Baixe publico e privado no pensamento social brasileiro andre botelho - 4 e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity!
ibéricos. Daí a referência a Antígona, tragédia grega de Sófo-
cles que Buarque recupera, através de uma leitura bastante
pessoal, para iluminar a necessária disjunção entre família e
Estado. E, consequentemente, para acentuar o caráter pro-
blemático da “cordialidade” como forma de sociabilidade
que transpunha para o público os valores, as paixões e as
práticas particularistas próprios ao mundo privado. Uma
passível “solução” para o dilema fica em suspenso, a não ser
que as próprias mudanças prometidas pela urbanização fi-
nalmente cumprissem com o seu desígnio de uma maior ra-
cionalização da vida social. E embora reconheça a fragilidade
do caminho societário de construção da cidadania democrá-
tica no interior da cultura política pessoalizada brasileira,
Buarque sustenta que nem por isso ele seria menos necessá-
rio e adequado, ainda que também não deixasse de ser ambí-
guo. Mesmo não sendo o caso de desenvolver aqui a questão,
cabe registrar que as diferentes perspectivas de Vianna,
Freyre e Buarque se relacionam de várias formas aos seus
respectivos contextos históricos.
Mas como a formação social brasileira constitui processo
de longa duração, a atrofia do público e a hipertrofia do pri-
vado voltaram a incomodar e a estimular outras gerações
intelectuais posteriores. Foi o caso de um conjunto de pes-
quisas da sociologia política desenvolvido entre as décadas
de 1940 e 1970 sobre fenômenos como dominação pessoal,
coronelismo, parentelas, clãs eleitorais, favor etc., que se
mostravam persistentes mesmo após a transição do rural ao
urbano. Ao mesmo tempo, contudo, essas pesquisas acabam
por reorientar o interesse de análise para as formas históri-
cas, concretas e contingentes da articulação entre público e
privado, apontando, por isso, as impropriedades de uma con-
cepção dualista sobre aquela relação, como identificavam
nos ensaios de interpretação do Brasil. Por exemplo, em Co-
ronelismo, enxada e voto (1949), Victor Nunes Leal mostra
que na Primeira República (1889-1930) o privado não se so-
Sa
brepunha inteiramente ao público, nem esses princípios dife-
rentes de coordenação social se encontrariam numa relação
de oposição; mas, antes, que o coronelismo supõe um com-
promisso entre um poder privado decadente e um poder pú-
blico progressivamente fortalecido numa relação de interde-
pendência, no sentido de que nenhum dos dois isoladamente
consegue determinar o processo político na base dos seus
valores ou interesses específicos. Maria Isaura Pereira de
Queiroz, por sua vez, sobretudo com base em trabalhos de
campo realizados nos sertões baianos na década de 1950,
busca evidenciar as possibilidades e limites da ação individual
no interior da estrutura da dominação política do coronelis-
mo, por mais diversas que essas fossem, como faz questão de
acentuar. O uso do voto como “posse” para uma barganha
política na estrutura coronelística, expressa em suas pesqui-
sas como relações de dominação política constituídas entre o
privado e o público, pode produzir comportamentos em indi-
víduos e grupos sociais, e não apenas restringir e controlar o
escopo de suas ações.
Sem subestimar a particular relação histórica entre públi-
co e privado, e os problemas nela envolvidos, essas e outras
pesquisas do período mostram que a sociedade brasileira não
estava em suspenso à espera de resoluções para, enfim, se
modernizar, mas tampouco concluem que aquela relação se-
ria sem consequências para a vida política, em geral, e para a
democracia, em particular. Assim, apontam para uma carac-
terização da dominação política como relações diretas, pessoa-
lizadas e violentas, cujas bases sociais estariam em redes de
reciprocidades assimétricas entre os diferentes atores e gru-
pos sociais. Envolvendo bens materiais e imateriais, controle
de cargos públicos, votos, recursos financeiros, prestígio, reco-
ahecimento de autoridade legal ou não, tais relações pessoali-
sadas, fundadas na estratificação social brasileira, definiriam
nossa vida política em toda a sua complexidade, da aquisição
à distribuição do poder, da sua organização ao seu exercício.
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