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Guias e Dicas
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Crim...ogia - criminologia - tae - an?lise sobre textos de criminologia, Notas de estudo de Direito

Criminologia

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 02/08/2014

denilson-academico-9
denilson-academico-9 🇧🇷

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Baixe Crim...ogia - criminologia - tae - an?lise sobre textos de criminologia e outras Notas de estudo em PDF para Direito, somente na Docsity! página 24 SEQÜÊNCIA 30 DO PARADIGMA ETIOLÓGICO AO PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL: MUDANÇA E PERMANÊNCIA DE PARADIGMAS CRIMINOLÓGICOS NA CIÊNCIA E NO SENSO COMUM Vera Regina Pereira de Andrade ¹ 1 Introdução Neste artigo abordamos, numa perspectiva sincrônica antes que diacrônica (his- tórica), a mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social que a Criminologia experimenta desde a década de sessenta de nosso século, situando a desconstrução epistemológica que o novo paradigma operou em relação ao tradicional e a permanência deste, para além desta desconstrução, pela sua importante funcionalidade (não declarada) como ciência do controle sócio-penal. Muitas razões justificam, pensa- mos, a atenção aqui dedicada ao tema. Mas ao invés de explicitá-las - o que ensejaria basicamente um outro artigo - deixamos que o leitor extraia suas próprias conclusões. 2. O paradigma etiológico de Criminologia. A Antropologia criminal de C. Lombroso e, a seguir, a Sociologia Criminal de E. Ferri² constituem duas matrizes fundamentais na conformação do chamado paradigma etiológico de Criminologia, o qual se encontra associado à tentativa de conferir à disciplina o estatuto de uma ciência segundo os pressupostos epistemológicos do positivismo³ e ao fenômeno, mais amplo, de cientificização do controle social, na Europa de finais do século XIX. Na base deste paradigma a Criminologia ( por isto mesmo positivista) é defini- da como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade ; ou seja, que tendo por objeto a criminalidade concebida como um fenômeno natural, causalmente determi- nado, assume a tarefa de explicar as suas causas segundo o método científico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais oficiais e de prever os remédios para 1Professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UFSC. 2 O “L’Uomo delinqüente” de LOMBROSO (publicado em 1876), a “Sociologia Criminale” de FERRI(publicada em 1891) e a “Criminologia - studio sul delitto e sulla teoria della represione” de GARÓFALO (publicada em 1885) com enfoque, respectivamente, antropológico, sociológico e jurídico, são consideradas as obras básicas caracterizadoras da chamada Escola Positiva italiana e os três seus máximos definidores e divulgadores. Sobre a inserção histórica e os condicionamen- tos deste paradigma, bem como sua transnacionalização ver ANDRADE,1994. 3 Sobre a caracterização do positivismo ver ANDRADE, 1994 e TAYLOR, WALTON, YOUNG, 1990. SEQÜÊNCIA 30 página 25 combatê-la. Ela indaga, fundamentalmente, o que o homem (criminoso) faz e porque o faz. O pressuposto, pois, de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade ontológica, preconstituída ao Direito Penal (crimes “na- turais”) que, com exceção dos chamados crimes “artificiais”,4 não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar a ciência destas ao serviço do seu combate em defesa da sociedade. A primeira e célebre resposta sobre as causas do crime foi dada pelo médico italiano LOMBROSO que sustenta, inicialmente, a tese do criminoso nato: a causa do crime é identificada no próprio criminoso. Partindo do determinismo biológico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime e valendo-se do método de investigação e análise próprio das ciências naturais (observação e experimentação) procurou com- provar sua hipótese através da confrontação de grupos não criminosos com crimino- sos dos hospitais psiquiátricos e prisões sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual contou com o auxílio de FERRI, quem sugeriu, inclusive, a denominação “criminoso nato”. Procurou desta forma individualizar nos criminosos e doentes apenados ano- malias sobretudo anatômicas e fisiológicas5 vistas como constantes naturalísticas que denunciavam, a seu ver, o tipo antropológico delinqüente, uma espécie à parte do gênero humano, predestinada, por seu tipo, a cometer crimes. Sobre a base destas investigações buscou primeiramente no atavismo uma explicação para a estrutura corporal e a criminalidade nata. Por regressão atávica, o criminoso nato se identifica com o selvagem. Posteriormente, diante das críticas sus- citadas, reviu sua tese, acrescentando como causas da criminalidade a epilepsia e, a seguir, a loucura moral. Atavismo, epilepsia e loucura moral constituem o que Vonnacke denominou de “tríptico lombrosiano”.6 Desenvolvendo a Antropologia lombrosiana numa perspectiva sociológica, Ferri admitiu, por sua vez, uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do crime: individuais (orgânicas e psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais (ambiente social) e, com elas, ampliou a originária tipificação lombrosiana da criminalidade. Assim FERRI (1931,p.44,45,49 e 80) sustentava que o crime não é decorrência do livre arbítrio, mas o resultado previsível determinado por esta tríplice ordem de fatores que conformam a personalidade de uma minoria de indivíduos como “socialmente perigosa”. 4 Segundo a distinção entre delitos “naturais” e “artificiais”, que ficou a dever-se a GAR0FALO, se considera que apenas os delitos “artificiais” representam, excepcionalmente, violações de determinados ordenamentos políticos e econômicos e resultam sancionados em função da consolidação dessas estruturas. 5 Como pouca capacidade craniana, frente fugidia, grande desenvolvimento dos arcos zigomático e maxilar, cabelo crespo e espesso, orelhas grandes, agudeza visual, etc. 6 A respeito do exposto ver LOMBROSO (1983); SOUSA (1977, p.17-8) e LAMNEK (1980, p.20). página 28 SEQÜÊNCIA 30 Modelado pelo interacionismo simbólico11 e a etnometodologia12 como esque- ma explicativo da conduta humana (o construtivismo social) o labelling parte dos conceitos de “conduta desviada” e “reação social”, como termos reciprocamente interdependentes, para formular sua tese central: a de que o desvio e a criminalidade não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica preconstituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujei- tos através de complexos processos de interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e seleção. Uma conduta não é criminal “em si” (qualidade negativa ou nocividade ineren- te) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influ- ências de seu meio-ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a “definição” legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas. Conseqüentemente, não é possível estudar a criminalidade independentemente desses processos. Por isso, mais apropriado que falar da criminalidade (e do criminoso) é falar da criminalização (e do criminalizado) e esta é uma das várias maneiras de cons- truir a realidade social. (BARATTA,1982b, p.35; PABLOS DE MOLINA, 1988, p.581- 583; HASSEMER,1984, p.81-2; HULSMAN, 1986, p.127-8; ALVAREZ, 1990, p.15-6 e 21) Esta tese, da qual provém sua própria denominação (“etiquetamento”, “rotulação”) se encontra definitivamente formulada na obra de BECKER (1971, p.19) nos seguintes termos: “os grupos sociais criam o desvio ao fazer as re- gras cuja infração constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas 11 Direção da Psicologia Social e da Sociolingüística inspirada em Charles COOLEY e George H. MEAD. Do interacionismo desenvolvido por MEAD, cuja tese central pode ser resumida em que a sociedade é interação e que a dinâmica das instituições sociais somente pode ser analisada em termos de processos de interação entre seus membros, se derivaram diversas escolas dentre as quais a “Escola de Chicago” à que pertencem LEMERT e BECKER, a escola dramatúrgica de GOFFMAN e a Etnometodologia. O interacionismo simbólico representa uma certa superação da antinomia rígida das concepções antropológicas e socioló- gicas do comportamento humano, ao evidenciar que não é possível considerar a sociedade - assim como a natureza humana - como dados estanques ou estruturas imutáveis. A sociedade, ou seja, a realidade social, é constituída por uma infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continua a estender-se através da linguagem. O comportamento do homem é assim inseparável da “interação social” e sua interpretação não pode prescindir desta mediação simbólica. (ALVAREZ G,1990, p.19; DIAS e ANDRADE, 1984, p.344-5) 12 Direção inspirada na sociologia fenomenológica de Alfred SHUTZ. Segundo a etnometodologia, também, a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer objetivamente, mas o produto de uma “construção social” obtida mediante um processo de definição e de tipificação por parte dos indivíduos e grupos diversos. Conseqüentemente, para o interacionismo e a etnometodologia, estudar a “realidade social” (por exemplo, a conduta des- viada e a criminalidade) significa, essencialmente, estudar esses processos, partindo dos que são aplicados a simples comportamentos para chegar às construções mais complexas, como a própria ordem social. (BARATTA,1991a, p.85-6; DIAS e ANDRADE, 1984, p.54) SEQÜÊNCIA 30 página 29 em particular e qualificá-las de marginais (estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma conseqüência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um “ofensor”. O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito dita qualificação (etique- ta); a conduta desviante é a conduta assim chamada pela gente.” Numa segunda aproximação, a criminalidade se revela como o processo de interação entre ação e reação social de modo “que um ato dado seja desviante ou não depende em parte da natureza do ato (ou seja, se quebranta ou não alguma regra), e em parte do que outras pessoas fazem a respeito.” (BECKER,1971, p.13) Pois, ainda no dizer de BECKER (1971, p.14) “devemos reconhecer que não podemos saber se um certo ato vai ser catalogado como desviante até que seja dada a resposta dos demais. O desvio não é uma qualidade presente na conduta mesma, senão que surge da interação entre a pessoa que comete o ato e aqueles que reagem perante o mesmo.” Ao afirmar que a criminalidade não tem natureza ontológica, mas social e definitorial e acentuar o papel constitutivo do controle social na sua construção seletiva, o labelling desloca o interesse cognoscitivo e a investigação das “causas” do crime e, pois, da pessoa do autor e seu meio e mesmo do fato-crime, para a reação social da conduta desviada, em especial para o sistema penal. Como objeto desta abordagem o sistema penal não se reduz ao complexo estático das normas penais mas é concebido como um processo articulado e dinâ- mico de criminalização ao qual concorrem todas as agências do controle social formal, desde o Legislador (criminalização primária), passando pela Polícia e a Jus- tiça (criminalização secundária) até o sistema penitenciário e os mecanismos do controle social informal. Em decorrência, pois, de sua rejeição ao determinismo e aos modelos estáticos de comportamento, o labelling conduziu ao reconhecimento de que, do ponto de vista do processo de criminalização seletiva, a investigação das agências formais de controle não pode considerá-las como agências isoladas umas das outras, auto-suficientes e auto-reguladas mas requer, no mais alto grau, um approach integrado que permita apreender o funcionamento do sistema como um todo. (DIAS e ANDRADE, 1984, p.373-4). Neste sentido, não apenas a criminalização secundária insere-se no continuum da criminalização primária, mas o processo de criminalização seletiva acionado pelo sistema penal se integra na mecânica do controle social global da conduta desviada de tal modo que para compreender seus efeitos é necessário apreendê-lo como um subsistema encravado dentro de um sistema de controle e de seleção de maior ampli- tude. Pois o sistema penal não realiza o processo de criminalização e estigmatização à margem ou inclusive contra os processos gerais de etiquetamento que tem lugar no seio do controle social informal, como a família e a escola (por exemplo, o filho estig- matizado como “ovelha negra” pela família, o aluno como “ difícil” pelo professor página 30 SEQÜÊNCIA 30 etc.) e o mercado de trabalho, entre outros. (HASSEMER, 1984, p.82; COÑDE, 1985, p.37) E desta perspectiva relativizado fica tanto o lugar do Direito e da Justiça Penal no controle social formal quanto o lugar deste em relação ao controle social global. Assim, ao invés de indagar, como a Criminologia tradicional, “quem é crimino- so?”, “por que é que o criminoso comete crime?” o labelling passa a indagar “quem é definido como desviante?” “por que determinados indivíduos são definidos como tais?”, “em que condições um indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?”, “que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?”, “quem define quem?” e, enfim, com base em que leis sociais se distribui e concentra o poder de definição? (BARATTA, 1991a, p.87; DIAS e ANDRADE, 1984, p.43). Daí o desenvolvimento de três níveis explicativos do labelling approach, cuja ordem lógica procede aqui inverter: a) um nível orientado para a investigação do impacto da atribuição do status de criminoso na identidade do desviante (é o que se define como “desvio secundá- rio”)13; b) um nível orientado para a investigação do processo de atribuição do status de criminoso (“criminalização secundária”ou processo de seleção)14; c) um nível ori- entado para a investigação do processo de definição da conduta desviada (criminalização primária)15 que conduz, por sua vez, ao problema da distribuição do poder social desta definição, isto é, para o estudo de quem detém, em maior ou menor medida, este poder na sociedade. E tal é o nível que conecta o labelling com as teorias do conflito.(BARATTA, 1991a, p.87; PABLOS DE MOLINA, 1988, p.588, 592-3) A investigação se desloca, em suma, dos controlados para os controladores e, reme- tendo a uma dimensão macrosociológica, para o poder de controlar. Pois ao chamar a atenção para a importância do processo interativo (de definição e seleção) para a construção e 13 Este nível prevalece entre os autores que se ocuparam particularmente da identidade e das carreiras desviadas, como Howard Becker, Edwin M. Schur e Edwin M.Lemert a quem se deve o conceito de “desvio secundário” (secondary deviance) que teorizado pela primeira vez em seu “Social Pathology” em 1951, foi por ele retomado e aprofundado em “Human Deviance. social problems and social control” (1972) tendo se convertido num dos tópicos centrais do labelling. Relacionando-se com um mais vasto pensamento penalógico e criminológico crítico sobre os fins da pena este nível de investigação põe em evidência que a intervenção do sistema penal, em especial as penas privativas de liberdade, ao invés de exercer um efeito reeducativo sobre o delinqüente, determinam, na maior parte dos casos, uma consolidação de uma verdadeira e própria carreira criminal, lançando luz sobre os efeitos criminógenos do tratamento penal e sobre o problema não resolvido da reincidência. De modo que seus resultados sobre o “desvio secundário” e sobre as carreiras criminosas representam a negação da concepção reeducativa da pena e da ideologia do tratamento. (BARATTA, 1991a, p. 89 e 116) 14 Tal é o processo de aplicação das normas penais pela Polícia e a Justiça, que corresponde ao importante momento da atribuição da etiqueta de desviante (etiquetamento ou rotulação) 15 Correspondente ao processo de criação das normas penais, em que se definem os bens jurídicos a serem protegidos, as condutas que serão criminalizadas e as respectivas penas numa determinada sociedade. Não obstante, não se limitam a análise das definições legais, levando também em consideração ( com maior ou menor ênfase) as definições informais dadas pelo público em geral (definições do “senso comum”). SEQÜÊNCIA 30 página 33 como tal já não pode investigar a criminalidade como fenômeno social, mas apenas enquanto definida normativamente. Na própria delimitação de seu objeto já se realiza, pois, uma subordinação da Criminologia ao Direito Penal. E ao identificar os crimino- sos com os autores das condutas legalmente definidas como tais e, mais do que isso, com os sujeitos etiquetados pelo sistema como criminosos, identifica população cri- minal com a clientela do sistema penal . Neste nível sua dependência metodológica estende-se da normatividade ao resultado da própria operacionalidade, altamente seletiva, do sistema penal. Seu laboratório de experimentação que, coerentemente com o interesse originário na investigação da criminalidade como fenômeno, deveria ser a sociedade converte-se, na prática, nas prisões e manicômios.19 (PLATT, 1980; ZAFFARONI, 1991, p.44; DIAS e ANDRADE, 1984, p.66; PAVARINI, 1988, p.53-4; PABLOS DE MOLINA, 1988, p.583) Assim, o criminólogo positivista não conhecerá nunca o “fenômeno” da pros- tituição, do tráfico de drogas, do crime organizado, etc., podendo conhecer algumas mulheres, traficantes e mafiosos, por exemplo, que foram selecionados pelo sistema. E isto vale independentemente para todas as formas de criminalidade. Pelo que se chega “a uma conclusão verdadeiramente paradoxal: o positivismo criminológico que havia se dirigido para a busca de um fundamento natural, ontológico, da criminalidade, contra toda sua boa intenção é a demons- tração inequívoca do contrário; ou seja, de que a criminalidade é um fenômeno normativo. Certamente impossível de ser conhecido desde um ponto de vista fenomenológico.” (PAVARINI, 1988, p.54) Suas teorias etiológicas somente podem concluir, pois, por causas indissociável e exclusivamente ligadas ao tipo de pessoas que integram a clientela do sistema, buscando nelas todas as variáveis que expliquem sua diversidade com respeito aos sujeitos normais, com exclusão, todavia, do próprio processo criminalização, que aparece como o fundamento da diversidade. É sobre os baixos estratos sociais, por- tanto, que recai o estigma da periculosidade e da maior tendência para delinqüir. É precisamente esta situação de dependência na qual a Criminologia positivista se encontra na própria definição de seu objeto de investigação e as aporias daí resultantes, que dão lugar ao profundo questionamento de seu status científico le- vando à concluir que “a sua pretensão de proporcionar uma teoria das causas da criminalidade não tem justi f icação do ponto de vista epistemológico” (BARATTA,1982a, p.29 e 1983b, p.146) E isto porque uma investigação causal-naturalista não é aplicável a objetos defini- dos por normas, convenções ou avaliações sociais ou institucionais, já que fazê-lo acar- reta uma “coisificação” dos resultados destas definições normativas que aparecem como “coisas” que existem independentemente delas. A “criminalidade”, os “criminosos” são, sem dúvida, objetos deste tipo. E são impensáveis sem a intervenção da rea- 19. Basta lembrar a engenharia lombrosiana de medição e quantificação de crâneos dos presos italianos, imortalizada no Museu de Turim. página 34 SEQÜÊNCIA 30 ção social e penal (BARATTA, 1983, p.146) Em síntese, pois, a aporia desta Criminologia consiste em que ela se declara como uma ciência causal-explicativa da criminalidade, exclui a reação social de seu objeto (centrando-se na ação criminal) quando é dela inteiramente dependente; ao mesmo tempo em que se apoia, aprioristicamente, numa noção ontológica da criminalidade. Assim, ao invés de investigar, fenomenicamente, o objeto criminalidade, este aparece já dado pela clientela das prisões e dos manicômios que constitui então a matéria-prima para a elabo- ração de suas teorias criminológicas, com base nas estatísticas oficiais. A coisificação da criminalidade produzida pelo paradigma etiológico comporta então, como reverso da medalha, uma grave conseqüência. Esta matéria-prima é obti- da e coincide, não se sabe em virtude de que harmonia preestabelecida, com o produ- to da reação social e penal a qual, segundo a hipótese de que parte este paradigma deveria ser indiferente para a existência do seu objeto de investigação, porque de existência ontológica. Chegamos, assim, a um ponto fundamental. A partir desta desconstrução epistemológica, fica claro como a Criminologia positivista, mesmo nas suas versões mais atualizadas (através da aproximação “multifatorial”) não opera como uma ins- tância científica “sobre” a criminalidade, mas como uma instância interna e funcional ao sistema penal, desempenhando uma função imediata e diretamente auxiliar, relati- vamente a ele e à política criminal oficial.20 Neste sentido, não apenas coloca seu próprio saber ( causal e tecnológico) ao serviço dos objetivos declarados do sistema, mas produz (e reproduz) o próprio discurso interno que os declara, avalizando, do ponto de vista da ciência, uma ima- gem do sistema que é dominada por esses objetivos. A sua contribuição para a raci- onalização do sistema é, sobretudo, uma contribuição legitimadora (auto-legitimação oficial). (BARATTA, 1983a, p.152) Verifica-se, desta forma, uma autêntica traição criminológica aos pressupos- tos epistemológicos do positivismo científico. 5 A Criminologia positivista como ciência do controle só- cio-penal: das promessas às funções latentes e reais Pois não se trata de “explicar” causalmente a criminalidade, mas de instrumentalizar e justificar, legitimando-a, a seleção da criminalidade e a estigmatização dos criminosos operada pelo sistema penal. E não se trata, igualmente, de “combatê-la”, porque a função do sistema é, precisamente, a de construí-la ou geri-la seletivamente. Com seu proceder, a Criminologia positivista contribui para mistificar os mecanismos de seleção e estigmatização ao mesmo tempo em que lhes confere uma justificação ontológica de base científica (uma base de marginalização 20.É por isso que o seu universo de referências é praticamente imposto pelo mesmo sistema e ela é obrigada a pedir-lhe a definição do seu próprio objeto de investigação. SEQÜÊNCIA 30 página 35 científica aos estratos inferiores). Contribui, igualmente, para a produção e reprodução de uma imagem estereotipada e preconceituosa da criminalidade e do criminoso vinculada aos baixos estratos sociais - que condiciona, por sua vez, a seletividade do sistema penal - num círculo de representações extraordinariamente fechado que goza - repita-se - de uma secular vigência no senso comum em geral e nos operadores do sistema penal em particular. Ao definir-se, pois, como ciência causal-explicativa a Criminologia positivista oculta o que na verdade sempre foi: uma “ciência do controle social” (ANYAR DE CASTRO, 1987, p. 22-32) que nasce como um ramo específico da ciência positivista para instrumentalizá-lo e legitimá-lo .21 Tal contributo legitimador é destacado por PAVARINI (1980, p.49-54) ao assi- nalar que” foi precisamente pela aportação determinante do positivismo criminológico que o sistema repressivo se legitimou como defesa social. O conceito de defesa social tem subjacente uma ideologia cuja função é justificar e racionali- zar o sistema de controle social em geral e o repressivo em particular. (...)A defesa social é portanto uma ideologia extremamente sedutora, enquanto é capaz de enri- quecer o sistema repressivo (vigente) com os atributos da necessidade, da legitimi- dade e da cientificidade.” Conseqüentemente, a sobrevivência secular desta Criminologia e suas represen- tações da criminalidade, na ciência e no senso comum, para além de sua desconstrução epistemológica, se explica pelo cumprimento de outras funções latentes e reais, distintas das prometidas. Eis aí o fascínio pelo qual saiu da academia para ganhar as ruas e legiti- mar o sistema penal, em uma palavra, como ciência do controle social. Bibliografia ALVAREZ G., Ana Josefina. El interacionismo o la teoria de la reaccion social como antecedente de la criminologia crítica. In: ALVAREZ G., Ana Josefina et al. Criminologia Crítica. México: Universidad Autónoma de Querétaro, 1990, p.15-31. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática e sistema penal: em busca da segurança jurídica prometida. Florianópolis, 1994. Tese (Doutorado em Direito) - Curso de Pós-Gradução em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, 1994. 504p. ANYIAR DE CASTRO, Lola . Criminologia de la Liberación. Maracaibo:Universidad de Zulia,l987. BARATTA, Alessandro.Criminologia y dogmática penal: pasado y futuro del modelo integral de la ciencia penal. In:MIR PUIG, Santiago et al. Política criminal y reforma del derecho penal. Bogotá: Temis, 1982a. p. 28-63. ______.Observaciones sobre las funciones de la cárcel en la producción de las relaciones sociales de desigualdad. Nuevo Foro Penal. Bogotá, n.15, p.737-749, jul./set. 1982b. ______.Criminologia crítica y crítica del Derecho penal: introducción a la Sociologia jurídico- penal. Tradução por Alvaro Bunster. México: Siglo veintiuno, l991a. 21. A respeito ver também BUSTOS RAMIREZ in BERGALLI e BUSTOS RAMIREZ, 1983b, p.17; OLMO,1984; PAVARINI, 1988; TAYLOR, WALTON e YOUNG, 1990; BERGALY e BUSTOS RAMIREZ, 1983a 385 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais aceito pela sociedade? Possível resposta: Porque diferencia o “nós” e o “eles”. Além disso, visa alertar que, muito possivelmente, em decorrência dessa seletividade penal criada pela mídia e aceita pelo senso comum, eleva-se a crença da prisão como única alternativa para estabelecer a segurança pública e a ordem, vez que nada mais eficaz do que uma pena privativa de liberdade para afastar “eles” do convívio social. A expressão “eles”, utilizada no presente artigo, está embasada na ideia de Eugenio Raúl Zaffaroni, no seu livro “A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar”. Neste texto, quando o referido autor se utiliza de tal expressão durante a abordagem do tema da criminologia midiática, quer sustentar o posicionamento de que essa criminologia, que segundo suas palavras se diferenciam substancialmente da criminologia acadêmica4, pretende criar uma realidade onde existam pessoas boas, que somos nós, expectadores, vulneráveis a “‘eles’ como um todo: uma massa criminosa de ‘diferentes’5”. Posto isso, a exploração da temática da mídia e da seletividade do sistema penal adota o método de abordagem dedutivo, haja vista que parte de considerações gerais a fim de aplacar elementos específicos, não obstante cabe aludir também a adoção dos métodos de procedimento monográfico e da técnica de pesquisa de bibliografia indireta, todos convergindo para uma construção teórico-crítica do tema. 1 Teoria do Labeling Aproach (ou “etiquetamento”) Pensar é um ato intrínseco à própria condição humana, processo intrapsíquico que engloba todos os sentimentos, valores, concepções, crenças e a consciência6. Portanto, o 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 303. 5 Eis o entendimento do referido autor na íntegra: “A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas decentes frente a uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. O eles da criminologia midiática incomodam, impedem de dormir com as portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e por isso devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos os nossos problemas. Para tanto, é necessário que a polícia nos proteja de suas ciladas perversas, sem qualquer obstáculo nem limite, porque nós somos limpos, puros e imaculados”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 307. 6 O termo foi aqui utilizado no sentido freudiano, ou seja, como ato psíquico que tem a noção da realidade do nosso meio ambiente imediato, que permite enxergarmos nossa presença no mundo com os outros e assim reconhecer atributos essenciais. Ver A Teoria Freudiana da Consciência, por Gilberto Gomes, Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ptp/v19n2/a03v19n2.pdf>. Acesso em 10 de abr. 2013. 386 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais ato de pensar está num espaço de plena liberdade de desenvolvimento intelectivo, espaço personalíssimo, secreto, privado. Todavia, o homem, como um ser essencialmente social, tende agrupar-se comunitariamente, acercar-se do outro, instituir com o seu semelhante uma convivência e coexistência comunicacional7, ambiente de concretização do pensar em expressão real. Nós nos relacionamos com o semelhante, pois o nosso ser só será perceptível se for refletido na presença dos outros. A formação da nossa personalidade e da nossa própria história depende das experiências reais com os outros. O “eu” só poderá indicar a individualidade do seu ser, se existir ao seu lado a alternatividade do “nós”8, é dizer, o “eu”, para que exista e se desenvolva enquanto ser, necessita da convivencialidade comunitária. Dessa forma, as relações intersubjetivas são marcadas pela superação da natureza puramente natural e instintiva do homem por uma natureza social, ou seja, o homem se relaciona e age como membro de uma coletividade e, como tal, expressa seu pensamento. Nesse contexto de inteligência, o ato de pensar se inter-relaciona com a natureza social intrínseca ao ser humano, e o interesse em propagar o próprio pensamento e conhecer o pensamento do outro passa a ser algo, não só genética e biologicamente, como comunitariamente natural. Tal interesse torna os homens sujeitos dialéticos que dialogam entre si, instituem necessárias relações comunicacionais, vias de mão dupla, de reciprocidade, de percepção, enfim de manifestações do pensar. Por outras palavras, o diálogo comunicacional entre os indivíduos é algo concreto, externado por algum meio, que ultrapassou os limites daquele espaço personalíssimo antes mencionado9. Em síntese, pode-se afirmar que a opinião nada mais é do que um “[...] movimento do pensamento de dentro para fora; é a forma de manifestação de pensamento, resume a 7 TZITZIS, Stamatios, Filosofia penal, tradução de Mário Ferreira Monte, Legis, 1999. p. 82. 8 TZITZIS, Stamatios, Filosofia penal, tradução de Mário Ferreira Monte, Legis, 1999. p. 81. 9 Nesse sentido é possível sustentar que a liberdade de expressão possui uma dimensão substantiva e outra instrumental. Como afirma Machado, “… deve-se sublinhar a dupla dimensão deste direito. A dimensão substantiva compreende a actividade de pensar, formar a própria opinião e exteriorizá-la. A dimensão instrumental, traduz a possibilidade de utilizar os mais diversos meios adequados à divulgação do pensamento.” MACHADO, Jônatas E. M.. Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002. p. 417. 387 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais própria liberdade de pensamento, encarada, aqui, como manifestação do fenômeno social”10. Feita essa introdução sobre a formação de opinião, o presente trabalho objetiva salientar os efeitos da criminologia midiática sobre a população brasileira no tocante à reprodução de ideias equivocadas e preconceituosas sobre o sistema penal. Esse fenômeno dá-se, principalmente, pela “fabricação dos ‘estereótipos do criminoso’.”11 A seletividade dos estereótipos pode se dar pela “observação das características comuns à população prisional”, por exemplo. De acordo com Eugenio Raúl Zaffaroni, “estes estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de fora outros tipos de delinquentes (delinquência de colarinho branco, dourada, de trânsito, etc.).”12 Porém, antes de adentrar na crítica sobre o assunto, imprescindível fazer uma breve análise sobre a Teoria do Labeling Approach, conhecida também como “teoria do etiquetamento”. Essa teoria difere-se da criminologia tradicional, vez que esta se preocupa em investigar questões sobre quem é o criminoso, como se torna um desviante ou porque reincide. Já a teoria do labeling approach, teorizada por autores interacionistas, questionam “‘quem é definido como desviante’?, ‘que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo’?, ‘em que condições esse indivíduo pode se tornar um objeto de definição?’ e, enfim, ‘quem define quem?’.”13 De acordo com Alessandro Baratta, os teóricos precursores dessa teoria, quais sejam, Howard S. Becker, Edwin M. Lemert e Edwin M. Shur, apontaram a pesquisa em duas direções: uma para a análise da formação da “identidade” desviante, bem como para definir o “desvio secundário”, o que consiste no efeito do etiquetamento de “criminoso” à pessoa que recebe essa etiqueta; e outra em investigar o que constitui o “desvio” como 10 CALDAS, Pedro Frederico. Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral. São Paulo, 1997. p. 59. 11ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 130. 12ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 130. 13 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p 88. 390 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais Atualmente, os meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, são, infelizmente, os principais formadores de opinião da coletividade. Com base nas (des)informações exploradas fortemente pela mídia, observada aquela vis atrativa antes mencionada, a maioria das pessoas se imaginam como legitimadas a abordar questões de ordem penal, processual penal, bem como de política criminal. Tendo em vista que o “produto” crime e o sensacionalismo produzem entretenimento, fato este que eleva os níveis de audiência, configura-se tal prática como altamente rentável, por isso, se encaixando perfeitamente na atuação empresarial e lucrativa desenvolvida pela imprensa privada. Dessa forma, a mídia acaba configurando parte integrante do exercício de poder do sistema penal, pois tem o poder de criar o punitivismo popular (ou como aduz recente obra doutrinária o "populismo penal midiático")24, vez que impõe uma forma de analisar os problemas sociais de uma forma muitas vezes exacerbada. Com isso, é responsável por criações legislativas “às pressas” que vão totalmente de encontro com as garantias constitucionais. Segundo Zaffaroni, a comunicação produzida pela mídia no que tange a fatos criminosos se configura numa espécie de “criminolgia midiática”. A “criminologia midiática” atual tem como principal meio técnico a televisão para propagar o discurso do neopunitivismo. Na visão desse jurista, os críticos mais radicais e precisos sobre a televisão são Giovani Sartori e Pierre Bourdieu. Afirma que “para Bourdieu a televisão é o oposto da capacidade de pensar, enquanto que Sartori desenvolve a tese de que o homo sapiens está se degradando para um homo videns por culpa de uma cultura exclusivamente de imagens”25. De acordo com Pierre Bourdieu, a televisão é o meio mais eficaz na tarefa de deformar a opinião da maioria da população, o que a distancia das informações que são realmente essenciais para o exercício da democracia. Vejamos seu pensamento na íntegra. Há uma proporção muito importante de pessoas que não lêem nenhum jornal; que estão devotadas de corpo e alma à televisão como fonte única de informações. A televisão tem uma espécie de monopólio de fato sobre a formação das cabeças de uma parcela muito importante da população. 24 GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013. 25 ZAFFARONI. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 305. 391 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais Ora, ao insistir nas variedades, preenchendo esse tempo raro com o vazio, com nada ou quase nada, afastam-se as informações pertinentes que deveria possuir o cidadão para exercer seus direitos democráticos26. Sendo a televisão o único meio de acesso à informação pela parte majoritária da população, forma-se o grande perigo, pois esse meio de comunicação em massa, traz um conteúdo pronto, não deixando margem às críticas, a evolução do pensamento. Não se pode perder de vista que a mídia, através da imagem, tem o poder de criação de uma realidade já posta e acabada. De acordo com Bordieu, “a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam o efeito do real, ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver”27. Partindo da premissa da necessidade de atingir lucro, os meios de comunicação realizam um processo de seletividade do que deve ser informado e agregam contribuições decisivas sobre a informação de forma transformá-la em algo ainda mais atrativo, de forma que, esse processo de seleção se sustenta na busca do “sensacional, do espetacular”28. Na verdade, muitas vezes, o discurso é de um oferecimento de informação, mas que, efetivamente é mera opinião, nada técnica, sem qualquer fundamentação e que atende interesses bem claros. Diante disso, cria-se um punitivismo quase impossível de ser desmistificado, criando uma ideia totalmente distorcida da realidade criminal principalmente, gerando uma vontade de punir a qualquer custo. Observe-se a gravidade disso. A manipulação da notícia em busca de audiência cria uma espécie de política criminal cujas bases teóricas são bem conhecidas29. Com relação aos efeitos da criação desse punitivismo, Zaffaroni defende o seguinte posicionamento: (...) são os meios de massa que desencadeiam as campanhas de ‘lei e ordem’ quando o poder das agências encontra-se ameaçado. Estas campanhas realizam-se através da ‘invenção da realidade’ (distorção pelo aumento de espaço publicitário dedicado a fatos de sangue, invenção direta de fatos que não aconteceram), ‘profecias que se auto-realizam’ (instigação pública para a prática de delitos mediante metamensagens de ‘slogans’ tais como ‘a impunidade é absoluta’, os menores podem fazer qualquer coisa’, ‘os presos entram por uma porta e saem pela outra’, etc; publicidade de novos métodos para a prática de delitos, de facilidades, 26 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 23-24. 27 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 28. 28 BOURDIEU, Pierre, Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 25. 29 Já tivemos oportunidade de mencionar que a cultura do castigo e da vingança legitimam certos discursos e práticas. 392 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais etc.). ‘produção de indignação moral’ (instigação à violência coletiva, à autodefesa, glorificação de ‘justiceiros’, apresentação de grupos de extermínio como ‘justiceiros’, etc.)30. Porém, o que há de mais perigoso nessa atividade da “criminologia midiática”, consiste na construção do “estereótipo do criminoso”, ou seja, na seletividade de quem são os criminosos perigosos na “comunidade”31. De acordo com o Zaffaroni, “na América Latina, o estereótipo sempre se alimenta das características de homens jovens das classes mais carentes (...).”32. Dessa forma, o sistema penal operacionaliza uma atuação seletiva, com fulcro nos estigmas já estabelecidos, o que acaba por deixar inerte determinadas espécies de indivíduos que violam a legislação penal33. Ainda, porém em obra diversa, explica o autor acima referido que a criminologia midiática “joga com imagens, selecionando as que mostram os poucos estereotipados que delinquem e em seguida os que não cometeram crimes ou que só incorreram em infrações menores, mas são parecidos”34. Não bastasse isso, consolidada a seletividade, aponta o autor que surge o exercício de “futurologia” aplicada a “eles”, que consiste geralmente em um adolescente de um bairro pobre: A mensagem é que o adolescente de um bairro precário que fuma maconha ou toma cerveja em uma esquina, amanhã fará o mesmo que o parecido que matou uma velhinha na saída de um banco e, portanto, é preciso isolar a sociedade de todos eles35. 30 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 129. 31 “Comunidade significa mesmice, e a ‘mesmice’ significa a ausência do Outro, especialmente um outro que teima em ser diferente, e precisamente por isso capaz de causar surpresas e prejuízos. Na figura do estranho (não simplesmente o ‘pouco familiar’, mas o alien, o que está ‘fora do lugar’), o medo da incerteza, fundado na experiência da vida, encontra a largamente procurada, e bem-vinda, corporificação. (...) Dada a intensidade do medo, se não existissem estranhos eles teriam que ser inventados. E eles são inventados, ou construídos, diariamente: pela vigilância do bairro, pela tevê de circuito fechado, guardas armados até os dentes. A vigilância e as façanhas defensivas/agressivas que ela engendra criam o seu próprio objeto. Graças a elas, o estranho é metamorfoseado em alienígena, e o alienígena, numa ameaça”. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 104-105. 32 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 131. 33 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 130. 34 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 307. 35 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 307 395 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais mais quando temos que ver nossas próprias falhas que nos identificam com “eles”. Ficamos indignados diante de qualquer solução que não consiga prometer efeitos rápidos, fáceis de atingir, exigindo em vez disso um tempo longo, talvez indefinidamente longo, para mostrar resultados. Ainda mais indignados ficamos diante de soluções que exijam atenção às nossas próprias falhas e iniquidades, e que nos ordenem, ao estilo de Sócrates, que “conheça-te a ti mesmo!”. E abominamos totalmente a ideia de que, a esse respeito, há pouca diferença, se é que há alguma, entre nós, os filhos da luz, e eles, as crias das sombras 44 . Seguindo nesse pensamento, pode-se concluir que atualmente, as prisões consistem em “mecanismos de gestão da miséria e dos grupos inconvenientes representados pelos mal-adaptados e desajustados sociais”45. Além da criminologia midiática influenciar as pessoas que não detém o conhecimento jurídico, os variados órgãos do Poder Judiciário acabam cedendo às pressões punitivistas de uma população que não tem qualquer conhecimento da realidade penal que enfrentamos. Dessa forma, de acordo com Salo de Carvalho citando Nancy Gertner, “a conclusão é irônica: aqueles que possuem a informação sobre os infratores – os juízes – enfrentam extraordinária pressão por aqueles que não possuem – o público”46. Diante desse desagradável “pensar” imposto pela mídia e aceito pela sociedade, o único viés para alterar tal concepção, na opinião de Eugenio Raúl Zaffaroni, não seria a censura, “pois toda censura inclusive fora de qualquer hipótese se massacre, é um elemento sempre à mão do primeiro massacrador que apareça”47, mas sim por meio de uma mudança cultural e com maior comunicação. De forma mais precisa, é necessário que, por meio da cultura de da comunicação, possa haver uma ressignificação da criminalidade. Nas palavras do autor: as faltas éticas na comunicação não são resolvidas com censura, mas sim com maior comunicação. (...) A arte autêntica é um instrumento insuperável que facilita a compreensão do outro, justamente a que o preconceito obstrui. A criminologia cautelar deve dialogar com artistas, pois são eles que podem contribuir muitíssimo para a modificação do para 44 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 149. 45 CARVALHO, Salo de. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiado da Aplicação da Pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 29. 46 CARVALHO, Salo de. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiado da Aplicação da Pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 246. 47 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 515. 396 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais o quê das coisas, para ressignificá-las, ou seja, para mudar o mundo entendido como conjunto de significados 48 . Diante do acima exposto, pode-se concluir que infelizmente, através da criminologia midiática e de nenhum esforço de quem detém o conhecimento para afirmar o contrário, formou-se uma sociedade “majoritariamente convencida de que, prendendo aceleradamente pobres e negros, está no caminho certo para reduzir a violência e fazer justiça”49. CONCLUSÃO No entendimento ora firmado, pode-se chegar a conclusão de que o discurso da criminologia midiática, apesar de ser, na maioria da vezes, equivocado, punitivista e seletivo, é aceito facilmente pela população pois faz essa nítida diferenciação entre pessoas “boas” e “más”. Essa criação de “eles” e “nós” deriva de uma construção social que pode ser verificada a partir da já referida Teoria do Etiquetamento (ou Labeling Approach), a qual se destina à identificação e caracterização das condutas desviantes, tendo como consequência a alteração na própria identidade do indivíduo. E para tanto, utiliza-se principalmente a televisão, sendo este meio o principal formador de opinião, por trazer um conteúdo já construído, “pronto e acabado”, estreitando bastante a possibilidade de pensar mais criticamente sobre o assunto. Como consequência, acaba-se por propagar ainda mais o discurso punitivista, fazendo com que a população enxergue como única alternativa para resolver os problemas da criminalidade a prisão, pois consiste no meio mais eficaz para afastar as pessoas etiquetadas e indesejáveis do convívio com a sociedade e com as pessoas “honestas”. Como mencionado anteriormente, Eugenio Raúl Zaffaroni, principal inspirador do presente trabalho, propõe uma mudança cultural de pensamento, que poderia ser alcançado somente com mais informação, com dados verdadeiros sobre a criminalidade, e não com limitação da mídia que poderia consistir em uma censura que não levaria a lugar 48 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 516; 518. 49 SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: Pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 11. 397 ISSN 2238-9121 04, 05 e 06 jun / 2013- Santa Maria / RS UFSM - Universidade Federal de Santa Maria Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede http://www.ufsm.br/congressodireito/anais algum. Ou seja, a mídia poderia servir a outro papel que não o de formar opiniões, mas sim de realmente informar, por fontes legítimas e sem interesses diversos, como políticos. Dito isso, a opinião dos presentes autores parece convergir para que qualquer mudança cultural no sentido de afinar comportamentos evoluídos e adequados ao momento histórico que se vive é sempre um caminho aceitável. No entanto, sabe-se que tal mudança depende de uma conscientização coletiva alongada no tempo e desprovida de efetividade imediata. REFERÊNCIAS BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no Capitalismo Tardio. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt. Acesso em 09 de abr. 2013. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. _____. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. _____. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. CALDAS, Pedro Frederico. Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral. São Paulo, 1997. CANTERJI, Rafael Braude. Política Criminal e Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. CARVALHO, Salo de. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiado da Aplicação da Pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988. GOMES, Gilberto. A Teoria Freudiana da Consciência. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ptp/v19n2/a03v19n2.pdf>. Acesso em 10 de abr. 2013. GOMES, Luiz Flávio; ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013. MACHADO, Jônatas E. M.. Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002. ser preso e quem deve ser solto, separando o “eles” do “nós”, salientando que os presos são sempre os mesmos: os pobres e negros. Sim, o homem ao criar uma lei, etiqueta o que é ou não aceitável na sociedade... Se assim não o fosse, estaríamos em estado selvagem, na lei do mais forte... como os animais, que não conhecem propriedade ou fronteiras, e só o descobrem quando são mortos por invadir o território do animal mais forte... Nós delegamos a força ao Estado, e este legisla para que haja normas mínimos de convivência em sociedade... Matar, por exemplo, é punido, e todos nisso concordam, e ainda mais severamente deve ser punido se a morte foi por motivo fútil... mas o mesmo matar não poderá ser punido de forma alguma se por legítima defesa... essa é a lei, que toda a sociedade sanciona como justa. Mas criar uma lei pensando especificamente em um grupo de pessoas? Será? Será que realmente o legislador tem isso em mente quando promulga uma lei penal? Será que um grupo de deputados se reúnem e deliberam qual vai ser a lei que vai ferrar ainda mais com a vida do pobre e do negro? Sim, por certo é que certos crimes têm maiores incidências na sociedade mais carente e de predominância afro- descendente, isto as estatísticas são inegáveis... Entretanto, ao se verificar os índices de educação dessas pessoas, poucas ou sequer uma delas concluiu o ensino médio, e isso sim, tem maior relação direta com a criminalidade do que a cor ou camada social. Se as leis fossem somente para negros e pobres, a condenação de Suzane Richthofen, que, era de uma classe social alta, sendo loiríssima, de aparência agradável, diga-se de passagem, todavia, apesar da lei lhe garantir o cumprimento de regime semiaberto, todos os pedidos foram negados, pela pressão da sociedade, que não tolera mais crimes desse tipo, não importa se é autor ou autora, negro ou branco, pobre ou rico. Tanto Andrade (2013?) quanto Dias, Dias e Medonça (2013) inferiram que o sistema penal é seletivo... que pobres e negros são os que são presos.... Se é seletivo ou não, talvez precise de maiores análises ante ao crivo dos argumentos expostos acima... Mas em um aspecto eles estão certos: o sistema penal é falho, e ninguém se importa com isso... Mas querendo ou não, é o melhor que há até agora, ou até que outro modelo seja proposto (prisões privadas? Leis penais mais rígidas?)... Até lá... é preciso haver seletividade... uma seletividade bem maior, bem mais rigorosa... mas não seletividade de criminosos como tem sido feito... mas uma seletividade de políticos!! Políticos decentes! A discussão começa por aí... 2 2 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Vera Regina de. Do Paradigma Etiológico ao Paradigma da Reação Social: Mudança e Permanência de Paradigmas Criminológicos na Ciência e no Senso Comum. (2013?) - Demais dados bibliográficos não concedidos para análise do texto. DIAS, Fábio Freitas; DIAS, Felipe da Veiga, MEDONÇA; Tábata Cassenote. Criminologia Midiática e a Seletividade do Sistema Penal. (2013) - Demais dados bibliográficos não concedidos para análise do texto. 3
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