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Guias e Dicas
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Armando - Valladares - Contra - Toda - Esperanca, Notas de estudo de Bioquímica

Armando - Valladares -

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 24/12/2014

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danilo-dalla-vecchia-rocha-4 🇧🇷

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Baixe Armando - Valladares - Contra - Toda - Esperanca e outras Notas de estudo em PDF para Bioquímica, somente na Docsity! Armando Valladares Contra Toda a Esperança 22 anos no "Gulag das Américas" As prisões políticas de Fidel Castro (Edição Eletrônica Condensada - Agosto de 2006 - Distribuição Gratuita no Brasil) 2 Cuba: ¿“sinais” do reino de Deus, ou do inferno? Miami (FL), 25 de agosto de 2006.- Caros amigos brasileiros, Umas breves e afetuosas palavras de apresentação da edição eletrônica condensada, em português, de "Contra Toda a Esperança", minhas memórias de mais de duas décadas de cárcere e torturas contínuas no "Gulag" castrista, publicadas pela primeira vez em 1985, em espanhol. Como uma amostra de amizade e afeto, esta edição eletrônica será difundida gratuitamente, por e-mail, a todos os interessados. No Brasil, figuras representativas da chamada esquerda católica, como o cardeal Arns, Frei Betto e Leonardo Boff chegaram a ver em Cuba comunista “sinais” do Reino de Deus onde, na realidade, o que existe é uma ante-sala do inferno. É esta a realidade que descrevo em “Contra Toda a Esperança”. Os brasileiros têm dado muitas mostras de afeto e de compreensão pelo sofrimento do povo cubano. Em 2001, por exemplo, foi decisiva a preocupação da opinião pública, de autoridades e de meios de comunicação desse gigantesco país para que as jovens Sandra Becerra Jova e Anabel Soneira Antigua, literalmente seqüestradas e retidas na ilha contra a vontade de seus pais, profissionais cubanos residentes no Brasil, fossem finalmente libertadas e enviadas a esta nobre e acolhedora terra, para reunir-se com suas respectivas famílias. No momento em que escrevo estas breves linhas de apresentação, estamos a poucas semanas das eleições presidenciais nesse grande País sul-americano. Me atrevo então a pedir a esse mesmo povo brasileiro, afetuoso, bondoso e compassivo, que se manifeste ante os candidatos presidenciais, solicitando-lhes um compromisso público para que o futuro governo atue com firmeza no campo diplomático e humanitário, de maneira a contribuir para a libertação de 11 milhões de meus irmãos cubanos que na ilha- cárcere continuam seqüestrados, desde há quase 50 anos, em sua própria pátria. Que a Providência recompense a todos os brasileiros que assim procedam. Com um abraço afetuoso, subscreve-se Armando F. Valladares E-mail: ArmandoValladares2005@yahoo.es 5 Dedicatória Á memória de meus companheiros torturados e assassinados nas prisões de Fidel Castro e aos milhares de prisioneiros que atualmente agonizam nelas. Introdução Este livro é meu testemunho de vinte e dois anos passados nas prisões políticas de Cuba, unicamente por manifestar meus critérios diferentes do regime de Fidel Castro. Em meu país há algo que nem mesmo os mais fervorosos defensores da revolução cubana podem negar: o fato de que existe uma ditadura há mais de um quarto de século. E um ditador não pode manter-se no poder durante tanto tempo sem violar os Direitos Humanos, sem perseguições, sem presos políticos e prisões. Em Cuba existem, neste momento, mais de duzentos estabelecimentos penitenciários, que vão desde as prisões de máxima segurança até os campos de concentração e as chamadas granjas e frentes abertas, onde os presos realizam trabalho forçado. Em cada uma dessas duzentas prisões há história suficiente para escrever muitos livros. Por isso, os testemunhos que aqui aparecem são apenas um esboço da terrível realidade daqueles cárceres. As situações de violência, a repressão, as surras, as torturas e incomunicabilidades são prática diária. Hoje, agora mesmo, centenas de presos políticos, por recusar a reabilitação política, estão nus há quatro anos, sem assistência médica, sem visitas, dormindo no chão e fechados em celas cujas portas e janelas foram emparedadas. Jamais vêem a luz do sol ou a luz artificial. Eu sou um sobrevivente dessas terríveis celas emparedadas de Boniato. Há fotografias de alguns dos personagens que aparecem no livro, para que se saiba que são pessoas que existem, que têm um rosto. Os vivos estão, atualmente, nos Estados Unidos, Venezuela e outros países. Devo dizer que naquele peregrinar pelas prisões conheci militares e funcionários com grande qualidade humana, que nos ajudaram na medida de suas possibilidades e com isso arriscaram-se a ir para a cadeia. Os nomes dessas pessoas, por motivos de segurança para elas, não podem ser revelados, assim como os favores que fizeram. Não quero terminar sem evocar os que tornaram possível a minha liberdade e reiterar-lhes meu reconhecimento. Não escrevo nomes porque a lista seria muito longa e porque há pessoas que pensaram em mim, que fizeram muito por mim e eu nem sequer sei seus nomes. Para eles o melhor da minha lembrança e de meu coração. Madri, 1985 Armando Valladares 6 1. Detenção O cano frio da submetralhadora em minha têmpora me acordou. Abri os olhos, assustado. Três homens armados estavam ao redor de minha cama... Um deles disse que eu tinha de acompanhá-los e que me vestisse. Na sala, um quarto policial vigiava minha mãe e minha irmã. Tranqüilizei-as, disse-lhes que com toda certeza tratava-se de um erro, uma vez que eu não tinha cometido crime algum. Eu era, então, funcionário do Governo Revolucionário na Caixa Econômica, anexa ao Ministério de Comunicação, e minha subida àquele departamento oficial havia sido rápida, motivada, em grande parte, por minha condição de estudante universitário. Realizaram uma busca minuciosa, prolongada: levaram quase quatro horas revistando tudo. Não ficou um só centímetro da casa sem ser examinado. Abriram garrafas, verificaram livros, folha por folha, esvaziaram tubos de pasta dental, examinaram o motor da geladeira, os colchões... Eu conversava com minha mãe, que era quem estava mais nervosa; enquanto isso, pensava em quem me teria denunciado. Pensei que a denúncia deveria ter saído de meu emprego. Eu sabia que tinha uns colegas que me eram hostis, devido às minhas idéias religiosas e minhas concepções idealistas do mundo, que esgrimia freqüentemente para discordar do comunismo como sistema. Também sabia que eu estava marcado como anticomunista. Uma de minhas últimas discussões havia sido provocada por um lema que era repetido no país inteiro, lançado pelo aparelho propagandístico do Governo, e que tinha por objetivo ir preparando as massas, ir infiltrando nelas a idéia comunista. Castro já era acusado disso e, então, divulgaram a ordem: "Se Fidel é comunista, que me ponham na lista: eu estou de acordo com ele". O lema foi impresso em adesivos para serem colocados em automóveis, em placas de latão para serem fixadas às portas das casas, era diariamente publicado nos jornais, foram feitos cartazes e fixados ns paredes de escolas, quartéis, fábricas, oficinas e escritórios do Governo. O propósito era bem claro e simples: Castro era apresentado ao povo como um Messias, um salvador, o homem que devolveria a liberdade, a prosperidade e a felicidade a Cuba. Os comunistas do Ministério apareceram para colocar um daqueles lemas na minha mesa de trabalho... "se Fidel é comunista...". Eu recusei. Ficaram surpresos e desorientados porque, se bem que soubessem de minha aversão ao marxismo, haviam achado que eu não iria recusar, uma vez que isso seria recusar Castro. Perguntaram-me se eu não estava de acordo com Fidel. Respondi que se ele era comunista, não, que não faria parte dessa lista. 7 Os policiais continuavam a revista. Terminaram nos dormitórios, banheiros, cozinha e passaram para a sala. Revistaram os quadros, as estatuetas de porcelana; uma delas chamou-lhes a atenção: tinham descoberto algo dentro. Com uma caneta esferográfica, um deles conseguiu tirar um papel: era um dos usados para embalar louças e cristais. Abriu-o e ao perceber que eu o observava com ar divertido, amassou- e atirou-o pela janela. Fizeram-nos levantar do sofá, viraram-no e o examinaram cuidadosamente. Terminou a revista e não apareceram armas, nem explosivos, nem propaganda, nem listas. Se bem que nada houvessem encontrado, eu tinha que responder a umas perguntas de rotina. Minha mãe argumentou que não havia motivo para me levarem. Eles responderam que não se preocupasse, que eu voltaria logo: eles mesmos me trariam de volta para casa. Só que a volta demorou mais de vinte anos. Chegamos à esquina da 5a Avenida com a Rua 14, no Departamento Miramar. Era, então, a sede centra da Polícia Política, a Lubianka cubana. Várias residências, produtos do despojo, formavam o complexo do G-2, que era como, a princípio, chamavam a Segurança do Estado. Fui levado ao segundo andar, ao arquivo. Tiraram minhas impressões digitais e me fotografaram com um letreiro que dizia: "contra- revolucionário". - Conhecemos suas declarações onde você trabalha; você andou atacando a revolução - afirmaram. Defendi-me, dizendo-lhes que não havia atacado a revolução como instituição. - Mas atacou o comunismo. Isso eu não neguei. Não podia, nem queria fazê-lo. - Sim, é verdade - disse-lhes, - considero o comunismo uma ditadura pior da que acabamos de padecer e se ele se estabelecer em Cuba, seria como na Rússia: passar do czarismo à ditadura do proletariado. Naquela mesma tarde me levaram com os outros detidos - entre eles, uma mulher - a um pequeno salão. Mandaram que nos sentássemos em um banco de madeira. Havia refletores, que se acenderam; os fotógrafos e câmeras começaram a fotografar e a filmar. No dia seguinte, aparecemos nos jornais e televisão como um bando de terroristas, agentes da CIA, capturados pela Segurança do Estado. Eu não conhecia nenhuma daquelas pessoas. Nunca as tinha visto. Foi lá que entrei em contato com Nestor Piñango, Alfredo Carrión e Carlos Alberto Montaner, três estudantes universitários. Também conheci Richard Heredia, que havia sido um dos chefes do Movimento 26 de Julho, na província de Oriente. No dia seguinte houve o segundo interrogatório. - Você estudou em um colégio de padres - disseram. - Sim, nos Escolapios; mas o que importa isso? - Importa, sim. Os padres são contra-revolucionários e o fato de ter estudado nessa escola é mais uma evidência contra você. - Mas Fidel Castro estudou no Colégio Belém,dos padres jesuítas. - Mas Fidel é um revolucionário e você é um contra-revolucionário, aliado aos padres e aos capitalistas; por isso vamos condená-lo. - Não há nenhuma prova contra mim, não descobriram nada. - É verdade que não temos prova alguma, concreta, contra você, mas temos a convicção de que é um inimigo em potencial da revolução. Para nós, é o suficiente. 10 Escambray. Quando Che Guevara penetrou na zona rebelde controlada por Carreras, este chegou quase a ponto de matá-lo. Che e Castro nunca esqueceram isso. Conversamos com freqüência porque vivíamos no mesmo grupo de liteiras e ele me disse que tinha certeza de que seria condenado à morte por causa daquilo. Jesus Carreras foi fuzilado. Pelos constantes fuzilamentos, a prisão de La Cabaña havia se transformado no mais terrível de todos os cárceres. E para nos manter sob o terror, começaram as requisições de madrugada.Os pelotões, armados com barras de madeira, correntes, baionetas e tudo mais que servisse para bater, irrompiam nos pavilhões,gritando e batendo sem contemplação. A ordem que nós, presos, tínhamos era a de sair como estivéssemos. Abriam-se as grades e a turba enfurecida de soldados entrava como uma tromba, distribuindo pancadas às cegas. Os presos, também como uma tromba, tratavam de sair para o pátio. Mas lá, uma fileira dupla de guardas armados de fuzis, com baioneta calada, encarregava-se de fazer com que ninguém ficasse sem sua ração de pancadas. Muitos saíam meio despidos, de cuecas, ou nus, com sapatos ou descalços. Quando todos estávamos fora, arremetiam contra a gente e batiam com mais sanha. À medida que iam batendo e gritando, os soldados se empolgavam, seus rostos se descompunham. Em cima, no telhado, uma fileira de militares - mulheres, inclusive -, fuzil na mão, contemplava o espetáculo. Entre eles, um grupo de oficiais e civis da Polícia Política que jamais faltavam. O capitão Hernán F. Marks, um norte-americano, havia sido nomeado por Fidel Castro chefe da guarnição de La Cabaña e verdugo oficial. Era esse homem que disparava os tiros de misericórdia e quem dirigia as requisições.Quando se embebedava, coisa que fazia muito freqüentemente, Hernán mandava formar a guarnição e investia contra os presos em formação de combate. Ele mesmo chamava o presídio de seu "couto de caça". Outro de seus divertimentos era passear pelos pavilhões, chamar às grades aqueles para os quais se pedia pena de morte e perguntar-lhes atrás de qual dos ouvidos queria que atirassem. Anos mais tarde voltou para sua terra, os Estados Unidos. Cada amanhecer La Cabaña despertava com nova interrogação: "Quem vão fuzilar hoje?" Depois da chamada da manhã, abriam as grades e nos reuníamos no pátio, na interminável fila para tomar o café. O mais jovem do nosso grupo era Carlos Alberto, ainda menor de idade,se bem que em altura nos ultrapassasse a todos. Carlos Alberto havia se casado muito menino e sua esposa havia trazido, na última visita, Gina, filhinha de ambos, de apenas alguns meses. A família de Carlos Alberto estava tentando conseguir que, devido à idade dele, o transferissem para um presídio de menores. Uns dias depois do julgamento foi chamado à sala da chefia do presídio, com seus poucos pertences: ia ser mandado para uma prisão nos arredores de Havana. Algumas semanas depois, tendo conseguido uma lima, cortou os barrotes da cela e fugiu. Conseguiu entrar na Embaixada da Venezuela e, depois de meses de pressões, o governo cubano permitiu que saísse do país. Carrión, Piñango, Boitel e eu festejamos com júbilo a fuga de Carlos Alberto. Um a menos naquele inferno! 11 3. Morte após morte Treze dias tinham se passado desde a madrugada em que fui tirado de minha casa e levado à delegacia para que me fizessem umas perguntas. Nesse curto espaço de tempo a Polícia Política preparou todo o processo. Em doze ou treze dias era materialmente impossível realizar uma investigação, mas assim eram os julgamento. Não me foi possível conversar a sós com o advogado que atuou em minha defesa, nem permitiram a ele acesso ao sumário. Sobre uma plataforma de madeira, uma grande mesa à qual os membros do tribunal conversavam entre si, riam e fumavam charutos que seguravam num canto da boca, mordendo-os, ao estilo dos valentões. Todos vestiam fartas militares. Era um desses tribunais típicos que se integravam de qualquer jeito, formado por operários e camponeses. Ao começar o julgamento, o presidente do tribunal, Mário Taglé, colocou as pernas em cima da mesa, forçou para trás a cadeira reclinável e abriu uma revista em quadrinhos. DE vez em quando dirigia-se aos que estavam ao seu lado, mostrava-lhes alguma passagem da historieta que tinha despertado a hilaridade dele e riam juntos. Na verdade, demonstrar atenção e interesse, se bem que fosse cortês, não era necessário e eles sabiam disso. As sentenças já vinham decididas e redigidas da sede da Polícia Política. Dissesse o que se dissesse, fizesse o que se fizesse, a sentença não mudaria. O promotor chamou o chefe do grupo que me deteve em minha casa. - O senhor efetuou a prisão do acusado? - Sim, senhor e fizemos uma revista na casa dele, mas não encontramos nada... - Cale-se e só responda o que lhe for perguntado! - gritou o promotor, evidentemente incomodado por aquela declaração que era muito favorável para mim diante dos olhos dos poucos espectadores militares presentes; era proibido aos familiares assistirem aos julgamentos e eles nem sabiam quando teriam lugar. O promotor não pode apresentar sequer uma prova contra mim. Fez-me duas ou três perguntas, principalmente ligadas à minha crença religiosa. - Então você está de acordo com esses padres que redigem pastorais contra- revolucionárias. - Eu nada tenho a ver com isso. - Mas as investigações dizem que você tem muito relacionamento com os padres e que estudou em um colégio católico. Voltou-se para o presidente do tribunal e lhe disse que eu era um inimigo da revolução e que havia cometido os crimes de estragos e sabotagem, depois recitou um número de artigos que supostamente referiam-se às sanções que eu merecia. Nem então, nem depois, porque durante vinte anos continuei perguntando, nenhuma das autoridades pôde me dizer onde cometi um delito de estragos. Chama-se 12 assim aos destroços que são ocasionados por uma bomba, um incêndio, um ato qualquer de sabotagem. São algo de concreto, visível, palpável. Perguntei ao promotor onde, em que fábrica, em que estabelecimento, em que data. Não pôde responder, porque nunca fiz nada parecido. É como se alguém que estivesse sendo acusado de assassinato e perguntasse ao promotor a quem havia matado e este respondesse que não sabia; e se perguntasse pelo cadáver, respondesse que não havia cadáver. Algo assim como ter assassinado um fantasma. Nenhum tribunal em regime de direito teria podido me condenar. Não houve uma só testemunha que me acusasse, não houve quem me apontasse. Sem uma só prova, fui condenado pela equivocada convicção da Polícia Política. Meu caso não foi uma exceção. Outro dos mais conhecidos foi o dr. Rivero Caro, advogado. Ele nunca esqueceu as palavras do interrogador da Polícia Política, Ildefonso Canales, que visivelmente zangado por não conseguir arrancar, nem com torturas, uma confissão do preso, disse-lhe claramente: - Sabe o que acaba com você Sua mentalidade de advogado. Você está focalizando sua situação com mentalidade de advogado e se engana. Olhe, o que você declarar em juízo não importa; também pouco importam as provas que você puder apresentar; não importa o que diga, alegue ou proponha o seu advogado; não importa o que diga o promotor ou as provas que apresente; tampouco importa o que pense o presidente do tribunal. A única coisa que importa aqui é o que diga o G-2. Em algumas ocasiões, os presos que tinham relacionamento com advogados muito próximos da direção da Polícia Política podiam saber, antes da realização do julgamento, a pena que receberiam no tribunal. Foi precisamente um contato como esse que permitiu à velha mãe do comandante Humberto Sorí Marín saber que seu filho, um dos homens próximos de Castro,ia ser fuzilado, acusado de conspiração. Sorí Marín foi um dos mais estreitos colaboradores de Castro. Lutou ao lado deste nas montanhas e fez parte de seu Estado-Maior. Fez e assinou a lei da Reforma Agrária. Nos primeiros meses de triunfo revolucionário, esses laços apertaram-se mais ainda. Castro costumava almoçar de vez em quando na casa de Sorí Marín, atraído pela excelente cozinheira que era a mãe dele. Por isso, a senhora Marín, quando soube que seu filho ia ser fuzilado, transida de dor foi falar com Castro. O encontro foi dramático. A velha abraçou, chorando, o líder revolucionário que lhe acariciava a cabeça venerável. - Fidel, eu te suplico.. que não matem meu filho, faz isso por mim... - Acalme-se... Não vai acontecer nada com Humberto, eu prometo. E a mãe de Sorí Marín, louca de alegria, ainda com os olhos cheios de lágrimas, beijou Fidel e foi correndo comunicar à família que tinha conseguido. Ela teve esperança que ele o perdoaria, tendo passado tantos perigos juntos, tendo partilhado tantos dissabores e angústias! Aquele passado comum não podia ser esquecido dessa maneira. Na noite seguinte, por ordem expressa de Castro, Humberto Sorí Marín foi fuzilado. Os homens que lutaram com Castro para estabelecer a democracia foram enganados; alguns fugiram do país, outros voltaram a empunhar armas ou participavam de planos conspiradores. Já os oficiais e policiais do regime deposto, acusados de crimes que em muitos casos não foram comprovados, haviam sido fuzilados. Aqueles eram dias em que um grupo de senhoras, vestidas de preto, penetrava nos pavilhões aguçando a 15 Muitos dos condenados à morte, longe de se sentirem derrubados ou amedrontados por tanta maldade, respondiam com arengas políticas e denunciavam o marxismo diante daquela chusma. Quando o esquadrão de guardas os conduzia ao paredão de fuzilamento, ao passar pelo pavilhão 22, eram despedidos com gritos de "Viva Fidel Castro, viva a revolução!" Desde que a caminhonete com os componentes do pelotão de fuzilamento passava a entrada que leva aos porões, escutava-se o inconfundível ruído do motor nos pavilhões e nas celas dos condenados, que percebiam o aproximar-se do momento decisivo. Um acúmulo de imagens e pensamentos confundia-se em nossas mentes naqueles instantes: seus filhos órfãos, a viúva, a mãe transida de dor. Também nos assaltava, fazendo-nos estremecer, a idéia de que aquele que aguardava o pelotão podia ser um de nós mesmos. E, de repente, víamo-nos com as mãos amarradas, amordaçadas, descendo aquelas escadas, levados ao porão... ao tablado, diante da parede de sacos de areia e os refletores iluminando tudo... uns oficiais me empurravam e me passavam uma corda pela cintura... levantavam os fuzis e um relâmpago ensurdecedor reboava por todos os porões... Assim acontecia com todos nós... eu acho. Cada noite eu fazia aquele caminho, via-o em minha mente, conhecia o percurso de memória, cada degrau, o tablado... Depois do tiro de misericórdia alguém sempre soluçava. Houve noite de dez, doze fuzilados. Escutava-se o portão gradeado do pátio da fortaleza e alguém que se aproximava da porta para ver o amigo e gritar-lhe o último adeus. Não se podia dormir nos pavilhões. Foi então que Deus começou a se tornar um companheiro constante para mim e a perspectiva da morte, em uma porta para a verdadeira vida, um passo das trevas para a luz eterna. 16 5. Ilha de Pinos O pátio do presídio tinha dois alto-falantes. Quando os militares queriam dirigir- se aos presos faziam-no através deles. Uma tarde, ao terminar a chamada, começaram a ler uma lista de prisioneiros que deveriam recolher imediatamente todos os seus pertences. Iam ser transferidos. Quando chamavam esses grupos, fazia-se total silêncio na prisão. Cada qual aguçava os ouvidos para perceber se pronunciavam seu nome. Nunca diziam para onde era a transferência, mas de La Cabaña, e tantos prisioneiros, só podiam ter um destino: Ilha de Pinos. A transferência para aquela prisão, situada em uma ilha ao sul de Cuba, intimidava os ânimos. Comentava-se que lá aconteciam muitos horrores. Além disso, era o afastamento dos familiares, maior incomunicabilidade. Os alto-falantes continuavam emitindo a litania de nomes e mais nomes: repetiam uma vez cada um. Escutei meu nome e saí da porta para ir arrumar minhas coisas. Diante de mim Pedro Luis Boitel e a meu lado Alfredo Carrión também preparavam sua equipagem. Aquela foi uma das maiores transferências que fizeram: mais de trezentos homens em uma só chamada. Todos nós sabíamos que lá as visitas eram proibidas e que imperava o terror. - Vamos... apressem-se! - os guardas repetiam mecanicamente a ordem. Os primeiros que já haviam saído dos pavilhões 8, 9 e 10 amontoavam-se no pátio, carregados com seus sacos e sacolas de juta; do cinturão, pendiam o jarro de alumínio e a colher, no pescoço uma toalha e, assomando-se do bolsinho do camisão rústico, a escova e pasta dental. Pedro Luis, de compleição frágil, quase não podia com seu saco e o arrastava. Usava um crucifixo grande - presente de um padre católico - que o acompanhou em sua candidatura a presidente da Federação Estudiantil Universitária, à qual teve que renunciar ameaçado por Castro pessoalmente, porque Boitel era um anticomunista ativo. Foi então que passou para a clandestinidade, na qual viveu durante meses, até que foi capturado. Éramos quase duzentos presos no pátio, cada qual com seu saco. Saímos para a rua, aquela mesma que eu conhecera quando tinham me levado a julgamento; mas agora estava cheia de guardas que iam e vinham constantemente, com capacetes e fuzis com baioneta. À saída da prisão os ônibus esperavam. Eram Leylands ingleses, pintados de branco, dos que compunham as linhas de Ônibus Modernos S.A., expropriados pelo Governo. O assento do fundo estava ocupado por uma escolta de seis soldados, com 17 submetralhadoras. Quando todos os assentos ficaram ocupados, outros escoltas postaram- se nas portas e atrás do motorista. Um tenente ameaçou os que tentaram se pôr de pé e a comitiva de vários ônibus partiu, escoltada por patrulheiros da Polícia Nacional e carros da Polícia Política. A caravana de ônibus deixou para trás a fortaleza, subiu a Via Monumental, virou à direita e entrou em um túnel, rumo ao acampamento militar de Colúmbia, lugar de onde sairiam os aviões carregados de prisioneiros, rumo à Ilha de Pinos. * * * Al aproximarmo-nos da escadinha do avião, os militares começaram a gritar; iam se aquecendo. O avião de transporte, que tinha sido usado para carregar gado, não tinha assentos e nem sequer o haviam limpado: o chão estava repleto de excremento de reses. Uma corda dividia o avião: de um lado nós, do outro a escolta. - Todo mundo no chão... sentados! Houve uma incerteza, porque era preciso atirar-se àquele chão cheio de merda de vacas... e os guardas começaram a empurrar e a gritar como malucos. - E agora, escutem bem - era o tenente que falava - temos ordem de atirar em quem não obedecer. Não podem olhar pelas janelas e nem sequer levantar as cabeças. Quem não fizer isso, que agüente as conseqüências... Ah, outra cosa: vocês têm que fazer silêncio; não podem conversar durante a viagem. Todas aquelas medidas repressoras tinham por finalidade desanimar qualquer tentativa de nos apoderamos do avião. Havia em nosso grupo homens de ação que haviam demonstrado coragem em muitas ocasiões, nas montanhas, lutando nas guerrilhas, ou na cidade, nos grupos clandestinos. O piloto subiu com dois guardas escoltando-o, que se fecharam com ele na cabine. Essa medida foi adotada em Cuba não apenas para transferir presos. Já naquela época, todos os vôos nacionais saíam com dois soldados de escolta e, além disso, a porta da cabina era blindada, com um visor de cristal também blindado. Enquanto o avião não aterrissasse asse não se podia abrir a porta da cabina, houvesse o que houvesse. Assim é, ainda hoje. Com as cabeças baixas, sem falar, passou a viagem. O avião desceu no pequeno aeroporto de Nova Gerona, capital da Ilha de Pinos. Abriram a porta. Lá fora, o mato alto chegava acima dos joelhos e dezenas de guardas com fuzis e baionetas caladas rodeavam o aparelho. Enquanto descíamos do avião, os militares começaram a gritar desaforos. A maioria dos que se agruparam diante da porta eram negros, não pareciam cubanos; do pescoço pendiam-lhes colares de sementes chamadas "olhos de boi" e contas coloridas; nas boinas, como distintivos, havia um raminho de milho. - Subindo nos caminhões, vamos, depressa! - e cagavam em nossas mães -. Chegaram à ilha, seus filhos da puta! Vão ver o que é bom! Depressa! Aquilo era horroroso. Os presos moviam-se como animais assustados; pelo menos eu me sentia assim. Esperava que de um momento para outro me dessem uma baionetada ou uma pancada com a culatra do fuzil. O medo havia se apoderado de mim. Sentia uma 20 enormes edificações de ferro e concreto das circulares, com seus sete andares para alojar 930 presos em cada um.Chegariam a abrigar 1.300. Eram quatro e no centro, também circular, mas de dois andares apenas, ficava o refeitório, capaz de admitir 5.000 comensais ao mesmo tempo; a cozinha e as despensas também ficavam ali. As quatro circulares e o refeitório distribuíam-se como o número cinco de um dado: o ponto central era o refeitório. Rodeamos o refeitório por uma estradinha asfaltada e paramos diante da entrada da circular 4, nosso edifício de destino. Sobre a porta, um irônico cartaz: "Bem- vindos à circular 4". A entrada era uma construção ampla, de blocos de concreto aparente e o teto de folhas onduladas de fibra e cimento. Através das janelas, os presos que tinham chegado no dia anterior gritavam para nós, chamando pelos nomes alguns, que tinham conhecido em La Cabaña. Atrevi-me a erguer a cabeça e olhar para cima, para as últimas janelinhas gradeadas do quinto e do sexto andares, onde mãos se agitavam, dando boas-vindas. Depois, fui descendo os olhos até as janelas do primeiro andar, que estavam muito perto. Os homens por trás daquelas grades pareciam cadáveres, os rostos embranquecidos pela falta de sol. Havia um tão magro que parecia irreal. Não falava, não se mexia, ficava ali, só olhando: parecia uma dessas figuras de museu de cera... No entanto, daqueles homens, o que mais tempo poderia ter de prisão não passava de dois anos e alguns dias. Só de pensar nisso um arrepio percorreu-me a espinha. Dois anos! Eu não resistiria. Pensava... como é que ainda estão vivos, por que não tinham morrido? Se, então, alguém me tivesse dito que eu ia passar vinte e dois anos no cárcere acho que teria começado a rir e consideraria essa pessoa o ser mais mentiroso do mundo. Por fim, abriram a grade de entrada, depois de nos contar várias vezes. Uma multidão de presos esperava no andar térreo, em um pátio circular com uns setenta metros de circunferência. No centro erguia-se uma torre de concreto que chegava até a altura do quarto andar. No alto dela, um terraço, com parapeito, para as rondas do vigia. Uma portinha de metal e seteiras. O acesso à torre era por fora, por um túnel, que permitia aos guardas chegarem a ela sem ter que entrar no edifício. Grudadas à parede da circular, como uma enorme colméia, as celas, alinhadas uma junto da outra. Havia 93 em cada andar. Diante delas, um beiral suspenso, com corrimão de ferro gradeado, na beirada, o que o transformava em um corredor onde se podia caminhar em segurança. Os andares comunicavam-se por escadas de mármore. Outras escadas menores, em número de 4, davam acesso do andar térreo ao primeiro andar de celas. No pátio, no térreo, ficavam os tanques e os chuveiros. As celas eram pequenas, com uma janela grande, quadrada, com barrotes de ferro. O sexto andar não tinha paredes, nem divisões. Antes era usado como área de castigo para os presos comuns. Existiam nele várias celas que tinham sido demolidas. Agora, e devido ao excesso de população penal, também era utilizado. Essa circular 4, excepcionalmente, tinha grades nas celas do primeiro andar. Mesmo assim foram usadas como lugares de castigo na época dos presos comuns. O resto das celas não tinha grades e podia-se perambular pelo beiral, subir ou descer de um andar para outro. Aquilo parecia um circo romano. Todos falando e gritando ao mesmo tempo. Boitel, Carrrión e eu contemplávamos a cena atordoados, aquele mundo absurdo onde tudo tinha com que uma dimensão diferente. 21 7. A linguagem do desespero - Senhores, senhores... façam silêncio, por favor. Era a voz do major da circular, Lourenço, um mulato com mais de 1,80 m de altura e 90 quilos de peso, que tinha sido motociclista da polícia anterior. Os presos elegiam, mediante voto secreto, uma espécie de governo interno, que chamavam "mandança". O eleito tinha, por sua vez, a responsabilidade de escolher os que cuidariam da manutenção do edifício: limpeza, servir o rancho, etc. O major é que tratava com os militares e retransmitia o que eles quisessem comunicar. - Bem, vamos subir - disse alguém do grupo. Pegamos nossas coisas e começamos a andar para a escada. Era preciso avançar passando por cima de longas fileiras de baldes, latas, frascos. Tudo que era vasilha alinhava-se pelo pátio inteiro, formando meandros, como o curso de um estranho rio. Logo soubemos por quê: a água era racionada na prisão. Serviam cinco litros por preso a cada semana e essa era a única água para beber, lavar o rosto, tomar banho e lavar a roupa. Claro que não dava. O motivo desse racionamento era um conserto das instalações que abasteciam a colônia penal. Os caminhões pertenciam a outro departamento e nem sempre podiam ir até o presídio: naquela ocasião tinham ficado sem aparecer durante nove dias. Subimos para o sexto andar. Os que haviam chegado no dia anterior tinham pegado celas vazias e levaram muitos de nós para elas. O tráfego pelas escadas era constante, mudavam-se liteiras de um andar para outro, de uma cela para outra. As celas tinham duas dessas camas que chamávamos de "aviões", na gíria carcerária. Nunca consegui saber por quê; talvez fosse por se dobrarem como asas, fechando-se. O caixilho era um tubo ao qual se costurava a lona ou saco de juta ou aniagem; fixava-se na parede com dois ganchos de ferro enfiados no concreto e tinham dois tirantes de correntes, que também eram presas na parede; podiam ser fechadas durante o dia e abrir no momento em que iam ser usadas. Ter um desses aviões de lona em bom estado era a aspiração máxima de um preso. Estávamos cansadíssimos quando chegamos ao sexto andar, Carrión, Piñango, Boitel, Jorge Víctuor e mais alguns do nosso pequeno grupo. Na prisão tem-se centenas de amigos, mas sempre há um grupo reduzido com o qual passamos a maior parte do tempo, com o qual se partilham as horas e essa necessidade de se comunicar que para alguns é mais importante do que para outros. Jorge Víctor era calado; mal falava e dava a impressão de ser imutável. Realmente o era Havia estudado para padre e dava a impressão de andar de hábito. Tinha sido detido na mesma madrugada que nós. Jorge Víctor havia se sentado no chão, impassível, e nós fizemos a mesma coisa. Ajeitamo-nos naquele quadrado, pegamos os cobertores e tratamos de dormir o melhor possível. Como 22 o esgotamento em que estávamos nos últimos dias, afundamos quase que imediatamente num sono profundo. * * * De madrugada, um barulho e gritaria infernais nos acordaram, sobressaltados. Levantamo-nos e nos aproximamos do parapeito do beiral. Dai via-se a grade de entrada: o espetáculo era alucinante. Tinha chegado um carro-tanque de água. Haviam enfiado a mangueira de quatro polegadas entre as grades e aberto as torneiras. O líquido precioso foi jogado fora até que os primeiros, meio adormecidos ainda, desceram ao grito de ÁGUA! Os presos precipitavam-se para o térreo, frenéticos, com baldes, latas, jarros, enfim, tudo que servisse para armazenar água. Centenas de homens enchendo suas latas à medida que ia chegando sua vez, nas filas intermináveis. Corriam como demônios pelas escadas e gritavam. Acima daquele barulho a torrente de voz do major Lourenço fazia-se escutar: - Calma, senhores, calma! Ms aqueles já não eram homens civilizados; agiam como uma manada sedenta que, de repente, fareja água próxima e estoura em debandada. Corriam pelas escadas; alguns, mais ágeis, despencavam pelos beirais, descendo de andar para andar, com o risco de cair lá embaixo. Fiquei olhando tudo aquilo como que hipnotizado, até que outro preso, com um balde de plástico, passou diante de nós. - Hei, vocês! Andem logo, senão ficam sem água! Suas palavras nos despertaram; era verdade e estávamos sedentos. Pegamos nossos baldes e saímos, velozes, escadas abaixo. Eu percebi, então, que era mais um daqueles homens. O menu não era muito variado: no almoço, arroz e ervilhas; à tarde, farinha de milho e um caldo gorduroso. Em geral, a ervilha ou outros grãos eram destinados ao presídio quando estavam ruins, cheios de bichos. Então, flutuava nos caldeirões enormes uma camada de carunchos. No entanto, nas situações mais desagradáveis, o cubano, devido ao seu caráter, por idiossincrasia, leva as coisas na brincadeira: uma válvula de escape para diluir o drama das coisas graves. Então, quando vinham os cereais bichados, o gradeiro apregoava: - Ervilha com proteína! Vivi durante muitos dias quase que só de pão. Eu tinha certas frescuras para comer, mas a fome e o presídio se encarregariam de acabar com aquilo. Semanas depois, devorava aquela ervilha como se fosse o máximo. Quando alguém dizia que a comida estava estragada ou com gosto ruim, Carrión sempre respondia: - Quem já viu preso comer por prazer? Come para sobreviver. E era verdade. Era preciso comer qualquer coisa para sobreviver e fiz o firme propósito de pôr de lado todos os escrúpulos e engolir o que viesse. Na circular 3, Macuran, um ex-militar do exército derrotado, tinha conseguido montar um rádio rudimentar que deixava os soldados da guarnição malucos. Faziam, inutilmente, uma revista após outra tentando encontrá-lo. Os presos tinham conseguido organizar uma linguagem por sinais, com as mãos, similar à dos surdos-mudos, porém muito mais simplificada, que permitia falar com rapidez assombrosa. Poderia parecer 25 8. Suicídios e excrementos Cajigas era um camponês da região montanhosa de Escambray, cenário de levantes contra Castro desde 1960. Vários dos filhos desse ancião somaram-se aos grupos de patriotas que combatiam o comunismo. Unicamente por essa causa, porque seus filhos estavam lá, nas montanhas, e não tinham conseguido apanhá-los, prenderam o velho Cajigas, pensando que assim os rapazes se entregariam. Depois de interrogá-lo, tentando conseguir informações sobre os contatos e os acampamentos dos revoltosos, Cajigas foi preso na Ilha de Pinos. Mas as tortura a que fora submetido e os interrogatórios perturbaram-lhe as faculdades mentais. Levaram-no para La Campana, lugar do Escambray utilizado durante muitos anos para fuzilar os que se opunham a Castro. E lá fingiram fuzilar o velho com balas de festim. A mente dele não suportou: ficou desequilibrado. Na loucura de Cajigas havia uma idéia fixa, obsessiva: ver os filhos. E constantemente aproximava-se das grades da entrada, chamando-os: - Quero ver meus filhinhos... quero ver meus filhinhos! Um dia, um dos guardas teve a idéia de dizer a ele que seus filhos tinham sido fuzilados: - Ouviu, velho? Fuzilamos seus filhos, para de foder nossa paciência! Foram fuzilados... estão bem mortos! Então, Cajigas agarrou-se aos barrotes, chorando. Chamaram o major para ir buscá-lo e levá-lo para a cela. O velho tinha as mãos crispadas ao redor dos barrotes e foi preciso arrancá-lo dali à força. O guarda informou ao oficial que Cajigas havia rompido o silêncio e alterado a ordem; não adiantaram explicações. Enfiaram-no na cela de castigo. Na manhã seguinte, quando passou o militar fazendo chamada, o cadáver de Cajigas balançava lúgubremente. Havia se enforcado com as calças. * * * Quando se construiu o conjunto carcerário da Ilha de Pinos, todas as celas tinham um vaso sanitário, uma pia e uma lâmpada elétrica. Tudo isso foi eliminado pela revolução e apenas duas celas por andar foram reformadas para funcionar como banheiros. Mas em quase todos os andares os vasos sanitários e pias foram arrancados à medida que o pessoal da guarnição ia precisando deles. Até os soquetes das lâmpadas desapareceram, assim como os interruptores de luz. Ficou apenas uma lâmpada de 500 ou 1.000 velas na torre, que à noite espalhava uma luz esmaecida sobre o local. A circular parecia, então, uma praça de touros à meia-luz. Como não havia água corrente, como já não existiam instalações sanitárias nas celas, era preciso ir, necessariamente, aos banheiros dos andares. Em cada um havia dois 26 vasos sanitários; mas usar um desses vasos era algo de incrivelmente repugnante Os excrementos transbordavam. Os banheiros não tinham porta, cortinas, nem nada que isolasse ou separasse, mesmo que parcialmente, quem tivesse necessidade de usá-los. Diante deles sempre havia uma fila de espera. Era preciso defecar assim, como se o fizéssemos em plena rua, ao meio-dia. Além disso, só o fato de colocar os pés na beirada do vaso sanitário era perigoso; mil vezes a gente escorregava e afundava até a metade da perna naquela poça de merda. Quando os vasos estavam assim, transbordando, havia os que subiam à janela, agarravam-se nos barrotes e colocavam a bunda para trás, de modo que ficasse em cima do vaso; davam a impressão de macacos. Quando vi aquilo, disse a mim mesmo que jamais poderia defecar ali. Fiquei vários dias sem ir ao banheiro. Tive a idéia de esperar pela madrugada, mas vi que muitos outros haviam pensado a mesma coisa. Para ir àquela privada era preciso tomar medidas especiais de prevenção contra acidentes. Íamos nus, com uma toalha ao redor da cintura e descalços, pois se escorregasse e o pé se enfiasse no vaso era quase certo o sapato ficar por lá. A única vantagem era que à noite as milhares de moscas não incomodavam. Quando os excrementos começavam a transbordar, era preciso retirá-los com baldes e pás. Sempre, em toda sociedade ou agrupamento humano, há os que são capazes de se encarregar das tarefas mais desagradáveis. Os que se dedicavam à retirada dos excrementos eram homens que mereciam uma enorme admiração e agradecimento. Mas o que fazer com o excremento? Era jogado, de todos os andares, para o térreo e ali acumulava-se uma pilha de quatro ou cinco metros de diâmetro, sobre a qual pululavam milhares de moscas. Quando se olhava de cima, a asquerosa montanha dava a impressão de se movimentar: era a camada de moscas que a cobria constantemente. Quando alguém se aproximava, o enxame se erguia com uma nuvem escura. A peste, a hediondez, eram insuportáveis; toda a circular fedia. A gente, então, se deslocava para o lado de onde soprava o vento, procurando um pouco de ar puro, respirável. À noite ou quando se estava comendo e a brisa trazia ondas daquela fetidez, nossas entranhas se revolviam. Uma vez por semana passava o caminhão de lixo. Então, passava-se a merda, com pás, para caçambas de uns vinte mil litros. Se em repouso empestava o ar, quando era revolvida sua fetidez se tornava intolerável. O risco de doenças e epidemias era enorme e por isso tomávamos medidas de precaução, principalmente contra as moscas, devido à hepatite. Os pratos e colheres eram guardados em sacos de náilon e tratava-se de não deixar nenhum jarro ou alimento ao alcance desses insetos. Mesmo assim houve epidemias, com mortos de febre tifóide. Os casos de diarréia, vômitos e infecções estomacais eram muitos e constantes. 27 9. As revistas, surras e saques Eram freqüentes as revistas na circular 3, em busca constante, porém inútil, do rádio que escondíamos. Os guardas se amontoavam na saída e distribuíam baionetadas e correntadas às mãos cheias; as vítimas saíam sob uma chuva de golpes, protegendo a cabeça com as mãos. Os guardas gritavam, sempre o faziam, era um mecanismo para se aquecer, excitar-se. Provavelmente, nem mesmo para os mais desalmados, não é fácil surrar outros homens sem uma causa, um motivo. Aqueles guardas eram homens com esposas, filhos. O que sentiriam quando os primeiros prisioneiros assomavam pela grade, assustados, e tinham que erguer a baioneta e bater neles? Penso que para uma atitude dessas um ser humano precisa justificar sua ação, descobrir uma motivação interior; como não a tinham, procuravam-na nos gritos, nos insultos. Lembro-me de uma revista na circular 2. As escadas estavam tomadas pelos guardas, que batiam selvagemente nos presos que iam descendo. Já estávamos quase todos no térreo, restavam apenas alguns retardatários. Entre eles o dr. Velazco, um preso alto, negro, vestido com uniforme completo. Usava óculos redondos, pequeno, de lentes transparentes. Como sempre, ele andava, da mesma maneira que falava, com parcimônia, desenhando cada sílaba, cada letra, imutável, imperturbável, lentamente. Do térreo, nós, seus amigos, pedíamo-lhe que se apressasse, para evitar que batessem nele. Ao chegar no último lance de escada, com seu inseparável leque de papelão, com que se abanava tranqüilamente, os guardas descarregaram uma série de pancadas furiosas nas costas dele. O dr. Velazco não movia um só músculo, como se as costas que recebiam o castigo não fossem suas. Ergueu-se um rugido de indignação: - É o médico... não batam mais nele! - gritávamos; mas que importava à guarnição que ele era um médico? O dr. Velazco desceu os últimos degraus e apesar das pancadas não cessarem, não se apressou, em absoluto. Um dos guardas, que estava no segundo andar, jogou-se para trás, projetou metade do corpo fora do corrimão, segurando-se com uma das mãos e com a outra, com a qual brandia um facão, deu-lhe uma última pancada, com a lâmina de prancha. Nós, que esperávamos o dr. Velazco no térreo, aproximamo-nos dele, preocupados. Com seu falar parcimonioso, disse-nos que não tinha importância... e procurou um lugar junto da torre, colocou ali seu banquinho e sentou-se abanando-se. Eu tinha certeza de que suas costas ardiam, queimadas como deveriam estar a pele e a carne pelas pancadas. Mas ele se mantinha imperturbável. 30 10. Sobre um barril de pólvora Carrión dormia no avião de cima: tinha sono pesado e era preciso sacudi-lo para que acordasse. Quando ouvi o matraquear de metralhadoras e o troar dos canhões cheguei à janela de um salto. Acima das colinas fulguravam as línguas de fogo avermelhadas e alaranjadas das baterias lá instaladas. As balas destruidoras sulcavam o céu azulado, em busca de um alvo invisível para mim. O alarme era geral na circular, e a confusão, tremenda. - Estão nos atacando! - gritavam alguns - Atiram em nós! - diziam outros. Mas, sem dúvida, o objetivo daqueles projéteis não era a circular. Cheguei ao sexto andar. Muitos olhavam pelas janelas, trepados em latas, catres ou erguidos nas pontas dos pés, segurando-se nos barrotes. A leste do presídio, quase em cima de nós, explodiam obuses antiaéreos, fazendo subir uns cogumelos de fumaça preta, e entre eles passeava lentamente um avião de bombardeio B-26. Sua fuselagem prateada brilhava ao sol da manhã e as explosões continuavam pontilhando o caminho dele. Vi o avião afastar-se rumo à desembocadura do rio Las Casas. Dali começaram a atirar nele, de uma unidade da Marinha cubana. Era atacado pela fragata Baire. O piloto descobriu-a e lançou-se sobre ela num mergulho, as metralhadoras disparando. A fragata começou a movimentar-se para não ser atingida pelo avião; este disparou o primeiro foguete e uma coluna de água, altíssima, ergueu-se diante da proa do barco, que começou a se afastar a toda máquina. Então, o B-26 desviou-se para a esquerda. Começaram a atirar nele, de novo, ds colinas, e de novo ele passou olimpicamente entre os obuses da artilharia, que o procuravam enraivecidos. Aquele piloto fazia uma exibição de sangue frio. Dirigiu-se novamente rumo ao navio que disparava contra ele e desta vez não errou o alvo. O foguete rebentou a popa da fragata, que foi envolvida por um torvelinho de fumaça preta. Então, o avião afastou-se rumo a noroeste. Iniciava-se a invasão de Cuba pela Baía dos Porcos. Era dia 17 de abril de 1961. Aquele fato produziu uma excitação extraordinária entre os presos. Imediatamente pegamos nosso rádio rudimentar, que mantínhamos escondido, e o ligamos. Nesse dia, logo depois do almoço, chegou um caminhão, escoltado por dois veículos, coberto com uma lona, com vários soldados armados em cima. Estacionou com a traseira voltada para a casinha de entrada e alguém, querendo fazer piada, gritou: - Sánchez... os pacotes! Mas não eram os pacotes; pelo menos, não eram os pacotes com coisas destinadas ao nosso consumo, se bem que fossem a nós dedicados. Eram caixas com cartuchos de dinamite, de fabricação canadense. 31 Os militares, dirigidos pelo comandante William Gálvez, começaram a descarregar a temível mercadoria. A dinamite foi depositada no sótão. Aquele acontecimento modificou completamente o clima da circular. Muitos especulavam sobre o porquê daqueles explosivos. Alguns achavam que os haviam levado para lá a fim de que ficassem num lugar seguro, ao abrigo de ataques como o daquela manhã, pois os aviões não bombardeariam as circulares, sabendo que nós estávamos nelas. Ao entardecer chegaram as primeiras informações através do radinho clandestino. Combatia-se no lodaçal de Zapata, na Baía dos Porcos, desde muito cedo. As notícias eram muito otimistas e a euforia dos presidiários não teve limites. Houve os que gritavam de pleno peito, pulavam e abraçavam os amigos, invadidos por uma alegria que só podem imaginar os homens que estiveram em uma situação como a nossa. Os comunicados da imprensa internacional continuavam chegando até nós. Os companheiros que manipulavam o radinho não descansavam: quase não dormiram durante dois dias. De madrugada a Rádio Swan, emissora que transmitia para Cuba, lançou uma mensagem pedindo a ajuda da resistência interna em apoio à invasão. "Povo de Havana: atenção, povo de Havana. Devem cooperar com os valentes patriotas do exército de libertação. As usinas elétricas não devem fornecer energia para as poucas indústrias que o regime tenta manter funcionando. Hoje, às 7h45min, quando dermos o sinal por esta emissora,todas as luzes de todas as casas devem ser acesas, todos os aparelhos elétricos devem ser ligados para que haja uma sobrecarga nos geradores da usina elétrica". Outras notícias diziam que as forças invasoras, arrasando tudo à sua passagem, aproximavam-se triunfantes de Havana. Era mentira e a invasão tinha sido derrotada. Castro, o mesmo homem que declarara mil vezes que não era comunista, que a revolução era mais verde do que as palmeiras, arrancava a máscara com que havia enganado a todos e proclamava a verdadeira natureza da revolução, que ela sempre tivera. - Esta é uma revolução socialista... - disse - e nós a defenderemos com estes fuzis - e terminava com uma linguagem inconfundivelmente comunista: - Viva a classe operária! Vivam os camponeses! Vivam os humildes! Viva a revolução socialista! Pátria ou morte, venceremos! Durante seu discurso, a claque o interrompia para gritar as palavras de ordem fornecidas pelo Partido: "Fidel, Kruschov, estamos com os dois!" Era 16 de abril de 1961, no cemitério de Colombo, na cidade de Havana, e enquanto Castro despachava o féretro dos mortos nos bombardeios do dia 15, pela porta dos fundos, em silêncio, sem flores, coroas, familiares ou amigos para pronunciar palavras de despedida, seis cadáveres de cubanos, fuzilados na prisão de La Cabaña, chegaram e foram enterrados em vala comum. Desde o primeiro ataque, no dia 15, quando os B-26 bombardearam aeroportos em diversos lugares da ilha, o Governo desencadeou uma feroz repressão contra todos que eram considerados não-simpatizantes do regime. Cerca de quinhentas mil pessoas foram detidas em todo o país. Padres, operários, velhos e mulheres, militares e estudantes foram confinados em teatros, estádios, edifícios públicos, quartéis, escolas, etc., porque os presídios estavam abarrotados. 32 No pátio de La Cabaña, à intempérie, chacinaram centenas de pessoas, inclusive algumas mulheres com crianças. Também nos porões, que rodearam de metralhadoras; deixaram livre apenas o porão onde havia o paredão para os fuzilamentos. Aquela redada às cegas levou à prisão centenas de cubanos que conspiravam, alguns infiltrados e que, uma vez identificados, foram imediatamente fuzilados, sem qualquer julgamento; e também a funcionários do Governo, como a vários diretores do Banco Nacional, elite marxista, que foram detidos enquanto comiam num restaurante e passaram dois dias presos. Nos porões do Castelo do Morro milhares de pessoas passaram dois dias sem água, nem alimento. Ao fim desse tempo, encharcaram-nos com uma mangueira, para que acalmassem a sede. Dezenas de pessoas morreram naquelas chacinas; houve mulheres grávidas que abortaram e outras que deram à luz ali mesmo, no chão, assistidas pelas outras mulheres. Os guardas ameaçavam todo mundo com metralhamento, se a invasão triunfasse. O teatro Blanquita, o maior de Cuba, transformou-se em um gigantesco presídio que abrigou oito mil pessoas. Durante cinco dias, os que estavam concentrados lá receberam alimento apenas em quatro ocasiões. O Palácio dos Esportes alojou outros milhares. Uma noite, os milicianos começaram a gritar que todos se deitassem no chão e, para se divertirem, dispararam as submetralhadoras, com um saldo de vários feridos. A perseguição e a repressão desencadearam-se de forma aniquilante. Todo cidadão era um inimigo em potencial. Se não estivesse nas forças armadas ou na milícia, ou se não pudesse provar sua militância revolucionária, era detido. Jorge Rodriguez e Jesus Casais, jovens revolucionários que haviam lutado por uma verdadeira democracia, caíram abatidos por membros da Polícia Política, em plena rua, diante de várias testemunhas que certificaram que seus agressores nem sequer demonstraram intenção de prendê-los. Marcial Arufe e sua esposa Digna, recém-casados, passavam a lua-de-mel em um apartamento no bairro de Luyanó, em Havana. A Polícia Política bateu à porta e, quando a abriram, metralharam-nos. Não há dados de quantos foram fuzilados naqueles dias em toda a ilha; mas os pelotões de execução funcionaram no regimento de Pinar del Ría; na base de San Antonio de los Baños; no Morro; em La Cabaña; no castelo de San Severino, em Matanzas; em La Campana; em Camaguey e no Oriente. Desta vez nem sequer puseram os cadáveres em caixões: despiam-nos e enfiavam-nos em sacos de náilon, enterrando-os assim. No cemitério de Colombo, em Havana, um oficial da Polícia Política e dois soldados, em uma perua VW branca, recebiam os cadáveres e transportavam-nos para uma área sob controle militar,onde eram atirados em uma vala comum. Juan Hernández, um daqueles militares, depois foi preso, acusado de conspiração e contou-nos tudo com detalhes. Encorajados pelo triunfo, os "chefes" da prisão caíram em cima de nós; a repressão tornou-se mais violenta e nos comunicaram oficialmente que a dinamite ficaria colocada nos alicerces para nos fazer voar pelos ares se houvesse outra tentativa de invasão. 35 pelo número de preso, Boitel havia sido um dos primeiros e tinha passado sem problemas. Quando o guarda entregou-me as roupas de volta, senti um enorme alívio. A revista, mas não o suficiente: os bilhetes tinham sido presos com esparadrapo atrás dos testículos. Quando todos os presos estavam no curral, situaram guardas em cada canto, por fora, armados de fuzis. Todos olhávamos para o portão por onde iam entrar nossos familiares, que desde a noite anterior esperavam diante do presídio, à intempérie, atirados na beira da estrada, debaixo de árvores,fazendo suas necessidades fisiológicas entre os arbustos que cresciam dos lados. Abriram a porta e nos amontoamos, esperando a entrada de nossos parentes. Os que já haviam percebido os seus, gritavam e agitavam as mãos. Ao entrar, as cenas foram dolorosas,dramáticas: as mulheres abraçava-se aos presos, chorando, as crianças também. Minha mãe e minha irmã chegaram nos primeiros grupos. Era proibido os homens entrarem no curra, tinham que ficar do lado de fora, por trás da cerca. Lá estava meu pai, sob o sol implacável que no mês de junho, em pleno trópico, esgota até a extenuação. A visita terminou às três da tarde. As famílias não podiam ir embora imediatamente; ficavam retidas dentro da prisão até que nos contassem e tivessem certeza de que ninguém tinha fugido. Depois de todos saírem contara-nos e, de volta à circular, novamente tivemos que ficar nus. No começo a maioria tinha um ar de nostalgia, estávamos cabisbaixos. No entanto, depois que estávamos lá dentro, reuníamo-nos, em grupo de amigos, comentando a visita, os acontecimentos familiares e políticos, os boatos. Falávamos das últimas notícias, que chegaram com as visitas, sobre a situação das prisões da ilha. De repente, e vindo de cima, um vulto passou diante de nós, muito perto. Com estrépito, chocou-se contra o chão, no térreo. Jamais esquecerei o barulho feito pela cabeça, ao rebentar contra o cimento. O homem caiu de barriga para baixo. Estava com o rosto de lado e uma perna encolhida. A massa encefálica fluía lentamente de seu nariz. Jesús López Cuevas tinha se matado atirando-se do quarto andar. Sabíamos que, se falhássemos na tentativa de fuga, a conseqüência seria a morte, mas continuamos os preparativos. Tínhamos dado instruções aos nossos familiares para que enviassem dinheiro a um endereço que tínhamos combinado com nosso contato, o preso comum que nos ajudava. Pedimos também fotos para documentos. Duas semanas depois da visita, nosso amigo fazia chegar às nossas mãos, pela via estabelecida, através da janela, quatro flamantes carteirinhas de milicianos, com nossas fotos. Segundo aqueles documentos, cada um de nós pertencia a uma das companhias de milicianos próximas do presídio. E os nomes nas carteirinhas não eram inventados: existiam de verdade. Eu me chamava Braulio Barceló e pertencia ao batalhão 830, acantonado em "Los Mangos", um acampamento próximo. Assim, caso fosse detido em algum lugar da ilha e se comunicassem com "meu batalhão" perguntando pelo nome da carteirinha, de fato esse miliciano pertencia àquela unidade militar. Um amigo muito habilidoso na fabricação de facas fez quatro para nós, com cabos de madeira, muito bem-acabadas; fabricou-as com a lâmina de um facão. Pouco a pouco íamos conseguindo o que era necessário. Continuava minhas observações com o binóculo. Cheguei até a me familiarizar com as caras dos soldados das guaritas e dos que montavam guarda diante do quartel, que via como se estivessem a um palmo dos meus olhos. 36 Para escolher a cela da qual deveríamos fugir, fizemos um estudo da localização ideal e verificamos que a 64 era a que nos oferecia maior segurança de não sermos vistos. Era justamente a nossa, só que estava no segundo andar, e precisávamos estar no primeiro. No devia ser nenhuma outra, uma vez que tanto da 63 quanto da 65 seríamos vistos da guarita do fundo, ao oeste, e pelo posto situado diante do quartelzinho. Em meados de agosto chegou um grosso colchão para Boitel. Um colchão inofensivo, aparentemente bem revistado. Os colchões,em Cuba, tinham todos ao redor uma borda de uns três centímetros de diâmetro: dentro dela estavam quatro camisas de milicianos. Haviam-nas preparado esticando-as, torcendo-as e enrolando sobre elas um fio de barbante, de maneira que ficassem como um tubo. Colocaram-na na borda do colchão, enroladas em uma fina camada de algodão, duas em cima, duas embaixo. Carmem Jiménez, a namorada de Boitel, havia ido à ilha a fim de observar que tipo de revista faziam nos colchões, pois a verificação era feita diante dos familiares, para responsabilizá-los, caso tentassem fazer passar algo proibido. Ela presenciou três ou quatro revistas. Assim, notou que havia apenas um local que não o revistavam: a grossa beirada do colchão. Com essa informação, voltou para Havana e preparou o colchão em casa de amigos. Ela mesma levou-o ao presídio. Se tivessem descoberto, Carmen acabaria na cadeia. Só faltava tingir as calças e os cintos. As boinas e as serrilhas tinham entrado do mesmo modo. Tivemos sorte, pois aquela foi a última vez que permitiram a entrada de colchões. Começamos um treinamento de marcha, para adquirir resistência. Calculamos a circunferência dos andares e todos os dias andávamos por eles dezenas de vezes, do quinto ao primeiro, do primeiro ao quinto, aumentando a cada três dias o número de voltas e a velocidade. Muitos presos faziam isso como exercício, de maneira que não despertávamos suspeitas. Chegamos a caminhar vinte e cinco quilômetros por dia. Outro detalhe que poderia chamar a atenção era a falta de sol na nossa pele, pálida pelos meses de prisão. Precisávamos adquirir o tom moreno dos milicianos Essa foi uma tarefa tremenda. Caçando o sol pelas janelas das celas e expondo nossos rostos aos raios que entravam pelas grades, fomos nos amorenando um pouco. Em um saquinho plástico, costurado dentro de um saquinho de náilon maior, cheio de farinha de milho, escondemos os comprimidos para esterilizar água. 37 12. Martha debaixo da chuva Todas as noites, nesses minutos que antecedem ao sono, pensava em minha família e me recomendava a Deus, pedindo-lhe que fortalecesse minha fé e me permitisse manter o firme propósito que fizera de não deixar que os carcereiros me esmagassem espiritualmente, que não envilecessem minha alma semeando nela o ódio e o rancor. Minha preocupação, em todo momento,era não afundar no desalento, nem no desespero, que tanto mal faziam a todos que estavam ali. Em minhas conversas com Deus, na solidão daqueles minutos, ia encontrando o cimento de uma fé que com o passar dos anos seria submetida a titânicas provas de resistência, das quais sairia vitoriosa. Uma atitude de confiança diante de toda circunstância difícil transformou-se, em mim, num instrumento de combate. Mais de vinte anos depois, os coronéis da Polícia Política teriam que comentar,com odiosa inveja, que eu sempre estava rindo. Tiraram-me o espaço, a luz, o ar, mas não puderam me tirar o sorriso. Eu considerava isso um triunfo do amor sobre o ódio. Os dias passavam lentos para minha ansiedade. As revistas eram freqüentes e as medidas repressivas iam aumentando. O tenente Julio Tarrau, diretor do presídio, estabeleceu um regime de terror. Esse homem, mestiço, militante nas fileiras do Partido Comunista desde os anos quarenta, não perdia ocasião de exercer seu ódio sobre os prisioneiros políticos. Foi Tarrau que nomeou chefe da Ordem Interior o tenente Bernardo Diaz, um velho camarada do Partido. O 5 de setembro amanheceu cinzento e chuvoso. Uma das típicas perturbações ciclônicas do Caribe aproximava-se de Cuba; nos dias anteriores à sua chegada as chuvaradas e o vento tinham sido freqüentes. Para nós a visita desse dia seria transcendental; para mim muito mais, pois se bem que ainda não soubesse, era nela que viria a conhecer minha futura esposa. E precisamente esse contato, mais do que o outro que esperávamos, seria o que me tiraria do cárcere, vinte anos depois... Mais ou menos às nove horas avistaram-se os primeiros grupos de visitantes Duas horas mais tarde a maior parte dos familiares já estava dentro do curral; mas os meus e os de outros prisioneiros não apareciam. Saberíamos depois que dois dias antes, quando estavam a bordo do barco que os levaria do porto de Batabanó, na costa sul de Cuba, até a ilha, foram obrigados a descer para que o barco transportasse um contingente de milicianos e armamentos. 40 13. A fuga De volta, Ulisses, Boitel e eu reunimo-nos na minha cela. Tudo estava correndo bem. Um homem, mandado pelos que enviariam o barco, havia entrado com os visitantes. Boitel falara com ele por alguns minutos, através da cerca. Queria saber como pensávamos sair dali, porque eles achavam impossível. Boitel disse-lhe que tínhamos um plano e que tentaríamos realizá-lo, mas que não podia dar os detalhes. Ficou combinado que uma embarcação nos apanharia na embocadura do rio Júcaro, muitos quilômetros a sudeste do presídio, no dia 21 de outubro, à uma da madrugada. Nós a esperaríamos dois dias seguidos. Combinamos os sinais para identificar o barco. Saber que nossos planos de fuga iam se firmando encheu-nos de alegria. Agora não nos interessavam as dezenas de notícias e boatos que os visitantes tinham trazido. Em menos de dois meses iríamos tentar recuperar nossa liberdade por meios próprios. Esse pensamento já me fazia sentir fora daquelas grades. Enquanto um homem pensa em sua liberdade e luta para consegui-la, mesmo que tenha correntes nos pés e nos braços, não se sente escravo. Claro que não. Jamais abandonamos a observação. Nós quatro devíamos nos familiarizar com os arredores. Tínhamos que conhecer a movimentação do quartelzinho, os postos, o percurso das patrulhas. Graças à contínua observação, semanas depois seríamos capazes de fazer o caminho escolhido até de olhos fechados. O caminho que levava até o barracão onde eram lavados e passados os uniformes dos soldados, ia ser nosso primeiro lance. Para chamar o menos possível a atenção, nosso destino seria o barracão. Não despertaríamos suspeitas porque todo mundo ia a ele. Ao lado do quartelzinho, onde começava o caminho da terra avermelhada, batida, havia uma porta pequena; o guarda de sentinela à entrada do quartel mantinha-se a uns dez metros dela. Jamais passavam veículos por essa entrada: servia apenas para a passagem de militares e milicianos. Na verdade, aquela saída era muito útil.. Um dia, a ausência total de milicianos no penal chamou a atenção de Ulisses. De fato, não se viu um só naquele dia, nem no seguinte. Não demoramos a saber o motivo: eles tinham sido proibidos de entrar no presídio. A ordem de não permitir a entrada dos milicianos na circular obedecia a motivos de segurança. A Polícia Política sabia perfeitamente que nem todos os milicianos simpatizavam com o regime e que em suas fileiras, além dos não-simpatizantes, havia contra-revolucionários. A entrada maciça de milicianos no presídio podia prestar-se ao estabelecimento de contato como os presos, para que recebessem informações e até para facilitar possíveis evasões. A notícia foi um impacto para nós. Fazer as quatro camisas e boinas de milicianos entrarem no cárcere, para nos disfarçarmos, tinha sido um trabalho colossal. Que fazer 41 agora? Restava apenas uma solução: tingir também as camisas de verde-oliva e tentarmos passar por soldados. Para isso era preciso fabricar imediatamente os quatro quepes, coisa que não era muito difícil, porque o exército usava quepes de campanha. Tínhamos entre nós alfaiates, seleiros, enfim, homens de todos os ofícios que existem. Os quepes, indispensáveis, não seriam problema. Nosso ânimo e espírito de luta não decaíram por isso. Desfeito o plano de fugir como milicianos, concentramos todos os nossos esforços em evadir-nos disfarçados de guardas. Por sorte as pastilhas de tinta eram o suficiente. Um dia eu estava de vigia quando vi algo que fez minha alma cair até os pés: a portinha por onde pensávamos fugir estava sendo selada. Abriram uns buracos, colocaram umas barras de metal e uma tela de aço, como a que cercava o terreno ao redor do presídio. A porta desapareceu e, com ela, nossa possibilidade de fuga. Chamei os outros para comunicar a terrível notícia. Agora, sim, o desafio era mais do que difícil. Apesar disso, decidimos continuar observando, em busca de alguma solução. O quartelzinho tinha ao seu redor uma cerca com mourões de um metro e meio de altura e vários fios de arame. Os soldados estendiam roupas de baixo e meias nesses arames, para que secassem. Continuavam levando os uniformes para o barracão. E não se importaram por terem selado a portinha. Simplesmente inauguraram outro caminho: levantavam os arames da cerca e passavam para o outro lado. Assim eles estabeleceram nossa nova rota.Se quiséssemos fugir, teríamos que fazer como eles. Acho que nenhum plano de fuga teve mais inconvenientes para vencer, nem mais interrupções, do que o nosso. Os militares continuavam reforçando seu sistema de defesa. Limparam o terreno atrás do quartel; com patrolas, arrancaram árvores e arbustos, deixando mais de cem metros tão lisos quanto uma pista para pouso de aviões. Ao mesmo tempo, ergueram mais um alambrado com mais de três metros de altura para reforçar a fraca cerca interior. Colocaram na nova cerca um fio de arame farpado a cada dez centímetro. Se o quartel fosse atacado pelo exterior, sua tomada seria muito difícil. Aquele alambrado pareceu sepultar definitivamente nossas esperanças de escapar. Agora sim, estávamos desolados. Esquadrinhamos com ansiedade tudo que ficava ao alcance dos nossos olhos procurando um lugar, um canto, uma possibilidade de fuga. E não podia ser depois da data marcada para nos apanharem na costa. Na manhã sem que vários guardas, com picaretas e pás, começaram uma escavação junto do alambrado, eu estava de vigia. O que seria aquilo? Não os perdi de vista, com o binóculo, nem um segundo. Já tinham feito um buraco em que cabiam até os joelhos, mas continuavam cavando; a terra retirada amontoava-se devagar. Tratava-se de uma trincheira que passava por baixo do alambrado. Quando o trabalho terminou, trouxeram uma metralhadora e colocaram-na na trincheira; puseram também, sobre o telhado do quartel, um holofote fixo, que podia ser aceso de baixo e que iluminava o terreno limpo, ao fundo. O guarda que cuidava da metralhadora fazia-o da parte de trás do quartelzinho, a uns cinco metros, sentado em um tamborete encostado à parede. De novo aquele barracão de camponeses, ao qual os guardas levavam os uniformes para lavar e passar, ajudou-nos. A trincheira passou a ser usada com porta de saída e entrada. Sentimos uma enorme alegria quando vimos que os soldados iam e vinham através dela, para levar ou trazer seus uniformes. 42 Restavam-nos poucos dias, por isso apressamos os preparativos. Boitel tirou do colchão os pedaços de serrinha para cortar os barrotes. Ulisses tratou de tingir os quepes que,entre parênteses, ficaram melhores do que os usados pelos guardas. Como Carrión não ia conosco, fizemos com que mudasse de lugar com Brito, porque se ele ficasse na cela onde se desse a fuga, as represálias que cairiam sobre ele seriam terríveis. Para cortar as barras da janela Boitel e eu tínhamos que tomar muito cuidado.Naquela época permitiam que se pendurasse roupas nas grades, para secarem, até às cinco da tarde. Colocando uma toalha para secar, ficávamos protegidos dos olhares do exterior. Quando alguém se aproximava, parávamos de serrar. Para nos precavermos da eventual subida de algum guarda à torre, baixávamos as camas e estendíamos uma toalha presa pelas pontas, enquanto Carrión ficava no estreito corredor, não apenas para obstruir a visão dos guardas, mas também de indiscretos da circular, pois sabíamos que existiam delatores que se vissem alguma coisa iriam denunciar à guarnição. Precisávamos cortar três barrotes. Não terminávamos de serrá-los completamente; deixávamos dois pontos de união que, quando chegasse a hora, eliminaríamos em alguns minutos. Fabricamos seis peças, com pratos de alumínio, que seriam usadas, depois da fuga, para tornar a firmar os barrotes no lugar. Eram umas plaquinhas que uniriam os ferros cortados, aos que ficavam chumbados ao cimento. Seriam presos com arame e como as plaquinhas haviam sido pintadas da mesma cor das grades, não se perceberia nada lá de baixo. Não podíamos deixar o buraco na janela, pois a sentinela perceberia, daria o alarme e não teríamos tempo nem de chegar ao quartelzinho. Incluímos em nossa equipagem mosquiteiros verde-oliva para cobrirmos a cabeça, porque os mosquitos das regiões pantanosas são capazes de enlouquecer qualquer um, luvas pretas e, embaixo da camisa, coletes com vários bolsinhos, onde levaríamos os comprimidos para esterilizar água, barras de chocolate, remédios de urgência, navalha para barba, fósforos em embalagens seladas, à prova de água, um espelhinho para sinais, etc. Não iríamos ter dificuldades com a orientação, pois tínhamos estudado os mapas, e embora a fuga fosse ocorrer durante a noite, achávamos que não iríamos nos perder, se bem que para nos guiar tivéssemos apenas uma dessas bússolas pequeninas, que são enfeites de chaveiros. Mas eu conhecia bastante sobre constelações e Brito também, que de nós era quem tinha melhor senso de orientação, por ter passado a vida toda navegando. Boitel continuava obcecado pela idéia de chegar à Conferência de Punta del Este. 45 Tropecei em algo duro e percebi entre o mato umas rodas denteadas de ferro; estavam umas sobre as outras e quase tropeço de novo em outro monte delas. A operação de passar pela trincheira fez meu pé doer a ponto de eu ter vontade de gritar; suei frio, em grande quantidade. Boitel me esperava do outro lado. Viramos à direita, passando por perto da casa do tenente Antônio "La Somba", como o chamavam aludindo com esse apelido à sua sinistra natureza repressiva. Ulisses e Brito estavam nos esperando ali. Os cães do tenente Antônio ladraram, mas não eram eles que nos preocupavam, mas sim os sabujos do Ministério do Interior. Fomos avançando junto a uma fileira de arbustos que a patrola havia poupado. Mesmo que acendesse, o holofote do quartel já não podia nos delatar. Caminhamos mais de cem metros paralelos ao terreno limpo; afinal, viramo-nos para dar uma olhada nas silhuetas imponentes das circulares. A nossa, mais próxima de todas, era impressionante com as janelas iluminadas mortiçamente pelas lampadinhas da torre central. Foi um momento muito emocionante, inesquecível, nenhum preso tinha podido ver as circulares daquela perspectiva. O mito da fuga impossível acabava de fenecer, morto por nós, que havíamos demonstrado que a fortaleza era vulnerável. Começamos a subir o morro. Fizemos uma breve parada a fim de não deixar "pistas" para os cães; três pedaços de pano sobre os quais colocamos cuidadosamente pimenta-do-reino em pó. Quando os cães se aproximassem, farejando, daquele modo característico que os faz aspirar o ar com força, ficariam com os narizes cheios de pimenta, começariam a espirrar e seu faro seria anulado. Colocamos os panos separados. Chegamos a um desnível muito abrupto do terreno. Meu tornozelo doía terrivelmente e a pressão que a inflamação estava fazendo tornava o andar ainda mais doloroso. Paramos um instante, o tempo necessário para pegar a faca e cortar a bota, que me oprimia até quase as pontas dos dedos. A lua derramava sua luz prateada sobre o chão amarelado. Estávamos em um descampado e, se bem que não houvesse casas por perto, sem a proteção dos arbustos sentíamo-nos mais expostos ao perigo, pois qualquer camponês ou miliciano poderia passar por aqueles lados e nos ver. Deitamo-nos no chão, examinando os arredores. Foi Brito que disse que devíamos atravessar aquele trecho correndo. Como eu não podia correr, Brito carregou-me nas costas e com uma agilidade incrível, com uma força que não sei de onde tirou, correu quase duzentos metros comigo. A primeira estrada atravessou-se diante de nós. Larga, com duas valetas nuas dos lados, e cercas de arame para o gado não fugir. A travessia tinha que ser feita com o maior cuidado, para evitar que um veículo nos viesse em cima. Escutamos um motor ao longe e achatamo-nos ainda mais no chão, escondendo-nos entre o mato. Aproximava-se. Um caminhão soviético Zil passou como um bólido, erguendo uma imensa nuvem de pó amarelo. - Vamos, agora! Assim dizendo e fazendo, Boitel deslizou, de barriga para cima, por baixo do último arame da cerca. Depois eu, Ulisses e Brito na retaguarda. Passamos para o outro lado da estrada rolando sobre nossos corpos, já que se o fizéssemos de pé poderíamos ser vistos de longe. Antes de entrarmos no bosquinho de pinheiros, colocamos outros pedaços de pano com pimenta-do-reino para os sabujos. Já não se ouviam latidos. A noite deslizava tranqüila, silenciosa. 46 Apareceu outra estrada. Estávamos no rumo e nosso mapa assinalava com exatidão todos os detalhes de que precisávamos para nos orientar. Deixamos à direita um barracão rústico, com telhado de folhas de palmeira. Os cães da casa nos farejaram e latiram. A vegetação começou a mudar e apareceram os mosquitos, em nuvens, agressivos.Aproximávamo-nos dos pântanos do Júcaro, na desembocadura do mesmo rio. Era esse o nosso objetivo e a embarcação deveria estar lá à uma da madrugada. Tudo parecia em calma. Os ruídos naturais da noite, os barulhos de insetos, o coachar de alguma rã... A água do pântano chegava aos nossos tornozelos. Fazia frio e um ventinho noroeste começava a soprar com certa força. Dez minutos e Brito não voltava. Começamos a nos impacientar. Por que estava demorando tanto? Ulisses ofereceu-se para ir procurá-lo, mas Boitel propôs que esperássemos mais cinco minutos. Afinal, Brito apareceu e nos informou. Estivera observando uma embarcação, mas tinha entrado pelo rio. Estávamos exatamente em frente do local do encontro. Boitel olhou o relógio que o gradeiro havia nos dado. Tínhamos chegado meia hora antes. Mais meia hora, pensávamos, e nossa embarcação estaria ali, ao amanhecer estaríamos a muitos quilômetro da ilha, em alto-mar, proa na direção de Grand Caimán, o rumo do qual menos podiam desconfiar os nossos inimigos, que imaginariam que teríamos ido para o norte, rumo a Cuba, ou para o oeste, rumo ao México. Mas nosso barco não chegava Uma hora... uma e meia... duas... Às três da madrugada o desânimo começou a tomar conta de nossas almas. O que podia ter acontecido? Estávamos no lugar exato, no dia e hora combinados. Não compreendíamos. O pessoal que devia vir nos apanhar sabia a que nos expúnhamos, se fôssemos capturados. À morte, quase certamente. Às seis da manhã, quando surgiram os primeiros albores e o ruído dos milicianos do outro lado do rio chegava até nós como um murmúrio distante, retiramo-nos da praia. O pessoal do barco havia ficado de vir dois dias ao encontro. Chegariam naquela noite, com certeza. Pelo menos, queríamos acreditar nisso. Teríamos que estar de novo, dentro de dezoito horas, no mesmo lugar. Deus nos ajudaria e confiei-me a Ele de novo, enquanto o sol tingia de vermelhão as nuvens altíssimas e algumas gaivotas cortavam o ar. 47 15. A caçada Foi o sargento Pinguilla,o mesmo que cruzou conosco na noite anterior que, ao terminar a chamada nos pavilhões, deu o alarme. - Fuga! Fuga! O estado de alerta foi dado na ilha inteira. Milhares de milicianos e tropas regulares saíram em nossa perseguição. Pensavam que estávamos armados e, por isso, sempre que chegavam a um bosque em que achavam que podíamos estar ocultos, a tropa jogava-se ao chão, apontavam as metralhadoras B-Z tchecas e abriam fogo. As pensões e hotéis próximos foram invadidos pela Polícia Política. Em um deles detiveram Carmen, a namorada de Boitel. O comandante William Gálvez interrogou-a pessoalmente, ameaçou-a e disse que seria presa se seu namorado chegasse a sair do país. Já quase de tarde, Brito avistou militares que se aproximavam do local onde estávamos; à nossa frente estendia-se a amplidão do mangue, cuja água nos chegava à cintura e, no final dele, o bosquinho no qual estávamos escondidos. Quando os guardas começaram a atirar nesse bosquinho, uma chuva de folhas e raminhos caiu sobre nós, despedaçados pelos projéteis. As rajadas passavam alto, mas nos inclinávamos, procurando proteção. Apagamos as marcas que nossos corpos haviam deixado no local e fomos embora, deslocando-os para a direita do cerco. O firme do lodaçal, onde começava a vegetação, dilatava-se em forma semicircular. Os militares, quando continuassem a marcha, desembocariam forçosamente no terreno despovoado de árvores, onde só cresciam as taboas. Quando os primeiros guardas apareceram, já íamos avançando pela beirada da vegetação. Eles se deslocavam em leque. Sabiam que do outro lado daquela franja pantanosa estava o acampamento de Júcaro e, por isso, não atiravam. Talvez a proximidade do acampamento militar fez com que pensassem na impossibilidade de termos nos escondido exatamente ali. E isso levou-os a serem menos minuciosos, quando revistaram o terreno. Entre o último militar e a beirada da vegetação, à nossa direita, ficaram uns trinta metros sem guardas para fechar a revista. Por esse lado íamos nós, protegidos pelas folhagens, rastreando algumas trilhas. Tínhamos a vantagem de ver sem sermos vistos. O verdadeiro perigo teria sido se eles realizassem uma "operação pente- fino", como se esperava, com soldados dentro do lodaçal. Mas não o fizeram. No entanto, o último guarda desviou-se um pouco para o lado onde estávamos; escutamos o barulho de suas botas pisando as taboas e afundando no solo pantanoso. Ms retificou o rumo e avançou de novo à frente, passando a poucos metros de nós. Estávamos salvos. Pelo menos desta vez tínhamos escapado... Os guardas nem sequer entraram no local de onde tínhamos saído. Movimentaram-se para o sul, para a estradinha 50 16. Pavilhão de castigo Talvez nos momentos em que os guardas se aproximavam de nós no pântano, nas circulares deveria estar acontecendo a revista de represália. Cheios de raiva pela nossa fuga, os militares encarniçaram-se contra os presos. Colocaram sacos de areia e metralhadoras apontando para as portas das circulares e entraram brandindo os fuzis com as baionetas caladas. Feriram dezenas de homens. Sérgio Bravo tinha apenas trinta anos. De compleição atlética, muito ágil e entusiasmado, dedicava-se a pregar a palavra de Deus. Sérgio ficava no quinto andar da circular 3. Havia algum tempo, e valendo-se das mais inimagináveis argúcias, tinha conseguido fazer entrar, folhinha por folhinha, e armar, com cuidadoso amor, uma Bíblia pequenina, dessas que não ultrapassam o tamanho de um maço de cigarros. Num esconderijo em sua cela, bem dissimulado na parede, tinha conseguido proteger o livro das revistas. Quando começou o vozerio dos guardas e a pancadaria, Sérgio, que descansava em seu beliche, pôs-se de pé, num salto, no meio da cela, olhou para baixo e o espetáculo o deixou horrorizado: estavam cometendo uma carnificina. Lançou-se escada abaixo, de três em três degraus. Ao chegar no quarto andar lembrou-se da Bíblia: havia deixando embaixo do travesseiro, fora do esconderijo. Com certeza os guardas iam tira-la. Sabia que as pancadas que levaria por chegar lá embaixo atrasado seriam mais, no entanto não se importou e voltou para escondê-la. Entrou precipitadamente na cela, com o coração na boca; finalmente conseguiu esconder a Bíblia. Saiu novamente para o beiral e deu, veloz, a última corrida de sua vida. Os guardas já tinham começado a atirar e a bala de um fuzil rebentou os ossos de uma de suas pernas, abaixo do joelho. O impacto foi como o de uma machadada brutal. Enquanto eu caminhava, apoiado nos saibros de Ulisses e Brito, amputavam a perna de Sérgio Bravo. * * * Fizeram-nos entrar na sala do tenente Tarrau. Sobre a mesa dele vimos quatro colunas de fotografias nossas; haviam sobrado das que tinham distribuído pela ilha inteira para nossa identificação. Indicaram-nos um sofá e nós quatro nos sentamos nele. Um tumulto de militares entrou na sala frente vinha o comandante William Gálvez, chefe territorial da Ilha de Pinos, que também conhecia Boitel. Gálvez era famoso por suas excentricidades, como aquela de andar patinando pelas ruas da cidade de 51 Matanzas de farda completa e aparecer assim nos Tribunais Revolucionários, nos quais tomava parte como fiscal. Estava muito interessado nos detalhes da evasão. Aventureiro por natureza, Gálvez não podia dissimular sua admiração pela nossa fuga. Houve um momento em que disse que eles sabiam que um submarino da Agência Central de Inteligência viria nos apanhar. Boitel negou. Mas Gálvez não acreditou e houve uma acareação. Boitel continuou negando que qualquer submarino iria nos buscar. — Então, como iam sair da ilha? — Pensávamos em ir num barco. — Mas quem vocês pensam que são? — quase gritou aquele insólito comandante, considerando impossível que fôssemos capazes de fazer isso. — Pense, comandante, se é mais difícil dirigir um barco do que fazer o que fizemos. William Gálvez ficou em silêncio. Ficou olhando Boitel fixamente. Voltou-se e murmurou, em voa baixa: — Sim... é verdade. Não obstante, a Polícia Política encarregou-se de difundir a história do submarino da CIA e a primeira versão foi dada a Marcha González, uma exilada que voltou dos Estados Unidos para Cuba com o compromisso de escrever um livro cheio de falsidades e mentiras, intitulado Sob palavra, com matéria fornecida pela própria Polícia Política. Quando o diretor Tarrau entrou na sala, fez-se silêncio total. Olhou-nos com um ódio que saía aos borbotões pelos olhos. Bufava. As aletas do nariz estavam lívidas e notava-se que fazia um grande esforço para se conter. O diretor Tarrau não ameaçava pelo gosto de fazê-lo; tinha tudo que era necessário para cumprir suas ameaças. Começou, também, um interrogatório. O único conhecido do grupo era Boitel. Os outros, não. E era para ele que iam todas as acusações, dele é que exigiam as responsabilidades. E para ele havia um ódio especial, expresso pessoalmente por Castro em muitas ocasiões. Parecia-me que a responsabilidade daquele fato devia ser partilhada, como havíamos partilhado da esperança de conseguir nosso objetivo. Por isso tomei a palavra e disse a Tarrau e Gálvez que Boitel não era o único responsável, que a fuga fora feita pela minha cela e que eu tinha cerrado os barrotes da janela. Brito e Ulisses também se responsabilizaram pela tentativa de evasão. — Aqui todos vão ter que assumir as responsabilidades. Os quatro vão apodrecer nas celas de castigo. Jamais sairão de lá e vão se arrepender do que fizeram comigo. — Preciso de um médico — eu disse. O comandante Gálvez fitou-me, indignado: — Ainda tem o cinismo de nos pedir assistência médica? Levaram-nos para o primeiro salão, onde ficavam as celas de castigo. Aquela área tinha sido desocupada para nós. Eram onze celas, construídas dentro de um salão que não tinha sido feito para essa finalidade. O pé direito muito alto da antiga construção permitiu construir celas de uns dois metros e pouco de altura. O teto era uma malha de aço, de buracos grandes, como as telas usadas na cerca do presidiu. Dessas malhas até o teto do salão havia espaço para que os guardas pudessem andar em cima e manter, assim, 52 vigilância total sobre os castigados. As portas eram cobertas por placas de ferro soldadas aos barrotes. Só na parte inferior da grade, muito perto do chão e em um dos lados, ficava uma estreita fenda: era por ali que enfiavam o prato com a comida. Num dos cantos, no centro de uma leve com cavidade, um buraco fazia as vezes de latrina. E um pedaço de tubo dobrado, em cima, era a ducha. A torneira ficava fora da cela e era manejada pelos guardas. A cela era totalmente vazia: a cama era o chão de granito. Media uns dois metros e meio de largura por dois de comprimento. Anos depois eu iria conhecer muitas celas de castigo, mas nenhuma individual maior do que as da Ilha de Pinos. Fui destinado à número um, Boitel à três, Ulisses à cinco e Brito à sete, com uma cela vazia entre cada um de nós. Nem sequer a roupa de baixo me deixaram conservar. Completamente nu, fiquei ali, na obscuridade da cela. Fazia frio e eu o sentia. Minha perna doía muito e continuava inflamada do mesmo jeito. Uma hora depois trouxeram-nos o prato com o rancho. Nunca vou esquecer. Arroz branco e carne em conserva com batatas. Em seguida, apareceram vários oficiais trazendo uniformes para cada um de nós. Mandaram que nos vestíssemos porque iam nos tirar dali. Apoiando-me em Brito e na parede, dando saltos sobre um pé só, atravessei o pátio interior e chegamos ao salão. Ali estavam grandes mesas com máquinas de escrever. Uma senhora de meia-idade estava diante de uma das máquinas. Era a juíza de Nova Gerona que ia fazer a instrução do nosso julgamento. A um observador desprevenido tudo pareceria estar acontecendo conforme a lei. Claro, a instrução foi feita, mas nós NUNCA comparecemos a julgamento. Um dia, chegou a sentença do tribunal. Tinham nos condenado a mais dez anos de cadeia pelo crime de "quebra de condenação e danos à propriedade do Estado" cometidos ao cortarmos os barrotes da janela. Soubemos, depois, que o tenente, chefe da revista, apelidado Tareco, elemento repressivo e abusador, tinha sido enviado para uma granja, condenado a dez anos de cárcere por "infidelidade na custódia da revista". Consideraram-no responsável por termos feito entrar o necessário para a fuga. Nunca souberam de que meios nos valemos. Só agora, depois de vinte anos, eles estão revelados neste livro. Levaram-nos de volta às celas e nos deixaram nus de novo. Não fecharam a grade e aquele detalhe chamou-me a atenção. Estava sentado no chão. Lá fora soaram vozes de vários militares, que se aproximavam. Três ou quatro deles (ou cinco, eu não saberia dizer exatamente quantos) apareceram diante da cela aberta. Terminados os interrogatórios e a papelada, iam acertar contas com a gente, iam nos cobrar por termos tentado fugir. Como a lâmpada do corredor ficava às costas deles, não percebi que estavam armados com cacetes grossos e fios elétricos trançados. — Levante-se, pois vamos tirar sua vontade de fugir, para sempre! Senti meu estômago se contrair mais do que nunca, que me faltava o ar e que uma opressão apertavam-me o peito. Eu conhecia bem essas reações de meu corpo: era medo, terror. Em uns segundos a visão do que ia acontecer passou por minha mente e compreendi, com horror, a realidade. Já estavam batendo nos meus companheiros. Escutei os impactos secos das pancadas nos corpos nus, os gritos e as ofensas dos guardas. — Levanta daí, maricas! — tornou a gritar o guarda, erguendo o braço armado. 55 sequer. Só tínhamos aqueles banhos de urina e fezes, que eles nos davam de cima do teto de malha. A porcaria secou nos pêlos do nosso corpo. O mau cheiro enchia a cela. Quando alguém lê ou ouve falar sobre um prisioneiro confinado numa cela, nas condições que nós estávamos, nunca pensa em certas coisas, porque é impossível concebê-las fora de um cárcere. Entre elas, como satisfazer as necessidades fisiológicas com um mínimo de higiene. Tínhamos que fazê-lo ali, naquele buraco, em um dos cantos; mas ao terminar não havia nada para nos higienizarmos: nem água, nem sabão, nem papel, nem um pedaço de pano. Como papel higiênico tínhamos que usar os dedos. Não havia outro jeito. Boitel estava gritando e discutindo com um guarda. Eu não sabia do que se tratava: — Isso é covardia. Vocês são uns miseráveis e fazem tudo isto amparando-se na força da farda! — O que há, Boitel? — perguntou Ulisses. — Boitel nos explicou que o haviam fincado com um pau. Na realidade, não entendi bem o que ele estava querendo dizer até que o guarda, caminhando pelo teto, chegou à minha cela. Estava com uma comprida vara de madeira, com a ponta afinada, e logo percebi o que tinha acontecido. Boitel estava dormindo e o guarda, silencioso, enfiara a vara pelas malhas da rede e o aguilhoara, acordando-o. Desde então, as varas de Ho Chi-Minh iriam nos torturar e levar à beira da loucura. Não havia possibilidade de escapar, pois o guarda, lá de cima, dominava a cela e podia cutucar à vontade. A ponta da vara era meio rombuda e não furava, mas machucava, não nos deixando dormir. Era justamente isso que eles queriam. Só havia uma sentinela que não nos aguilhoava e a cada três dias, quando ele entrava de serviço naquela área, dormíamos seis horas seguidas. Quando seu substituto chegava, subia ao teto, vara na mão, e nos aguilhoava. Depois, descia. Daí a uma hora tornava a subir e de novo o despertar sobressaltado. Eu estava esgotadíssimo. A falta de sono e a tensão afetavam-me seriamente e eu notava. Recorria, então, a Deus. Minhas conversas com Ele terminavam em um fortalecimento espiritual que, eu sentia, dava-me novas energias. Nunca lhe pedi que me tirasse dali. Não achava que se devesse usar Deus para esse tipo de pedido; só que me permitisse resistir, que me desse fé e fortaleza de espírito necessárias para suportar aquela situação sem adoecer de ódio. Unicamente lhe rogava que me acompanhasse. E sua presença, que eu sentia, fez da minha fé uma arma indestrutível. Continuaram jogando baldes de urina e excremento em nós. Nas madrugadas daquele frio inverno, jogavam também água gelada. Era desagradável, mas nos permitia limpar um pouco os restos de excremento do piso da cela. Aos poucos a latrina, sem água para levar as fezes, foi se enchendo. Ao anoitecer, baratas andavam pelas paredes, pelo chão, subiam-me pelo corpo e suas patas, provocando cócegas, faziam-me acordar subitamente. As semanas sem banho fizeram com que meu corpo se cobrisse de uma camada gordurosa, escura, que provocava irritação nas axilas, nos genitais e na cabeça. Uma erupção de pequeninos caroços invadia-me todo o couro cabeludo. 56 Fungos também começaram a aparecer na sujeira de meu corpo, que é o ambiente ideal para sua proliferação. Primeiro nos pés, nas virilhas, pernas; depois no pescoço. Quando me invadiram os testículos a coceira era insuportável. Serviam-nos água em uma lata de conserva, na hora do almoço e na do jantar. Para conseguir água entre as refeições ou em outras horas, era preciso chamar mil vezes o guarda, gritar, armar um escândalo. Assim, às vezes, conseguíamos mais um pouquinho. Minha grande preocupação era não pegar uma hepatite. Conhecia os perigos da falta de higiene, das fezes acumuladas no canto da cela, na latrina, sobre a qual pululavam centenas de vermezinhos viscosos, que subiam pelas paredes e arrastavam-se pelo chão. Eu jamais punha a mão nos alimentos. Era preciso devolver a colher com o prato. Ulisses tentou ficar com a dele, pensando que ninguém entraria na cela a fim de pegá-la. De fato, não entraram; simplesmente disseram-lhe que não ia mais receber comida até devolvê-la. Na refeição seguinte não deram colher a nenhum de nós: tivemos que comer com as mãos. Como pegar macarrão, farinha ou pão com as mãos sujas, cheias de excrementos? Era coisa que eu não queria fazer; pegava então o prato pela fenda, colocava os lábios na borda e, com curtas sacudidelas, ia fazendo a comida cair dentro da boca. Comia assim ou do mesmo jeito que um cachorro, enfiando a boca no prato. Materialmente, estava reduzido a uma condição subumana. Era mais animal do que homem e só me salvava daquele estado animalesco inventando mundos interiores, que eu enriquecia com o estranho processo de fechar os olhos e imaginar a luz, o ar, sóis perenes, horizontes nos quais não se podia pôr cercas nem alambrados, céus, estrelas, flores e mil sons agradáveis tirados do fundo das lembranças: o canto dos pássaros, o estrondo das ondas do mar batendo nas pedras, o sussurro do vento passando entre os ramos das árvores. Bastava- me, na escuridão daquele canto imundo, cerrar os olhos para que o milagre bíblico do fazer a luz se repetisse dentro de mim. Lá, nos meus mundos, estava fora do alcance de meus carcereiros, sentia-me livre, podia vagar por prados e ribeiros, habitando um universo secreto no qual a fé religiosa conjugava-se com a imaginação e as lembranças. 57 18. A primeira vitória A inflamação da perna havia cedido muito. Mas os ossos fraturados e deslocados do lugar tinham soldado mal e meu pé estava torcido para dentro, com uma visível deformidade. Nunca deixamos, meus companheiros e eu, de pedir assistência médica. A negativa sempre foi total. As colônias de fungos continuavam invadindo meu corpo e meu grande temor era que chegassem aos olhos. Adquiri, então, uma infecção intestinal, com febre muito alta. As diarréias eram constantes e me desidrataram. A restrição de água persistia e não tínhamos conseguido um banho sequer, durante meses. Meu corpo estava cada vez mais escuro e ensebado. Quase já não tinha forças para falar, mas meus companheiros continuaram exigindo que tratassem de mim. Por fim concordaram em me levar para o hospital. Naquela época os médicos prisioneiros é que dirigiam as salinhas do hospital. Se não fossem eles, não teríamos tido a mínima assistência. O dr. Armando Zaldívar era o chefe da Balinha a que fui destinado. Zaldívar era uni médico jovem, formado na Espanha. Católico praticante, regressou a Cuba com o triunfo da revolução. Logo compreendeu que o país estava sendo dirigido para o comunismo e não vacilou em deixar de lado o estetoscópio para empunhar um fuzil e subir para as montanhas do Escambray para combater contra Castro. Capturado e condenado a trinta anos, já estava há vários meses no presídio da Ilha de Pinos. Meu aspecto impressionou a todos os que estavam lá. A primeira coisa que Zaldívar fez foi mandar que cortassem minha cabeleira de meses, que já cobria as orelhas e estava chegando aos ombros. Também me barbearam. Enquanto isso, prepararam um banho. Lembro que com uma tampa de lata de conserva, que dividi ao meio para servir de colher, raspei a crosta de sujeira que tinha no corpo. Ela saía enroscando-se como cortiça, como uma casca. Uma coisa inaudita, incrível. Foram necessárias várias latas de água de cinco galões para aquele primeiro banho. De cabelo cortado, banho tomado e barbeado, era outro homem; depois, deitado em uma cama limpa. Eu me sentia como se me tivessem posto em liberdade. A saída dos pavilhões de castigo para o hospital ou para as circulares era como a liberdade. Com soro e antibióticos eliminou-se a infecção intestinal. Zaldívar mandou que me fizessem umas muletas de madeira, para me apoiar nelas. Andar sem esse apoio era impossível, pois eu não podia firmar o pé machucado. Enquanto as muletas não ficavam prontas, apoiava-me em dois paus à guisa de bengalas. 60 Nesse momento era dia de visita em uma das circulares e os familiares dos presos estavam no refeitório. Subi com toda rapidez que minha perna permitia — pois continuava usando muletas — até o quinto andar. Fui para minha cela e lá, com René, Chaguito e outros, procuramos e costuramos rapidamente quatro lençóis. Ainda faltavam algumas horas para a visita terminar. Como uma mistura de mercurocromo, merthiolate e água, pintei um letreiro no pano: ESTAMOS EM GREVE DE FOME! Colocamos o letreiro para fora da janela, com cordas. Quando os familiares começaram a sair, viram-nos e através deles a notícia percorreu Cuba, no dia seguinte. A circular 1 juntou-se à greve, a circular 2 também e apenas uma parte da 3, pois um grupo de presos que estava lá desde 1959 não quis aderir ao movimento. No outro dia levaram os panelões com um almoço que parecia apetitoso. Como não o aceitamos, deixaram-no à entrada da circular: os latões continham arroz e via-se por cima carne e pimentão em abundância. Pretendiam, com uma comida como aquela, antes nunca vista no presídio, enfraquecer nossa decisão e, assim, romper a greve. Nenhuma circular aceitou a comida, a não ser a 3. Os comissários políticos andavam irritando os guardas contra nós. Soubemos por um deles, que contou ao gradeiro. Então, para neutralizar aquela campanha, pintei outro lençol, desta vez dirigido aos guardas, que dizia: SOLDADO, MILICIANO, NADA TEMOS CONTRA VOCÊS. PEDIMOS TRATAMENTO HUMANO! Esse lençol foi posto para fora do lado que dava para o quartel, a fim de que fosse visto pelos guardas. A diretoria do cárcere chamou os majores das circulares para uma entrevista com Tarrau e outros funcionários. Ao voltarem, comunicaram-nos que a direção havia dito que não cederia em nada. Que interrompêssemos a greve incondicionalmente e, então, eles os chamariam de novo, mais adiante, para que os majores apresentassem as necessidades que tínhamos. A resposta foi nos concentrar no térreo. Descemos com colchas, lençóis, catres e acomodamos à frente os que estavam mal de saúde, doentes crônicos, velhos. Pintei outro lençol dirigido à direção e à circular 1: NOSSA RESPOSTA: HOMENS DISPOSTOS A MORRER O protesto coletivo foi bem além das circulares. Uma tarde, vários oficiais chamaram à diretoria o dr. Valdes Rodriguez, o neurocirurgião. Uma menininha, gravemente ferida, estava no hospital civil de Nova Gerona. Era preciso uma intervenção cirúrgica cerebral para salvá-la: Valdes Rodriguez não hesitou. Quando chegaram ao hospital, levaram-no a uma saleta, em companhia do diretor, de médicos e oficiais que o escoltavam, Lá estava servido um jantar suculento, para que ele comesse antes de passar à sala de cirurgia. Valdes Rodriguez não aceitou. Insistiram, mas a negativa dele foi inabalável. A operação levou duas horas. A menininha se salvou e Valdes Rodriguez regressou para a cela, faminto. Enquanto isso, na circular 1, Tony Lamas, com risco da própria vida, subiu pelas vigas do edifício até o ponto mais alto do teto cônico. Era uma proeza que exigia 61 serenidade e nervos de aço. A uma altura de mais de trinta metros, teve que andar por vigas estreitas para alcançar o local para onde convergiam todas as demais, distribuídas como se fossem os raios de uma roda de bicicleta. Ele se dirigiu para aquele centro. Embaixo, o vazio, a morte. E estava em greve de fome. A mais leve tontura significaria cair e estourar-se contra o chão. Quando chegou àquele ponto, teve que gatinhar até outro, mais alto, onde se abriam uma janela à guisa de clarabóias, e por elas colocou para fora uma bandeira cubana, cumprindo, assim, a missão que impusera a si mesmo. A greve continuava. A falta de preparo mental afetava tanto quanto a dos próprios alimentos. Os quinze ou vinte frascos de soro que havia no hospitalzinho foram colocados nos mais velhos e fracos, e nos que estavam vomitando e se desidratando, porque não retinham água no estômago. No dia seguinte ao que tinha sido dito que não cederiamos, a direção mandou chamar novamente os majores. Eles entrevistaram-se com Sanjurjo, então diretor dos Cárceres e Prisões de Cuba. Vindo de Havana com urgência, Sanjurjo escutou as explicações sobre a medida por nós adotada. Não obstante, tentou negociar apenas com promessas. A atitude firme dos nossos representantes fez com que compreendesse que não íamos transigir, e então eles tiveram que ceder. Ganhamos a greve. A alegria foi tremenda. Aquela vitória nos deu vida nova. Depois de tanto sofrimento, tanta ignomínia e miséria, o triunfo serviu para fortalecer nosso espírito combativo e de resistência. A alimentação melhorou em todos os aspectos. Além disso, entregavam-nos correspondência uma vez por semana e nos permitiam escrever uma carta a cada quinze dias. Também abriam a entrada de água por mais tempo. Deram-nos um pouco mais de medicamentos e as visitas passaram a ser trimestrais. Conseguir aquilo da Direção dos Cárceres e Prisões constituiu um êxito sem precedentes. Mas os comunistas não se sentem obrigados a cumprir o que prometem. Assim, depois de poucas semanas, começaram os problemas. Por exemplo, não entregavam a correspondência e nós, para pressionar, recusávamo-nos a responder à chamada até nos darem as cartas. O ano de 1962 foi de grandes acontecimentos em Cuba; deve-se recordar a crise dos foguetes soviéticos na ilha, que levou o mundo ao umbral da guerra atômica. Além disso, a Polícia Política abortou uma conspiração militar a nível nacional, que tinha como objetivo a derrubada do Governo. O Exército, a Marinha e a Polícia estavam implicados naquele complô. A reação do Governo, depois de descobertos os conspiradores, foi uma verdadeira orgia de sangue. Dezenas de militares detidos entravam para o presídio La Cabaña, para o Castelo do Morro e eram imediatamente fuzilados, sem julgamento prévio, unicamente por decisão do Alto Comando da Polícia Política. Nesta conspiração, conhecida com a de 30 de agosto, fuzilaram 460 militares nos presídios da ilha inteira. Apesar de tudo, tivemos vários meses de relativa tranqüilidade, até que chegou o mês de setembro. Estavam fazendo revistas em todas as circulares e na número dois descobriram cortados os barrotes da cela de Hector Gonzalez e de Domingo Sanchez, "O Machado", como nós, amigos, o chamávamos. 62 Quando os levaram para as celas de castigo, os guardas começaram a bater neles. Os dois se revoltaram, retribuíram a agressão e uma turba de guardas caiu em cima deles; foram batendo nos presos durante todo o trajeto. Imediatamente os presos de todas as circulares começaram a gritar. Uma parte dos detentos da circular 2 havia entrado, mas um grupo negou-se a entrar. Fizeram isso em solidariedade aos presos que tinham sido surrados. Exigiam que os tirassem das celas de castigo. A guarnição foi reforçada e os soldados entraram no curral para fazer entrar à força os que protestavam. Houve, então, um entrechoque de presos e guardas. Estes batiam com selvageria. Impotentes, atrás das grades, nós só podíamos gritar à guarnição, tentando fazer com que parassem a agressão. Da circular 2 começaram a atirar pratos, garrafas e qualquer objeto que tivessem à mão, em cima dos guardas. A resposta foi atirar. Metralharam as janelas e houve vários feridos, dois deles graves, mas ninguém morreu. Nessa mesma tarde, e como protesto contra a bárbara agressão, a circular resolveu devolver a comida. A princípio não se pensou realmente em uma greve de fome, mas sim em provocar a presença de um funcionário da direção penal, a fim de expor a ele a situação dos surrados que estavam nas celas de castigo e pedir seu regresso à circular. No entanto, na manhã seguinte, alentados pelo triunfo fácil do movimento anterior, amanhecemos em greve de fome. O dia passou sem qualquer novidade. Ainda não havia amanhecido quando Samuel me acordou, sacudindo-me. Estava visivelmente assustado e trazia a bandeira na mão, dobrada. — Estamos cercados! — disse e apontou para a janela. Desci da cama e quando olhei para a estradinha o vulto metálico de um tanque russo Stalin, com o canhão apontado para a nossa circular, deixou-me atônito. Perto do refeitório, outro... e logo eu veria mais. Um cordão de guardas rodeava cada circular; estavam tão perto um do outro que poderiam dar-se as mãos. A cada dezoito ou vinte metros colocaram um tripé alto e ajeitaram em cada um uma metralhadora. Patrulhas com cães pastores iam e vinham. Passavam caminhões e jipes, em uma atividade tremenda. Quando as quatro circulares estavam rodeadas, chegaram o comandante William Gálvez, Curbelo, Tarrau e vários oficiais de alto nível da Polícia Política. Chamaram os majores para dizer-lhes que iam fazer uma revista "pacífica". Foi por esta sádica ironia que batizamos aquela revista de "A Pacífica". Primeiro, entraram nas circulares 1 e 2. A revista durou desde o começo da manhã até a noite. Vimos encherem caminhões e caminhões com pertences nossos. Os tanques passaram a noite inteira patrulhando e o sol ainda não tinha nascido quando um grupo de militares com capacetes e fuzis R-2, de baioneta calada, tomaram posição junto da parede do térreo, de ambos os lados da grade de entrada. Outro grupo sem armas longas, mas com baionetas, formou fila em frente dos soldados. Na torre apareceram vários guardas portando lança-gás lacrimogêneo. Um pelotão de oficiais entrou, então, vociferando. Com um megafone, começaram a gritar ordens e ameaças. Exigiram que ficássemos nus e colocássemos as mãos atrás da cabeça, depois que descêssemos, assim, para o térreo. Foram nos amontoando no canto dos tanques de lavar roupa. Estávamos tão apertados que éramos como uma massa compacta. Os que ficaram atrás não podiam tirar 65 Esse suplício dos familiares dos presos políticos agravava-se à medida que a revolução ia se radicalizando. Repressão, humilhações de todo tipo, perseguição, fome, terror: esse era o quadro familiar. No cárcere, os comissários políticos exploravam essa situação, criada pela própria revolução, para coagir o prisioneiro. Chamavam-no para entrevistas e pintavam-lhe o panorama em seu lar. — Quem ajuda a sua família? — dizia o comissário. — Os yankees lhe mandaram algum dinheiro? Sua família está abandonada à própria sorte. Usaram você para atentar contra a revolução e está vendo que é justamente a revolução que se preocupa com seus familiares e com você mesmo. Esse tipo de trabalho foi planejado e executado pela Direção Geral de Reabilitação Política dos Cárceres e Presídios. Cada um dos que aceitaram tinha uma circunstância muito especial e por isso nunca julguei a decisão de aceitar a reabilitação política. Sabia que muitos deles jamais mudariam de ideal e que sofriam de terríveis conflitos interiores ao dar aquele passo que me separou, mas apenas fisicamente, de grande amigos, aos quais continuo querendo bem como a irmãos. Em outubro de 1962, ainda na prisão, soubemos de imediato da presença de foguetes soviéticos em Cuba. A informação nos foi dada pelo radinho. Deu começo a uma grande atividade entre os militares porque, sem dúvida, o país estava em perigo de ser invadido pelos Estados Unidos. Todos os terrenos ao redor das circulares foram semeados de compridas e afiadas estacas de madeira contra a descida de pára-quedistas que pudessem ser lançados para tomar o presídio. Várias baterias instaladas apontavam para nós e os técnicos que cuidavam do TNT ativaram explosivos para nos fazerem em pedacinhos. Foram dias angustiosos. Como íamos sabendo dos acontecimentos, sabíamos que poderia estourar uma guerra nuclear. É sabido que nunca o mundo correu maior perigo que naquela ocasião. Se acontecesse, nós seríamos os primeiros mortos. Quando terminou a crise, em fins de outubro, Castro, com a promessa de Kennedy a Moscou de que Cuba não seria invadida, mandou que desativassem as cargas de TNT. Meses mais tarde, os explosivos que nos ameaçavam desde abril de 1961 seriam retirados. Depois de "A Pacífica", o peso do pequeno pacote familiar que podíamos receber baixou para sete quilos e só podiam chegar a cada dois meses. Além disso, não podiam conter leite em pó. A nova disposição duraria pouco tempo. Tinha havido uma mudança interior em fevereiro, enquanto estávamos nas celas de castigo. Benito, meu futuro sogro, foi levado para a circular 3. Carrión e outros amigos íntimos foram mudados para a 1. Comecei a escrever clandestinamente para Martha. Para isso, utilizava amigos que tinham passado para o Plano de Reabilitação: eles recebiam visitas freqüentes e tinham muitos contatos com civis que colaboravam conosco. Chegaram as mudanças entre as circulares. Lênin dizia que o preso devia ser constantemente movido e cumpriam suas orientações ao pé da letra. O objetivo disso era desestabilizar o prisioneiro. A mudança força-o a dissolver os planos de qualquer tipo que tenha elaborado, a romper o círculo de amigos ... Isso o desorienta, afeta-o psiquicamente e, então, gasta suas energias na nova adaptação. Com as mudanças freqüentes, os planos de fuga eram desmantelados. 66 Saí sem saber para que circular iam me mandar. Aconteceu ser a número um. Boitel e Carrión estavam lá. O encontro com eles foi uma grande alegria. Boitel estava no segundo andar com Perez Medina, amigo desde o tempo em que éramos livres. Primo de Neno, o que me deu um rosário e lançou um caminhão cheio de soldados em um desfiladeiro. Consegui lugar na cela 53, no segundo andar, com Wilfredo Noda, um dos melhores poetas do presídio, amigo leal e extraordinário. Aquela circular, que jocosamente chamávamos a dos Generais e Doutores, parodiando o título da conhecida novela de Carlos Loveira, era formada por um pessoal cuidadosamente selecionado pela direção penal. Concentraram ali todos os profissionais, universitários, estudantes, dirigentes de organizações anticastristas, políticos, ex-oficiais de alta patente do exército de Batista e de Castro, funcionários importantes dos governos e elementos considerados como perigosos pelo regime. Essa seleção tinha por objetivo distanciar os milhares de presos que estavam nas três outras circulares dos que o Governo chamava de cabeças ou ideólogos. Do ponto de vista intelectual, aquele tempo na circular 1 foi para mim a Idade do Óuro no presídio da Ilha de Pinos. A astúcia de nossos familiares para passar nas revistas os livros que nos traziam proporcionou-nos uma grande quantidade de textos sobre toda a sabedoria humana. As atividades culturais, com todos aqueles livros, intensificaram-se. Conseguimos introduzir uns cursos de idiomas e em uma semana fizemos dezenas de cópias manuscritas deles. As cadernetas não davam e, quando terminávamos uma, apagávamos a escrita com a sola do tênis. Com esse método, uma caderneta podia ser usada até cinco vezes. A alimentação reduziu-se à mínima expressão, principalmente depois do ciclone Flora, que açoitou Cuba de maneira terrível, em 1963, deixando cerca de mil mortos e uma província do Oriente arrasada. A direção da penal apresentou-se nas circulares solicitando nossa ajuda: pediram- nos que doássemos roupas, lençóis... porque muitos familiares nossos viviam nas regiões flageladas e, além disso, por solidariedade humana, ajudamos com a maior boa vontade. Foi impressionante ver presos, que não tinham nem o suficiente para satisfazer às suas necessidades mais elementares, dar o pouco que tinham : lençóis, camisetas, meias, para ajudar as vítimas do ciclone. Vários caminhões com nossa doação saíram carregados do presídio. Naquele inverno passei um frio intenso. Tinha doado, como quase todos, meu único cobertor. Depois consegui um saco de juta e costurei nele uns pedaços de náilon, tecido que protege muito porque não deixa escapar o calor, e me cobria com ele à noite. Incrivelmente, a direção da penal nos comunicou que tínhamos doado durante três meses nosso almoço para as vítimas do ciclone. Que tipo de Governo é esse que tem de recorrer a presos para que o ajudem em uma calamidade? A fome nunca foi maior. Houve quem se dedicasse à caça de pardais, que eram abundantes por ali. Gatos costumavam entrar nas circulares à noite. Logo fizeram-se armadilhas para apanhá-los. E um gato transformou-se em cobiçado quitute. Na primeira vez que comi gato, apreciei sua carne como a mais exótica que provei na vida. Se a gente tinha sorte de um amigo apanhar um gato, podia comer um pedaço. Martha e eu continuávamos, com mil esforços, trocando cartas. Idealizamos um método de escrita invisível, muito elementar, mas que deu resultado. Como era permitida 67 a entrada de cadernos escolares, Martha, seguindo minhas instruções, preparou uma tinta invisível muito fácil de fazer: coloca-se um pouco de goma de mandioca em um pouco de água fervendo, até que se forme uma pasta de consistência leve. Depois, ela me escrevia usando essa mistura como se fosse tinta; a pena traçava as letras que se viam pelo suave brilho do líquido, que desaparecia rapidamente, absorvido pelo papel. Quando eu recebia os cadernos, para revelar o que estava escrito, passava sobre as folhas um pedaço de algodão embebido em água com umas gotas de tintura de iodo. Então, iam aparecendo as letras, precisas, claras, facilmente legíveis. A cada dois meses eu recebia um caderno inteirinho escrito por ela. Era uma grande alegria para mim ir descobrindo página por página. Quando, por motivos de segurança, eu precisava dizer algo a ela, usava o mesmo método. Inclusive, às vezes mandava cartas pelas vias normais. Tinha uma tática que não falhava: usava uma folha de papel grande, com linhas; escrevia a mensagem invisível e, depois, nas mesmas linhas, redigia uma carta elogiando o "bom trato" que recebia das autoridades. Isso era o bastante: minha carta chegava sem falta às mãos de Martha. Ela devia usar dois processos para revelar: o mesmo empregado por mim ou o calor, porque nem sempre eu podia conseguir o amido de mandioca. Quando isso acontecia, usava uma aspirina dissolvida em água para escrever, pois o ácido acetilsalicílico reage com o calor. A mesma coisa acontecia com o medicamento chamado Pahomín, um antiespasmódico que havia na farmacinha, ou com suco de limão. Quando não tinha nada disso, usava algo que jamais faltava: urina. Aquela correspondência com Martha era a coisa mais importante a que me dedicava então. Graças às cartas íamos nos conhecendo um ao outro. Martha já não era a adolescente de quinze primaveras. Agora estava com dezessete anos e nós dois íamos edificando, em nosso mundo de letras, um futuro muito lindo, que partilhávamos com fervor e esperança. Aquela amizade encheu de ternura e fé as nossas vidas. Começamos a nos sentir como amigos de sempre, como dois seres queridos que há muito tempo não se encontravam. Para mim foi um doce apoio, um sustentáculo firme que muito me ajudava. Não lhe havia declarado meus sentimentos, mas mesmo sem essas palavras, sentia que havia alguém pensando em mim, que me esperava, além da minha família. 70 Administraram-lhe soro. Quando foi deitado de costas, o ferimento da dobra da nádega abriu-se e começou a sangrar. O sangue empapou o colchonete e atravessou-o, gotejando no chão. Quando descobriram o que estava acontecendo, Alfredo já agonizava, em estado de coma, nos umbrais da morte. Transfusões urgentes para devolver-lhe os litros de sangue perdido, salvaram-no. Quinze dias depois Alfredo ainda não podia se levantar. A surra bárbara o deixara com hematomas enormes no corpo inteiro. A inflamação do rosto e o derrame pela pancada que lhe fraturou o nariz formaram olheiras completas, violáceas. Nessas condições, tornaram a colocá-lo na cela de castigo, sem nenhum tipo de assistência médica. Alfredo Izaguirre foi o único preso que não prestou trabalhos forçados nem por um minuto, nem um segundo. E seu nome passou para a História da Rebeldia do presídio político cubano. 71 22. A pedreira Ao amanhecer, um gradeiro mandou todo mundo se levantar para a chamada. O céu ainda estava escuro e uma débil claridade assomava-se a leste. Depois de nos contar, nos mandaram para o térreo, para o café da manhã: um pouco de água quente com açúcar e um pãozinho pouco maior do que um ovo, mas não muito. Quase todos estavam na expectativa. Aquilo de ir trabalhar longe dos arredores do presídio significava, sem dúvida, um verdadeiro acontecimento. Os grupos da circular 3, que haviam começado a sair antes de nós, contavam-nos que os presos eram levados pela ilha inteira, plantando e colhendo frutas cítricas, fertilizando pastos, limpando pastos. O cabo fez a chamada e nos dirigimos para a entrada principal. Lá esperavam os caminhões que nos levariam para a área de trabalho e a guarnição que nos escoltaria. Centenas de guardas, alguns com matilhas de cães policiais, ao estilo dos nazis. O comboio saiu escoltado por um caminhão cheio de guardas. Sobre a cabina desse caminhão havia um fuzil metralhadora B-Z, fabricado na Tchecoslováquia, que apontava para nós. Os caminhões entraram por um caminho de terra vermelha, ladeado de árvores medianas. Lá esperava um civil encarregado da propriedade estatal. Os guardas desceram e atravessaram a linha de arbustos, formando um círculo que nos envolveu completamente. O trabalho que nos tinham destinado era fertilizar — à mão, é claro — os quadradões semeados de pangola, um capim para gado pastar. Tinham preparado uns sacos de aniagem com um tirante para pendurá-los ao ombro. Em Cuba, chamamos esse saco de "jabaco", uma palavra indígena. Os sacos de adubo se amontoavam ao longo do campo. À medida que avançávamos, o cordão de guardas também o fazia. Movimentávamo-nos dentro de ampla circunferência de fuzis, baionetas e cães. Caminhávamos sempre em terreno plano, sem árvores. Qualquer tentativa de fuga seria suicida. Desde o primeiro dia tivemos consciência de resistir e sabotar o que nos mandassem fazer. Lembro que a maneira de distribuir o adubo foi incrível. Tinha chovido nos dias anteriores e o terreno estava cheio de charcos. Neles esvaziamos, às escondidas dos guardas, muitos sacos de adubo, que a água engolia sem deixar sinais. Fizemos desaparecer uma caixa de facões por uma fenda no solo. Com os fertilizantes que gastamos naquela seção de trabalho seria possível adubar vinte ou trinta vezes mais terrenos. No dia seguinte levaram-nos mais longe, a um lugar que chamavam "El Bobo", perto da costa norte da ilha. A tarefa consistia em limpar, com enxadão, ao redor das 72 mangueiras, também, plantadas naquela região, e rastelar a terra, formando um montículo ao redor do tronco. Uma das formas de resistência era não se apressar, fazer tudo com lentidão. Tinham designado dois presos para trabalhar em cada árvore. Gustavo Rodriguez e eu tínhamos ficado atrás. O cabo Malvadeza exigia que nos apressássemos, mas continuávamos no mesmo ritmo. Então, tiraram-nos do grupo e nos puseram de lado. Tínhamos ficado quase a manhã inteira na mesma árvore. O chefe do grupo tinha sido avisado e veio para junto de nós. Já estava de baioneta em punho e se dispunha a nos bater com ela. Quem estava mais perto dele era Gustavo, que o viu e o enfrentou, assumindo posição de defesa, com o enxadão seguro com as duas mãos, como se emprega uma arma longa para se defender, na esgrima de fuzil. O chefe percebeu e parou: — Largue o enxadão! Gustavo não se mexeu. — Largue! — Não vou largar, cabo. Foram minutos de tensão. Todos ficaram em silêncio. Por que o cabo não sacou a pistola e deu um tiro em Gustavo? Sempre me perguntei isso. No terceiro dia, destinaram-nos à pedreira. Lá o chefe da guarnição era um militar muito alto e magro, negro como azeviche, chamado Holé, filho de haitianos. O tenente Pompônio me tirou da fila e me levou diante do cabo Holé: — Este é um dos que fugiu com Boitel. Dê a ele, portanto, a maior picareta que tiver. E diga aos guardas que atirem para matar, se ele se aproximar da cerca. Holé olhou-me com curiosidade. — Venha comigo — disse. Fomos até a casa das ferramentas, ele procurou e me deu uma picareta de uns onze quilos. Quase não podia com ela. Coloquei-a no ombro e tomei o caminho de terra que levava ao campo de trabalho. . Uma picareta é ferramenta. que, como todas as outras, é preciso saber manejar. Nenhum dos que estava ali havia sequer pegado em uma, na vida. Um dos cabos que pertencia ao pessoal de guarda da pedreira, aproximou-se. Coxeava visivelmente. — Você nunca quebrou pedra? — Não, cabo, nunca. — Então, é bom aprender. Olhem — indicou. — A primeira coisa que têm que ver é o veio da pedra. E sobre ele que devem bater. E levantou a picareta. Depois que ele bateu duas ou três vezes, a pedra abriu-se ao longo do veio. Continuou batendo e quebrou as duas partes da pedra em pedaços menores. Ele se afastou e tentei imitá-lo. Era melhor aprender, pois assim me esgotaria menos. No começo eu não conseguia fazer a picareta saltar e quando a deixava cair sobre a pedra, como segurava-a com força pelo cabo, a vibração do choque passava pelos meus braços como uma corrente elétrica. Fui percebendo que precisava abrir um pouquinho as mãos quando a picareta batia na pedra. Aí, ela saltava, tornando a erguer-se um pouco, com pequeno impulso. Não tínhamos a proteção que requerem os trabalhadores que quebram pedras em pedreiras. Nem botas, nem óculos. As lascas de pedra varavam as calças como 75 23. O Irmão da Fé O Plano de Trabalhos Forçados teve uma conseqüência que escapou aos "especialistas" em conduta humana do Ministério do Interior. O presídio uniu-se de maneira monolítica. Diante da agressão e de um inimigo comum que batia, fustigava, torturava, produziu-se uma sensibilização e identificação total e cada vez que batiam em alguém era como se batessem em todos; cada vez que assassinavam um de nós nos campos era um irmão que matavam e nos doía a alma, o sangue. A angústia e o horror foram nos unindo mais e mais. Naquele sábado os grupos de prisioneiros regressavam às circulares ao entardecer. Homens rodeados de fuzis e baionetas iam chegando, silenciosos, dos campos de trabalhos forçados, formando apertadas filas de fome, suor, cansaço. Sujos, descalços alguns e outros com as roupas em trapos. Tinham os ombros caídos e as costas curvadas, como se suportassem sobre si todas as amarguras e misérias humanas. O grupo 26, com suas quatro quadrilhas, avançava devagar pela estrada que corria paralela ao nosso edifício. Estavam cansados, extenuados. Mais do que andar, arrastavam-se, quase sem forças para erguer as pernas. Os guardas exigiam mais rapidez na marcha e ameaçavam, agitando no ar facões e baionetas. Os prisioneiros fizeram um esforço, mas os guardas queriam mais e começaram as pancadas com as lâminas de lado... "Andem logo, filhos da puta!", gritavam, enquanto descarregavam a raiva. Lâminas de facões e de baioneta cantavam nas costas dos presos. De repente, um preso de cabelos brancos, enquanto descarregavam em suas costas pancadas de lâmina de facão, ergueu os braços para o céu e gritou, olhando para cima: "Perdoai-os, Senhor, eles não sabem o que fazem!". Todos chamávamos Gerardo, simplesmente, de "Irmão da Fé". Pregador protestante, havia dedicado sua vida a propagar a palavra de Deus. Ajudou muitos a enfrentar a morte com coragem e serenidade. E ia e vinha constantemente entre os grupos, infundindo fé, tranqüilizando os ânimos, dando apoio. Auxiliou a muitos, a muitos consolou. Tirava-nos da cama para participar do culto. "Levanta-te, que o Senhor te chama!". Não se podia dizer não ao Irmão da Fé. Se percebia alguém pensativo e triste, dizia: "Quero ver você no culto, hoje à tarde"... E era preciso ir. Seus sermões eram de uma beleza primitiva e ele tinha um magnetismo extraordinário. Desde o púlpito, que improvisava cobrindo velhos caixotes de bacalhau com um lençol e com uma cruz simples, a voz atroadora do Irmão da Fé nos dava seus sermões diariamente. Depois, cantava-se em coro hinos de louvor a Deus, que ele escrevia em maços de cigarros e distribuía entre os presentes. Muitas vezes a guarnição acabava com esses minutos de oração com pancadas de baionetas e de culatras de fuzil, mas não conseguiam atemorizá- lo. 76 Quando o levaram para o campo de trabalhos forçados da Ilha de Pinos, organizou leituras bíblicas e coros religiosos. Ter uma Bíblia era ato subversivo. Ele tinha, não sabíamos como, uma pequenina que o acompanhava sempre. Se algum companheiro, fatigado ou doente, se atrasava na semeadura ou não tinha acumulado o número de pedras que tinha que quebrar com a picareta, o Irmão da Fé aparecia ali. Magro, musculoso, tinha uma resistência incrível para o esforço físico e adiantava o trabalho do outro, salvando-o de uma surra. Quando algum dos vigilantes passava por trás dele e descarregava-lhe uma baionetada, o Irmão da Fé erguia-se como uma mola, olhava o soldado nos olhos e dizia: "Que o Senhor te perdoe!". * * * A diretoria da penal comunicou, uma noite, que receberíamos as visitas no refeitório, sem as odiosas cercas de arame. E, além disso, que os visitantes seriam autorizados a nos levar um pacote de ajuda familiar, com os alimentos que quisessem. A visita seria a cada quarenta e cinco dias, mais ou menos. Foi extraordinário o júbilo em toda a circular. Depois de anos sem ver nossos familiares aquela possibilidade nos encheu de ilusões. Pensei em meus pais, em minha irmã e em Martha, que por fim iria ver. Depois de anos de correspondência clandestina, nossa identificação havia sido tão profunda que tudo em nós pedia um encontro. Por fim chegou o dia de visita, a primeira nos últimos dois anos e alguns meses. Tiraram-nos do refeitório para nos revistar. Vários pelotões de guardas esperavam. A revista foi vexaminosa. Tivemos que ficar completamente nus, deixando a roupa ao nosso lado, para que a revistassem costura por costura. Tínhamos que abrir a boca para que olhassem dentro e se notavam que o preso tinha dentadura postiça, obrigavam-no a tirá- la. Também podiam nos mandar levantar os testículos. Um guarda se agachava e olhava, para comprovar que não havia nenhum papel escondido. Era uma obsessão: tinham que impedir que saísse qualquer denúncia, uma carta que tivesse valor de testemunho. Não era permitido levar nada às visitas, a não ser o jarro de alumínio. Às dez da manhã, aproximadamente, apareceu na estrada o contingente de familiares. Os encontros foram dramáticos, carregados de emoção. Os abraços, as lágrimas e a alegria, tudo misturado naquele momento ansiado durante anos. Chegou a minha família. Meu pai foi o único que deixou escapar uma lágrima. Minha mãe e minha irmã, mais fortes nesses instantes, expressavam sua alegria beijando- me e abraçando-me, as duas ao mesmo tempo. Só podiam entrar três familiares por preso. Martha conseguiu entrar com uma família amiga. Sua presença foi inesquecível para mim. Mais de três anos tinham se passado desde que nos víramos pela primeira vez. A adolescente que tanto me impressionara então, havia se transformado em uma moça já quase com dezoito anos, mais alta, mais mulher, mais bonita e elegante. Quando chegou, olhamo-nos nos olhos, sem dizer uma palavra. Ela corou. Por dentro, não tínhamos deixado de estar juntos desde aquele 5 de setembro. Sabíamos que estávamos unidos para sempre. As palavras não são necessárias quando as almas dizem tudo. 77 Nossa conversa foi como dar-nos as mãos e entrarmos em um mundo maravilhoso, criado pelo amor que sentíamos e compartilhávamos. Tudo desapareceu ao nosso redor, as pessoas, o lugar, e éramos como o primeiro casal de namorados debaixo de um céu aberto e azul, inundado de uma luz que jamais nos faltaria. Sob ele nos encontramos sempre, deixando para trás celas e ferrolhos, angústias e tristezas. * * * Os sapatos que eu havia recebido abriram-se, desgastados pelas pedras. Mas eu acelerei o processo de desgaste esfregando-os na parede da cela; um trabalho paciente, de preso. E certa manhã comuniquei ao chefe do meu grupo que meus sapatos tinham acabado e os mostrei. Foi assim que passei a fazer parte do grupo que ficava na circular, sem sair para trabalhar. 80 25. Assassinatos e novos planos de fuga Os prognósticos do Ministério do Interior de que não resistiríamos um ano sem pedir a reabilitação política se esfumavam. Eles tinham confiado, achando que o terror nos dobraria. O fracasso os fez descambar para uma violência desesperada. Mas, paralelamente à vesânia dos militares tinha ido nascendo em nós uma consciência profunda, uma determinação inflexível de resistir, de não ceder. íamos vencendo o terror, íamos nos endurecendo, convencidos de que éramos o símbolo da resistência. Não podiam nos fazer renunciar aos princípios que nos deixavam orgulhosos, que nos definiam. Continuávamos resistindo, mas com tranqüilidade. Não era uma resistência fanática e obscura, mas sim clara, pensada, produto da nossa própria essência, da fé e do amor por Deus, pela liberdade. A 9 de janeiro de 1966 os chefes de grupos reuniram-se na diretoria da penal. A reunião durou apenas alguns minutos. Foi uma análise rápida do porquê os presos contra- revolucionários não aceitavam a reabilitação. O método que combinaram para conseguir isso foi uma verdadeira operação de terror. Os chefes receberam instruções sanguinárias e deixaram-nos com as mãos livres para matar prisioneiros em cada bloco e generalizar o terror. Quando os presos protestavam por alguma agressão, os escoltas começavam a atirar. Assim mataram, no bloco 31, Eddy Alvarez e Dany Crespo. O cabo Areia, chefe do grupo de Júlio Tan, quis humilhá-lo, obrigando-o a arrancar mato com as mãos. Tan negou-se. O cabo, baioneta na mão, foi em cima dele, agredindo-o. O preso, tentando esquivar-se das estocadas, caiu. Por trás, outro guarda atingiu-o com um enxadão. Foi o momento esperado por Areia para enterrar a baioneta na coxa de Júlio Tan e revirá-la, em círculos, para alargar o ferimento. Júlio Tan morreu de hemorragia em alguns minutos. Deudado Aquit tinha pegado seu prato e estava na fila diante dos caminhões, como se fazia todas as tardes. O cordão de escoltas encontrava-se muito perto e pronto para subir nos seus caminhões, depois que os presos, uma vez contados, subissem no deles. Soprava um vento forte. O chapéu de Aquit saiu voando e caiu a alguns metros. O preso pediu autorização ao chefe do grupo para sair da fila a fim de pegá-lo e o militar respondeu-lhe que esperasse um pouco, que ia contar os presos. Quando terminasse, ele poderia pegar o chapéu. O cabo começou a contagem, chegou ao final, voltou-se e fez-lhe 81 sinal que já podia ir pegar o chapéu. Aquit saiu, deu dois passos, inclinou-se e nunca mais tornou a se erguer. Do fim da fila, um dos escoltas disparou uma descarga de fuzil AK nas costas dele. — Isso é para ele não tornar a sair da fila sem permissão — comentou, apontando Aquit com o cano fumegante. * * * Diante do presídio, de um lado dos escritórios da penal, havia um grupo de casas ocupadas por funcionários do presídio e seus familiares. Uma delas era do dr. Condi, diretor do hospital. Morava lá com a esposa, jovem e muito imaginativa. Essa moça tinha o costume de nos oferecer sessões noturnas a respeito das quais foi preciso fazer uma campanha entre os presos, para que não assistissem ao espetáculo. Quase todas as noites, quando o marido saía para as reuniões e assembléias, ela apagava as luzes da casa inteira, menos a do quarto, cuja janela, aberta de par em par, dava para o presídio. Então, colocava-se diante do espelho, de costas para nós, e começava a tirar a roupa, lentamente, como se fosse uma dessas profissionais de strip- tease. Completamente nua, contemplava-se no espelho. Depois, começava a pentear-se: os cabelos compridos caíam-lhe até a metade das costas e ela os alisava com gestos provocantes. Com o pente, erguia os cabelos, sacudia a cabeça, e os deixava cair. Passava, então, a posar diante do espelho. Colocava as mãos na cintura ou deslizava-as pelos seios e quadris, acariciando-os voluptuosamente, enquanto se movimentava ritmicamente em uma dança lúbrica. O que passava pela cabeça daquela mulher? Sabia que centenas de olhos a devoravam das janelas do presídio, que olhares carregados de desejo atravessavam o espaço. Olhares de homens que estavam há anos sem contato sexual. Talvez em seus sonhos de luxúria, ela se visse possuída por nós, em uma orgia indescritível. Logo, a guarnição descobriu a coisa e nunca mais aquela janela se abriu. Dias depois, o médico e sua mulher exibicionista foram transferidos. * * * Celestino e Buria convidaram-me para planejar uma fuga. Conheciam minha tentativa anterior e queriam que tentássemos de novo. A fuga seria dos campos de trabalho. Nada fácil, mas não impossível. O plano teria uma variante que, pensávamos, aumentaria a possibilidade de escaparmos. Não tentaríamos sair da ilha imediatamente, porque o maior risco estava justamente nisso. Fingiríamos tê-lo feito, mas permaneceríamos escondidos. Depois, já com a vigilância diminuída, acreditando que tínhamos ido embora, seria mais fácil sair da ilha. Era sabido que os presos comuns que há anos fugiam dos estábulos, ou de outros centros de trabalho, e se internavam nos pinheirais ou nos pântanos, entregavam-se por falta de alimento. 82 A vigilância e o terror dos camponeses tornava impossível bater a qualquer porta para pedir comida ou ajuda. As autoridades confiavam nesta circunstância. Disse aos meus companheiros que a única maneira de subsistir não era com reserva de alimentos previamente enterrados em alguns lugares, mas sim comendo o que aparecesse: grilos, lagartos, rãs, répteis e os vegetais que conhecíamos, que sabíamos que eram comestíveis. Propus que treinássemos, começando desde logo a comer insetos. A idéia, a princípio, pareceu muito violenta, mas acabou sendo aceita, se bem que Celestino e Buria não começassem imediatamente. Eu comecei. Tinha lido que em algumas regiões da Ásia comiam grilos e achavam-nos excelentes. Os da ilha eram grandes e sumarentos. Fui me preparando mentalmente. E certa manhã decidi comer o primeiro grilo cru. Antes de colocá-lo na boca, esmaguei-lhe a cabeça para evitar que pudesse me morder a língua. Por ser o primeiro, até que o sabor não me desagradou. Uma semana depois, já comia trinta ou quarenta desses insetos por dia. Todos os amigos do bloco caçavam grilos para mim. Há algumas semanas, desde que tínhamos começado a trabalhar no campo de capim pangola, Obregón e eu vínhamos comendo dessa erva. Escolhíamos os talhinhos sumarentos e mastigávamos longamente. Parecíamos ruminantes, o dia inteiro extraindo o suco do capim. Eu tinha lido um artigo sobre o valor nutritivo do capim pangola em um texto sobre criação de gado, que meu vizinho de cela, Alfredo Sanchez, tinha. Como brincadeira, Obregón e eu dizíamos aos outros que se quisessem ficar fortes como um touro não era preciso que comessem o touro, mas sim o que o touro come. E muitos se convenceram e uniram-se a essa prática. Do grilo passei a comer lagartixas e rãs; depois, pequenas cobras, pois já a majá, um réptil da ordem dos boídeos, parente da boa, que em Cuba chega a medir vários metros, era considerado um prato muito apreciado pela carne limpa e deliciosa. Também comia, entre outras coisas, tubérculos crus, ovos de pássaros e os brotos da erva-de- elefante. Tudo o que andasse, voasse ou nadasse era comestível para mim. Nos campos, onde as reses pastavam, disputava com elas o mel de purga que punham nos cochos; era caloria e eu precisava disso. Meu estomago de ferro suportava isso tudo muito bem, às mil maravilhas. Na manhã seguinte, o guarda desdentado, de luvas vermelhas, estava nos esperando. No caminho, deu uma baionetada, de prancha, em cada um de nós e desde que chegamos começou a ameaçar que nos surraria se não trabalhássemos mais depressa. Continuou provocando Socarrás e até chegou a empurrá-lo com a submetralhadora. Eu gritei para nossos companheiros saberem o que estava acontecendo e isso o acalmou um pouco. Seriam umas dez da manhã. Tínhamos cinco minutos para comer um pouco de farinha grossa de trigo, mandada pelos nossos familiares. Nas savanas cubanas há uma variedade de serpente pequena chamada jubo. Capturei uma de mais ou menos meio metro; eu a segurava com força e apenas sua cabeça sobressaía de minha mão fechada; o restante do corpo enroscava-se em meu braço, em movimentos frenéticos. Sacudi a luva da mão direita e agarrei-a com as duas mãos. — Vamos merendar! — Você vai comer a jubo? 85 luzes do presídio. Uma névoa cinzenta ia envolvendo os vultos cilíndricos, enormes, das circulares. Para nós, a visão do presídio ao longe, ao entardecer, surpreendia. O sol afundou no mar e nós, em íntimos pensamentos. Escutava-se o barulho da água cortada pelo barco, da esteira que o deslocamento formava atrás, o que de meu lugar não podia ver. Não se ouvia uma só voz. Pensava, também, que podíamos ser permutados, porque sabia que havia gente agindo nesse sentido. Rumores constantes fortaleciam essa esperança, que se manteve por mais de vinte anos, às vezes alimentada pelas próprias autoridades. Eles usavam esse método para erguer o ânimo do preso: alimentavam-no espiritualmente, para depois deixá-lo cair. Essas mudanças bruscas provocavam crises de depressão que iam minando o prisioneiro, desgastando suas reservas psíquicas. Os altos e baixos repentinos deixavam marcas de desorientação e angústia. Mas agora estava acontecendo uma coisa fora de qualquer cálculo: estávamos saindo da Ilha de Pinos. No mesmo banco estávamos Pruna, Luis Pozo e eu; um pouco mais adiante, Boitel, que eu não via há mais de um ano. Estava rodeado de vários amigos. Quando ficou só, aproximei-me dele e comentamos as coisas mais importantes que tinham acontecido desde a última vez que nos víramos. Boitel estava muito magro, mas sempre com aquela energia e entusiasmo que contagiava a todos. A viagem levou umas doze horas. Estava amanhecendo o dia 29 de maio de 1966 quando chegamos a Batabanó. Lá, as medidas de segurança eram maiores ainda. Os tetos dos armazéns e as esquinas das ruas estavam transformados em ninhos de metralhadoras. Ônibus ingleses Leyland esperavam-nos. Fomos entrando. O último banco estava completamente ocupado por seis guardas armados com submetralhadoras tchecas. Quando estávamos sentados, quatro ou cinco militares postaram-se perto do motorista, apontando-nos suas armas. Cinco ou seis ônibus formavam o comboio, que partiu lentamente entre um corre-corre de jipes com militares que berravam ordens aos motoristas. Em nós continuava firme a idéia da troca, que dentro de uma hora, mais ou menos, seria confirmada ou descartada. Quando os ônibus, sempre escoltados por muitos patrulheiros das polícias Metropolitana e Política, entraram pela Rua Monumental, rumo ao presídio de La Cabaña, as ações da troca começaram a baixar. E ao dobrar, de maneira inequívoca, para a tétrica fortaleza, outras análises e preocupações irromperam em nosso cérebro. No entanto, regressar da Ilha de Pinos era algo assim como a maior ilusão que tínhamos todos ao sairmos para os campos de trabalhos forçados, de onde não sabíamos se sairíamos vivos. A guarnição de La Cabaña, sob o comando de um oficial de raça negra, esperava- nos com uma agressividade tremenda. Atravessamos a pé o fosso onde se erguia o poste carcomido com a parede de sacos ao fundo. O "Matadouro de Castro", como o povo o chama. O fatídico paredão. Amarrados àquele poste, milhares de cubanos foram executados. 86 Quando entramos no pátio do cárcere, aplaudiram-nos. Todos que voltavam da ilha eram recebidos com admiração. Sabia-se em todos os presídios o que acontecia por lá e da heróica resistência que os presos faziam diante dos bárbaros planos do Governo. Destinaram-nos a galé 7, a última, a menor, a mais lôbrega, a mais isolada, a mais escura e pior de todas. Onde cabiam apenas 80 homens apertados, enfiaram 225. As torres de quatro a cinco camas de ferro quase esbarravam no teto. O centro era um corredor tão estreito que mal cabia uma pessoa. No espaço que ficava entre uma torre de cama e outra só se podia passar de lado. A fome que reinava então na prisão de La Cabaña nem sequer podia ser comparada à do presídio da Ilha de Pinos. Às duas horas da tarde mandaram-nos para o refeitório. Nunca esqueci aquela comida: eram três colheres de arroz com uns ossos de frango. sem absolutamente nada de carne. Quando digo três colheres, não exagero: eram exatamente três... eu as contei. E mais um pão. Era tudo. Nunca vi ração como aquela. Um guarda, de olho no relógio, contava dois minutos. Passado esse tempo, era preciso levantar-se, tivesse o preso terminado de comer ou não. Mas para aquele arroz até sobrava tempo. Era proibido levar pão para a galé. Os que não sabiam e o deixaram à mostra, na mão, ficaram sem ele: os guardas tiraram. Tudo estava dirigido para nos fazer sentir a pressão da fome, pois que lhes podia importar se levássemos o pão para comer mais tarde? Durante a volta à cela estive pensando naquela situação. Muitos se indignaram com a restrição dos alimentos. Era isso mesmo que os guardas queriam: que os presos se alterassem. Compreendi que com aquela medida pretendiam nos manipular, nos humilhar, nos reduzir a nada por meio da fome. E decidi, no dia seguinte, impor-me uma medida de autodisciplina que exercitasse e fortalecesse minha vontade. Quando me sentei diante das três colheradas de arroz, separei uma e comi imediatamente as outras duas. Celestino e Pruna diziam que eu estava louco. Respondi que era um modo de pôr à prova a vontade e o caráter. Se no dia seguinte me dessem duas colheradas, deixaria uma. Para mim, aquele modo de proceder foi como uma vitória. Desde então sempre me sobrou comida. Nos dias que davam farinha de milho a comida era mais do que uma tortura. Serviam esse alimento fervendo e quando mal tínhamos conseguido pôr uma colherada na boca, terminavam os dois minutos, tínhamos que ficar de pé e sair do refeitório com o estomago vazio. Como podíamos levar o jarro de água, logo resolvi esse problema. Simplesmente, derramava água na farinha fervente, mexia um pouco e bebia aquele caldo. 87 27. A luta contra o uniforme azul Os presos que tiravam da Ilha de Pinos eram espalhados por todo o país, em campos de concentração e presídios fechados de grande segurança. Situavam-nos o mais longe possível de suas famílias, em regiões distantes. Essa operação tinha como objetivo a desestabilização emocional do preso já que, para a nova etapa que iniciariam, tentavam romper os pontos mais firmes de resistência. Ao chegar aos seus lugares de destino, entregavam-lhes um novo uniforme, azul, o mesmo que era usado pelos presos por crimes comuns e os reabilitados. Os que se negavam a vesti-los eram surrados por especialistas em luta corpo-a-corpo do Ministério do Interior. Em Pinar del Rio, nos três campos de concentração Sandino, os métodos que usaram foram mais brutais do que em qualquer outro presídio. Encapuzavam e afundavam em poços, amarrados com cordas por. baixo dos braços, os que não aceitavam o uniforme; queimavam-nos com charutos acesos, agarravam-nos pelos cabelos e batiam- lhes as cabeças contra a parede até que caíam ao chão, sem sentidos. Depois de dois dias, sem dar-lhes água nem alimento, desamarravam-nos e se o preso tirasse o uniforme levava outra surra. Não respeitaram sequer os velhos e doentes. Os que resistiram a todas as torturas e não vestiram o uniforme azul foram levados sem roupas para o presídio provincial, .localizado no quilometro 5,5 da estrada que vai para o povoado de Luiz Lazo, na província de Pinar del Rio. Lá, em um pavilhão especial, com celas dos dois lados, aglomeraram todos os que iam chegando dos diferentes campos de concentração da província: Taco-Taco, Sandino 1, 2 e 3, O Bruxo, etc. Foi por isso que essa prisão foi chamada "a cidade nua". No presídio de La Cabaña a troca de uniformes aconteceu sem apelação para a violência. Nós que não aceitamos o uniforme fomos despojados de todos os nossos pertences e da roupa que tínhamos usado até aquele momento — um uniforme cáqui — e levados para as galés completamente vazias. Éramos mais de trezentos em cada galé. Na hora de dormir, não cabíamos deitados no chão. Tínhamos que deitar um colado ao outro. Ainda assim tínhamos que nos dividir em turnos; um grupo de uns trinta homens sempre tinha que ficar de pé, a entrada da cela. À medida que os dias passavam, muitos que não viam outra saída para a situação resolveram aceitar a roupa azul. Quando isso acontecia, eram retirados imediatamente da galé e os levavam embora de La Cabaña. Depois, insistiam em que falassem com os 90 mais frio do que em Havana, talvez porque o presídio estava no fundo de um vale. Tínhamos que dormir no chão, pois as celas não tinham camas, nem "aviões". Bernardo Alvarez e eu partilhamos um daqueles calabouços. Soubemos que outro grupo de prisioneiros políticos estava isolado no hospitalzinho. Como nós, eles também recusavam o uniforme militar. Eram cerca de uns vinte e os mantinham fechados nos cubículos onde estavam os tuberculosos e outros doentes que sofriam de males infecciosos, o que era como condená-los a morte. As celas eram espaçosas, mas estavam com as entradas seladas por placas metálicas e tinham apenas uma janela gradeada ao fundo. As autoridades tinham prometido que lhes dariam roupas de baixo para cobrir a nudez e cobertas para o frio. Mas não passara de promessa. Já estavam há meses dormindo no chão de granito. No dia 13 de novembro, quando o frio entrava em rajadas geladas pela abertura gradeada do fundo, o chefe do Ordem Interna, tenente Jauto, apresentou-se para responder às constantes demandas dos prisioneiros para que lhes dessem roupas de baixo e as cobertas de inverno prometidas. — Se não quiserem passar frio, vão ter que aceitar o uniforme azul e se não gostarem, podem fazer uma greve de fome — disse e foi embora. No dia seguinte, os prisioneiros aceitaram o desafio: devolveram a água açucarada do café da manhã e declararam-se em greve de fome. Depois de cinco dias de greve de fome, um médico que inspecionava os calabouços informou ao oficial Castillo, chefe militar do hospitalzinho, que a partir daquele momento uma complicação poderia acarretar a morte de qualquer um deles. Nessa mesma noite vários guardas entraram nas celas e levaram os presos, à força, ao salão da farmacinha. Amarraram-nos a umas macas e aplicaram soro em seus braços. Todos os dias hidratavam os grevistas do mesmo modo. Uma mudança na diretoria da prisão levou o tenente Garcia, velho militante do Partido Comunista, à chefia. Visitou os grevistas e prometeu-lhes que, se comessem no dia seguinte, receberiam roupas e cobertas. Já se haviam passado dezessete dias. Eles aceitaram, com a condição de reiniciar a greve, se a promessa não fosse cumprida. Mas, cumpriram-na. * * * Uma tarde, Jauto, o chefe dos comissários políticos, me chamou para comunicar que meu pai tinha sido preso, condenado a vinte anos de prisão e que se eu vestisse o uniforme azul me levaria para vê-lo no campo de concentração de Manacas, na província de Las Villas. Aquela notícia me transtornou. Era uma coisa que eu jamais tinha esperado. Mas respondi que seu oferecimento não me interessava. Não pretendia me vestir por motivo algum, absolutamente. Fiquei muito preocupado com a notícia da prisão de meu pai. Um novo sofrimento acrescentava-se a minha existência, talvez o mais preocupante de todos, porque significava necessidades, miséria e perseguição para minha família. Minha mãe e irmã tinham ficado sozinhas, desamparadas e mais marcadas ainda porque, além de mim, também meu pai, agora, era um preso político. 91 Aquela foi a pior notícia de todas as que eu havia recebido naqueles anos de prisão. Também sentia por meu pai, já entrado em anos e doente. Mas nada podia fazer, a não ser assimilar o duro golpe e fortalecer ainda mais a minha fé diante do contratempo. Mais uma provação, mais um desafio à minha resistência. No entanto, meditei, analisei minha posição : valia a pena minha conduta rebelde? Bastava que eu dissesse que aceitava o uniforme azul e no dia seguinte partiria para Havana; no outro, estaria junto com minha família. Isso, sem dúvida, mitigaria o efeito da prisão de meu pai. Para minha mãe e minha irmã seria um alívio enorme. E para Martha? Ela seria capaz de compreender meu modo de agir, de aceitá-lo? Tinha certeza de que sim, que materialmente o aceitaria, mas compreenderia interiormente? Eu a havia preparado desde o primeiro dia, havia demonstrado claramente que não pensava em modificar minha conduta. Sempre lhe explicava o que fazia e por quê. Agora. uma mudança em meu comportamento poderia parecer inconseqüente. Não acredito que o homem deva ser dogmático, mas sim que, ao contrário, seus critérios devem evoluir. Mas há algo em que ele não pode ceder: suas convicções ou valores éticos, que são como pilares que o sustentam interiormente. Se apenas um deles quebrasse, o edifício íntegro de sua vida poderia vir abaixo. Quando analisava meu modo de proceder, eu sentia que minhas estruturas interiores correriam perigo se mudasse, como queriam meus carcereiros. Duvidava, mas então recorria a Deus, pois Dele, sim, nunca duvidei, e encontrava novamente o caminho; minhas análises tornavam-se diáfanas e eu reiniciava a marcha com nova provisão de fé e esperança. Nós, dos grupos que recusaram os uniformes azuis, fomos dispersados por todos os presídios e campos de concentração do país: o cárcere de Camagüey, o de Holguín, o de Manzanillo, em Pinar del Rio, em Guanajay, no Castelo do Príncipe, em La Cabaña e outros. Em muitos presídios empregaram-se surras sistemáticas para obrigar-nos a nos vestir. Também o confinamento em calabouços com paredes e solo cobertos com asfalto derretido, pegajoso, que deixou para sempre suas marcas na pele dos prisioneiros. O chefe de Cárceres e Prisões, capitão Medardo Lemus, participou pessoalmente, com um nutrido grupo de guardas, de espancamentos de prisioneiros no castelo de San Severino e no campo de concentração de Agüica, na província de Matanzas. Foi lá que Garcia Plasencia, um prisioneiro que estava morrendo de pancadas, deu um soco no meio da cara do capitão Lemus. Por isso, caíram em cima dele a pontapés. Quando escrevo estas linhas, Garcia Plasencia continua preso, há mais de vinte anos. A existência dos prisioneiros políticos nus foi denunciada diante de governos e organizações internacionais, mas estes não se preocuparam em se manifestar. A Anistia Internacional manteve-se em silêncio. Seu diretor era, nessa época, Sam McBride, que recebeu o Prêmio Lênin da Paz, concedido, como se sabe, pelo Soviet Supremo da URSS aos que defendem os interesses da União Soviética, sua política exterior e suas concepções ideológicas. Esse mesmo Sam McBride, dez anos depois, em julho de 1978, presidia uma conferência sobre Direitos Humanos, realizada na Venezuela, para denunciar as violações que estavam acontecendo na América Latina. Correto e gentil, cumprimentou minha esposa, que participava da conferência, sem saber quem era ela. Quando Martha começou seu discurso e o sr. McBride escutou-a dizer que em Cuba os Direitos Humanos eram violados, perdeu toda a compostura, gritou, histérico, e proibiu-a 92 de continuar falando. Martha tentou continuar a exposição e o sr. McBride começou a bater fortemente sobre sua mesa, gritando, ao microfone, para os tradutores, que faziam tradução simultânea, não traduzirem as palavras dela, impedindo, dessa maneira, e diante da consternação de todos os presentes, que ela continuasse falando. No dia seguinte, na primeira página do jornal venezuelano Últimas Notícias, havia esta manchete, ocupando toda largura do jornal: "VIOLAM-SE OS DIREITOS HUMANOS EM CONFERÊNCIA SOBRE DIREITOS HUMANOS". Os demais órgãos da imprensa também comentavam o incidente com duras críticas. O sr. McBride não queria ouvir nada sobre a violação dos Direitos Humanos em Cuba. O que teria pensado o Soviet Supremo se ele o tivesse permitido? Talvez lhe retirassem a medalha Lênin da Paz e seus comparecimentos a Rádio Moscou. * * * Passaram-se vários meses. O governo de Castro convenceu-se de que nossa posição, depois de terem ido embora os que não estavam completamente convencidos para sustentá-la, se havia consolidado. É verdade que o resultado tinha sido favorável ao regime. A maioria havia aceitado o uniforme azul. Foi então que nos chamaram e partimos outra vez rumo a Havana. O Ministério havia dado ordem de nos reconcentrarem, todos, na prisão de La Cabaña. Momentos antes de partir do presídio de Boniato, um soldado aproximou-se de nós, olhou receioso para todos os lados, e quando se convenceu de que não seria ouvido pelos outros guardas, disse, num sussurro, que iam nos dar o que queríamos: o uniforme que usávamos antes. A viagem de volta a Havana, se bem que significassem mais de doze horas de falta de comodidade, era-nos agradável, pois queria dizer a volta para a capital, para a informação, a proximidade dos nossos familiares que, mesmo não podendo ver, sabíamos que estavam próximos, do outro lado da baia. Em Camagüey, outro veículo cheio de presos nus uniu-se ao nosso. Procediam de outro presídio. Quando chegamos a La Cabaña, no pátio, deram-nos cuecas e uma toalha. A maioria estava concentrada ali; só faltávamos nós e um grupo do campo de concentração San Ramón. O tratamento dos militares foi pouco agressivo, o reencontro de velhos companheiros nos dava grande alegria. Designaram-nos o pavilhão 13. E anunciaram a visita do Ministro do Interior, o comandante Sergio del Valle, um dos homens de confiança de Castro. Assim que entrou, rodeado por meia dúzia de guarda-costas, começou a falar. Disse que o caso do uniforme havia terminado, que nos dariam o que usávamos antes. Acrescentou que não seriam tomadas medidas contra os que não quisessem aceitá-lo, que inclusive dariam a eles os mesmos direitos que aos vestidos. A muitos de nós aquelas palavras pareceram falsas, hipócritas, enganadoras. Perguntávamos a nós mesmos por que — se haviam nos mantido mais de um ano sem roupas, batendo na gente, torturando-nos — tinham, de repente, tanto interesse em que tornássemos a aceitar o uniforme que nos tinham tirado. Valeu a pena estudar, analisar isso. Além disso, havia outras questões a serem tratadas: por exemplo, o regime de 95 Martha, junto com outra senhora, tinha conseguido escapar, mas olhou para trás e viu sua amiga Inês, a esposa de Raul del Valle, debatendo-se nas mãos de um policial que a havia agarrado pelos pulsos e a arrastava para um carro de patrulha. Correu até ela. Enfiaram-nas no mesmo automóvel, levaram-nas para a Chefatura Central da Polícia Nacional Revolucionária. Apareceu o chefe dos carros de patrulha, capitão Justo Hernández, o mesmo que, sendo diretor de La Cabaña, ameaçou Martha de prendê-la. Estava histérico, guinchava e dava gritos, dizendo que eram todas agentes da CIA. Inês, que sabia da ojeriza que o capitão Hernández tinha de Martha, tratou de escondê-la, colocando-se na frente dela. Mas quando puxaram Inês para enfiá-la num dos carros, ele a viu. — Olhem só quem caiu na rede! Agora, sim, você vai apodrecer na prisão. Um tenente foi pegar Martha e levou-a para um dos tantos escritórios daquele labirinto. Lá a esperava, sentado atrás de uma escrivaninha, um oficial mestiço, de uns cinqüenta anos, que começou a interrogá-la. Queria saber quem havía organizado a manifestação. Martha respondeu que os familiares daquelas mulheres iam morrer em uma greve de fome que eles haviam provocado não fornecendo aos presos o mínimo necessário para subsistir. O oficial disse então a Martha que elas eram dirigidas e pagas pela CIA. Depois, perguntou se ela havia proposto ao pai dela e a mim que passássemos para o Plano de Reabilitação, pois era a solução ideal, já que a revolução, humana e justa, dava aos que a haviam tentado destruir a sociedade socialista a oportunidade de se reintegrar nela. Martha respondeu que nem para nós, nem para ela, a reabilitação era uma solução, que não íamos negar a Deus, quaisquer que fossem as conseqüências. — Pois vai ter muito tempo para pensar nisso. — Foram as últimas palavras daquele oficial e Martha achou que ia passar muitos anos na prisão. Tornaram a chamá-la. Novamente corredores e escadas desertas. Chegaram a um salão onde estavam as outras. Lá tiveram que escutar uma longa exposição de ameaças e acusações, até que, finalmente, disseram que daquela vez iam passar por alto sobre o que tinham feito. A Polícia Política chamou Josefa, a mãe de Martha, e lhe disse para ficar em uma esquina que lhe indicaram, e que não saísse dali. De madrugada, disseram a Martha e a Inês que andassem até onde Josefa estava. Encontraram-se e se abraçaram, chorando. No dia seguinte a greve terminou. Depois de vinte e um dias, nossa firme decisão obrigou as autoridades a ceder diante da justeza dos pedidos. * * * Alguns de nós solicitamos à direção do Ministério autorização para nos casarmos; acreditávamos que era o momento propício para fazê-lo, dada a suposta política conciliadora que estavam desenvolvendo. O pai de Martha e eu queríamos que ela fosse embora de Cuba, morar com seus irmãos no exterior. Isso era necessário para sua segurança, depois de ter sido detida e fichada pela Polícia Política. 96 Martha, depois de mil argumentações do pai e minhas, mudou a decisão de permanecer em Cuba e concordou em ir embora do país. A dela era uma das poucas famílias que tinham ficado para trás, quando as solicitações para sair de Cuba foram aprovadas. Naquela ocasião, dezenas de milhares de pessoas foram embora para os Estados Unidos nos chamados Vôos da Liberdade, em 1965. Ela também teria podido ir. Certa manhã, no escritório dos militares, assinamos os documentos legais e, assim, nos casamos. Aquele ato não tinha para nós o menor valor espiritual. Só nos sentiríamos realmente casados quando nos uníssemos diante de Deus. Como uma especial concessão para os dois pares que se haviam casado, concederam-nos quinze minutos no salão de visitas. Quando Martha saísse de Cuba, faria isso como minha esposa. Tínhamos conversado o quanto seria útil seu trabalho fora do país, em favor da minha libertação. Planejamos toda uma série de atividades com o objetivo de criar uma campanha de opinião pública que obrigasse Castro a me libertar. Ela não teria dificuldades para levar essa campanha a cabo, pois era uma verdadeira ativista. Martha respondeu com juros às esperanças que depositei nela. 97 30. Uma prisão nazi no Caribe De todas as prisões e campos de concentração de Cuba a mais repressiva é o cárcere de Boniato, no extremo leste da ilha. Ainda atualmente, quando se quer processar um grupo de prisioneiros, quando se quer fazer experiências biológicas e psíquicas com eles, quando se quer deixá-los incomunicáveis, surrá-los e torturá-los, o presídio de Boniato é a instalação favorita dos comunistas cubanos. Enterrada no fundo de um vale, rodeada de acampamentos militares, afastada de povoados e de estradas, é o lugar ideal para isso. Os gritos dos torturados e as rajadas de metralhadoras não são ouvidos por ninguém; afogam-se na solidão do local, perdem-se entre colinas e morros. A viagem que fizemos a Boniato foi a pior de todas. A capacidade dos carros- celas era de vinte e dois prisioneiros apertados e incômodos, mas a cacetadas de culatras de fuzil e empurrões enfiaram vinte e seis. Íamos quatro em uma cela rolante para três. Como não cabíamos sentados, enfiei- me debaixo do banco de madeira, encurvado e entre as pernas dos outros. Dormi com o sacolejar do veículo, até que Piloto, enjoado com o cheiro da gasolina e as sacudidas, começou a vomitar. O único recipiente que tínhamos era meu jarro de alumínio e eu o ofereci. Trezentos quilômetros depois, na cidade de Santa Clara, deram a cada cela uma lata para urinar. Tornei a me enfiar debaixo do banco. A lata de urina, com a freadas bruscas e as sacudidelas, salpicava e molhava as pernas. Um dos carros encrencou, quando chegamos a Camagüey. A viagem demorou mais de vinte e cinco horas. Por fim, a caravana se deteve à entrada do presídio de Boniato. Quando a porta se abriu, consegui ver uma enorme estrutura com um gigantesco letreiro que estava muito em voga: "Cuba, primeiro território livre da América". Nesse dia iniciou-se o plano de extermínio e de experiências biológicas e psíquicas mais desumano, brutal e impiedoso que o mundo ocidental conheceu, depois dos nazis. Foram pródigos em maldades, sanha e torturas. Boniato e suas celas muradas serão sempre uma acusação, uma prova de como se torturou, enlouqueceu e assassinou presos políticos em Cuba. Se não tivessem acontecido todas as outras violações dos Direitos Humanos, o que aconteceu em Boniato bastaria para condenar o regime cubano como o mais cruel e degradante que o continente americano conheceu. Permanecíamos encarcerados em 40 celas. Ao amanhecer, a guarnição invadiu os corredores: chegaram gritando e cagando em nossas mães. A coisa de sempre:
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