de opiniões de cada lado de alguma fronteira imaginária. Em todo caso, da parte de muitos psicólogos, educadores e cientistas sociais, as críticas à proposta de pesquisa pareciam remeter menos a um apego corporativista ao polo “cultura” do que a um desconforto com a maneira como as “evidências” em torno do polo “natureza” estavam sendo produzidas. Em primeiro lugar, aos olhos dos críticos, a escolha do lugar para a pesquisa – uma instituição de privação de liberdade para adolescentes – encerrava equívocos técnicos e éticos. Ignoravam-se décadas de pesquisa nas ciências sociais que haviam demonstrado que: a) há uma imensa proporção de crimes impunes – em certos contextos, os homicídios não solucionados chegam a 90% do total (Abreu; Sousa; Alli, 1999); e b) entre aqueles infratores detectados, sentenciados e encarcerados, há uma desproporção de pessoas de grupos discriminados. Em outras palavras, ser visto como negro, indigente, ou mesmo 52 Claudia Fonseca de “família desestruturada” são estigmas – mecanismos de discriminação social – que facilitam a severidade dos julgamentos (sem falar na ineficácia das defesas) e que levam à concentração desmedida dessas categorias discriminadas nas cadeias (Leung et al., 2002; Lima, 2004; Wacquant, 2001). Tais observações não são cunhadas para apresentar a população de presos como inocente e, muito menos, inócua. Mas sugerem que não é possível pressupor que se concentram na cadeia os indivíduos “mais violentos” da sociedade. Tal pressuposto representaria um deslize metodológico baseado no senso comum. Seguindo adiante nessa linha de raciocínio, perguntei para um colega geneticista (e apoiador da pesquisa criticada): “Por que não fazer ressonância no cérebro de policiais cariocas? Eles também têm uma reputação de alta violência”. Ele respondeu com certa impaciência: “A resposta é óbvia. Porque os policiais não iam deixar...”. A resposta só reforçava minha apreensão quanto aos efeitos estigmatizantes daquela pesquisa. Por que os policiais ou seus superiores institucionais não aceitariam participar? Porque saberiam que a simples notícia daquela investigação – com sua premissa de uma tendência fisiobiológica à violência – bastaria para reforçar preconceitos contra a polícia. Sobra então a pergunta: quem deixaria? E, ao considerar as possíveis respostas, surge mais uma dúvida. Será que os adolescentes privados de liberdade foram eleitos como alvo de pesquisa “simplesmente por conveniência administrativa ou por serem fáceis de manipular, em razão de sua [...] condição socioeconômica”? (Relatório Belmont, 1979 apud Castro, 2008, p. 242). Tal proceder seria uma violação de um princípio que muitos especialistas em ética em pesquisa consideram fundamental: a equidade na seleção de participantes. Em segundo lugar, considera-se que as opções metodológicas revelam uma formulação do problema de pesquisa com implicações inquietantes. Desde o início, os autores da pesquisa frisavam que não iam se limitar a jovens privados de liberdade. Era prevista uma segunda etapa de estudos com um grupo de controle entre adolescentes de camadas mais abastadas. Mas permanece a pergunta: por que começar com os internos? Esse ponto de partida 55 ÉTICA ciências comportamentais e outros suportes classicamente associados ao planejamento de políticas públicas. Mesmo nos documentos considerados como referência fundamental, a discussão sobre a literatura científica é muito sumária – evocando inevitavelmente uma ou outra experiência pontual com animais não humanos.6 As “causas” em cujo nome se introduz a neurociência fazem parte de um regime de bom senso para qualquer governo: melhoria nos serviços pré e pós-natais, nos cuidados pediátricos, no planejamento familiar, na assessoria para pais, programas de creche e pré-escola, reforma do sistema previdenciário. Entretanto, Bruer, como administrador responsável pelo financiamento de pesquisas em neurociências, encontra pouco nessas discussões que o ajude.7 Descrevendo sua frustração depois de um evento pivô organizado na Casa Branca por Hillary Clinton em 1997 (com subtítulo “O que a nova pesquisa sobre o cérebro pode nos dizer sobre a primeira infância”), diz: Fiquei perplexo porque durante a conferência tinha ouvido muitas e abrangentes recomendações para políticas públicas, com justificação baseada na “nova ciência do cérebro”. Entretanto, tinha escutado relativamente pouco sobre essa ciência, absolutamente nada que eu poderia, em boa consciência, descrever como “novo”, e nenhuma pesquisa que pudesse demonstrar a relação entre gatinhos cegos e a reforma do sistema previdenciário (Bruer, 1999, p. 8-9). Bruer segue fornecendo relatos pormenorizados sobre os “saltos lógicos” cometidos ora por jornais, ora por políticos e ora pelos próprios pesquisadores, ansiosos para demonstrar a relevância social de suas pesquisas. Questiona como a ideia de mais sinapses é confundida com mais inteligência. Questiona como os resultados de pesquisas no cérebro de ratos com dois meses de idade (fim da adolescência para essa espécie) são usados para falar dos cérebros de recém-nascidos humanos. Questiona como diferenças entre espécies – no ritmo do desenvolvimento, nos sentidos privilegiados para adaptação ao meio ambiente, etc. – são ignoradas para alardear generalizações que passam de gatos, macacos e ratos a seres humanos. 56 Claudia Fonseca Ele faz uma demonstração particularmente interessante de sua tese (sobre a relação complexa entre mídia, política e ciência) ao seguir a trajetória de uma imagem que coloca lado a lado o Pet scan dos cérebros de duas crianças de três anos, tendo o da criança “globalmente negligenciada” a metade do tamanho do outro. Essa imagem, conta Bruer, foi originalmente publicada no resumo de um trabalho apresentado em um congresso médico. E foi então reproduzida em lugares diversos – nas revistas Time e Newsweek, em sites oficiais do departamento de saúde estadunidense, etc. – para apoiar políticas de educação precoce visando prevenir um grande leque de problemas sociais: desde o retardo mental e o tabagismo até o crime violento. O único problema é que ninguém parou para perguntar em quais condições aquela imagem tinha sido feita, por quem, e sobre que tipo de população. Depois de muitos telefonemas, Bruer finalmente localizou a pessoa que tinha feito as imagens originais, um neurologista pediátrico e pesquisador universitário. Este lhe informou que as imagens eram fruto de pesquisas realizadas com órfãos romenos vivendo nos Estados Unidos. Mas quando Bruer pediu para ler o artigo publicado sobre a pesquisa, sem dúvida com mais detalhes, seu interlocutor disse que estava esperando para repetir suas experiências antes de publicar qualquer conclusão precipitada. Dois anos depois, quando mais uma vez falou com Bruer, o pesquisador disse que tinha descartado as imagens – não iria publicá- las nunca, pois análises subsequentes de seus dados revelaram que não havia nenhuma diferença significativa entre os cérebros de crianças negligenciadas e os cérebros de crianças no grupo “normal”. Não obstante a cautela (e ética científica) desse pesquisador, seu material já tinha sido usado no mundo inteiro para dar apoio “científico” a ideias do senso comum que apresentavam a educação infantil precoce como antídoto para todo e qualquer problema social. Bruer deixa claro que está engajado na procura por métodos pedagógicos eficazes, que apoia esforços para garantir o bom nível da educação pré-escolar (que seja realizada em famílias ou em creches). Mas questiona os argumentos que enfatizam “os três primeiros anos da vida” 57 ÉTICA a ponto de dar a impressão de que as outras etapas de aprendizagem são secundárias. A aposta política de Bruer se torna manifesta no subtítulo de seu livro, que alude a “uma nova compreensão” do cérebro e “da aprendizagem que continua ao longo da vida”. É evidente que Bruer acredita numa conexão entre fatores ambientais e o desenvolvimento do cérebro. Mas coloca sérias dúvidas se um determinado tipo de pesquisa “popular” está avançando os conhecimentos nessa área. E traça críticas sobre as falhas metodológicas dessa pesquisa a partir de firmes convicções políticas. O trabalho de Bruer (e outros observadores que se propõem a realizar uma crítica “interna” às ciências exatas) fascina cientistas sociais como eu porque reforça nossa convicção de que as ciências naturais não são nem mais nem menos exatas que as humanas. Entretanto, torna-se mister evitar os exageros potenciais desse tipo de crítica. Usar esse material para desqualificar uma ou outra vertente da ciência seria abraçar, como instrumento de luta, os elementos da ciência positivista que queremos contestar. Devemos evitar o viés cientificista empenhado em dividir as pesquisas entre “certas” e “erradas”. De Bourdieu a Latour, cientistas sociais especializados no estudo da ciência insistem que há muita intuição no trabalho científico em todas as disciplinas. Há tentativa e erro, e os fracassos fazem parte da rotina – tanto nas ciências exatas como nas humanas. A criatividade do trabalho científico envolve momentos em que os próprios cientistas não sabem exatamente por onde andam. Para encarar as diferenças entre oponentes intelectuais (e a exaltação com a qual um campo localiza os “erros” do outro), poderíamos usar a perspectiva kuhniana da ciência como sucessão de paradigmas em que, devido a um número crescente de contraexemplos, determinada teoria, antes hegemônica, é gradativamente minada e substituída (Kuhn, 1987). Mas há outra proposta, mais coerente com a visão de ciência com a qual trabalhamos aqui. Na sua análise da “gênese de um fato científico” (no caso, a descoberta do microorganismo associado à sífilis), Fleck (2005) postula que diversos “estilos de raciocínio” científico – cada um com sua lógica interna – podem coexistir, mesmo sendo incompatíveis (em certos detalhes) entre si. Os estilos 60 Claudia Fonseca especialistas médicos, deu um veredito negativo: não havia nada especial nos efeitos da maconha que justificasse a repressão desmedida de seu consumo. Entretanto, os dirigentes franceses, apoiados na convicção de que a maconha ofendia um suposto consenso moral, não se deram por satisfeitos com esses resultados. Convocaram uma nova rodada de especialistas, desta vez da área da psicanálise, que, com pitadas de retórica lacaniana, garantiram que a drogadição era uma doença da psique, provocada em grande medida por uma falta de figura paterna. Os dependentes tóxicos, na realidade, careceriam de uma figura de autoridade capaz de impor limites. O governo francês, ao interditar o uso da maconha, estaria preenchendo essa função terapêutica. Nesse caso, conforme Stengers e Ralet, teríamos a subordinação do “técnico” ao “político”, isto é, a formulação do problema conforme pressupostos que entregam controle a certos especialistas e ignoram outros. Os próprios cientistas, que raramente resistem às tentações do poder, se prestam a esse jogo. Falando sempre sobre o contexto francês, Stengers e Ralet contrastam a aparente falta de diálogo sobre a descriminalização da maconha com o fervilhar de opiniões trazidas à baila durante a formulação da política de combate à aids. Foram consultados historiadores, sociólogos, médicos, psicólogos e outros especialistas que levaram o governo à conclusão de que seria de pouca eficácia, e mesmo contraproducente, apelar à lei penal ou a outras medidas repressivas para impedir a disseminação da doença. Nesse caso, em vez de começar com uma injunção moral, os especialistas fizeram a pergunta: quem sou eu para dizer aos outros “faça” ou “não faça”? E, nesse espírito, trouxeram a única alternativa que Stengers e Ralet (1997, p. 222-223) consideram “verdadeiramente técnica”: “A clara exposição das controvérsias entre especialistas”. Aqui, estamos longe da definição usual da técnica como procedimento guiado pela pura racionalidade, livre da (e contrastada à) política. Estamos diante de uma perspectiva que apresenta a técnica, a política e a ética como indissociáveis. A tentação, quando saímos do laboratório e nos envolvemos em controvérsias multidisciplinares, é de esquecer que nossa racionalidade científica encerra todos esses elementos. Formulamos argumentos que transmitem 61 ÉTICA a “óbvia” superioridade de nossa visão no intuito de demolir o oponente e estancar o debate. No clima polêmico desse tipo de confronto, “a pessoa enfrentada não é um parceiro na procura da verdade, mas um adversário, um inimigo que está errado, que é perigoso, e cuja própria existência representa uma ameaça” (Foucault, 1997, p. 112; Rodrigues, 2008). Trata-se do que Haraway (2008) chama uma atitude “exterminista”, inspirada em geral em crenças de moralidade absoluta. Talvez esse estilo belicoso seja uma boa maneira de ganhar eleições, mas não propicia a produção de novas ideias condizentes com a reflexão científica, pois todas as energias são gastas em minimizar as controvérsias e escorar antigas verdades. A conclusão dessa linha de raciocínio não é que devemos evitar confrontos intelectuais, nem nos furtar a posicionamentos políticos, mas, quiçá, investir mais energia nas tecnologias do diálogo. uma ÉtIca do desconforto Foucault, num artigo dirigido ao público (francês) amplo (1979 apud Rabinow, 1997), faz uma distinção entre o engajamento político sartreano e sua própria maneira de se deixar “afetar” pelos acontecimentos do momento. A distinção é importante porque implica não uma postura fixa – com certezas duradouras –, e sim uma ética sujeita à experiência do próprio pesquisador, colada à trajetória de suas vivências. Para elaborar sua “ética do desconforto”, Foucault alude a Merleau-Ponty sobre a vocação do filósofo: “De nunca sentir-se completamente à vontade com aquilo que parece evidente”.8 Esse desconforto implica a possibilidade de se enganar e, assim, de rever, em função de novos acontecimentos, a postura (política e intelectual) adotada em época anterior. Estamos longe aqui da moralidade legalista que se agarra a regras supostamente universais e eternas apesar de todas as pressões (ou evidências) em contrário. Trata-se de uma determinada combinação de ética e ciência em que aquela impede que esta se torne dogma. Encontramos uma variante dessa ética do desconforto na postura de Haraway – primatologista, feminista e grande referência nos estudos da ciência – sobre o sacrifício de 62 Claudia Fonseca animais não humanos na experimentação científica. Nesse debate, a autora não desqualifica nenhuma voz; elenca a opinião de donas de casa, amigos pessoais e vegetarianos ativistas antes de chegar à sua própria – e trêmula – posição: Sim, eu defendo a matança de animais em condições materiais-semióticas que considero toleráveis... mas isso não basta. Recuso escolher entre “os direitos invioláveis dos animais” e “o bem-estar superior dos humanos”. Qualquer dessas opções dá a impressão de que, com um cálculo racional, podemos resolver o dilema. É só escolher... Recuso essa dicotomia racionalista que domina a maioria das disputas éticas (Haraway, 2008, p. 87). Trata-se de uma inquietação ética que não se resolve com uma cartilha de regras nem se restringe a um só momento da pesquisa. Haraway insiste que o cuidado ético se impõe ao longo da pesquisa: desde a aquisição da competência técnica até o trato atencioso com todos os organismos envolvidos na experiência. O cuidado ético se impõe, além de tudo, no engajamento político, que empurra o pesquisador a levar seus resultados para as arenas pertinentes de discussão, e na competência cívica, que lhe permite travar diálogos, sem ceder à polêmica, com aqueles “outros” que não reconhecem de antemão o mérito do seu trabalho científico. Apresentada nesses termos, a ética do pesquisador exige que se amplie o círculo de interlocutores nas discussões sobre aspectos éticos e técnicos da pesquisa científica. amplIando o círculo de Interlocutores Rejeitar a noção de “cidadela” da ciência, reconhecer que qualquer pesquisa encerra a possibilidade de sérias consequências, inteirar-se das controvérsias que rondam o tema da investigação, pleitear a necessidade do debate público entre especialistas, contestar as fronteiras que protegem certas áreas contra esse debate, aceitar a inquietação como parte do empreendimento científico são pistas estratégicas para aprofundar a reflexão sobre a ética 65 ÉTICA para opinar? Se a opinião dessas pessoas é descartada de antemão, qual a legitimidade dos demais signatários – psicólogos e advogados (com “apenas” um diploma de bacharel), ativistas e coordenadores de ONGs (que, quiçá, não têm ensino superior) – para entrar no debate? Se a inclusão de leigos nos comitês de ética se conformar a esse espírito, perguntamos como essas vozes conseguirão expressar qualquer coisa a não ser um “amém” à opinião “dos que sabem”. Ao reconhecer a abrangência das implicações éticas de nossas pesquisas, começamos a suspeitar que os “leigos” têm não somente o direito, mas também a competência para participar em muitas das decisões técnicas. Tal atitude não significa o cientista abdicar do saber especializado de sua área. Significa, sim, o reconhecimento de que nenhuma de suas opções é puramente técnica e que já existe uma inegável influência (se bem que pouco explicitada) do público no proceder científico. A ética científica, concebida como fórum de deliberação democrática, implica a promoção de um ambiente em que, indo além da cordialidade complacente, explicita-se esse envolvimento e contemplam-se seriamente as perspectivas alternativas. Implica a criação de um espaço em que, por ser afastada do exercício arbitrário de poder (censura), a crítica não é temida de antemão; e em que as inevitáveis paixões políticas são canalizadas não para algum consenso mítico (ideal dos tempos idos) e, sim, para o diálogo. Implica, afinal, uma opção quanto ao tipo de sociedade em que queremos viver. 1 Incluo nesse termo pesquisadores das ciências humanas: antro- pólogos, psicólogos, etc. 2 No editorial, a linguagem incendiária do primeiro artigo foi tro- cada por termos mais sofisticados. Em lugar de “adolescentes ho- micidas”, constava “jovens sob custódia do Estado que cometeram homicídios”. Nos argumentos do editorialista, entrou Descartes, saiu “a mente criminosa”. 3 O Relatório Belmont, referência de bioética, define a beneficência em termos de “maximizar os benefícios; e diminuir os possíveis danos” (Costa, 2008, p. 36). O Código de Ética Antropológica da Associação Brasileira de Antropologia reza que as populações, ob- jeto de pesquisa, devem ter a “garantia de que a colaboração 66 Claudia Fonseca prestada à investigação não seja utilizada com o intuito de preju- dicar o grupo investigado” (Víctora et al., 2004, p. 173). 4 Certamente, há colegas nas ciências sociais que pensam nesses termos – aqueles, por exemplo, que, no auge da celeuma, ousa- vam (com não pouca coragem) lembrar que os autores da pes- quisa gaúcha possuíam sólida reputação acadêmica, e que pelo menos um deles tinha longa história de colaboração junto a orga- nizações pelos direitos da criança e do adolescente. 5 Diniz e Corrêa (2001) contam como, nessa mesma época, sur- giram propostas no cenário internacional para modificar a Decla- ração de Helsinque e assim tornar populações em países pobres mais acessíveis à experimentação médica. 6 Citam-se, por exemplo, experiências que demonstram como a privação temporária de visão em macacos e gatos recém-nascidos provoca uma perda vitalícia dessa função. 7 Além de filósofo especializado em estudos da ciência, Bruer é presidente há 17 anos de uma fundação que financia pesquisas nas neurociências. 8 “Ética do desconforto” é o termo que Rabinow usa para traduzir a intenção de Foucault. referêncIas ABREU, D. 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De modo muito impreciso, sabemos que a física dispõe, desde as primeiras décadas do século XX, de duas teorias parciais para descrever o universo: a teoria da relatividade geral, que explica as leis da gravidade e a estrutura em grande escala do cosmos, e a mecânica quântica, que se ocupa do infinitamente pequeno. O maior obstáculo para uma teoria unificada desses dois mundos nasce da contradição entre o modo como partículas elementares interagem em nível microscópico e o que acontece quando essas partículas são medidas a partir do nível macroscópico (Byrne, 2008). No mundo quântico, uma partícula elementar (um elétron, por exemplo) pode existir em uma sobreposição de estados: diferentes localizações no espaço, velocidades e orientações. Para representar as várias configurações possíveis de um sistema quântico, os físicos empregam 72 Ciméa Barbato Bevilaqua entidades matemáticas chamadas de funções de onda, cuja evolução no tempo, necessária e contínua, é descrita a partir da chamada “equação de Schrödinger”. Essa elegante continuidade matemática é desafiada, no entanto, quando seres humanos observam um sistema quântico e medem suas propriedades. No momento da medição, a sobreposição de alternativas dá lugar a um único resultado, isto é, apenas um dos elementos da sobreposição é registrado. A própria emergência de uma alternativa específica, entre todas as demais, parece se revestir de arbitrariedade. Esse problema levou alguns dos mais influentes precursores da mecânica quântica a postularem o “colapso da função de onda” – um salto descontínuo produzido pelo próprio processo de medição, não explicável nem pelas propriedades anteriores do sistema nem pela equação de Schrödinger. Conhecida como a “interpretação de Copenhague”, essa abordagem privilegia o observador externo, colocando-o em um domínio clássico que é distinto do domínio quântico do objeto observado. Várias gerações de físicos aprenderam que as equações da mecânica quântica funcionam somente em uma parte da realidade, a microscópica, deixando de ser relevantes em outra, a macroscópica. E, embora incapazes de explicar a natureza da fronteira entre os domínios clássico e quântico, puderam empregar a mecânica quântica com grande sucesso técnico. De forma comparável à dualidade acima descrita, é possível dizer que, a partir de algumas premissas vagamente comuns acerca do conhecimento científico, diferentes campos disciplinares – refiro-me aqui de modo genérico, justificável tão-somente nos termos da analogia proposta, à problemática fronteira entre ciências naturais e ciências humanas – puderam desenvolver de forma mais ou menos independente projetos de conhecimento, teorias e métodos específicos, com resultados expressivos em seus respectivos universos de atuação. Ainda que a noção de unidade da ciência tenha permanecido no horizonte – seja como crítica à precária cientificidade das ciências humanas,2 seja como afirmação de uma similaridade essencial entre os métodos da ciência “dura” e da ciência “mole”3 –, em termos práticos esses grandes campos disciplinares puderam, na maior parte do tempo, desconhecer-se mutuamente. 75 ÉTICA questão desconcertante: como o mundo unitário de nossa experiência emerge da multiplicidade de alternativas disponíveis em um mundo quântico de superposições? No que diz respeito à regulamentação da pesquisa, e assumindo-se que pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento compartilham o propósito de aprimoramento ético das suas investigações, o equacionamento das tensões subjacentes a perspectivas distintas do fazer científico, trazidas à luz pela recente expansão normativa, supõe um passo similar. Se não é mais possível ou desejável apostar na indiferença recíproca, tampouco a universalização procustiana de um modelo particular, marcadamente formalista, tem sido capaz de promover uma verdadeira qualificação ética da pesquisa científica, fomentando o sentido de responsabilidade dos pesquisadores e processos mais participativos de investigação. Resta, portanto, o caminho do engajamento coletivo em busca de uma “teoria unificada” capaz de reconhecer e, tanto quanto possível, de articular os pontos de vista parciais sobre a ciência, a ética e os próprios seres humanos envolvidos em suas operações. etnografIa, planos de regulamentação e compromIssos ÉtIcos Sem perder de vista essas considerações de caráter mais geral, apresento a seguir reflexões suscitadas por experiências de pesquisa etnográfica em diferentes instituições estatais, contexto ao qual venho me dedicando há algum tempo. De modo mais específico, meu propósito é identificar, a partir dessas experiências, três planos distintos de regulamentação da pesquisa antropológica nesse âmbito particular e explorar algumas de suas implicações, visando oferecer, por meio desse exercício de especificação, um aporte ao debate mais amplo sobre a ética e a normatização da pesquisa delineado acima. O primeiro desses planos diz respeito às regulamentações mais ou menos implícitas que as pesquisas sofrem no decorrer da sua execução, oriundas do próprio universo investigado e das relações nele estabelecidas, e que frequentemente suscitam dificuldades para o 76 Ciméa Barbato Bevilaqua equacionamento entre os compromissos éticos assumidos pelo pesquisador em campo e a produção de textos etnográficos capazes de contribuir para os debates no âmbito da disciplina e/ou para além dela. A esse primeiro e mais conhecido plano de regulamentação sugiro acrescentar outros dois e, com base em exemplos provenientes de pesquisas específicas, refletir sobre algumas de suas implicações recíprocas. Proponho como segundo plano de consideração as regulamentações explícitas formais e gerais das atividades de pesquisa, isto é, normas não nascidas de um contexto etnográfico particular e, nesse sentido, “externas” (às relações entre o pesquisador e seus interlocutores). O Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia é uma dessas instâncias de regulamentação, mas se diferencia de outras por se originar do debate entre pares que compartilham experiências e propósitos comuns. Nesse sentido, a exterioridade da regulamentação é relativa: o código é exterior a contextos etnográficos singulares (não poderia deixar de sê-lo), mas não às motivações que conduzem os antropólogos a esses contextos e que, posteriormente, orientam a produção dos relatos etnográficos e os debates teóricos da disciplina. Desse modo, ao situar este segundo plano de consideração, refiro- me especificamente a normas formais, como a Resolução CNS 196/1996 e outros regulamentos de natureza análoga produzidos em diferentes âmbitos institucionais e políticos. Acrescento finalmente um terceiro plano de consideração, que diz respeito a regulamentações igualmente formais, gerais e “externas”, mas que não se dirigem a, e normalmente não são percebidas como, regulamentando atividades de pesquisa. Não obstante, estabelecem limites bastante concretos para o seu desenvolvimento e trazem consigo implicações tão categóricas quanto as que advêm de regulamentos formais, como a Resolução CNS 196/1996. Refiro-me aqui fundamentalmente a normas e dispositivos legais que não têm nenhuma relação direta com a pesquisa acadêmica, mas que, como pretendo argumentar mais adiante, também incidem no desenvolvimento das etnografias. Com o intuito de identificar questões éticas específicas associadas a cada um desses planos de regulamentação, 77 ÉTICA começo apresentando um exemplo referente ao primeiro deles, isto é, às regulamentações nascidas da própria experiência etnográfica e que dizem respeito às relações e aos compromissos estabelecidos entre o pesquisador e seus interlocutores. O exemplo provém de minha pesquisa sobre direitos de consumidores e aconteceu num pequeno município da região metropolitana de Curitiba. Embora já o tenha discutido em trabalho anterior (Bevilaqua, 2003), retomo-o aqui para acrescentar desdobramentos não apresentados naquela oportunidade. Alguns meses antes do episódio a que vou me referir, cerca de 150 famílias daquela localidade tinham sido transferidas de uma área de ocupação considerada irregular para um loteamento organizado pelo município, sob a promessa da prefeita de que as prestações dos novos lotes não ultrapassariam 10% da renda familiar. Ao serem convocados para a assinatura dos contratos, porém, os moradores viram que o valor cobrado era mais que o dobro do que esperavam. Depois de tentar outras alternativas, finalmente decidiram recorrer à promotoria de justiça do município. A promotora se interessou pelo problema: decidiu solicitar à prefeitura a documentação relativa ao loteamento e marcou uma reunião com representantes dos moradores. Foi no início dessa reunião que, folheando os papéis que a prefeitura tinha encaminhado, tomou conhecimento de que a área anteriormente ocupada pelos moradores era, nas suas palavras, uma “invasão”. A partir daí a atitude da promotora mudou completamente: “Eu não tenho nenhuma simpatia por invasores. A pessoa diz que é sem-terra e invade as terras dos outros. Então eu posso dizer que sou sem-piscina e, nesses dias de muito calor, invado uma casa que tenha piscina para me refrescar!”. Na audiência realizada na semana seguinte para o esclarecimento do caso, a promotora aceitou de bom grado as explicações oferecidas pelos funcionários da prefeitura. Voltou-se em seguida para os representantes dos moradores: “Do que é que vocês estão reclamando?” – e passou ao exame dos valores. Cada morador presente tinha que informar a renda familiar e o valor das prestações. Em todos os casos, a prestação correspondia a cerca de 20% dos rendimentos da família (e não aos 10% prometidos). Na perspectiva da promotora, porém, uma promessa verbal 80 Ciméa Barbato Bevilaqua especificamente na interpretação proposta no final da década de 1950 pelo norte-americano Hugh Everett, que se tornaria popular entre os fãs de ficção científica como o pai da teoria quântica dos universos múltiplos.5 a espessura de unIversos múltIplos Everett (apud Osnaghi; Freitas; Freire, 2009, p. 105) abordou o problema clássico da medição fazendo do observador parte do sistema observado, passo necessário para a elaboração de um modelo coerente e inclusivo do universo e para a superação da “estranha dualidade de se aderir a um conceito de ‘realidade’ para a física macroscópica e negá-lo para o microcosmo”. A reintegração do observador à observação tornou possível prescindir da noção de colapso da função de onda como aditivo analítico para explicar por que, no momento da medição das propriedades de uma partícula elementar, a multiplicidade de alternativas disponíveis em um mundo quântico de sobreposições dá lugar a apenas uma delas e, da mesma forma, por que nunca vemos objetos macroscópicos em sobreposições. Em lugar do colapso da função de onda a partir de um ato de medição, Everett propôs uma função de onda universal, que conteria um ramo distinto para cada alternativa dos estados do objeto, constituído a partir de cada interação com o observador. Nessa dinâmica de bifurcações, cada ramo contém sua própria “cópia” do observador, que percebe somente uma das alternativas possíveis, ainda que, na realidade plena, todas elas aconteçam: cada bifurcação dá início a um futuro diferente (Byrne, 2008). Embora Everett não tenha sido o primeiro físico a criticar a chamada “interpretação de Copenhague”, a novidade de seu trabalho foi desenvolver uma teoria matematicamente consistente de uma função de onda universal a partir das equações da própria mecânica quântica (a famosa equação de Schrödinger). A existência de universos múltiplos, mais que uma premissa, é uma consequência da teoria, independentemente do estatuto ontológico que se confira a esses muitos mundos (Byrne, 2008; Tegmark, 2007). Como escreveu Everett (apud Osnaghi; Freitas; Freire, 2009, 81 ÉTICA p. 108), “do ponto de vista da teoria, todos os elementos de uma sobreposição (todos os ‘ramos’) são ‘reais’, nenhum deles mais real que o outro”. O modelo dos muitos mundos é sugestivo para a reflexão sobre a pesquisa antropológica e suas implicações éticas porque o processo relacional no qual se ancora a investigação etnográfica inevitavelmente conduz ao reconhecimento de que todo universo de pesquisa é múltiplo, constituído por diferentes dimensões que coexistem e se sobrepõem. Uma das consequências dessa multiplicidade é o esforço que se impõe ao pesquisador para identificar e compreender as relações entre os diversos planos. Outra consequência, à qual frequentemente não se dá a mesma atenção, é que essa multiplicidade também implica a multiplicação de questões e compromissos éticos situados em planos distintos, cujo equacionamento parece depender, da mesma forma, da adoção de procedimentos compatíveis com cada plano. A etnografia (e, de modo mais específico, a observação participante) supõe o compromisso com a perspectiva dos sujeitos cujas experiências se pretende compreender. Esses sujeitos, por sua vez, atribuem ao pesquisador posições determinadas e limites de ação, de forma mais ou menos explícita. É nesse quadro e a partir da impossibilidade de simultaneamente ocupar mais de uma posição ou assumir mais de uma perspectiva que o andamento da pesquisa depende a cada passo de microdecisões relativas a acontecimentos particulares que, tal como na interpretação everettiana da física quântica, produzem futuros diferentes (imprevisíveis antes de sua atualização e, portanto, não sujeitos a protocolos rígidos), que se bifurcam em planos específicos de consideração ética. No exemplo referido há pouco, foi necessário fazer prevalecer – ao acompanhar a reunião entre a promotora e os moradores do loteamento – o vínculo estabelecido com estes últimos, o que significava concretamente manter o anonimato diante dos demais participantes. Sem prejuízo desse compromisso, a elaboração do texto etnográfico fez com que o foco se deslocasse para outro plano, por meio de procedimentos que, tanto quanto possível, impedissem a identificação de sujeitos cujas condutas foram registradas anonimamente. 82 Ciméa Barbato Bevilaqua Ao colocar esse primeiro nível de consideração em perspectiva com o segundo (dos três acima propostos, e que por certo se multiplicam em inúmeros outros), evidencia- se a contradição: muito provavelmente os procedimentos que acabo de descrever, justificáveis e legitimáveis a partir de condições internas à pesquisa, seriam condenados como antiéticos à luz de normatizações externas. Penso aqui de modo específico na exigência de formalização do consentimento “livre e esclarecido” como condição prévia para qualquer pesquisa “envolvendo seres humanos”, indiferentemente a seus objetivos e condições particulares de realização – ou seja, mesmo que a adesão à norma exija do pesquisador (como ocorreria no caso mencionado) a impossível faculdade de agir simultaneamente em dois mundos, assim como o dom de antecipar, ainda durante a elaboração do projeto de pesquisa, as microdecisões contingentes que definirão que mundos serão esses. Ao sugerir que o “multiverso” da pesquisa e os compromissos éticos também múltiplos que ela comporta não podem ter sua espessura reduzida a uma superfície plana, quero chamar a atenção para os limites de qualquer regulamentação formal da ética em pesquisa que pretenda estabelecer um conjunto fixo e pretensamente incontroverso de procedimentos de aplicação universal, entendida essa universalidade em dois sentidos: que o regulamento e os procedimentos por ele estabelecidos possam ser aplicados indiferentemente a todas as pesquisas; e que o regulamento possa ser aplicado a todas as dimensões de uma pesquisa específica. Voltarei a esse ponto. prIncípIos geraIs, procedImentos contextuaIs Prosseguindo no intuito de identificar – e, tanto quanto possível, articular – diferentes modos de regulamentação da pesquisa e suas implicações éticas, quero tratar agora do terceiro eixo de consideração proposto no início, aquele que se refere a regulamentações também “externas” à relação entre o pesquisador e seus interlocutores e igualmente formais, mas que não se dirigem a, nem são normalmente percebidas como, regulamentações da pesquisa. 85 ÉTICA dessa vertente acreditam que é possível fazer previsões adequadas e que o planejamento de longo prazo pode ser bem-sucedido. A boa administração seria aquela conduzida por “técnicos”, servidores qualificados e orientados estritamente pelo ordenamento jurídico. A “concepção da previsibilidade”, como a autora da pesquisa propôs chamá-la, confia na capacidade de antecipar quais serão as necessidades ao longo da gestão e de cada exercício financeiro. As demandas da população devem ser levadas em conta durante a elaboração do planejamento orçamentário, mas, a partir daí, o plano deve ser executado conforme o previsto, a despeito de contingências. A boa administração deve ser, para essa concepção, relativamente imune aos acontecimentos exteriores ao universo dos documentos e da correspondência com as leis. Assim, a Lei de Responsabilidade Fiscal é considerada um avanço na busca pela transparência da administração pública e não um entrave à sua operacionalização. A dificuldade na elaboração de licitações seria fruto de “incompetência” administrativa e, talvez, de certa inconstância dos próprios usuários dos serviços públicos. Também aqui, contudo, quando a realidade não corresponde ao planejado, o atendimento à população pode vir a ser interrompido – e sem que haja reservas ou meios legais que permitam atender às situações emergenciais (Kaiss, 2009). Um primeiro ponto a ressaltar a partir desse exemplo é que, embora uma dessas concepções não encontre respaldo na legislação, nos dois casos o fim visado é o bom desempenho administrativo por meio do uso criterioso dos recursos disponíveis: os critérios é que são diferentes. Num contexto como esse, marcado pela tensão entre legalidade e ilegalidade, o desenvolvimento da pesquisa sofreu uma regulamentação muito severa do próprio campo, pela viva consciência dos participantes da possibilidade de virem a enfrentar as consequências da divulgação de práticas que poderiam ser enquadradas como crimes. As restrições impostas pelo universo de pesquisa tornaram necessário suprimir, no texto final, uma série de informações que poderiam conduzir à identificação do contexto estudado. Mais ainda, foi preciso adotar um registro de escrita relativamente abstrato, não sem algum 86 Ciméa Barbato Bevilaqua prejuízo para a etnografia: se a omissão de certos dados poderia resguardar a identidade dos participantes envolvidos em práticas “ilegais” para leitores que não fazem parte desse contexto, isso obviamente não seria suficiente para impedir sua identificação por parte dos próprios moradores do município, tornando a etnografia produzida, ao menos potencialmente, um recurso poderoso nas disputas políticas locais ao propiciar acusações de improbidade administrativa. Além das regulamentações oriundas do próprio contexto etnográfico, esse exemplo permite examinar uma terceira dimensão do debate sobre a ética na pesquisa antropológica. Essa terceira dimensão se diferencia, embora por certo não seja independente, das duas anteriores. Minha sugestão é que o ordenamento jurídico também opera como uma forma específica de regulamentação da pesquisa (e, no âmbito das instituições públicas, de modo talvez mais acentuado que em outros contextos) cujas implicações éticas, igualmente específicas, não se limitam às tensões produzidas no universo de investigação e/ou aos impasses que acompanham a transposição das experiências registradas em campo para um texto. Também aqui o universo é constituído de “muitos mundos” e as implicações éticas se desdobram em planos distintos. No primeiro desses planos, há obviamente o compromisso ético particularizado com os participantes da pesquisa – e que certamente não se resolveria, no contexto acima referido, com a adoção de protocolos formais de consentimento, tanto pelas razões já indicadas quanto pela impossibilidade de um contrato de consentimento acerca de práticas ilegais. Mas também é possível identificar um compromisso ético que transcende o contexto da pesquisa: aquele que diz respeito ao papel crítico-político que a antropologia pode exercer a partir do seu modo de conhecimento específico. A percepção de que a produção do conhecimento antropológico não tem um propósito meramente contemplativo é relativamente consensual. Os compromissos intelectuais e éticos dos pesquisadores, sobretudo quando estudam processos de nossa própria sociedade, implicam também um engajamento crítico na promoção de uma sociedade mais justa e solidária. É a partir dessa perspectiva que volto ao exemplo acima. 87 ÉTICA Ao disciplinar a administração pública por meio de uma série de prescrições muito rigorosas, a legislação pretende promover o uso judicioso dos recursos públicos, restringindo ao máximo a possibilidade de corrupção no interior das instituições, assim como o atendimento de interesses particularistas. A atenção cuidadosa ao concreto que caracteriza a pesquisa etnográfica, no entanto, permitiu identificar uma tensão inerente às próprias normas legais no tocante à gestão pública: os princípios que inspiram a legislação não são necessariamente realizados de modo mais pleno por meio dos procedimentos que ela prescreve. No contexto da pesquisa, os modos heterodoxos de gestão orçamentária associados à “concepção da contingência” parecem efetivamente promover os princípios que fundamentam a legislação, embora por meio de condutas que contrariam as determinações legais e, dessa perspectiva, não poderiam ser legitimadas. No entanto, se a inflexão dessa regulamentação externa – de ordem jurídica – inviabilizasse a exposição e discussão pública dessas “formas outras” de pensar e agir, perder-se-ia uma parte importante da contribuição que a antropologia pode oferecer para além do âmbito estritamente acadêmico, ao identificar, registrar, compreender e apresentar ao debate público o potencial criativo e construtivo de concepções e modos de fazer cuja alteridade é também, circunstancialmente, ilegalidade. Dito de outro modo, o atendimento a compromissos éticos estabelecidos num primeiro plano, “interno” ao contexto de realização da pesquisa – mas em grande medida definidos por uma normatividade “externa”, isto é, situada além dele e em outro registro –, não deixa de incidir sobre outros compromissos éticos e políticos, situados ainda em um terceiro plano de consideração. A resposta para esse e outros dilemas associados a níveis distintos de regulamentação e a um modo de conhecimento específico por certo não pode nascer da universalização de normas oriundas de um outro domínio também específico. A multiplicidade, contudo, não implica necessariamente fragmentação: como sugere a teoria dos “muitos mundos” da física quântica, o pleno reconhecimento desses diferentes mundos, assim como a sua descrição, só 90 Ciméa Barbato Bevilaqua CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Pesquisas em versus pesquisas com seres humanos. In: VÍCTORA, C. et al. (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004. p. 33-44. KAISS, C. Política na gestão: conflitos e adesões a partir dos atos da administração municipal. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. LANGDON, E. J.; MALUF, S.; TORNQUIST, C. S. Ética e política na pesquisa: os métodos qualitativos e seus resultados. Comunidade Virtual de Antropologia, n. 45, 27 nov. 2008. Disponível em: <http://www.antropologia.com. br/arti/colab/a45-lmt.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2009. LATOUR, B. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. LÉVI-STRAUSS, C. Critérios científicos nas disciplinas sociais e humanas. In: ______. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p. 294-316. OSNAGHI, S.; FREITAS, F.; FREIRE JUNIOR, O. The origin of the Everettian heresy. Studies in History and Philosophy of Modern Physics, v. 40, p. 97-123, 2009. TEGMARK, M. Many lives in many worlds. Nature, n. 448, p. 23-24, 2007. 91 COMENTÁRIO Multiplicando perspectivas e construindo verdades parciais Patrice Schuch No ano de 2009, os professores concorrentes ao edital do Programa de Iniciação Científica (ProIC), lançado pelo Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade de Brasília (UnB), foram surpreendidos com uma exigência: a necessidade de preencher um formulário eletrônico em que uma das perguntas-chave em termos de procedimentos a serem seguidos para efetivar a inscrição era justamente se a pesquisa envolvia seres humanos. No formulário, um espaço reduzido de cerca de meia página destinava-se ao preenchimento, pelo professor, com o resumo de seu projeto de pesquisa, ao passo que, caso o pesquisador marcasse a opção de que a pesquisa envolvia seres humanos, uma longa lista de itens referentes às obrigações de regulamentação ética do projeto necessitava ser incorporada. Entre esses itens, destaco: o consentimento livre e esclarecido a ser aplicado aos pesquisados ou a justificativa para o seu não uso, o questionário que subsidiaria as entrevistas a serem realizadas na pesquisa, as autorizações formais das instituições em que o estudo seria conduzido e o laudo positivo emitido por qualquer comitê de ética em pesquisa do Distrito Federal (incluindo-se aqueles próprios da UnB) 92 Patrice Schuch ou o número do processo do encaminhamento do projeto para tais organismos de regulamentação ética. Com um projeto de pesquisa já legitimado pela avaliação de pares realizada em razão do financiamento pelo CNPq (por sinal, mesma instituição de financiamento das bolsas de iniciação científica geridas pela UnB), deparei-me com a possibilidade de ter que detalhar o não uso de certos procedimentos que considerava questionáveis a partir de meu campo de trabalho e tradição disciplinar – como o consentimento livre e esclarecido – e outros que, além de não abarcarem a complexidade metodológica proposta em meu projeto de pesquisa, conduziam a uma objetivação da metodologia de forma restrita ao questionário de entrevista. Também a necessidade de incorporação do questionário já na inscrição para o ProIC me soava estranha, na medida em que eu entendia que a incorporação de jovens estudantes à pesquisa, através das bolsas de iniciação científica, significava um aprendizado na elaboração e condução da própria pesquisa. O mais absurdo, sob meu ponto de vista, é que pouco havia de espaço para escrever sobre o conteúdo e as especificidades de meu projeto de pesquisa; porém, muito espaço era previsto para apresentar certos documentos ou justificativas acerca da não utilização de procedimentos hegemônicos na regulamentação ética, mas pouco legitimados no campo da antropologia brasileira. Formalmente, para ter acesso às bolsas de iniciação científica, eu deveria explicar a inconformidade dos procedimentos de minha pesquisa com um padrão que se constituía, pela agência do formulário, em geral e absoluto, em relação ao qual todos deveriam se dirigir, prestar contas, justificar-se, comparar-se e definir-se. Nesse caso, acredito que as possíveis justificativas para o não uso de procedimentos definidos como padrões na regulamentação ética das pesquisas não podem ser encaradas como brechas ou fissuras a partir das quais movimentos são possíveis, mas sim como mecanismos de interpelação (Althusser, 1985), partes de um processo especular realizado em nome de um sujeito absoluto que ocupa o lugar do centro e interpela ao seu redor uma infinidade de indivíduos como sujeitos. Por ter vivenciado essa experiência singular e percebido, em conversas com colegas sujeitados às mesmas requisições, que havia uma pluralidade nos modos de 95 ÉTICA em texto sobre o assunto, destaca que a realidade estadunidense é expressiva nesse sentido, pois a maior parte dos antropólogos e antropólogas nesse país não trabalha em universidades. No Brasil, importa considerar não só a crescente pluralização dos espaços de trabalho de antropólogos e antropólogas, mas também a multiplicação das próprias perspectivas intelectuais envolvidas na concepção do que é a tarefa antropológica por excelência e a especificidade da antropologia. Propostas de revisão da tarefa antropológica clássica de mapeamento da diversidade, promoção do respeito à diferença e construção da nação clamam para o direcionamento de uma antropologia que não se defina como mentora da democracia, mas que se faça a partir da interlocução negociada e efetivada através da prática política, com nossos verdadeiros interlocutores (em oposição a informantes), o que exige uma participação pública para além, inclusive, dos limites de nossa “corporação” (Velho, 2008). Outras revisões da tarefa antropológica no Brasil, como aquela realizada por Ramos (2007), especialmente voltada para o campo de estudos sobre povos indígenas, salientam a necessidade de um deslocamento no papel do antropólogo: do “engajamento” ao “desprendimento”. Tal deslocamento visa acompanhar o processo de autoconstrução dos sujeitos indígenas que tomam para si a defesa de seus direitos e passam a estipular condições e normas para atividades de pesquisa. Nesses termos, Ramos (2007) prevê a apropriação, pelos sujeitos indígenas, não apenas do papel de atores políticos, mas também das etnografias. Isto é, a produção de autoetnografias seria uma possibilidade iminente no campo da antropologia brasileira, o que também diversificaria o perfil dos pesquisadores e redimensionaria o próprio produto antropológico. Tais pesquisadores estariam mais interessados na autorrepresentação a partir de uma perspectiva política, o que marcaria significativamente a escolha dos tópicos, estilos e públicos-alvo das etnografias. Influenciadas, inclusive, por uma ampliação do próprio escopo de universos e temas abarcados pelos estudos antropológicos, essas propostas de revisão podem ser percebidas não apenas no Brasil, mas também no campo de uma antropologia “central”. Marcus (2008), escrevendo sobre a incorporação de pesquisas antropológicas em áreas 96 Patrice Schuch como Estado, ciência, medicina, direito e finanças, salienta que as análises nesses espaços não devem se restringir a um melhor conhecimento das práticas e sentidos tecidos em tais dimensões, numa mera acumulação de conhecimento; podem, na realidade, servir para refuncionalizar a etnografia como uma “performance de mediações” e de perspectivas entre atores reflexivos capazes de desempenhar seus papéis “paraetnográficos” de interpretação e estabelecimento de relações. Para Marcus (2008), é preciso modelar a etnografia a partir de relações politizadas de colaboração e defini-la com base em novos espaços comunicativos, na interseção com outros saberes. Em sentido semelhante, embora mais atenta às propriedades de posição e de situação na produção de conhecimento, Haraway (1995) propõe a noção de uma antropologia que não se contente com a ampliação do conhecimento sobre o “eu” e o “outro”, mas que se esforce para ampliar as redes de conexão através do que chama de “conversas carregadas de poder”. Todas essas revisões e propostas de revitalização da tarefa antropológica transmitem algo importante que, sob meu ponto de vista, precisa ser lembrado nas discussões sobre ética e procedimentos de regulamentação de pesquisas: a maneira de estabelecer formas e critérios de regulamentação implica concepções específicas não apenas sobre ética, ciência e sociedade, mas também sobre os próprios grupos abarcados pelos estudos. E é muito interessante constatar que, exatamente quando a antropologia revê com seriedade seus modos de construção de representações sobre o outro (Marcus; Clifford, 1986; Marcus; Fischer, 1986), problematiza esse outro como resultante de um projeto disciplinar hegemônico colonizador (Abu-Lughod, 1991; Bhabha, 1998; Said, 1989) e renova seu potencial a partir das possibilidades de produção de autoetnografias (Ramos, 2007) e de interlocução com paraetnógrafos (Marcus, 2008), sejamos interpelados por procedimentos de regulamentação que impõem uma definição dos sujeitos pesquisados feita, eminentemente, a partir da noção de sua potencial vulnerabilidade. Nesse aspecto, vale também recordar uma questão suscitada pela contribuição de Bevilaqua neste volume: a complexidade de certas pesquisas que colocam o antropólogo no cruzamento entre grupos com universos sociais e simbólicos diferenciados, o que provoca tensão 97 ÉTICA em termos do estabelecimento de cumplicidades entre os vários sujeitos participantes da pesquisa e o próprio pesquisador. Outra dimensão a ser considerada, para fins de suscitar o debate em relação aos procedimentos éticos de pesquisa, diz respeito à própria diversidade de gênero, raça/etnia e outros atributos diferenciadores de sujeitos concebidos como participantes de um mesmo grupo ou comunidade estudada. Na medida em que nenhum grupo ou comunidade é homogêneo, permanece a possibilidade de que haja interesses divergentes que o pesquisador ou pesquisadora tenha que considerar durante o trabalho de campo e a escrita etnográfica. Tendo em vista tanta complexidade, torna-se difícil identificar padrões de regulamentação ética universalizáveis, e faz sentido a diferenciação proposta por Bevilaqua entre princípios e procedimentos éticos, bem como o refinamento feito pela autora das distinções das esferas de regulamentação que, situadas em planos diferentes, mas reciprocamente implicados, condicionam o trabalho de pesquisa antropológica. A noção do trabalho antropológico como um “multiverso”, como propõe Bevilaqua, pressupõe a existência de vários níveis de consideração ética que não podem, portanto, ser reduzidos a uma “superfície plana”. Embora perspectivas diferenciadas tenham sido apontadas a partir dos capítulos de Fonseca, Cardoso de Oliveira e Bevilaqua – por exemplo, a suficiência da diferenciação entre pesquisas com seres humanos e em seres humanos –, cabe salientar uma unanimidade evidente: a de que as reflexões sobre a ética em antropologia não se reduzem ao trabalho de campo, mas o transcendem, na medida em que implicam concepções sobre o papel político e crítico dessa própria ciência. Como as recentes revisões e propostas de redimensionamento têm apontado, vale a pena investir numa antropologia que não apenas reconheça ou respeite a alteridade, mas também produza a partir dela novos coletivos, numa composição de forças e fluxos. Multiplicando perspectivas e situando-as com base em seus espaços de enunciação, a “verdade” que aparece como única subitamente se pluraliza. O “olho de lugar nenhum” transforma-se em um “olho situado”, localizado e não transcendente. Um olho que tem responsabilidades e que deve ser comprometido por estas, uma vez que também está implicado na produção das verdades parciais.
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