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Guias e Dicas
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Caio Fábio - Nephilim doc, Notas de estudo de Atualidades

Nephilim, literatura cristã,

Tipologia: Notas de estudo

2016
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Compartilhado em 24/02/2016

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rildo-nobrega-7 🇧🇷

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Baixe Caio Fábio - Nephilim doc e outras Notas de estudo em PDF para Atualidades, somente na Docsity! CAIO FÁBIO NEPHILIM Razão Cultural 2000 Caio Fábio Caio Fábio D'Araújo Filho é amazonense, nascido em Manaus. Cresceu próximo às grandes florestas e aprendeu a amá-las e respeitá-las. Mudou-se para o Rio de Janeiro com a família na adolescência e, depois da extraordinária conversão cristã que seu pai experimentou, voltou ao Amazonas na companhia dos pais e irmãos. Aos 18 anos, depois de um período de grandes aflições existenciais, veio a ter um encontro com a fé de seus pais, o que mudou radicalmente sua vida. De hippie sem causa, passou a ser conhecido como o pregador da juventude. Casou-se aos 20 anos e logo foi pai. Foi ordenado ministro presbiteriano no ano seguinte, quando escreveu seu primeiro livro. Sua ascensão foi súbita. Logo estava nas televisões e jornais do norte do país em razão das multidões que se reuniam para ouvi- lo em teatros, estádios, ginásios, praças e grandes templos. Após dois anos de pregações, Caio Fábio já era reconhecido como o melhor orador sacro do norte do país. Pouco tempo depois, tornou-se conhecido em rodo o Brasil e veio a ser considerado a voz mais lúcida, provocativa, criativa e desestabilizadora do chamado meio evangélico, chegando, apesar disso, a ser visto como unanimidade entre os protestantes. Caio Fábio diz que sua carreira foi terrivelmente atingida a partir do conflito público ao qual deu face contra algumas práticas religiosas com as quais não concordava. Daquele momento em diante, deixou de ser uma figura do mundo religioso e passou a ser visto como um homem público cujas ações transcendiam os interesses da Igreja. Amante de causas sociais, Caio Fábio fundou várias organizações com a finalidade de diminuir o drama dos menos favorecidos. Sua maior obra, a Fábrica de Esperança, chegou a atender mensalmente, por vários anos consecutivos, a mais de vinte mil jovens e adolescentes e foi considerada a maior obra social não- governamental da América Latina. Além disso, pelas campanhas e movimentos que se iniciavam no Rio de Janeiro e depois se espalhavam por todo o país, foi um dos mais marcantes líderes de movimentos civis na década de 1990 em todo o Brasil. Empreendeu muito, também, na área de comunicação, tendo fundado a Vinde TV, a Revista Vinde e dirigido vários outros impressão de uma das muitas formas de existir e conhecer a existência que os humanos possuem, mas que foi em nós atrofiada por algo que na linguagem teológica se chama de a queda. Sobretudo, se saberá que, assim como profetas visitam o que será, também podem visitar o que já foi, pois, no espírito, o que é, é; porque passado, presente e futuro nada mais são que expressões daquilo que é, e habita o interior dos seres humanos. Maria Flor de Cristo Dar-vos-ei coração novo e porei dentro em vós espírito novo; tirarei o coração de pedra e vos darei coração de carne. Profeta Ezequiel Despediu-se da esposa e dos filhos enquanto era empurrado para dentro daquele lugar intermediário, onde a vida e a morte alternavam cumplicidades. No coração, acreditava que não escaparia. Quando os procedimentos tiveram início, mergulhou em escuridão abissal e, numa fração de tempo que não sabia definir, abraçou a si mesmo e entregou seu espírito. Era o dia 28 de abril de 1998. Quando despertou, soube que o transplante havia sido um sucesso. Dentro dele, entretanto, havia a sensação de que aquela realidade para a qual voltara já não era a mesma que tinha deixado. De volta ao seu país, Abellardo encontrava os amigos e contava como estava se sentindo: - Às vezes, eu penso que o transplante foi de alma - dizia. Sentia que havia uma outra energia pulsando nele de modo latente. Era como se estivesse possuído por um mundo de sentimentos e intuições que não conseguia associar a nada que fizesse sentido no seu mundo; e como se o coração que agora nele habitava tivesse sua própria agenda emocional e não abrisse mão de praticar seus próprios ricos interiores. Impondo alegria, quando ele estava triste; tristeza, quando ele estava alegre; ou antipatia, quando ele sabia e sentia que estava sendo bem-tratado. E mais: ele não agüentava inebriar-se com cheiros que antes ignorava, balançar-se gostosamente ao ritmo de músicas que antes não apreciava, reconhecer beleza interior em homens nos quais antes só via músculos, desejar comer comidas estranhas que jamais fizeram parte de seu cardápio, e, sobretudo, viajar para regiões remotas pelas quais jamais se interessara antes. Além disso, Abellardo Ramez II sentia que sua visão da vida mudara, dando-lhe a impressão de que este mundo estava sendo habitado, ao mesmo tempo, pelo passado, presente e futuro. Queria uma resposta. Por isso, leu. Leu muito. Num único livro encontrou centenas de narrativas idênticas ao que sentia e também muitos outros relatórios científicos que davam conta do mesmo fenômeno: atribuíam ao coração não apenas o papel de bomba de sangue, mas o de detentor de memórias emocionais mais profundas, em estado bruto, não-elaboradas e filtradas pelas censuras exercidas pelo cérebro. Inconformado com sua situação viajou outra vez à terra de Merlin, onde sofrera o transplante. Lá, com a ajuda do Doutor Isaak Harbour - um dos médicos que o operara -, descobriu quem era a pessoa que lhe doara o coração. Ao aproximar-se da rua onde a doadora vivera, começou a sentir impulsos estranhos lhe visitando a alma. Olhou para um parque e sentiu paixão, como se naquele lugar, um dia, tivesse namorado. Viu um cachorrinho andando pela calçada e teve desejo de parar para trazê-lo ao colo, pois o animal lhe correu ao encontro fazendo-lhe com o rabinho saudações de intimidade. Contemplou um jardim florido e chorou, como se nele tivesse um dia meditado. Parou, enfim, quase sem precisar confirmar o endereço, diante da porta de uma casa que seu coração chamou de lar. Então bateu palmas, mas era como se não precisasse. Quando um homem de pele escura e cabeça embranquecida abriu a porta, subiu-lhe ao coração um desejo enorme de saltar- lhe nos braços e chamá-lo de pai. - Desculpe. Meu nome é Abellardo Ramez II. Vim até aqui porque recebi o coração de sua filha. O homem convidou-o a entrar e pediu licença para também chamar sua esposa. Uma senhora entrou na sala e olhou para ele. - O que é, é. Isto é tudo e tudo é - disse ela. - O que é isto? Que coisa interessante! - Não sei. Mas nossa filha sempre dizia isto. - Desde a operação que essa frase não me sai da cabeça. Os pais de Verônica eram calmos e sutis. Eles contaram a Abellardo as grandes marcas da vida da filha. As histórias eram assustadoras. Era como se o que diziam fosse tudo o que vinha sentindo nos últimos meses. O que mais o impressionou, no entanto, foi saber que a filha deles sonhava muito e, às vezes, acordava sem certeza se o que vira no sonho era fantasia ou realidade, de tão nítidas que eram aquelas produções noturnas. Ela afirmava que em sonhos visitava lugares e épocas diferentes da história. E dizia que se pudesse mudaria seu nome para Maria Flor de Cristo. - Verônica! Vero-ícone. Imagem verdadeira. É lindo o nome! E é disto que preciso: de uma imagem verdadeira! Então contou aos pais da moça o que lhe vinha acontecendo. Depois, agradeceu a atenção que lhe haviam dispensado e despediu-se. - Ela gostava muito do livro de Enoque! - O quê? Não entendi! - Ela lia o livro de Enoque! - repetiu a mãe de Verônica em tom mais alto, pois Abellardo já estava dentro do carro. Ele acenou para eles e partiu. Ao voltar para casa as coisas não melhoraram. As angústias continuavam e ele já não conseguia mais se sentir produtivo. Trabalhava, mas nada tinha significado para ele. Muitos notavam que havia uma grande mudança acontecendo em sua vida. Mas ninguém sabia o que era e nem como ajudá-lo. Na sua esquisitice e proximidade distante de tudo, Abellardo percebeu que a melhor coisa a fazer era voltar a sua terra natal e tentar se reencontrar. Assim, decidiu voltar à Amazônia! Propôs à família que fizessem aquela viagem juntos, mas percebeu que aquilo não era possível. Todos tinham suas próprias vidas e já não eram crianças para que ele os levasse de um lado para o outro. Sentindo a ansiedade crescer, decidiu que era hora de partir. Como não soubesse o que iria acontecer, escreveu uma carta aos filhos, parentes e amigos, entregou-a à esposa, fez uma cópia para si mesmo e partiu, sem prazo para retomar. N o fundo, um sentimento apocalíptico o possuía. O mundo, conforme ele o conhecera até então, iria acabar. Estranhamente, ninguém que ele amava morreria. Mas ele jamais seria naquele mundo quem um dia fora. Seria apenas um pouco do alguém de outrora, mas com outra face. Assim foi para o aeroporto e partiu sem dizer exatamente para onde ia, e sem a certeza se jamais nunca antes, no nosso comportamento. Acho que aquele negócio dos anjos quererem se misturar com a carne foi até mais profundo que se imagina. - Em que sentido aquela queda pode ter sido mais profunda do que se pensa, Abellardo? - Olha João, no Livro dos Começos, se diz que algo assustador aconteceu depois da segunda queda de anjos. "E viu Deus que o caminho de todo ser vivente se havia corrompido sobre a Terra." E isto só é dito depois da queda dos anjos, que se misturaram com a carne humana. E então o Dilúvio foi anunciado. Interessante, não é mesmo? - Muito. Mas será que achamos interessante pelas mesmas razões? Por que você acha interessante? - Olha João, o fato de os anjos possuírem as mulheres foi uma tentativa de encarnação. E encarnação só a do Nome, que é Emanuel e significa Deus conosco. No caso da segunda queda, acabou sendo os demônios conosco. Talvez, por isto, a frase O Nome veio em carne para destruir as obras do diabo seja tão crucial no mundo dos espíritos. Quando Abellardo fez este comentário, João Passarinho se inquietou. Pediu licença e se ergueu. Andou até o meio do avião, pediu água, bebeu e retornou meio pálido ao seu assento. No entanto, ao voltar, não deu a Abellardo nem a chance de perguntar como ele estava, pois foi logo perguntando: - Mas escuta Abellardo! Você ainda lembra os nomes dos anjos que caíram e seus líderes? - Mas por que você quer saber João? Parece até aquelas brincadeiras de memória que a gente fazia. - Digamos que seja! Você se lembra dos nomes deles? - Eram os Vigilantes Universais. - E você lembra como eles caíram? - Claro. Eles foram santos até o dia em que seus chefes, Azazyel e Samyasa, se encheram de desejos pelas mulheres. Mas já falamos sobre isso antes de você se levantar. - Eu sei. Mas preciso falar. Olha, foi assim: uma estranha energia percorria seu ser quando viam as mulheres nuas, banhando-se, entretidas com sua própria beleza, acariciando os cabelos; ou quando ficavam perplexas com a beleza de suas faces refletidas nas águas em que se lavavam. - Meu Deus, João! Esse negócio entrou em você, cara. Você falou como se tivesse estado lá ou estivesse lendo um texto. Estranho. Parecia decorado! - E quem disse que não estive? Sei tudo sobre essa história, Abellardo. E decorado? Claro que é. De-cor-ado. Vem do cor- ação. - E o que mais você sabe João? - Sei que depois de verem as mulheres, eles já não vigiavam a criação. Só tinham olhos para as mulheres. - E o que eles fizeram para seduzi-las? Você lembra? - Ora, meu amigo Abellardo! Eu é que estava fazendo as perguntas. - Eu sei. Mas me diga. O que eles fizeram para seduzi-las? - Eles eram espíritos. Por isso, tiveram que usar seus poderes de materialização para serem vistos pelas mulheres. Eles tinham que ser o mais humanos possível naquelas aparições, como os anjos, quando querem, conseguem fazer. - Como diz o Livro dos Livros, eles estavam indo após outra carne e deixando o seu próprio domicílio. Ouvindo a narrativa de João, Abellardo recordou-se de muitos outros relatos de anjos que batalharam pelo povo de Deus, comeram manjares ao pôr-do-sol e experimentaram a condição dos humanos, ainda que temporariamente. Ele lembrava até que havia uma advertência para que se praticasse a hospitalidade, pois assim fazendo, muitos, sem o saber, poderiam estar hospedando anjos. - Depois de conhecer um anjo elas não queriam mais os homens, não é João? - Azazyel, Samyasa e os outros Vigilantes se tornaram irresistíveis. Eu não culparia as mulheres pela preferência. Anjo deve ser melhor! - É amigo. Então o mundo mudou assim na Terra como no céu! Olhando pela janela do avião, Abellardo então pensou que era incrível como as coisas dos céus mudam a Terra e, também, tragicamente, como as coisas da Terra podem provocar os céus, para o bem ou para o mal. E prosseguiu pensando com perplexidade em como os humanos se esquecem de coisas tão essenciais como essa. E mais: como poderia uma história tão tragicamente fascinante ter sido quase totalmente negligenciada pela humanidade?! - João, me diga: como você interpreta essa história? - Ora, Abellardo! Você sabe a história. Por que você quer que eu a interprete? - Não sei. Mas me conte, mesmo que seja um capricho meu. Dá pra ser? Então João disse que depois que os Vigilantes possuíram as mulheres formosas, a Terra se corrompeu. Na ânsia de aprofundar seu domínio erótico e hipnótico sobre as mulheres, os anjos trataram de descobrir outros meios de seduzi-las. Assim foi que desenvolveram perfumes extraídos de essências naturais que os humanos ainda não conheciam; com pedras, arrancadas do coração da terra, criaram jóias e adereços; desenvolveram músicas sofisticadas; construíram instrumentos musicais avançados; conceberam projetos arquitetônicos gigantescos e os materializaram como lugar de paixão, sedução e prostituição no meio da Terra. E falou também que os Vigilantes se especializaram na arte de extrair da terra raízes, cogumelos e outras ervas, de tal modo que misturadas, ou mesmo separadamente, criavam nos humanos, especialmente nas mulheres, as mais fantásticas e indescritíveis sensações. Elas passavam a sentir coisas de outro mundo. Seus olhos se abriam e seus sentidos se alteravam. A visão ficava meio dourada e a impressão das coisas se manifestava de modo arrebatado r e incontrolável. E uma sensação chamejante de vida dava ao corpo uma espécie de sede satisfeita. Como que experimentando o destravamento de sua própria memória, que agora era capaz de trazer à lembrança as coisas que sabia e que haviam ficado armazenadas em seu inconsciente, Abellardo o interrompeu: - Os seres que nasceram das relações sexuais entre anjos e mulheres eram gigantes e passaram a ser chamados de Nephilims, que significa aqueles que caíram - disse. - É amigo. O mundo enlouqueceu Abellardo! Dá pra imaginar? - Claro! As naturezas se misturaram. Era o começo da reengenharia das essências proibidas. - Era mais que isso, Abellardo! Muito mais. - Ainda não terminei, João. Eu ia dizer que era o primeiro ato de intervenção física da criatura nos estratos psicofísicos da criação. Como já falei, era também uma blasfêmia, uma tentativa de encarnação. - Por isso que é bom conversar com você. Você saca logo as implicações. Que saudade dos nossos papos de maluco. Que saudade, Abellardo! - Mas, João, isto é sério e não papo de maluco. A existência se abriu para ser reproduzida contra a natureza das espécies criadas. E o que surgiu nessa recriação era o que não poderia ser e, portanto, era sem ser... - Do que você está falando, Abellardo? - É que estou vendo como corpo e espírito só se casam na capela da alma. Sem alma, um ser que é corpo e espírito está fadado a existir rachado e descasado de si mesmo para sempre. - Isto é profundo, cara. Vou pensar nisto. "A capela da alma." Que coisa! - Se bem me lembro, João, o livro de Enoque diz que os Nephilims se tornaram seres angustiados e dominadores. - Claro. Eles eram muito mais fortes, inteligentes e cultos em sua ciência. - Isso só explica o fato de serem dominadores. Mas eram também angustiados, perdidos dentro de si mesmos. - É natural. Eles eram possuídos pela dor de ser quase anjos e quase humanos. - Então, você justifica o fato deles terem se tornado os grandes déspotas daquele período histórico, "varões de renome em toda a Antigüidade"? - Sua memória é impressionante. Pegue. Fique com o livro. Meu amigo Cedros disse que eu poderia dar o livro a quem tivesse alma. E nunca se esqueça disso: "Se é absurdo, então é bem possível”. - Não creio nisto! - Em que você crê, então? - Os impossíveis dos homens são possíveis para Deus! Nisto eu creio. - Cedros me disse que essa era uma outra versão, mas que era uma forma antiquada. Seja como for, fique com o livro. - Quem é Cedros? - Hum? O quê? - Quem é Cedros? - Um gigante, meu amigo! Um gigante! - Como assim, João? - Nada, querido Abellardo! Só força de expressão! Abellardo ouviu aquilo mas não deu importância. Fixou O olhar na face de João Passarinho e depois o abraçou. Foi quando avisaram que estavam pousando na capital de rodas as florestas. O Caboclo Isaac Porto Não desprezeis os pequeninos, pois nos céus o seus anjos vêem a face de meu Pai. O Nome Ao chegarem, Abellardo despediu-se de João Passarinho e partiu sozinho rumo a Itacoatiara, a 220 quilômetros de distância. Quando lá chegou, procurou por um amigo chamado Tibério e dele recebeu indicação para contratar um tal de Isaac Porco, que era dono de um barco confortável, com capacidade para viagens mais longas, inclusive por rios ocultos - alguns, ele sabia, até fora dos mapas oficiais. Abellardo desejava realizar a mesma viagem que seu avô havia feito quando também partira em busca de si mesmo. Abriu o velho mapa do avô e mostrou a direção na qual deseja navegar. Isaac Porto era um homem de meia-idade, magro, quase alto, de rosto fino e cabeleira farta. Não era bonito, mas possuía uma espécie de charme primitivo, pois era cheio de histórias e tinha grande capacidade de se comunicar, apesar de falar muito errado. Seu sorriso era irresistivelmente cativante. - Olha, vai custar uns cem paus por dia - disse Isaac, parecendo manter o olhar em outro ponto, como que distantemente atento. Abellardo sentiu-se atraído por esse aspecto da personalidade do caboclo. Aliás, as pessoas que o conheciam também costumavam dizer que ele era assim: distantemente atento. Assim, contratou Isaac com um sentimento de grande afinidade. - Seu Abellardo Ramez, me diga uma coisa: onde foi que conseguiu um nome tão esquisito assim? Ou é outra língua? - Meu avô materno era descendente de egípcios e minha família por parte de pai é meio indígena. Acho que é daí que vem isso. Tem gente que diz que meu nome parece uma mistura de filósofo com faraó. Sabe como é? - Sei não! Mas isso também não quer dizer nada. Sei que não sei de muitas coisas, seu Abellardo Ramez! Encheram o barco com mantimentos e partiram pelo rio Amazonas, pois era naquele oceano de águas barrentas que encontrariam a entrada do rio Urubu. Viajaram em silêncio por um tempo, horas, talvez. Atarefado com as preocupações da viagem, Isaac Porto andava de um lado para o outro, indo ao timão apenas para ajeitá-lo ou redirecioná-lo melhor. Abellardo se movia lentamente pelo barco. Andou por toda a sua extensão, pendurou-se para o lado de fora da embarcação como fazia quando criança e fechou os olhos, buscando, no baú do olfato, os cheiros que um dia haviam se reunido para compor seu sentido de experimentar aromas. À noite ele estava saudoso, embora não soubesse de quê. Havia: um estranho silêncio a sua volta. De repente, seus ouvidos se abriram. Ouviu de uma vez e ao mesmo tempo, diferenciadamente, milhões de vozes da floresta. Então, levantou-se e foi para a proa do barco. Lá, repousando o peso do corpo numa perna só, Isaac Porto tomava um pouco de café numa caneca esmaltada, meio quebrada nas beiradas. Abellardo então contou-lhe de onde estava vindo. Não geograficamente, mas na vida. Falou de tudo, inclusive do coração de Maria Flor de Cristo. Isaac Porto ouviu. - Do jeito que você está, só morrendo - disse. - É, talvez você tenha razão. Não há nada mais vivo do que os momentos imediatamente anteriores à morte. Sabe como é? - Sei, sim! Já vi muito cabra que antes de morrer sentiu um monte de coisa. Parece que o cabra fica com um pé lá e outro cá, aí não sabe bem o que tá acontecendo, né? Então Abellardo disse que aquelas florestas escavam cheias de espíritos opressores e energias psíquicas. Falou com a consciência de que seria entendido de alguma forma. Obviamente não exagerou. Chamou espíritos opressores de terror noturno e energia psíquica, de assombração. - E o que é esse negócio de espírito opressor? - São anjos caídos que apavoram as noites e também os dias, espíritos que se alimentam das superstições. A conversa continuou atraente. Falaram de algumas lendas da floresta e riram um bocado de algumas outras que às vezes são usadas pelas pessoas da região para encobrir seus atos e deslizes. - É como o pobre do Boto. Todo mundo põe culpa nele de pegar tudo que é menina que vive na beira dos rios. O problema é que o Boto só pega mulher em dia de festa. Tem coisa errada, não tem, não, Abellardo? - É, o Boto é como o diabo. Leva a culpa de tudo. Ninguém diz "eu fiz porque quis". Eles têm que dizer que foi o Boto que mandou fazer ou forçou a fazer. - É, Abellardo, mas que o Bicho atenta, atenta sim! Às vezes eu não digo "eu fiz porque quis", porque sei que fiz o que não queria fazer. Dá pra entender? - Claro. O Bicho, como você falou, só tenta se houver predisposição na gente. Cada um é tentado pela sua própria cobiça. A sensação era incomparável. Olhou adiante e viu uma espécie de tubo, cujas paredes eram como as de uma bolha. Havia uma luz tênue, como uma suave claridade. Dava a sensação de que um nascer de sol estava para acontecer. A percepção da água começou a minguar. Sentiu também como se seu corpo estivesse se fundindo com todas as suas possibilidades de sentir, como se pela primeira vez pudesse se apropriar de todos os seus sentidos a um só tempo. De repente esse túnel-bolha começou a se comprimir. Uma sensação de água lavando seu interior percorreu-lhe o ser. Então, tudo entrou em sofrimento. Era como se o lugar ou dimensão onde estava fosse como um ventre pronto para dar à luz. Eram contrações contínuas, poderosas como os espasmos de uma cobra gigante. Então, imagens. Milhares. Milhões de imagens. Cenas de todos os seus tempos e de alguns que nem sabia que eram seus. Conseguia ver e sentir tudo de uma vez, como se a vida tivesse sido uma única experiência, contínua, completamente conectada em si mesma, e suas conseqüências nada mais fossem que o resultado lógico de todos os fatos. O túnel interior daquela sucuri estava chegando ao fim. Foi vomitado dentro de algo que, com certeza, existia dentro, e não fora. Ou seja, ele se sentia como alguém que havia sido inseminado num útero dimensional. - Por que é que você anda procurando por mim? Levantou o olhar e viu um velho. - Não sei quem é você. Quem é você? - Sou Enoque, o sétimo depois de Adão, aquele que já não era, pois Deus o tomou para si. Abellardo não podia entender. Morto, desconfiava, ainda não estava. Dava para perceber algumas sensações físicas demais para que fossem de outra dimensão. Mas onde estava? - Que lugar é esse? - Esse não é um lugar. Poucas coisas são lugares. O mundo dos lugares é muito pequeno. Grande mesmo é o Universo dos Não- Lugares. - Então, o que é isso e onde eu estou? - Ora, é a Amazônia! Onde é que você estava quando me encontrou? Você não estava na terra das florestas? - É, mas algo aconteceu! Não sei se foi meu barco que afundou, se estou morto no porão do barco, se fui engolido por uma piraíba gigante ou se foi uma sucuri que me espremeu no fundo do rio. - Nada disso é importante. Só uma coisa é importante: você é um fugitivo, um Jonas! - Eu, um fugitivo? Como? Passei a vida sem fugir, enfrentando tudo, todos, sem medo, e querendo que minha vida tivesse um significado no mundo! - É, mas tudo não passou de uma grande fuga. E sabe por quê? - Fuga?! - É. Você nasceu com muitos talentos. E isto fez com que seus verdadeiros dons acabassem sendo perdidos em você. Gente como você se engana o tempo todo. - Como assim? - Você pensa que está indo, mas está fugindo. Pensa que está fazendo, mas, de fato, está desfazendo. Veja: por mais que você faça, se não fizer o que você nasceu para fazer, será então um fazer que não realizará sua alma. - E o que eu nasci para fazer? - Você aprenderá agora! E como é que você sabe disso e sabe quem eu sou? Abellardo Ramez II é seu nome. Você seria chamado por outro nome, mas seus pais mudaram de idéia na última hora. - Como você sabe de tudo isto? - Onde eu existo e na missão que tenho, sabe-se de tudo o que se tem de saber e não se sabe de nada que não se precisa saber. Aqui, se for preciso, você sabe. - É estranho, mas sempre pensei que se um dia eu encontrasse algum dos meus heróis, eles falariam com aquela voz solene de gente antiga e santa. Mas você fala como eu. Por quê? - Já ocorreu a você que aqui, neste momento, neste lugar, para usar a sua linguagem, eu não seja uma imagem viva e real? Eu recebo missões inimagináveis. Já fui a muitos mundos, dimensões, estados e lugares. A maioria deles existe onde ninguém pode imaginar uma existência. Foi quando Abellardo olhou em volta e se deu conta de que não havia cenário algum onde estava. Era como se fosse um grande e cósmico estúdio de gravação, com fundo infinito em qualquer direção que se olhasse. Olhou para Enoque e o viu. Era alto, o cabelo era branco como o branco pode ser. Sua barba era longa e sedosa. Havia um cheiro de frutas que exalava dele. E seu hálito era o de jasmins na entrada da noite. A única percepção diferenciada que ele tinha ali era a da tira de pano vermelho e acetinado que Enoque trazia amarrada à testa, e que sobressaía com majestosa simplicidade no ambiente. - Por que foi que você veio ao meu encontro? - Viemos ao encontro um do outro. Mas não fomos nem eu nem você que iniciamos o movimento na direção do outro. - O que você quer dizer com isto? - Abellardo, escute para sempre o que vou dizer: na existência dos seres que sabem que são, não há nada que não seja desígnio de Deus e que também não os deixe livres para ser ou não ser. . - Quer dizer então que esse debate entre a vontade de Deus e a liberdade do homem não cessa e não se explica nem aqui? - O que é, é. Isto é tudo e tudo é! - Já ouvi essa frase. - Eu sei. Verônica! Esta frase estava no coração de Verônica. Então, depois disto, por alguma fração de algo que Abellardo não sabia precisar, viu a história emocional de sua vida. Não eram eventos, mas emoções que se sucediam como ondas de um coração que fibrila. Mas bem embaixo dessa agitação de energias emocionais arrítmicas, surgiu de modo pesado, depois suave, uma música sendo tocada. Foi quando percebeu que ali, mais ao fundo, as emoções da vida viravam música. A cada fragmento de emoção correspondia uma nota musical, de modo que, às vezes, a música era grave, às vezes, leve, às vezes, inclassificavelmente arrítmica, mas, às vezes, tão arrebatadora que a única opção era dançar. - Eu vim para dizer que você é amado, que o seu pecado já foi perdoado e que o Amor Que É ainda tem algumas missões para você. Antes, porém, você precisa ser curado. Então, Enoque levantou o olhar aos céus, bendisse o Nome e baixou os olhos até encontrar os de Abellardo. A seguir, fixou o olhar tão fortemente dentro de Abellardo, que era como se ele tivesse sido espetado contra uma muralha incandescente no fundo do universo. Foi quando Enoque disse: - Ed timu hemo brese de dadiav mesrivre sera odre perama ara per vila cif: ei ranod naba et si amaj. Eira xi ed et ac nun. Um elemento quente como fogo liquefeito foi derramado sobre ele, impregnando-o à medida que escorria sobre seu corpo, densamente atravessável. E por onde aquele fogo líquido passava era como se o sol nascesse na escuridão de seu espírito, como se tempestades vivemos sob tantas leis e somos confundidos por tantos outros mundos que existem acima de nós ou à nossa volta, que quando quebramos a Lei, há sempre muitas causas em questão. - Estou começando a entender. É por isto, então, que não se deve julgar o próximo? - Sim! Os filhos de Adão deveriam agradecer todos os dias por serem tão pequenos, pois é nessa pequenez que habita o mistério que os anjos não entendem: o amor do Eterno e Seu poder de perdoar os filhos da Terra. Este é o Amor Que É! - Essa é a glória de estar perdido, de não saber, de transgredir na confusão, e de viver de modo tão indiscernível?! - É apenas por causa da Árvore Seca onde Ele foi imolado. Ela é o centro de tudo o que existe, e Nele tudo subsiste! Então Abellardo achou que algo iria acontecer. Sentiu alguma coisa lhe pegando o braço. Seu cabelo foi como que puxado. Uma leve sensação de água lhe chegou à boca. Olhou e viu algo branco como areia bem ao fundo, próximo ao ombro direito de Enoque, que agora se virava e começava a andar diante dele. Mas outra vez aquela impressão de natureza difusa e distante se afastou. Começaram então a cair. Era como se arremessar de um avião e cair sem medo. Não havia coisas para ver. Mas era como ver tudo a um só tempo, como se na queda tudo ficasse mais verdadeiro. De repente, voltaram ao mesmo cenário onde a única cor além do branco era a fita vermelha acetinada na testa de Enoque. - Enoque, então como ficam os Nephilims? - O que você pensa sobre eles? Me diga: como os vê? - Bem, eu acho que eles estão vivendo a condenação de sua história. Alguns Nephilims foram muito maus. Outros, nem tanto. - Você está quase certo. É verdade que não há um único julgamento. Mas os Nephilims se tornaram como nuvens de agonia sobre a Terra, atormentados e atormentando; tornaram- se espíritos imundos. Há muito para você ver. Só entenderá se puder ver. Há muito a lhe dizer, mas ainda não é a hora. - Eu me lembro de que quando era jovem, lia no Livro dos Começos sobre a queda dos "filhos de Deus que possuíram as filhas dos homens" e ficava perturbado. Não dava para pensar que fosse o que me diziam que era. - E o que os seus mestres lhe ensinaram sobre isto? - Muito pouco. Esse assunto é meio proibido. - Sem saber o que houve na Antigüidade, como se entenderá a humanidade? - indagou Enoque muito mais interessado em fazer Abellardo falar do que porque não soubesse. E perguntou outra vez: - O que lhe ensinaram os seus mestres? - Meus mestres sempre me diziam que eles não eram anjos, que os filhos de Deus que possuíram as filhas dos homens eram os filhos de Sete, filho de Adão, e que eles haviam se casado com as filhas do banido e desterrado Caim. Houve até um grande mestre que tentou me convencer de que eram anjos sim, mas que possuíram as mulheres na forma de espíritos invisíveis, e elas, possessas de sensualidade, se tornaram sexualmente adúlteras, prostitutas insaciáveis. Mas jamais me explicaram por que, então, os filhos delas nasciam gigantes, Nephilims, tornando-se "os varões poderosos de toda a Antigüidade". Quando falou isto, Abellardo percebeu que não havia som saindo de sua boca. De fato, aquela era uma conversa de pensamentos. Ele apenas tinha que pensar para se fazer ouvir. - Diga-me, como você se recorda da Palavra que citou? Então, Abellardo, sem fazer qualquer esforço para recordar-se do texto, apenas abriu a boca e falou: - Como foram se multiplicando os homens na Terra, lhes nasceram filhas. Vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si como mulheres as que, entre todas, mais lhes agradaram. Ora, naquele tempo havia gigantes na Terra; e também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens, as quais lhes deram filhos; estes foram poderosos, varões de grande fama na Antigüidade. - Isto, Abellardo, já seria suficiente para que se soubesse sobre os Vigilantes e os Nephilims. E em muitos outros lugares no Livro dos Livros se falou do mesmo assunto. - Nunca entendi por que não se falou mais explicitamente do assunto! - Veja, Abellardo, se não se falou mais a respeito, foi porque não havia a intenção de encher a Terra com aquela memória. - Mas por que agora se deve falar nisso? - É que a maldade dos anjos caídos e seus filhos invadiu a Terra, mesmo depois das Grandes Águas e mesmo depois que os últimos descendentes dos Nephilims morreram no corpo. . - Eu sei disso! Mas por que somente agora se está falando nisso? - Este é o tempo do fim! Esta é a hora de lhes tirar o disfarce. Mas ainda está cedo para que eu fale a respeito de Genun e de suas maldades praticadas contra os filhos de Caim, corrompendo a casa de Jerede, meu pai. - Uma curiosidade: os gigantes que existiram depois do Dilúvio eram descendentes dos Nephilims? - Onde mais se diz no Livro dos Livros que os gigantes eram de outra origem? - Em lugar nenhum! - É, mas lá se fala que os gigantes eram a descendência dos filhos de Deus com as filhas dos homens, as mais formosas! - Sim! Mas não se explica como eles sobreviveram às Grandes Águas. Haveria algum deles na Arca? - Claro que não! Mas hoje ainda não tenho permissão para lhe informar. Um dia, talvez. O ambiente tornou-se meio difuso como um sonho. Atrás do rosto de Enoque, pareceu surgir a face de Isaac Porto. Abellardo, porém, achou que era apenas impressão, dessas que se têm em muitos lugares e situações, especialmente nas horas de crise. Enoque então o pegou pela mão e juntos flutuaram sobre um rio de fogo frio, vermelho e incandescente. De repente, pararam. Então, Abellardo viu que haviam voltado ao mesmo cenário. - O que foi que houve? - Senti que você precisava de uma brisa da tarde-manhã, foi só isto. - E por que eu preciso e você não? - Ora, eu não preciso, eu gosto. Mas se gosto, preciso. E não gosto de nada de que não preciso. E não preciso de nada de que não gosto, pois tenho tudo. E assim é. Lembra? Tudo é. - Mas sua situação é singular. Você é Enoque, o homem que já não era, pois Deus o tomou para si. Ou como alguém já disse: Enoque foi trasladado para não ver a morte. Igual a você, só Elias, de Gileade. E talvez Moisés, que morreu, mas teve o corpo guardado por anjos. - Sim, eu não passei pela morte e também não ressuscitei até hoje. Eu sou um dos primeiros que serão os últimos. Mas aqui meu corpo é. O seu corpo ainda está no meio do caminho, está sendo. Você ainda está dividido. Você ainda não sabe bem o que é e muito menos quem é. - E esta é a grande questão na Terra. Além disso, eu sou ainda completamente diferente de você. Gosto de muito do que não preciso e preciso de muita coisa de que não gosto. - É por isto que você acaba sendo escravo de gostar do que não precisa e de precisar do que não gosta! passasse ali. A margem mais próxima estava a quilômetros de distância, e naquelas águas escuras nem ele nem Isaac Porto se atreveriam a nadar. Mas não se importou com isso. Ali, no meio do nada, viu que tanto fazia ficar perdido ou ser achado; a única coisa que importava era viajar mais, especialmente se pudesse ainda revisitar aqueles mundos intermediários, nos quais a imaginação era cheia de premonição e profecia e onde as viagens interiores poderiam lhe fazer ver com melhores olhos o que ele chamava de lado de fora. Ou seja: sua própria imagem. Então, teve uma enorme vontade de fazer um fogo e se sentir primitivo, como se nada fosse mais humano do que ser primitivo. O Pacto de Execrações Portanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu sobre a cabeça, como sinal de autoridade. São Paulo aos Coríntios, 11:10 Abellardo Ramez II já havia acampado muitas vezes. Mas jamais estivera perdido. Estava perdido não porque não soubesse o caminho de volta, mas porque não tinha como voltar. Ele havia sido arrebatado e não deixara endereço. E, assim, à semelhança de Enoque, ele também já não era. O estranho era que queria ficar perdido, pelo menos por um tempo, pois pensava que o perdido realmente perdido ficava livre de preocupações. - Você tem fogo aí, Isaac Porto? - É claro. Só ando com esse bichinho aqui, esse isqueirinho pretinho. Agüenta até as águas do rio Urubu. Abellardo então se levantou, catou uns gravetos e fez um fogo. Era dia, mas soprava um vento frio. Além disso, depois de passar a noite dentro da água, qualquer vento o sensibilizava todo. Começou a tossir muito. Uma sensação de febre passou a lhe esquentar o sangue. As juntas doíam. A cabeça pesava. Os olhos ardiam. Deitou na areia gelada, gemeu, se abraçou, fez cafuné em sua própria cabeça, alisou o peito, se ajeitou no chão e dormiu. Quando acordou, viu que já estava escurecendo. Ao seu lado, no chão, Isaac Porto olhava para cima, calado. Quando viu que Abellardo acordara, foi logo pulando e dizendo: - Acho ruim a gente sair daqui. Num passa nada, nem barco nem canoa. E os navios de linha arrodeiam as ilhas pelo lado de lá. Quem mandou você querer um lugar que nem tá no mapa?! - Então, estendendo a mão, deu-lhe algumas frutas que apanhara no mato, na entrada da floresta. Sentado na areia, Abellardo sentiu uma enorme e quase incontrolável saudade dos filhos. Chorou em silêncio. Depois andou de um lado para o outro. Havia uma ansiedade estranha em sua alma. - Isaac, você quer saber o que foi que aconteceu comigo durante o tempo em que fiquei meio morto no barco? - É claro. Aquele negócio de Inhoque e seufilhin me intrigou, homem. Vai lá. Me conta que tô morrendo pra saber. - Olha, pra saber mesmo, só morrendo. - Ei, amigo, vira essa boca pra lá. Num me conta, não. - Que é isso, Isaac? Só morrendo, porque por mais que eu lhe explique você não vai entender. Era como se eu tivesse morrido. E morte, a gente não tem palavras para explicar, entendeu? - Entendi, sim. Mas prefiro entender pouco vivo, do que entender um bocado, morto. Abellardo contou a Isaac, em detalhes, o fenômeno de sua relação com aquele livro e como ele o levara para o lugar onde encontrara Enoque. Quando terminou, viu que Isaac Porto estava petrificado. Os clarões trêmulos da fogueira acendiam um brilho de perplexidade nos olhos do caboclo. Notou também que ele estava parado porque não tinha coragem de andar. - Você viu se o livro já secou? - Tá ali, olha. Botei em cima do tronco seco. Tá sequinho. Por quê? Você quer ler o bicho? - É, acho que vou ler um pouco. Você se importa? - Me importo toda a vida. Mas o que é que a gente faz aqui nesse fim de mundo? Só lendo, né? O ambiente era sinistro. A noite, escura acima e em volta deles, era misteriosa como o rio Urubu, que ali, adiante deles, assistia em silêncio à perdição que experimentavam. Havia uma espécie de silêncio habitado. Os sons eram tantos que nem conseguiam diferenciá-los uns dos outros, ficando apenas aquele zumbido da noite, viva e ocultadora dos seres que nela pululavam. Então Abellardo começou a ler o Livro de Enoque com voz de orador. Clara. Alta. Imponente. Grave. Isto os anjos me mostraram. Deles eu ouvi todas as coisas e entendi o que eu vi; daquilo que não acontecerá nesta geração, mas numa geração que está para vir, em um período distante, por causa dos Eleitos. Devido a isto eu falei com Ele, aquele que se estende para além de sua habitação, o Santo e Magnífico, o Deus do Universo. Que doravante caminhará e aparecerá com suas hostes, e será manifesto na força de Seu poder vindo do Céu. Todos deverão ficar atemorizados, e os Vigilantes, aterrorizados. Grande medo e tremor deverão atacá-los, mesmo se esconderem-se nos confins da Terra. As montanhas mais altas serão perturbadas; as colinas exaltadas serão deprimidas, derretendo-se como favo de mel em uma chama. A Terra deverá ser imersa, e todas as coisas nela perecerão, pois o julgamento virá sobre todos, até mesmo sobre os justos. Mas a estes Ele trará paz, Ele preservará o eleito e para eles exercerá clemência. Então todos pertencerão a Deus, sendo felizes e abençoados, e o esplendor da divindade ilumina-los-á. - Abellardo, só um minutinho. Quem são esses eleitos? São os cabras de coração bom e que não se desviaram de Deus? - São, sim. Os eleitos são os que decidiram ser de Deus e que Deus também decidiu que eram Dele. Dá pra entender? - Claro. Parece com aquilo que meu tio Joãozinho dizia sobre uma fé danada que ele tinha e dizia que nunca iria abandonar. Ele dizia um negócio que eu nunca esqueço: "Se eu pudesse, eu num queria. Mas se eu quisesse, eu num podia." Dá pra entender? - Acho que dá, sim. Deixa eu continuar. E eis que Ele vem com miríades de seus anjos, para executar juízo sobre os ímpios, destruir o mal de suas obras e reprovar todos os carnais, por tudo o que os pecadores e ímpios tenham feito e cometido contra Ele e sua Criação. Todos os que estão nos Céus sabem o que lá é realizado. Sabem que os luminares celestiais não mudam seu caminho, que cada um nasce e se põe com regularidade, cada um em seu próprio período, sem transgredir os comandos que receberam, Mas os ímpios resistem impacientemente, não cumprem os mandamentos do Senhor, mas transgridem e caluniam Sua grandeza, e malignas são as palavras em suas bocas polutas contra Altíssimo”! Então eles disseram a seu Senhor, o Rei: "Tu és o Senhor dos senhores, Deus dos deuses, Rei dos reis. O trono de Tua glória é para sempre e sempre, e para sempre o Teu Nome é santificado. Tu és bendito e glorificado. Tu fizeste todas as coisas, tu possuis poder sobre todas as coisas, e todos os segredos estão abertos e revelados perante Ti. Tu observas todas as coisas e nada pode ser escondido de Ti. Tu viste o que Azazyel fez, como ele ensinou toda espécie de iniqüidade sobre a Terra e como ele mostrou ao mundo todas as coisas secretas que são feitas nos céus. Samyasa também ensinou feitiçaria àqueles sobre os quais Tu lhe deste autoridade e àqueles a ele associados. Eles foram junto às filhas dos homens, deitando-se com elas, e tornaram-se poluídos. E ensinaram novos pecados a elas. As mulheres, de igual modo, trouxeram gigantes à Terra. Assim toda a Terra se encheu de sangue e iniqüidade. Agora, eis que as almas daqueles que foram mortos clamam. E apelam até ao portão do céu. Seu clamor ascende, e não podem escapar da injustiça que é cometida na Terra. Tu conheces rodas as coisas antes de elas existirem. Tu conheces todas essas coisas, e o que foi feito por eles, e ainda assim Tu não nos falas. O que, diante de todas essas coisas, devemos fazer com eles”? - Mano, esses cabras, esse Miguel e os outros, são muito decididos. Escuta: esses cabras respondem as rezas da gente? - Eu nunca orei pra anjo. Os anjos são servos de Deus e não são nossos intermediários. Só se deve orar a Deus. Se Deus os mandar ao nosso socorro, eles vêm. Se não, a gente não vai orar pra eles, pedindo: "Ah, São Miguel, vem me ajudar aqui nessa ilha perdida." Posso continuar a leitura, Isaac? Ele apenas acenou com a cabeça, estimulando Abellardo a prosseguir. Então, o Altíssimo, O Grande e Santo, falou e enviou Arsayalayur, que é Uriel, ao filho de Lameque, dizendo: "Diz-lhe em meu Nome: Esconde-te. Então explica-lhe a consumação que haverá de suceder, pois toda a carne perecerá, as águas de um dilúvio virão sobre toda a Terra. E agora ensina-lhe como poderá escapar, e como sua semente poderá permanecer em toda a Terra.” E o Senhor disse a Raphael: ''Amarra as mãos e pés de Azazyel, lança-o na escuridão, e abrindo o deserto que está em Dudael, lança-o lá. Sobre ele arremessa pedras pontudas e pesadas, cobrindo-o com trevas. Lá ele deve permanecer para sempre. Cobre-lhe o rosto para que ele não veja a luz. E no grande dia do julgamento, que ele seja lançado ao fogo. Restaura a Terra, que os anjos corromperam, e anuncia vida a ela, para que Eu a reviva. Todos os filhos dos homens não perecerão em conseqüência dos segredos que a eles foram ensinados e pelos quais os Vigilantes serão destruídos, pois os ensinaram a seus descendentes. Toda a Terra foi corrompida pelos efeitos dos ensinamentos de Azazyel; para ele, então, atribui todo o crime.” Para Gabriel também o Senhor disse: "Vai aos bastardos, aos réprobos, e destrói os filhos da fornicação, os filhos dos Vigilantes que vivem entre os homens. Lança-os para fora e incita-os uns contra os outros. Que eles pereçam num genocídio, pois a longevidade não será deles. Então eles haverão de te implorar, mas neles seus pais não realizarão desejos; eles esperam por vida eterna e pela chance de cada um deles poder viver quinhentos anos sobre a Terra.” De semelhante modo, para Miguel, disse o Senhor: "Vai e anuncia seu crime a Samyasa e a todos os que estão com ele, que se associaram com mulheres, para que sejam todos poluídos com impureza. E quando todos os seus filhos estiverem mortos, quando eles virem a perdição de seus amados, lança-os e aprisiona-os debaixo da Terra por setenta gerações, até o dia do julgamento e da consumação. Até que o julgamento que durará para sempre seja completado. Então eles serão levados até as mais abissais profundezas do fogo, em tormentos, e em confinamento permanecerão para sempre. Imediatamente após isso ele, junto com os seus, será queimado e perecerá; eles serão aprisionados até a consumação de muitas gerações. Destrua todas as almas viciadas na luxúria e os filhos dos Vigilantes, pois eles tiranizaram sobre a humanidade. Que todo opressor pereça da face da Terra! Que toda obra má seja destruída! Que a planta da justiça e da retidão apareça, e seu produto seja uma bênção! Justiça e retidão serão para sempre plantadas com deleite! E então todos os santos agradecerão e viverão até conceber milhares de filhos durante o período de sua juventude e seus sábados serão vividos em paz. Naqueles dias, toda a Terra será cultivada em justiça, ela será totalmente plantada com árvores e enchida de benção; toda árvore de deleite será plantada nela. Nela serão plantadas vinhas, e a vinha que será plantada nela dará fruto até a satisfação. Cada semente que seja lançada nela produzirá mil para cada medida, e uma medida de olivas produzirá dez prensas de óleo. Purifica a Terra de toda opressão, de roda injustiça, de todo crime, de toda impiedade e de toda poluição que foi cometida por sobre ela. Extermina-os da Terra. Então os filhos dos homens serão justos, e todas as nações Me pagarão honras divinas e me bendirão, e todos Me adorarão”. Quando Abellardo terminou a leitura, Isaac Porto estava chorando. Eles nada disseram um ao outro. Apenas experimentaram aquele momento de puro encantamento e profundo silêncio reverente. Depois de algum tempo, o caboclo falou. - Sabe que essa história não me sai da cabeça? Os nossos negócios de meter medo aqui são umas coisas bobas perto desses cabras. É Saci Pererê, Curupira, Bate-bate, Boi Bumbá, Boto, cobra grande e outros bichos. Mas tudo daqui mesmo, tudo inocente, né? Abellardo disse que a febre estava aumentando. Então deitou-se na areia. Disse suas preces e mergulhou em suas quenturas e dores febris. A noite, porém, só estava começando. Barsamyasa então para onde subirá? - Como não ter coragem de mergulhar para dentro? Eu pensei que fosse um pulo para cima. - E há algum espaço mais para cima e mais profundo no Universo do que o que encontrará quando pular para dentro? E que altura infinita no Universo é mais profunda do que o abismo do seu coração? - Temo a mim mesmo. - Ouça Abellardo. Pule para cima e se achará dentro, pois o mar de cristal espelhado só espelha a sua alma e o que seu coração guardar como lembrança de seus sentimentos. Só não pulará se temer o que abriga em seu coração. Então, Abellardo Ramez se atirou de ponta-cabeça e mergulhou nos píncaros das profundezas que se achavam dentro dele. - Silêncio! Venha comigo. Abellardo quase morreu de susto. Mas logo percebeu que o tom daquela voz lhe era familiar. Olhou e achou que era Enoque. Mas havia algo errado com ele, ou, pelo menos, parecia quase essencialmente diference. Ele era quem Abellardo vira antes, mas também não era. - Você é Enoque?! - perguntou Abellardo, se dando conta de que era como se ali a sua língua fosse a dele e a dele fosse a sua. - Com estas vestes estranhas devo pensar que você é um enviado? Quem lhe enviou? Eu conheço você do livro. Depois nos encontramos, não há muito tempo para mim, mas há milhares de anos para você. Lembra? Conversamos longamente quando você me contou muita coisa sobre os Vigilantes Universais e os Nephilims. Lembra? Só que lá você estava usando uma fita vermelha, acetinada, sobre a cabeça - falou, sentindo-se um grande idiota. - Não lembro. Mas sobre esse adereço na testa, posso lhe garantir que jamais usei ou usarei. É coisa de mulher entregue aos humores da vaidade. Abellardo Ramez virou-se na direção oposta e viu que o Nephilim que vira antes agora estava deitado sobre o touro, os dentes cravados no pescoço do bicho, que estrebuchava cada vez mais fraco, à medida que era drenado para a morre. - Eles viram vampiros! - exclamou Abellardo. - Isto que fazem é abominação ao Senhor da criação. Ele não nos fez para que nosso sustento viesse do sangue de outra vida - disse Enoque, e concluiu: O que eles fazem é vergonhoso e abominável até para se olhar. - Acredito que vim aqui para ajudar você na luta contra aqueles que destroem os homens e a Terra - disse Abellardo Ramez, continuando a falar enquanto descia a elevação, acompanhando os passos largos de Enoque. Saíram dali e seguiram por uma trilha íngreme que descia de um platô abaixo de onde Abellardo vira o Nephilim, na direção do rio Dan. Abellardo correu e passou a frente de Enoque. Ele conhecia o lugar e sabia que, por mais que tivesse alterado nos últimos cem mil anos, pelo menos uma coisa não teria mudado na região: uma linda cachoeira no fundo daquele pequeno abismo. - Eu sabia! É o mesmo lugar. Já estive aqui, Enoque! - Se você é daqui, então sabe que essa cachoeira está aqui desde o início da criação do mundo. - Do tempo que venho, essa região já foi chamada de Mesopotâmia e agora é chamada apenas de Oriente Médio. Enoque olhou para Abellardo com um olhar de perplexidade complacente. Parecia feliz e resignado com a sua presença. Ele estava acostumado ao sobrenatural, onde mundos de ordens diferentes se interpenetravam. Mas ser visitado por um conhecido do futuro era como ser amigo de quem morreu há milhares de anos antes de se nascer, mas que mesmo assim é mais chegado do que um irmão. - Tenho que ir! - Para onde estamos indo, mestre? - Estamos, não! Você quer saber se eu, Enoque, o sétimo depois de Adão, estou indo? - Sim, é claro, pois para onde você for eu também irei. - Para onde eu vou você não pode ir agora. Não creio que seja possível. Não posso levar ninguém comigo. - Mas por quê? - Você não sabe agora, compreenderá depois. - Você não sabe quem eu sou. Mas eu sei que você sente quem eu sou. Quando você souber, então serei seu ajudante. Após assim falar, Abellardo pensou que era tudo muito confuso. Então concluiu que Enoque, o patriarca acostumado a anjos, entenderia sua visita se lhe contasse tudo. Mas ainda assim continuou relutante. Ele sabia que Enoque admitia que anjos viajassem da eternidade ao tempo, da imaterialidade à matéria, da não-reprodução à geração de filhos, mas será que ele seria capaz de admitir um milagre menor, entre seres da mesma dimensão? Será que estaria preparado para admitir o milagre de que o passado fosse ao encontro do futuro e o futuro viesse ao passado retribuir a visita? Decidiu contar tudo! - Não quero incomodá-lo, mas há algo que tenho que lhe dizer. Preciso de apenas um pouco de tempo com você num lugar calmo. Por que não ficamos aqui, nessas pedras, ao lado da queda-d'água? Enoque consentiu tacitamente. Então, Abellardo falou-lhe sobre o que estava acontecendo no seu mundo presente sobre o que era o futuro de Enoque. Falou- lhe de como os Nephilims não voltaram após as Grandes Águas; de como, inexplicavelmente, ainda tivesse continuado a haver gigantes na Terra, entre eles os Enaquins, os Refains e os Amins. E que, mesmo depois de terem sido todos mortos, nunca haviam morrido nos porões das memórias coletivas. Enoque escutava com a mesma estupefação e perplexidade fascinada que acometera Abellardo quando o ouvira no Lugar dos Não-Lugares, onde se haviam encontrado pela primeira vez. E como Enoque desejava saber tudo o que tivesse a ver com o futuro do mundo ou com os efeitos das ações dos Vigilantes e de seus descendentes na Terra, Abellardo continuou seu passeio pela história da civilização humana. - Mestre Enoque, o Grande Dilúvio inundará toda a Terra, mas o mal dos Vigilantes sobreviverá. - Mas como, meu jovem? - As Grandes Águas matarão o que tem fôlego sobre a Terra, mas não eliminarão as informações sobre a possibilidade de criaturas manipularem e alterarem a criação, corrompendo a ordem original do Criador, como fizeram os Vigilantes. Essas informações viajam por toda a Terra. - Ninguém, exceto aqueles que o Eterno determinar, sobreviverá às Grandes Águas! - disse Enoque com um tom mais forre e grave. - A morte dos Nephilims e a prisão dos Vigilantes até o tempo determinado aniquilará sua presença física sobre a Terra. Mas seu reinado de perversidade já foi muito longe. Além disso, eles são cultuados como os grandes valentes da Antigüidade, os mitos dos povos e os deuses das nações. - E como é que você sabe de tudo isto? Foi o Eterno quem lhe falou? - Li nos livros. Incluindo o seu livro. - E o que esses livros lhe contaram? Enoque começou a caminhar. Andou até as águas que ali se derramavam em profusão, às margens daquele lugar incrustado no meio da cachoeira, onde haviam se sentado para conversar. Abaixou-se, bebeu água, caminhou de volta até onde estava Abellardo, respirou fundo, como que antecipando suas lutas do futuro, e disse: - Eles são muitos, estão tiranizando a Terra e devorando tudo o que existe. Mas o Eterno não será frustrado em nenhum de seus desígnios! Abellardo, com extrema reverência e gravidade, prosseguiu contando a Enoque tudo o que sabia sobre vários outros povos e culturas da Terra, onde seres angelicais ou divinos possuíam mulheres e essas davam à luz gigantes. E afirmava com veemência que para ele todas eram a mesma história: esses híbridos haviam dado forma a boa parte do saber humano, de vaidades pessoais a instrumentos de diversão, aparatos de guerra, astronomia e astrologia, encantamentos químicos e alteradores de consciência. Eles haviam modelado a matemática, a física, os calendários e até os modelos psicológicos, naquilo que Abellardo disse a Enoque que eram os chamados arquétipos universais das projeções das almas: os mitos e os deuses. E prosseguiu aumentando suas certezas na medida em que aumentavam suas teses. Chegou mesmo a dizer que todos os movimentos de liberação da mente por meio de raízes, ou de elementos químicos de qualquer tipo, eram ainda o pulsar latente da ciência dos Vigilantes Universais no mundo. - Vou pedir autorização para que você venha comigo. Não sei até onde poderá ir. Provavelmente, não poderá entrar nos meus encontros secretos, mas verá muito, pois muito há para ver. Disto tenha ciência, caso deseje prosseguir. Você verá o pior de homens e de anjos. Abellardo ficou extremamente grato, mas pediu para falar só mais um pouco. E contou como a “ciência das pedras", acerca da qual ele lera no livro de Enoque, tinha crescido tanto nos seus dias que havia se tornado maior do que os Nephilims e até mesmo que alguns Vigilantes. Era uma grande mente e guardava informações em códigos impressos em pedrinhas de silício. - Oh! Eles usam muito o silício. Dizem que naquelas pedras vai morar rodo o saber, em dias ainda muito por vir - interrompeu Enoque. - No meu mundo, esse tempo já está quase chegando. As pedras estão falando e tornando-se vivas, quase inteligentes, e creio que ficarão autônomas tanto em saber quanto em decidir, quando não mudar o sentido, algum dia, o que seja realidade. Eu creio que, um dia, o saber nas pedras de silício será tão grande que poderão nos hipnotizar sem nos deixar saber que estamos sendo manipulados. Entretanto, mesmo assim falando, Abellardo não havia chegado ainda aonde desejava. - Acho que vim aqui por uma razão - e acrescentou: - Tentar diminuir o mal das pedras de silício, ou pelo menos retardar essa hora, ou ainda, se o Altíssimo assim o tiver determinado, impedir esse futuro. - Pode me falar mais sobre como essas coisas chegaram ao seu mundo? sugeriu Enoque, não sem antes oferecer a Abellardo uma flauta doce, que ele guardou no bolso da calça jeans, porque lhe era impossível parar de ouvir seus próprios pensamentos. Prosseguiu, então, dizendo que achava que certas coisas passariam na memória dos filhos de Noé, outras passariam na memória dos animais, e outras, na memória das plantas. Outros males já estavam na natureza das coisas que caíram com Adão. Mas havia um mal maior. Eram as memórias dos Vigilantes e os sonhos dos Nephilims. E esses não seriam apagados com as águas do Dilúvio. Enoque olhou para ele e disse que tinha que ir. Abellardo ficou perturbado ante a possibilidade de ficar só. Mas Enoque garantiu-lhe que voltaria. Daquela vez, não seria ainda possível a Abellardo acompanhá-lo. Então partiu sozinho. Ayal e Maalalael Nenhuma alma entre vós comerá sangue. Livro de Levitícos, 17:12 Enoque era homem de palavra. Prometera a Abellardo que pediria autorização para incluí-lo em algumas de suas jornadas e saiu para buscar tal consentimento. Enquanto isto, Abellardo sentou-se sob uma árvore nas imediações da queda d'água, onde ficara conversando com Enoque, e se pôs a meditar sobre sua situação. De fato, parte da preocupação de Abellardo era que ele sabia que muito de sua motivação para engajar-se naquela batalha se devia à quase compulsão que sempre marcara sua vida em situações incomuns. Sentia uma enorme atração pelo perigo e, mesmo não sendo desprovido de medo, preferia a luta à fuga. Por outro lado, não sabia o que poderia lhe acontecer se fosse apanhado ali. Cansado de esperar horas, decidiu sair cautelosamente para um reconhecimento do lugar. As mudanças eram nítidas, mas o lugar era o mesmo. Então voltou pela mesma direção em que Enoque o encontrara. Caminhou com cuidado até o plano que dava acesso à elevação de onde observara o gigante comer e beber o sangue do touro. Já refeito do impacto de ter encontrado Enoque e com ele conversado, começou a considerar o que havia visto antes. A cena do Nephilim sugando o sangue do touro fora barbaramente fascinante. Ele não conseguia evitar o pensamento de que o monstro possuía uma certa beleza. Havia nele o que de mais viril, másculo e também monstruoso se poderia encontrar num homem. Ao mesmo tempo, havia uma beleza estranhamente delicada e sedutora naquele filho de anjos. Seriam todos assim? Questionava-se. Além disso, queria também ter a chance de ver como aqueles seres se comportavam no dia- a-dia. Afinal, não eram apenas vampiros. Neles havia mistérios, ciência e magia. O touro estava no mesmo lugar. Pousados sobre ele, abutres imensos disputavam a carcaça. O Nephilim bebera o sangue, comera boa parte da carne, mas não o terminara. E as aves de rapina se regozijavam com a matança. Um vento do deserto oriental soprou trazendo aromas que para ele eram novos. Havia um odor doce e silvestre que se espalhava por toda a região. Súbito, Abellardo ouviu os gritos desesperados de uma voz feminina. Ele correu o mais rápido que pôde para chegar ao local onde pensara ter ouvido aquela voz desesperada. Aproximou-se e percebeu que os sons vinham de uma gruta aos pés do monte Hermom, a grande montanha daquela região. Ficou na dúvida se deveria entrar ou não. Mas sempre fazia o que a maioria das pessoas não costuma fazer. Na dúvida, a maioria não faz nada. Ele, na dúvida, sempre decidia fazer alguma coisa. Entrou com muito cuidado, pois sabia que poderia nunca mais voltar a seu mundo se um gigante apenas lhe esbofeteasse raivosamente o as mulheres, fazendo com que fosse experimentada como agonizante deleite. Para ele, aquilo era doentio! Andou sem rumo pelo norte daquela terra. E enquanto perambulava considerava outras coisas. Lembrava-se do que o profeta Ezequiel havia dito acerca de algumas mulheres de Israel: "Também te prostituíste com os filhos do Egito, teus vizinhos de grandes membros." E como, para ele, os egípcios haviam sido profundamente afetados pela cultura dos anjos e Nephilims, suspeitava de que aquela era a razão da estranha preferência. Já não tinha dúvidas sobre o fato de o livro de Enoque falar que quando os Nephilims morressem se tornariam demônios, espíritos imundos e opressores. Por isto, quando se falava em demônios, espíritos imundos ou espíritos de prostituição, pensava, fazia-se alusão aos vícios que os filhos dos Vigilantes carregavam em si mesmos. Como espíritos, mesmo após morrerem, atormentavam os humanos com aqueles mesmos desejos, taras e obsessões. Vários dias se passaram e Enoque não voltava. Abellardo começava a desconfiar que, mesmo naquele mundo e mesmo entre os santos, havia algum tipo de mentira diplomática, aquela que se diz quando se promete que se fará algo que não se tem intenção de fazer, mas que cumpre o papel de acalmar aquele que, ansioso, aguarda o favor. Alimentou-se de frutas e bebeu água de fontes. Mas passou a maior parte do tempo escondido em cavernas. Seu desespero aumentou. Não havia nem sinal de Enoque e ele não sabia o que fazer para abandonar aquele mundo tão complexo e retornar ao Amazonas. Apesar disso, movido de amedrontada e insegura curiosidade, retomou à região do monte Hermon. Escalou a montanha com extremo cuidado. Lembrava que aquela montanha era o lugar onde Azazyel, Samyasa e os outros Vigilantes Universais haviam se reunido para o juramento do compromisso coletivo na condenação que lhes viria da parte do Eterno. A montanha é formada por pedras lisas e brancas, que, de tão lisas, parecem enceradas. Quando chegou ao topo, viu neve. Como o sol começava a se pôr, procurou abrigo e achou uma pequena gruta, onde não havia neve. Entrou, sentou-se e tentou descansar. Depois, preocupado com a possibilidade de ser visto, escondeu- se mais no interior da pequena caverna e acabou dormindo. Em sonhos, viu Enoque, que lhe dizia: - Não tema, filho do futuro. Em breve eu o visitarei! Despertou assustado. Estava completamente escuro e nada se podia ver no interior da gruta. Aproximou-se da entrada e olhou como quem espicha não só o pescoço, mas também os olhos para fora das órbitas, na ingênua tentativa de assim poder ver melhor, sem se mostrar. Viu que havia uma luz difusa iluminando o lugar. Alguns Nephilims, sentados, saboreavam as carnes cruas de um urso. Agora, um pouco mais experiente, Abellardo tomou cuidado para não se expor a qualquer vento ou brisa, pois não queria ser sentido. Sabia que sendo também carnívoro - ao contrário da maioria dos humanos daqueles dias que não haviam sido afetados pelos Nephilims e davam preferência às ervas e frutos na dieta alimentar - ele exalava cheiro de sangue. Então, agachou-se na escuridão e buscou uma posição para melhor observá-los e ouvi-os. - Ouçam filhos dos Vigilantes Universais - disse aquele que o havia sentido na caverna, quando em companhia da mulher. Tive uma visão que não era nem deste mundo nem de nenhum outro que nós ou nossos pais tenhamos conhecido. Enquanto falava, saía de sua boca um denso vapor, dando ao ambiente um clima sinistro. - E que visão foi essa? - perguntou-lhe um Nephilim louro e de voz extremamente grave. Barsamyasa, o filho do poderoso Samyasa, narrou-lhes o acontecido dentro da caverna e as impressões que tivera. - Talvez seja um ser de outro tempo, não de outro mundo - disse um deles. - E como tu podes saber? - indagou um outro gigante. - É que Barsamyasa disse que ele era visível e invisível a seus olhos e também que teve medo e correu. Então pode ser que esse ser esteja aqui apenas em espírito e não em corpo. Existe de fato, mas, para nós, nem tanto. - A mulher que estava comigo o viu. Eu não. Um deles se ergueu e começou a falar com solenidade. - O Pai dos espíritos pode estar enviando conselho e ajuda a Enoque. Pode ser um enviado de outro tempo. Por isto não podemos vê-lo, embora os humanos possam. - Entendo o que dizes. Não podemos vê-lo, a não ser como um fantasma - resumiu um deles, cuja aparência era a de um homem africano, negro na pele, embora seu cabelo fosse liso, fino e completamente escorrido. Enquanto falava, emitia um clarão dos olhos. Foi então que Abellardo entendeu o que o salvara antes. À noite, os olhos dos Nephilims se mostravam iluminados e o clarão difuso no ambiente nada mais era do que a soma de seus olhares. Uma sensação de assombro, perplexidade e euforia percorreu o corpo de Abellardo. - Por que não consultamos os Vigilantes para saber quem é este ser que invadiu o nosso domínio? - Perguntarei a meu pai, o grande Samyasa. Mas temos que aguardá-lo voltar de sua jornada a outros lugares da Terra. Um deles ergueu-se e disse que iria até a floresta próxima à cidade de Enoque - construída por Caim em homenagem ao filho do mesmo nome - a fim de possuir uma mulher que seduzira com perfumes e encantos. Outro também se levantou e disse que estava desenvolvendo um instrumento novo, cortante, e ensinando como fazê-lo aos filhos de Tubalcaim. Os demais, entretanto, disseram que naquela noite invadiriam as tendas dos povoados ao norte para se apoderarem das belas e desejáveis virgens que lá havia. Era como se a missão dos Nephilims fosse reproduzir e, assim, macular a Terra com sua própria espécie indefinida. Logo depois, todos começaram a descer o monte como num séquito, que era tão lindo de se ver quanto terrivelmente apavorante. O andar deles era lento, mas decidido, e seus movimentos eram de forte suavidade. E eles todos recendiam um aroma de ópio líquido. Abellardo entrou de novo no mais profundo da caverna e tentou dormir. À sua mente vieram as imagens e até os cheiros das pessoas que amava, Pensou nos seus filhos e em sua netinha, que àquela altura, doze mil anos adiante, já devia ter nascido. Pediu ao Eterno que com eles estivesse. Mas era estranho. Era como orar a favor de um sonho, de uma impossibilidade, de um futuro tratado como presente. Seu sono foi agitado, cheio de imagens e vozes. Às vezes, no meio do sonho, ouvia a voz de Isaac Porto dizendo que o tiraria dali de qualquer jeito antes que morresse de uma vez. Mas era irreal até mesmo no sonho. Era como se fosse apenas uma voz perdida, dentre as muitas que já lhe haviam engravidado a memória. E também ouvia vozes de outras pessoas, especialmente de uma mulher, que com carinho lhe dizia coisas como: "Você precisa se alimentar, Abellardo”. Acordou muitas vezes. Enfim, quando o dia já começava a pode cobri-lo. Abellardo gostara imensamente da atitude e do espírito sereno daquele jovem. Aguardou-o no mesmo lugar, enquanto ele entrou na casa para logo em seguida voltar com as vestes. Depois de se vestir, Abellardo caminhou meio sem jeito e viu que alguém estava rindo atrás das paredes da casa. - Quem está rindo? - É minha irmã Ayal. Ela está observando você pelas frestas da porta. - Posso conhecê-la? - Ayal, venha até aqui! - chamou o jovem. Ayal era linda. Sua beleza era singela, mas impossível de não ser reverenciada. Havia uma suavidade estonteante em seu modo de andar. Mas o desenho de suas feições não tinha paralelo na concepção que Abellardo tinha de beleza feminina. Além disso, ele também jamais conhecera alguém que possuísse cabelos mais sedosos e com um tom de mel mais natural do que aquela mulher da Antigüidade. - Eu sou Ayal. E você, quem é? - Abellardo Ramez II é o meu nome. - É parente dos egípcios? - Sim e não. - Como sim e não? É ou não é. Abellardo então percebeu que embora milhares de anos houvessem se passado, interpondo-se entre o seu mundo e o de Ayal, a natureza continuava a mesma: os homens com sua praticidade não-curiosa, e as mulheres com sua curiosidade prática. - Eu venho de muito longe. Lá os egípcios se casaram com um povo chamado de índios. Eu nasci deles. - Você é filho dos deuses? - Não. Meus pais não eram deuses, apenas humanos. - Ayal está perguntando isto porque nós sabemos que os egípcios se entregaram aos Vigilantes e os Nephilims reinam sobre eles. O mesmo aconteceu em Ninrode, ao norte daqui, na direção do Éden. Foi então que Abellardo teve coragem para dizer que estava esfomeado e perguntar se eles tinham algo para comer. - Temos pão e frutas - disse Ayal. - Entre em nossa casa - disse o jovem, já andando na direção da porta. - Como é seu nome? - indagou Abellardo. - Maalalael é meu nome - respondeu o moço. Ao entrar, viu que havia fogo ardendo num lugar que parecia tanto um altar quanto um fogão de barro. E o cheiro interior do lugar era doce e acolhedor. Era como se incensos perfumassem o ambiente. Ali havia paz. A Proteção dos Justos Não negligencieis a hospitalidade, pois alguns, praticando-a sem saber; acolheram anjos. Hebreus 13:2 Ayal e Maalalael eram encantadores em sua simplicidade e hospitalidade. A conversa foi de início muito leve. Apenas uma apresentação, mais da parte deles que de Abellardo. Afinal, o que ele diria? Mas como era bom na arte de fazer perguntas, arrancou tudo o que quis daqueles dois irmãos da era pré- diluviana. Ficou sabendo que o lugar onde estava, nas imediações do monte Hermon, era um centro de batalhas universais. A resistência não era aberta - o que seria suicídio -, mas era real. Era só comparar o que os Vigilantes e os Nephilims faziam em outros lugares que daria para perceber a diferença. O progresso deles na conquista das almas naquela região estava longe de poder ser considerado satisfatório. Muitos a eles se entregaram, especialmente algumas mulheres, mas não dava para comparar com o que eles haviam conseguido em outras regiões da Terra, como o Egito. - É por causa de Enos, o primeiro a construir altares dedicados ao Eterno. Enos ensinou que há um só Deus. Ele foi muito respeitado entre nós quando ainda vivia. Enos foi o avô de Enoque - afirmou Maalalael com gravidade. - No tempo dele os Vigilantes serviam ao Eterno. Mas depois de Enos, invadiram o mundo - disse Ayal com ar de quem educava estrangeiros. - E como era o mundo antes deles, Ayal? - Era inferior ao Éden, mas ainda era lindo. Hoje é tudo diferente. Tanta morte. Tanta gente com medo. Tanta angústia noturna. Tanta coisa estranha. Parece até que a Terra virou o inferno. - Eu estou aqui a convite de Enoque. - Enoque? Tem certeza? - perguntaram os dois. - Sim, fui enviado para ajudá-lo. A qualquer momento ele voltará e então seguirei com ele. - E para onde vocês irão? - interpelou Ayal, enquanto Maalalael se levantava para jogar mais lenha no fogo. - Vamos ao encontro dos Vigilantes e dos Nephilims para lhes dizer quão grande foi o seu pecado e como o mundo se enfeou por causa deles. - A Enoque eles respeitam. Você sabe por que eles não atacam Enoque nem seus descendentes? - Não, Maalalael, não sei. Por quê? - Porque eles têm que respeitar os justos. Eles não respeitam a espada, a ciência, a magia, a inteligência, a sabedoria, ou qualquer outra coisa. Eles têm outras coisas em maior virtude e poder do que os humanos. Mas sinceridade de coração eles não possuem mais, desde que caíram. Por isto, sempre que avistam um humano sincero, quando sabem como anda e como pratica o bem, o evitam e dizem até que o temem. - E você, Ayal, já os viu de frente? - Já encontrei Vigilantes e Nephilims que me devoraram de desejo com os olhos, mas nunca me tocaram. Tentam me enfeitiçar, mas passo olhando para a eternidade. - Eles caíram de lá. Respeitam quem está andando para lá. Mas como a maioria não é assim, seus presentes e mágicas conquistam as mulheres, e as que se deitam com eles passam a não gostar mais de homens - acrescentou o irmão. - Usam-nos quando não têm Nephilims, mas, do contrário, evitam os homens - falou a jovem e linda mulher das montanhas do Líbano. - E como tratam Enoque? Eles o respeitam muito, não é mesmo? - Sim. Mas com Enoque tem mais: eles sabem que Enoque fala com o Eterno e que se fizerem algo a ele, o juízo que os aguarda, e que não tardará, será apressado ou realizado na mesma hora. Enoque é aquele que está entre o Criador e os Vigilantes. O mesmo acontece com os Nephilims. Se um deles levantar a mão Contra Enoque para feri-lo, os próprios Vigilantes o matarão - disse o jovem. - Essa é a lei dos justos e dos poderosos. E eles quebraram muitas leis, mas essa não - concluiu Ayal. Nesse ponto da conversa, Abellardo se sentiu mais livre para contar como chegara ali e de onde estava vindo. - Do futuro? O futuro não existe. Só existe hoje. O peregrino de tempos e eras ouviu a resposta de Maalalael com atenção. Olhava para eles e sentia que poderia viver com os dois para sempre. Não fosse casado e tivesse filhos, não hesitaria em propor casamento a Ayal e passar seus dias com ela e o irmão. A presença de Ayal era carregada de genuinidade. E Abellardo, que não era santo convicto nem pecador contumaz, apreciava muito a beleza feminina, mas era atraído pelos modos singelamente encantadores das mulheres que atraem sem querer e sem sentir, como era o caso de Ayal. De repente, Abellardo olhou para os dois irmãos e começou a vê- los como se estivessem cobertos por uma lâmina de água. Eles também o olharam e disseram: - Você está virando homem água-viva. - Tentaram tocá-lo, mas suas mãos atravessaram o corpo de Abellardo, que foi se tornando cada vez menos denso, até que desapareceu. Os aromas doces do Oriente Médio há mais de doze mil anos davam lugar, gradualmente, aos odores da floresta encantada, a terra natal de onde saíra e para onde sempre voltava. Abriu os olhos e viu o rosto de um homem alto, adulto, mas com cara de menino. Olhou de novo em volta e viu um outro homem, baixo e um pouco acima do peso. Havia também uma mulher morena, linda e ativa, que parecia estar cuidando dele. Mas não viu seu amigo Isaac Porco. Crysha, Jócio e Pardal Não sabeis que haveremos de julgar os próprios anjos? Paulo, o apóstolo, aos Coríntios, 6:3 Viu que voltara, mas naquele momento era como se não soubesse mais como entrar no mundo em que nascera. Era como se a Amazônia agora fosse menos sua terra natal do que aquela em que encontrara as raízes de seu ser, antes das Grandes Águas afogarem o planeta. E pensou: "Voltar é mais difícil do que partir quando se está vindo de um mundo maior”! Ficou em silêncio. Não teve pressa em saber quem eram aquelas pessoas e nem onde estava. Lugares já não eram importantes. Dimensões, sim. Estas eram essenciais. Quieta, silenciosa e sutilmente, foi aos poucos se abraçando e se assumindo de volta. Achava que se fizesse isto com muita pressa poderia apagar alguma emoção ou memória, e para ele, guardá-las era a única forma de garantir seu acesso entre cada um daqueles mundos. - Você está melhor? Achamos que não teríamos o prazer de conhecê-lo consciente. Deu a impressão de que seu estado era mais profundo do que a própria febre e que seus delírios eram mais reais do que este mundo - falou a mulher. - Que lugar é este e onde está Isaac Porto? - Aqui é Nasa Lhi Myak, uma das ilhas do rio Urubu. E Isaac Porto foi ver se consegue um meio de tirar vocês daqui - disse o homem alto com cara de menino. - E quem são vocês? - Eu sou Jócio Arruda. - Eu sou Crysha e ele, o gigante que falou onde Isaac foi, é o Pardal. - E o que vocês três estão fazendo aqui? - Fazemos parte de uma expedição científica que estuda essa região, buscando novos medicamentos em raízes e folhas - respondeu Crysha. - Biodiversidade! E qual é a especialização de cada um de vocês? - Eu sou paleontobiofarmacologista. Um palavrão. E estou buscando não só novas formas de elementos curativos, mas também entender o que os indígenas fazem para se curar. Crysha era decoradora de interiores, mas descobriu que tem uma conexão especial com a natureza. Ela sente as coisas, sabe até se as árvores estão sofrendo ou se as coletas de material que fazemos nos ajudarão concluiu - Jócio, enquanto Crysha já iniciava uma explicação. - Tem gente que pensa que sou bruxa, só porque sinto isto. Sei apenas que tenho esse dom. Também sinto as sutilezas de certas energias. Por exemplo, você me passou a impressão de que está carregado com imagens mais fortes do que posso imaginar. Estou errada? - Não. Você está cerca. Mas e você, Pardal, o que faz aqui? - Pô, cara, meu negócio é computador e análise de substâncias químicas medicinais. A Crysha sente os materiais, Jócio classifica e busca entender sua história natural e aplicações. Eu destrincho quimicamente e analiso as coisas. - Há quanto tempo vocês estão aqui? - Chegamos há uns seis meses. Mas pra mim é como se fosse a vida toda. Sabe, chego a me perguntar por que é que não nasci aqui - falou Crysha com seu ar místico e indagativo. - Eu nasci na região. Fiquei fora por muitos anos, mas nunca consegui tirar isto aqui de dentro de mim. Mágica pega - afirmou Abellardo, perguntando se eles sabiam se Isaac Porto voltaria logo. - Acho que não demora. Até o fim da tarde deve estar voltando - falou Pardal com uma expressão extremamente confiável, como a de uma criança. - E seu senso de espiritualidade é todo religioso ou você também foi influenciado pelas pessoas da região? - indagou Crysha com o olhar marcado por ternura enquanto jogava seus longos cabelos negros para as costas. - Recebo influências de tudo e de todos, mas julgo tudo tendo o Livro dos Livros como referência. - Eu sei que você está cansado. Mas dá pra dar um exemplo? Abellardo não esperou muito para responder ao pedido de Crysha. Como se aqueles dias de febre nada tivessem significado, começou, ainda que ofegantemente, a declamar um de seus poemas prediletos. Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida e que de mãos dadas trabalharemos todos pela vida verdadeira. Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo. Fica decretado que a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas e que os girassóis terão direito a abrir-se na sombra e que as janelas devem permanecer o dia inteiro abertas para o verde, onde cresce a esperança. Fica decretado que o homem não precisará mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino. Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura das palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa. gelada que aquele pequeno afluente do rio Urubu lhe oferecia, com a certeza de que mais cedo ou mais tarde seria inevitável. - O rio me chama. Mas vou atender você, Crysha. Mais tarde, quem sabe, não é? Você deixa? Crysha riu como quem sabia que o se passava no coração de Abellardo Ramez. Olhou fixamente nos olhos dele: - Você não me engana. Sei o que você está pensando, mas nem pense nisso. Chega de febre. Ou então você vai coser, meu querido. A mulher era realmente linda. Morena de estatura mediana tinha cabelos longos, escorridos sobre os ombros, cintura fina, boca generosa, lábios carnudos e pernas muito bem-feitas. E andava de um lado para o outro diante de Abellardo enquanto arrumava o lugar. Até que seus olhos se encontraram e Crysha demonstrou claramente o embaraço com o olhar do visitante. Meio sem graça, sorriu com encanto, desviando o olhar. Mas tornou-se agitada, caminhando nervosa enquanto limpava a cozinha. Voltou-se e olhou para ele. Deu um suspiro. - Você é linda! - disse Abellardo, olhando fixo nos olhos dela, alternando a expressão pura daquela constatação com a revelação de quão impressionado estava com a sua beleza. - E você aprecia muito a beleza feminina? - indagou Crysha com luz nos olhos. - É claro. Mas conheço muita gente que faz de conta que não vê. - Com assim? - É que há muita culpa desnecessária. Os anjos caídos conseguiram nos levar para dois extremos. Um é o culto ao belo. O outro é decorrente do trauma do culto ao belo, que é a negação da beleza. Eu sou religioso. E entre os meus irmãos tem muita gente traumatizada com o belo. - Como anjos caídos? E anjo gosta de beleza? - Bem, esta é uma longa história. - Fiquei curiosa! Me conta? - Só um pouco, certo? - Por favor! - Veja, São Paulo advertiu sobre os encantos que as mulheres exerciam sobre os anjos. E falou sobre isto às mulheres cristãs da cidade marítima de Corinto. - Na Grécia, certo? Península do Peloponeso! - É. E lá, sexo era algo tão forte na cultura local, que o templo de Afrodite, erigido sobre a Acrópole, era habitado por prostitutas sacerdotais, que se ofereciam como intermediárias entre os deuses e os homens. - Entendi: o elo só era feito se elas fossem possuídas! - exclamou Crysha com cara de moleca. - É, e tal era a força da atração que as mulheres podiam exercer sobre os anjos ou espíritos, o que o apóstolo disse: "Por causa dos anjos, as mulheres devem ter a cabeça coberta por um véu quando cultuarem.” - E qual o significado desse véu? - Exousia é a palavra grega. Significa autoridade. E, nesse caso, deveria ser um gesto de submissão e fidelidade das mulheres a seus maridos. - Essa interpretação é unânime? - Não. Nem de longe. Para mim ela tem razão de ser. Mas muitos fazem objeção. - Você disse que é religioso, então me responda: Você acha que o Criador criou a beleza física para ser apreciada? - indagou Crysha com voz macia e olhar quase insinuante. - Claro. Nada é para ser desperdiçado na criação. Você já percebeu que dentro do corpo os órgãos ocupam espaços esteticamente desorganizados? - Como? Você quer dizer que no interior do corpo a ordem é diferente? - É. Pense na localização do coração, por exemplo! - O coração não fica no centro, como vários outros órgãos! Mas e daí? - Veja só, o critério do lado de dentro é o conforto e a funcionalidade. Já do lado de fora, tudo é simétrico. As formas do corpo obedecem ao padrão do belo, do apreciável, e são harmônicas. Pra mim, há uma mensagem implícita nisso. Sabe qual é? - Não tenho a menor idéia! - exclamou ela, não como quem não sabia, mas como alguém que deseja ouvir um galanteio. - O Criador criou as formas para impressionar os olhos e criou os olhos para apreciar as formas - disse Abellardo com um ar de contemplação grata enquanto olhava para Crysha. - Lindo! No fundo está tudo integrado. - Só tem um detalhe. Uma coisa é apreciar e reconhecer. Outra é a lascívia de querer possuir. - Não vejo diferença! - Mas há! E muita! Crysha sorriu, mas não disse nada. Passou a se dedicar às suas tarefas. Abellardo, entretanto, resolveu andar pela floresta. Enquanto caminhava, meditava em tudo o que lhe estava acontecendo. Sentiu um forte desejo de compartilhar aquilo com eles. Afinal, já o fizera com Isaac Porto. Mas no fundo achava que Isaac, por ser da região, talvez o entendesse melhor do que os demais. Entretanto, no íntimo sabia que ter caído ali, entre um grupo tão seleto de pessoas, não era casualidade. Certamente haveria uma conexão entre tudo aquilo, mas ele não se apressaria em forçar nada. Se acontecesse espontaneamente, aceitaria. Mas não imporia sua missão sobre os outros. À noite comeram juntos. Eram pratos típicos do lugar, que a essa altura Crysha já cozinhava muito bem. Enquanto comiam, Abellardo considerava as reviravoltas que sua vida experimentara. Aproveitou que ainda estava agradavelmente enfraquecido e deixou-se levar pelo fluxo de uma emoção de tranqüilidade que geralmente acompanha aqueles que descobriram coisas essenciais durante a fraqueza. - Fogo aceso, moçada! Venham para cá! Está bom à beça - chamou Jócio, acrescentando que adorava fogo. Sem esforço ou sacrifício, todos se aconchegaram em volta da fogueira. - Estou achando essa demora do Isaac estranha. - Não esquenta, Abellardo! Ele chega a qualquer hora. É que é longe mesmo. Aqui tudo é longe. Parece que o mundo aqui é maior. Tudo é grande - disse Pardal, sem perceber que estava ensinando o padre a rezar a missa. Afinal, Abellardo era da região. - Grande? Isso aqui é descomunal! E não é grande apenas porque é gigantesco. É grande porque há coisas aqui em maior quantidade do que no resto do mundo todo – afirmou Jócio, obviamente fazendo alusão aos mundos microscópicos que estudava. - Esse lugar tem o maior acúmulo de vibrações naturais de todo o planeta. Às vezes sinto até as alegrias dessa Criação. - A Crysha tem esses negócios - remendou Jócio como que temeroso que Abellardo a tomasse por excessivamente mística. - Legal! - foi tudo o que Abellardo disse. - Olhe, para mim, parece que aplaudem quem os fez, e eu também aplaudo, é claro. - Para mim também, Crysha. Isto aqui é uma grande catedral. Às vezes, me sinto como quem participa de um ritual. - Taí. Você acertou em cheio. É como estar abraçado pela vida deuses e os indícios de sua existência na história universal. Desde menino me interesso por essas coisas. - Você estuda isso, Jócio? Que surpresa! - exclamou Abellardo, achando que caíra no melhor dos mundos. Jócio prosseguiu, dizendo que no início achava que tudo era fruto da imaginação. Em seguida acreditou que os "deuses eram astronautas". Mas depois veio a achar que não fazia sentido ser dogmático sobre o tema. - E hoje? O que você pensa? - Não sei. Confesso que não sei Abellardo! - Mas qual é sua inclinação? - Não quero polemizar, Abellardo. Você pode estar certo. Eu apenas não sei. Mas podem até ser seres de outras galáxias! - Acho difícil, Jócio, uma outra civilização vir aqui só pelo prazer de moldar nossa cultura. Sendo capazes de viagens tão longas pelo espaço, por que se dedicarem a construir campos de pouso entre nós, como os desenhos de Nazca, no deserto do Peru, ou em vários outros lugares do mundo? Não dá pra mim. - Como eu disse, não tenho opinião formada. Mas pode ser. Às vezes eu penso como você. - Pensa como ele? Como, Jócio? - Às vezes eu acho que poderiam ser anjos, como O Abellardo diz. Mas não tenho como fundamentar isso, Crysha! - E você, Abellardo? Sempre pensou assim? - Não, Crysha. No princípio, especialmente na juventude, eu acreditava nesta mesma teoria de Jócio. Naquele tempo era moda. Depois comecei a achar que esses mitos eram no máximo exageros de coisas que haviam acontecido no passado, só que os personagens não eram alienígenas de outra galáxia, mas seres de outra dimensão, com gente daqui mesmo. - Mas que teve coisa alienígena, teve sim! Tem saltos no saber humano que não são coerentes com a evolução. Especialmente na Antigüidade - disse Jócio, mostrando que era afeito àqueles assuntos. - Jócio, você já leu sobre os mapas antigos? Há mapas do século XVI que têm informações precisas de como abaixo da calota polar Antártica há dois continentes separados, mas que só podem ser vistos por satélite, porque há mais de uma milha de gelo cobrindo ambos, fazendo dos dois um aos nossos olhos. É simplesmente incrível. - Olhe Abellardo, e eu li que o cara que desenhou o mapa explicou por que o dele era tão preciso e diferente: achara-o em fragmentos de mapas antiqüíssimos, usados pelos fenícios e outro aventureiros dos mares. - Como eles sabiam que havia dois continentes ali se a Era Glacial havia começado muito antes? - inquiriu Pardal. - Para mim não há dúvida de que isso era parte de um acervo muito mais antigo - interpôs-se Abellardo. - Mas olhe aqui. Eu também já li sobre os Vigilantes e os Nephilims, e acho que eles também podem ter tido algum papel na Antigüidade! - Ah, é? E onde foi que você leu sobre isso, Jócio? - Com meu pai, Crysha. Ele acreditava na história. Ultimamente ando até sonhando com gigantes! - Como sonhando com gigantes? - Besteira, Crysha! - desconversou Jócio. - Besteira, hem? Eu também ando sonhando com uns caras enormes! - Desde quando, Pardal? - Sei lá! Uma semana. Deve ser isto, Crysha. Uma semana. Subitamente, sem dar maiores justificativas para sua mudança de postura, Jócio disse: - Acho que nosso mundo só está começando a descobrir os vestígios desse tempo antigo, quando as ciências foram dadas aos humanos por seres de outra ordem, ou, como estamos falando, os Vigilantes e os Nephilims. Certo, Abellardo? Abellardo achou estranho o modo como Jócio mudou de opinião. Teve o ímpeto de perguntar por que, mas achou que poderia soar provocativo. Por isto, apenas prosseguiu conversando. - Jócio, acho legal que você se interesse por essas coisas. Eu acredito que fui levado para lá por causa de uma tese que tenho - disse. Pardal estava nitidamente curioso. Revelava um desejo estranho de aprender o máximo que pudesse. Por isto, olhou para Abellardo e indagou: - E que tese é essa? Abellardo falou-lhes que o Dilúvio não eliminara o efeito da cultura dos gigantes na Terra. Mesmo depois, ainda havia descendentes dos gigantes, como os Refains, os Amins e os Enaquins. E disse-lhes que, apesar de terem sido mortos, eles sobreviveram na forma de mitos, e sua influência se manteve presente no mundo. Crysha estava em estado de estupefação. Sem se conter, indagou que influências eram essas a que ele fazia referência. Abellardo, então, disse que muitas coisas - como a maneira de conceber a beleza, as dietas alimentares, a busca insaciável de prazer, as ciências, as religiões, as mágicas, a espiritualidade natural e a consciência de localização cósmica haviam sido herdadas daqueles seres e de sua sabedoria. E acrescentou que também o vampirismo, as buscas de experiências de alteração de consciência e a redescoberta da ciência das pedras, cada uma daquelas coisas tinha suas raízes naquele tempo. Jócio Arruda mostrava inquietação, revelando ansiedade e curiosidade sobre o tema. E quando Abellardo fez uma pequena pausa, o paleontobiofarmacologista aproveitou para indagar: - Se os caras que estavam com Noé foram os únicos a se salvarem, conforme os relatos encontrados, como foi, então, que tudo se desenvolveu a ponto de nos afetar, mesmo depois dos caras terem sido riscados da Terra? Abellardo o ouviu com extrema atenção e, mesmo não querendo ser mais afirmativo que o bom senso mandava não resistiu e falou: - Eu acredito que a cultura dos Nephilims fez a seguinte viagem: Noé e seus filhos eram homens daquela geração, e eles sonharam com aquilo, mesmo que tenha sido na forma de pesadelos. E o que você sonha, você projeta para adiante. Os sonhos são a substância do que um dia se materializará como futuro. Depois, eu creio, a própria natureza ficou marcada por aquele tempo, pois o caminho de todo ser vivente se havia corrompido. Além disso, creio que os Vigilantes Universais e os Nephilims alteraram o Armazém de Todos os Sonhos da humanidade. - Você tá dizendo "eu creio" o tempo todo. Isto é fé ou é ciência? - Crysha, e o que não é fé? E o que não é ciência? Ciência e fé sempre estão juntas, mesmo quando se digladiam. Mas haverá um dia em que toda ciência será fé e toda fé será ciência. Nesse dia, se saberá que o instinto está para a animalidade da alma assim como a intuição está para o psiquismo do espírito. - Peraí. Ou é corpo ou é alma ou é espírito! Mas "animalidade da alma" e "psiquismo do espírito" não combinam. - Discordo, Jócio. As três dimensões só são separáveis para fins pedagógicos. Mas elas se interpenetram. - E o que você pensa que é a energia do espírito? - Olhe, Crysha, eu não sei. Sei que Deus é espírito. Mas não sei o que é um espírito, apesar de eu ser um espírito. Mas creio que quanto mais a ciência aprofundar a física quântica, mais perto concordar. - Exatamente, Isaac. Tem gente que chama isso de inconsciente coletivo - disse. - Piorou a explicação. Sempre achei que inconsciente coletivo era pegar o ônibus errado. Abellardo deu uma gostosa gargalhada do humor do caboclo. Mas Crysha estava inquieta. Queria que a conversa prosseguisse exatamente onde Isaac a havia interrompido. Por isto, foi logo dizendo: - Mas fale do Armazém de Todos os Sonhos, Abellardo! A resposta do peregrino do tempo e das eras foi pronta: - Eu creio que a presença deles na Terra deu muito mais densidade à produção das coisas do inconsciente humano. Os sonhos passaram a ser sonhos não com o que o inconsciente criava, mas com o que ele também lembrava das manifestações do outro mundo que invadiu o nosso. - Então, os monstros não são fabricações da alma, são lembranças e constatações dela! - exclamou Crysha, como se tivesse sido atingida por uma revelação. De saída, Abellardo nada disse. Apenas fixou o olhar na beleza do rosto bem-feito daquela quase estranha, mas que se impunha no relacionamento como se tempo, para ela, nada significasse a quanto construir confiança e sinceridade. E para Abellardo, era impossível deixar de perceber que nascera entre eles uma conexão de alma que ele não sabia nem como explicar. Refeito dessa parada, tentou se ressintonizar ao fluxo da conversa. Então, com o rosto iluminado, olhando para ela, disse: - É, e com o nascimento dos Nephilims, passaram a existir anjos humanos sonhando e fazendo sonhar. Então, esses sonhos se tornaram mais densos do que o dos humanos e acabaram provocando o aparecimento de uma camada psíquica, onde eles foram armazenados, surgindo assim a grande rede mundial. Acho que, na Antigüidade, quem chegou mais perto dessa compreensão foi São Paulo, quando falou das "potestades do ar". - Que negócio é esse de potestade? - indagou o caboclo Isaac Porto. Abellardo, entretanto, achava que a ignorância de Isaac era, no mínimo, pedagógica, pois o forçava a simplificar as coisas. Além disso, ele sabia que gente mais culta, como era o caso dos outros três, às vezes não pergunta sobre algo que não sabe apenas porque aquele que fala aparenta, muitas vezes até inconscientemente, achar que aquela informação é de domínio público, o que, na maioria dos casos, não é. Por isto, explicou a Isaac, ainda que se dirigindo a todos: - As potestades do ar são alguns dos poderes invisíveis. É uma forma antiga de falar que no mundo invisível há poderes reais. Há os principados, que são as hierarquias organizadas desse mundo de arcanjos, querubins, serafins, anjos e seres de outra criação. Mas há também as potestades do ar, as forças invisíveis que aí estão. Nesse sentido, eu creio que o Armazém de Todos os Sonhos da humanidade virou uma dessas camadas de força involuntária. - Gostei do modo como você definiu a idéia: Armazém de Todos os Sonhos - disse Crysha, para em seguida acrescentar que gostava do modo calmo e poético com o qual Abellardo se expressava. Abellardo também apreciava o modo como Crysha relia tudo o que ele dizia e, sobretudo, como ela captava as coisas nas ênfases que ele pretendia dar a cada uma delas. Ao ouvir Crysha mencionar o Armazém de Todos os Sonhos, mais empolgado ficou. Então, disse: - É tudo o que a gente pensa, sente, sonha, deseja e aspira especialmente aquelas coisas que nos acontecem quando estamos dormindo. E eu penso que os sonhos dos Nephilims dilataram essa camada, tornando-a muito mais veloz e ampla que antes. - Virgem Abellardo! Eu sonho um monte de besteira. Sabe a mulher da farinha? Eu repito aquela farofa de vez em quando; tô sonhando. Isso vai pra lá também? Tá no estoque do armazém? - Está sim, amigo Isaac! Está lá! Pardal ouvia aquilo tudo com uma certa impaciência. Mesmo não sendo culto naqueles assuntos, era inteligente o suficiente para entender a extensão do tema e como suas implicações eram muito mais amplas do que, à primeira vista, alguém poderia imaginar. - Que loucura, bicho. Eles pegaram o nosso hardware e melhoraram. Pegaram o nosso software e o fizeram ficar mais amplo e mais veloz, e colocaram linguagens e janelas novas. Os programas que temos hoje ainda são como brinquedos de criança para a gente se divertir, se comparados a essa rede invisível disse. Me diga uma coisa, Abellardo. O que você está dizendo é que eles provocaram um dilúvio psíquico, uma espécie de inundação de imagens e projeções deles mesmos em nossas memórias coletivas e até mesmo nas nossas almas? - indagou Jócio, batendo a areia da perna. - É. Mas isso também tem seu lado positivo, embora seja menor do que o mal que fizeram, pois só é positivo em relação a quem nós somos hoje, e uma tragédia se comparado a quem nós éramos antes disso acontecer. - Como assim? O que você quer dizer? O olhar de Abellardo se perdeu no tempo. A pergunta de Crysha o remetera para a Antigüidade e seus aromas, faces e energias. - Olhe, vendo gente como Enoque, Ayal e Maalalael, eu sei hoje que a humanidade não é como já foi. E repare que eles já vieram depois da primeira catástrofe, aquela lá da árvore do Conhecimento do Bem e do Mal - respondeu claramente contemplativo. - Hoje a gente usa no máximo dez por cento da nossa capacidade cerebral - acrescentou Jócio, olhando de modo inquieto para o rosto de cada um deles, como se aquilo que dissera fosse uma dádiva divina, um saber inusitado. E continuou: - O que você acha Abellardo? Os humanos já usaram sua capacidade mental em plenitude? Ou será que estamos ainda a caminho de usar? Abellardo olhou para o alto, para o céu absurdamente estrelado, e disse que acreditava que no futuro ainda usaríamos tudo o que de fato recebemos como dons do Criador. Todavia, outra vez remetido para o passado, disse: - No Jardim Perdido se usava tudo. Era por isso que eles falavam com animais, se comunicavam com a natureza, viam anjos, ouviam a voz de Deus e viviam em harmonia universal. Mesmo depois dessa queda eles ainda eram muito superiores a nós, mental e espiritualmente. O dom de Crysha de intuir é ainda uma imagem pálida do que eles tinham. Mas preste atenção: eu não estou falando só do cérebro. Falo da mente: cérebro, alma e espírito. - Desculpa, mas você tá dizendo que a gente tá morrendo bem piorado? Todos riram de Isaac, mas o clima não comportava risos muito longos. Aquele grupo de pessoas carregava dentro de si noções do que a vida era e, pela diversidade e pelos saberes acumulados e especializados de cada um deles, era naquele momento melhor que o melhor ajuntamento de pessoas que Abellardo poderia ter almejado. - Eu estou interessada em continuar um pouco mais nesse - Não lembro Abellardo. Mas já ouvi isso em algum lugar. - Incrível! Eu sonhei com essa mesma frase. Ficava repetindo na minha cabeça. - Ah, é? E quando foi isso, Jócio? - Não lembro. Mas foi há um mês, mais ou menos. E de lá pra cá esse negócio aparece na minha cabeça de vez em quando. - Pô, cara. Muito doido. E você não me disse nada. Acho que sonhei também. Só sei que ela está em mim - confessou Pardal, tomado de surpresa e com ar de encontro com o inusitado. - Interessante! Vocês dois tiveram o mesmo sonho, com a mesma frase, e ela se tornou insistente. Incrível! No avião, quando vinha pra cá, meu amigo João Passarinho também falou a mesma frase! - exclamou Abellardo, e concluiu: Olha só o Armazém de Todos os Sonhos! - Eu não tô compreendendo mais nada faz tempo. Enquanto o negócio era Inhoque e seufilhin, tava dando. Agora com esse negócio de Ciência de Pedra e do Armazém dos Pesadelos, não dá pra um caboclo como eu. Isso aí num chega aqui na floresta não, né? - Não chega aqui, não, Isaac - falou Crysha. - Essa Ciência das Pedras é máquina, né? Esse bicho é feito de pedra que pensa. É isso? Me fala Pardal, você que voa nesse ar maluco aí. - É máquina, sim. Mas a ciência já faz esses bichos se corrigirem a si mesmos e eles estão começando a pensar. Mas é claro que aqui na floresta, você, por enquanto, está livre desse bicho. - E o que se faz diante de tudo isto, Abellardo? - Olhe, Crysha, por enquanto, nada. Mas creio que não tenhamos de ir ao encontro disso. Isto está vindo ao nosso encontro. Eu mesmo sou testemunha de que há alguma mão se movendo para nos fazer estar aqui, juntos, nessa grande plurincidência. Abellardo Ramez, encantado que estava pelos sons de aves, grilos, sapos, guaribas e corujas, falou com voz quase sinistra e olhar fixo na escuridão do rio Urubu, que não estava apenas escuro naquela noite, mas apavorantemente enigmático. - Esse negócio de grande mão botando a gente nessa me assombra. - Assusta por quê, Isaac? - Mano Abellardo, desde que conheci você minha vidinha mudou. - Mudou como, Isaac? - Mana Crysha perdi meu barco, tô aqui no meio do mato, e agora tô falando em uns negócios que só fala sobre eles gente que bebe água de lavadeira, ou gente que corre atrás de sombra de avião, ou que rasga dinheiro... Eu num faço isso. - Mas... E a mão, onde entra, Isaac? - Meu compadre Abellardo, depois de tudo, você ainda fala dessa mão? Meu Deus, numa escuridão desgraçada dessa, eu não preciso ficar pensando numa grande mão botando a gente junto. Tudo bem. Você pode ir pra lá com os cabras quando quiser. Mas não segura em mim quando for. Me deixa aqui que tá melhor. - Você está arrependido, Isaac Porto? – instigou Jócio com cara de quem se divertia. - Tô e não tô. É o tal do se pudesse, eu não queria, e se eu quisesse, não podia né? - E o que isto quer dizer, Isaac? - Pardal, isso quer dizer: tá danado! Tô num mato sem cachorro. Ademais, criatura, Abellardo vai pra lá, mas eu fico aqui assuntando ele, vigiando, arrodiando ele, sem dormir. - Mas você quer desistir? Ainda dá tempo. - Dona Crysha, querer, eu quero. Mas poder, num posso. - Mas... E quais são suas razões para não desistir? O Abellardo é só um cliente, Isaac. - Só um cliente, hem? Que é isso, Pardal? Nunca tive cliente assim. Esse Abellardo já quase morreu comigo. E a gente leu o livrinho do seu Inhoque junto. Até chorei, né? Não tenho vergonha de dizer, não. Chorei. O negócio é muito bonito. Então, mesmo não querendo ficar, eu fico. Não dá pra largar o Abellardo com os seufilhin. Faz parte dos meus princípios. Mas pode ser também meu fim, né? Isaac Porto era o toque que faltava para relaxar as tensões. Todos riam e todos o entendiam. E mais que isso: todos respeitavam sua inteligência bruta e consideravam o que ele acabara de falar. De fato, aquela história tinha em si mesma o poder de seduzir e desafiar a qualquer um. Afinal, era a história da sedução mais trágica que já havia ocorrido no planeta. Por isto, aqueles que a ouviam não conseguiam ficar indiferentes. Aquele mal era contagioso. E, pelo visto, todos ali estavam irremediavelmente contaminados. . Além disso gostavam muito do jeito como Isaac fazia pouco de si mesmo. No fundo, ao apreciá-lo por seus modos, eles diziam entender que, diante de grandes batalhas, o que se pede é coragem e uma boa dose de irresponsabilidade, pois os melhores heróis são os que morrem pelas causas, se necessário for, mas levam o ideal muito mais a sério que a si mesmos. E eles sabiam que é horrível conviver com heróis que pensam que o que dá valor às lutas é a sua presença na peleja. Desse modo, o bom herói, naquele caso, tinha que ser como Isaac Porto, que vence sem nem bem saber por quê. O fogo já estava minguando. Um vento frio soprava do rio Urubu na direção da praia. Era hora de tentar dormir. Se é que alguém conseguiria, é claro. O Livro dos Juízos Quanto a estes foi que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que veio o Senhor entre suas miríades, para exercer juízo contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as palavras insolentes que ímpios pecadores proferiram contra ele. Judas, irmão do Senhor Os sons da floresta eram ouvidos por todos. Os cinco que ali estavam pareciam estar começando a se sentir profundamente ligados. Como por encanto eles se apanharam vendo a vida com os olhos uns dos outros, mesmo ali, deitados, cada um em seu canto, mas tendo lampejos do que deveria ser viver na pele um do outro. E sentiam que haviam sido expostos a uma revelação. - Não estou conseguindo dormir - disse Jócio, e começou a se embalar na rede, que rangia magicamente, como canto de ninar em noite de chuva. - Ninguém está, e a gente sabe porquê - disse Crysha. - Me deu até uma idéia! Abellardo, por que você não lê um pouco do Inhoque pra nós? O livrinho tá bem ali, guardadinho. Quer que eu pegue?! perguntou, afirmando, Isaac Porto. Antes que o peregrino de tempos e eras dissesse qualquer coisa, os quatro já estavam em pé. Ele nem se deu ao trabalho de responder. Ergueu-se e andou na direção apontada por Isaac. Pegou o livro e saiu a caminho do fogo. Apanhou mais lenha, jogou na fogueira, e sentou-se na cadeira de espreguiçar que ali estava. Todos vieram e se sentaram em silêncio ao seu redor. Havia solenidade no ambiente. pois Ele disse que os amarrará na Terra por tanto tempo quantos sejam os dias nela. Mas antes de tudo isto assistirão à destruição de seus amados filhos: não os possuirão, pois eles cairão diante de seus olhos, mortos à espada. Assim, não chorarão por eles e nem por vocês mesmos, pois chorarão e suplicarão em silêncio. Desse modo, a despeito de suas lágrimas e prantos, não receberão nenhum benefício de todas as palavras contidas no livro de orações que escrevi.” Depois disso tive outra visão, e nessa visão as nuvens e as neblinas me convidavam, estrelas inquietas e relâmpagos nervosos me impeliam à frente, enquanto ventos me erguiam e aceleravam meu progresso. Fui elevado acima dos céus até que cheguei a uma muralha construída com pedras de cristal. Uma língua de fogo me rodeava e me fez sentir um forte pavor. Dentro dessa língua de fogo eu entrei e fui levado pela estreiteza de um lugar que se tornou espaçoso, também construído com pedras de cristal. Suas muralhas e sua cobertura eram feitas de pedras de cristal, bem como o chão. O seu teto tinha a aparência de estrelas em grande agitação e de relâmpagos quando cruzam o céu. No meio deles havia querubins de fogo se movendo em uma tempestade celeste. Chamas de fogo ardiam ao redor das muralhas; os seus portais eram abrasados. Quando entrei nesse lugar, senti que ele era quente como o fogo e tão frio quanto o gelo. Lá não havia um único sinal de vida ou deleite. Grande terror se apoderou de mim e um incontrolável pavor me possuiu. Tremi violentamente, fui grandemente agitado, caí com o rosto no chão e então vi que havia uma outra habitação ainda maior do que a primeira, e cada entrada para ela estava aberta diante de mim. Ela estava construída dentro de uma chama tremulante. - Gente, vocês perceberam que essa visão vai de dimensão para dimensão e que as noções de espaço, como a gente as entende aqui, não têm qualquer significado lá? Reparem, ele vai de uma dimensão para outra numa chama de fogo que estava dentro da primeira visão, e por ela ele é lançado para dentro de algo maior - comentou Pardal, percebendo com sua mente de programador que havia pontos de conexão de um ambiente para o outro. - Windows! Que coisa linda e louca! – exclamou Jócio. - Estou indo então, gente. Já são quatro da manhã. Vou adiante? - indagou Abellardo. - Nem pense em parar - disse Crysha, com aquela autoridade que as mulheres exercitam quando sabem que estão completamente do lado da verdade. Sua glória era excelsa em todos os aspectos, e sua magnitude, beleza e esplendor não são possíveis de descrever aos mortais. Seu piso era de fogo. Acima havia estrelas passando em grande velocidade e relâmpagos cruzavam o espaço. Sobre ele havia uma cobertura de fogo ardente. Cuidadosamente, olhei o lugar e vi que nele havia um trono de grande exaltação. Sua aparência era como a do gelo no inverno, enquanto sua circunferência se assemelhava ao brilho que circunda o sol. Então ouvi a voz de um querubim. De sob o trono emanavam rios de fogo ardente. Era impossível contemplar. Então, Um com grande glória sentou-se sobre o trono. Suas vestes brilhavam mais que o sol e eram mais alvas do que a neve. Nenhum anjo era capacitado a entrar no lugar para ver-Lhe a Glória e a Refulgência de Sua face, nem tampouco qualquer mortal poderia contemplá-Lo. Fogo ardente havia à Sua volta. Também algo como um grande incêndio ardia à Sua frente. Assim, nenhum dos que O cercavam poderia Dele se aproximar, e eram miríades de miríades. Para Ele não havia conselhos santos. Nenhum dos santificados que O assistiam saíam de Sua presença, nem de dia, nem de noite. Eu estava muito à frente, com o rosto coberto por um véu, e tremia. Então o Senhor, com sua própria boca, me chamou e disse: “Aproxima-te, Enoque, e vem”. Então, Ele me ergueu e me fez chegar próximo à entrada. Meus olhos continuavam voltados para o chão. - Vocês sabem, diante de uma visão dessas, como é que alguém pode levantar a cabeça? Essa visão de Deus me faz querer ser apenas uma criatura para poder adorá-Lo. É uma pena que a religião apresente, na maioria das vezes, um deus tão sem glória, tão pequeno, tão distante de Deus. Talvez seja por isso que gente que pensa não se sinta estimulada a adorá-Lo. Mas para Esse, para o Eterno, sinto vontade de dobrar os meus joelhos. E, ao dizer isto, Crysha, sem esperar consentimento ou concordância, foi se jogando com o rosto na areia branca da praia e ali ficou em silêncio. Abellardo parou a leitura. Então, um a um, eles foram fazendo a mesma coisa. Até mesmo Isaac Porto, meio desajeitadamente, se curvou com clara reverência. Ninguém falou ou fez orações audíveis. Entregaram-se ao silêncio e assim ficaram por muito tempo. Então, Crysha se levantou do chão: - Sinto que nasci para viver este momento. Se partir agora, sei que achei o significado de minha existência. Estou pronta - disse. A gravidade e a solenidade daquela hora eram impossíveis de ser descritas. Ninguém queria fazer outra coisa a não ser contemplar, através dos olhos de Enoque, a indescritibilidade daqueles lugares apavorantes e sublimes. O dia já mostrava suas primeiras luzes, mas nenhum deles sentia sono. Era como se cronos, o tempo que se mede para a frente na linearidade que vai do passado ao futuro, subitamente tivesse sido suspenso. Eles tiveram uma pequena idéia da eternidade e a ela se haviam afeiçoado mais do que a qualquer outra paixão. Era como se todas as perguntas tivessem sido respondidas sem que houvesse necessidade de explicação. E, sobretudo, lhes era comum uma percepção. Ali, às margens do rio Urubu, eles haviam visto a refulgência da luz do Criador do Universo e haviam descoberto quem eles eram. Foi só depois de se refazerem do colapso para dentro do sublime que Abellardo, sem fazer perguntas, prosseguiu a leitura. Então Ele se dirigiu a mim e disse: "Ouve e não teme, Ó justo Enoque, pois tu és escriba da justiça. Aproxima-te de mim e ouve minha voz. Vai e diz aos Vigilantes dos céus que te enviaram para que intercedesses por eles. Tu foste feito para orar pelos homens e não os homens por ti. Diz a eles: 'Acaso não fostes vós os que abandonastes a santidade dos céus que duram para sempre para vos deitardes com mulheres? Acaso não fostes vós os que tomastes para vós outras filhas de homens e as desposastes, e assim agistes como os filhos da Terra e gerastes uma geração de gigantes? Sim, vós sendo espiritual, santo, e possuindo vida eterna, vos poluístes com mulheres e com seu sangue, sucumbindo aos desejos do sangue dos homens, e assim agistes como aqueles que Eles dizem que se revelarem serão mortos pelos descendentes desse rei, que ainda vivem numa tribo localizada há umas duas horas daqui. - E vocês já estiveram nessa tribo? - Já passamos perto, mas achamos que nunca deveríamos chegar lá - disse Pardal. - Vontade eu já tive, mas esses dois homens valentes aí nunca deixaram - falou Crysha, olhando para Jócio e Pardal. - Você não tá pensando em ir lá não, tá? Não brinca comigo... Me diz que você não tá - falou Isaac, com os olhos fixos em Abellardo. - Não sei. Mas tem algo aqui nesse lugar que me passa um sentimento de afinidade com o que estou vivendo. Não sei explicar. É só isso. - É bom ser, né? Se você for, me diz que é pra eu pular na água e nadar pra beira. Num vou nem mortinho. Vou nada! Me tira dessa, tá? Depois, tá quente pra caramba. Que sol danado de quente. Se um cabra daqui morre e vai pro inferno, pede um minutinho pra voltar só pra pegar um agasalho. Riram de Isaac Porto e começaram a descer o rio em direção ao lugar onde as árvores estavam marcadas. Abellardo disse que não precisava ir até a tribo, mas dar uma olhadinha nas árvores não faria mal. Ao chegarem no lugar desceram da canoa ainda bem longe da praia e foram andando pelas águas rasas, pois naquele lugar a areia seca estava bem longe. Puxaram a canoa para a areia e olharam silenciosamente o lugar. A areia era branca e fina, rasgada de dentro para fora por raízes secas e frondosas que ainda reclamavam o seu reconhecimento na história do lugar. O cenário era belíssimo. - É impressionante como essas areias, dependendo do lugar, ainda têm um cheiro forte de sulfa com enxofre e pó de café. - Meu Deus, Abellardo! Eu sinto esse cheiro aqui na região desde a primeira vez, mas nunca tinha conseguido definir os aromas. Como é que você reuniu esses cheiros para explicar esse aqui? - Não sei explicar. Mas é como se cada um deles fosse se fragmentando dentro de mim à medida que os desejo discernir. - Desde quando você está assim? - Desde menino tenho um excelente olfato, Pardal. Acho que é o lado indígena da minha família. Mas nos últimos anos, e especialmente depois do transplante e de Maria Flor de Cristo, que fiquei mais sensível. - Pois é, você até falou pra caramba nos seus devaneios que tava sentindo um cheiro de pó, com uma tal de tâmara. Falou também nuns cedros com pinhas. Sei lá, era cheiro de todo o tipo. E cheiro de mulher? É bom do lado de lá? - O Isaac só pensa naquilo? - E você quer que eu pense em quê, Crysha? Me diz, Abellardo, como são os cheiros lá? - Eu não posso dizer como são, Isaac. Só conheci o cheiro de Ayal. O cheiro dela é como amendoeira em flor. - Sei não. Essa mulher tocou você? Diz que não, diz, maninho. - Tocou sim. Muita gente me toca. Estou aberto. Mas não é como você está pensando. - Chega de viagem, Isaac Porto. Até parece que você quer casar o cara com ela. - Num sou esses cabras que lêem alma. Psicólogo, né? Sou não. Mas num entendo por que você foi a única aqui que não gostou. Sei não, hem! - Deixa de ser bobo, Isaac Porto. Vendo o embaraço da amiga, Pardal foi logo dizendo que a entrada devia ser na direção de uma pequena trilha que saía da areia para a floresta. Passado o mato rasteiro, as árvores começaram a ficar frondosas, e o lugar se encantou. As Árvores Nephilímicas Conheço o lugar em que habitas, onde está o trono de Satanás, e que conservas o meu Nome, e não negaste a minha fé. .. onde Satanás habita. O Nome, no Apocalipse As árvores eram imensas, lindas e em grande variedade. Era um jardim de vegetação gigantesca, que em sua imponência fechava o lugar, como se aquilo fosse mais do que um ponto qualquer da floresta, fosse uma referência. - Que estranho esse lugar! - disse Jócio, para então concluir que a vegetação era diversa demais para ser entendida como natural. - Parece que as árvores foram plantadas aqui. Mas se foram, deve ter sido há pelo menos uns cinqüenta anos. Olha só essa castanheira. E o cumaru. E a maçaranduba. Olha só essa sapopema. E a preciosa e o cedro! Meu Deus, olha só aquele pé de itaúba. E até o louro-bosta é antigo. É muito estranho. - Ih! Que nome esquisito. Louro-bosta? O que é isto, Isaac? - É o nome da árvore, mana! Não tenho culpa, não. Quando nasci já chamavam o bicho assim, e com razão. O cheirinho que sai dela quando corta é igualzinho... Desculpa, tá? - Tá bom, já entendi. Então, continuaram mata adentro. - Peraí. Estou sentindo que isso aqui é só uma trilha falsa, para nos tirar do caminho verdadeiro. Vamos voltar que eu quero ver uma coisa. Senti uma coisa estranha naquele lugar das árvores. Retomaram ao lugar das árvores, conforme a intuição de Crysha. E ali, cuidadosamente, examinaram cada uma. Foi então que Jócio percebeu símbolos desenhados nos grandes fungos que havia numa das árvores. Eram símbolos discretos, quase como se fossem objeto de manutenção regular, apenas para garantir que continuariam sutis o suficiente para não serem vistos de saída, e claros o bastante para serem lidos por quem os notasse. O que ali encontraram não fazia sentido. - É quadradinho, risquinho, cisquinho, xis, meia porta, risquinho bêbado, caixãozinho, sei lá. Quem for lê isso vai ficar birutinha. Me tira dessa, tá? - É só descobrir o que elas significam, Isaac. Depois é fácil. - Sei... Mas e daí, Jócio? Você sabe ler? - Não sei, mas desconfio que o Pardal pode nos ajudar. - Eu estou pensando. Acho que já vi isto em algum lugar. - Viu sim, Pardal, quando era menino e escrevia besteira. - Não. Eu já vi isto em outro lugar, Isaac. Acho que foi no meu computador. Já sei, são símbolos de criptografia. Vou lá na canoa pegar meu notebook disse Pardal, saindo correndo sozinho na direção da praia. - Esse cabra é doido. Leva o computador pra onde vai. Por que ele foi lá? Agora tô mal. O cabra foi só. Não consigo ficar aqui. Vou lá. Pode ser, sei lá, tô indo. - Estou impressionada com o Isaac. Ele reclama com o melhor bom humor do mundo, tem medo de tudo com a maior coragem possível, não entende nada, sabendo de tudo, e tá fora de tudo, mas é o primeiro a estar dentro. Ficaram ali, sentados sob as grandes árvores, aguardando que os outros voltassem. Enquanto isto, falavam que nada lhes tinha sido mais significativo na vida do que a experiência da noite anterior. a um. Agora tenho que botar no computador na ordem que eles estão na árvore. Vai demorar um pouco mais. - Vai com calma, irmão. - Tô indo, Jócio! Enquanto isto, Abellardo se levantou e começou a caminhar, entrando na mata sem destino. Andou uns trezentos metros na mata fechada e se jogou de joelhos no chão. Ali, suplicou ao Deus de Enoque, ao Eterno, que não o impedisse de retornar. E disse: - Não sei por que me trouxe aqui, mas dê um significado a tudo isto. E me mostre o caminho. Então voltou. - Até que enfim! Que coisa. Você foi e voltou. Milagre. E não precisou de mim. Parabéns. - Você sabia, Isaac, que é o único cara que eu conheço que pode falar o que quiser que não magoa ninguém? Sabe por quê? Porque você diz o que quer, mas consegue convencer todo mundo que é brincadeira - disse Crysha, referindo-se à irreverência do caboclo. - Achei! Achei! Está aqui, gente. Vejam só. Pardal virou o computador, protegendo-o da incidência do sol na tela, para que todos pudessem ler o que estava ali. Leram juntos. - Maluquice! Não faz sentido. Nada faz sentido - disse Jócio - Veja só. Primeiro, se é algo indígena, como é que os símbolos estão no programa do computador? E se estão, então é por que gente como a gente botou isso aí. E se é assim, é papo, é brincadeira, não leva a nada, é só para inglês ver. - o que você acha, Crysha? - Sei lá, Abellardo. Mas acho que, já que agente está aqui, então não custa nada tentar achar o que esse código significa, ainda que seja pra gente se divertir. - E se o segredinho for o Porcão? A gente corre, né? Sei não. Olha a visagem, povo! - Tá fugindo, Portinho? - Tô cuidando do que mamãe botou no mundo, dona Crysha! - Eu acho que devemos ver o que é isso. Concordo com Crysha. Depois de Abellardo ter falado, todos se ergueram e começaram a andar seguindo as instruções. - Peraí, povo. Tô indo junto. Sei lá se vão precisar de ajuda: Me põe nessa, tá? E foram seguindo as instruções. Viram o primeiro símbolo, esculpido numa árvore gigantesca. Depois contaram de mais de mil árvores do mesmo tipo, em seqüência. Então chegaram a uma pequena gruta, onde leram: Conomogio. - Entra aí, Isaac! - Entra você, mulher. Por que eu? - É que você é magrinho. - A culpa num é minha de você ser gordo, Jócio. Vai ver que você é o Porcão que os símbolos falaram. - Eu vou ver. - Nossa, mano! Com este tamanhão todo, você vai ficar engatado aí, Pardal. Quando saiu lá de dentro, Pardal olhou fixo para Isaac Porto: - Agora, amigo, é a sua vez. Está escrito aqui, olhe só! São dezoito galhos para cima nesta árvore enorme que está sobre a gruta. Vá lá, Isaac. Você é quem sabe subir em árvore aqui - disse. - Ai, meu Deus. Lá vou eu. Mas é bom. Se der errado, já tô lá em cima. Subiu com uma habilidade de impressionar. E foi contando galho a galho na direção do "olhinho da árvore", como diz o povo da região, fazendo referência ao topo, acima da copa. Quando chegou ao topo, disse: - É aqui mesmo. Tá certo. Tô vendo o bicho lá embaixo. - Então vê se há alguma coisa aí no topo. - Tem um buraco aqui no olhinho, mana. Mas não vou meter a mão, não. Sei lá se tem cobra?! - Isaac, você não vai negar fogo agora, vai? - Olha aqui, Pardal. É melhor negar fogo que sair daqui que nem o Abellardo, carregadinho. Picado, não. Ninguém falou em enfiar a mão em nada. E mesmo se negando, enfiou a mão no buraco da árvore, lá no alto, bem no topo dela, e gritou: - Ai! - O que foi, Isaac? - Achei o bichinho, compadre. Achei! - O que é? - Paciência, cabra bom. Agora vou descer. Lá veio ele, bem devagar, valorizando cada galho, deslizando suavemente pelo tronco. Quando chegou bem perto do chão, simulou um ataque do coração, mas ninguém se importou. Reclamou da falta de solidariedade e disse que, se fosse o Abellardo que tivesse se sentido mal, Crysha já teria corrido para ajudar. - Deixe de palhaçada e desça logo! - foi tudo o que Crysha disse. Era um mapa. Leram cuidadosamente e resolveram compará-lo com os mapas da região. Pardal abriu em seu computador todos os mapas do local que tinha em seus arquivos e os comparou com o que haviam achado. Foi quando Abellardo notou que do outro lado do papel amarelado havia números. Pardal, então, disse que achava que eram referências para a leitura do mapa. Mas já estava escurecendo. Então decidiram voltar para casa e no dia seguinte retomar a procura. Afinal, o dia tinha sido mágico, mas estavam todos exaustos e precisavam descansar. - Nossa! Cadê a canoa? - Você escondeu essa canoa, não foi Isaaquinho? - perguntou Crysha, como quem diz: por hoje chega, vamos lá, pára de brincadeira! - Num sou maluco. Num brinco de esconder canoa, não. Ou você acha que quero ficar aqui?! Já me perdi nessa semana com Abellardo, seu Inhoque e os seufilhin, mais do que na minha vida toda. Me tira dessa, tá? Foi só neste momento que eles perceberam que Isaac Porto não estava brincando e que a canoa de fato havia sido levada dali. Jócio se desesperou. Pardal falou que isso era armação de alguém. Crysha disse que tinha que haver uma explicação. Isaac Porto discordou e falou que podia ser que as assombrações tivessem escondido a canoa para atacá-los durante a noite. Abellardo não disse nada. Apenas olhou para o alto e suspirou. A noite chegou com extrema rapidez. O que lhes sobrara ali não era muito. Tinham o computador de Pardal, a cesta de comida de Crysha e a bolsinha de Isaac Porro, com uma faca, fósforo, linha de náilon, anzóis e o livro de Enoque, que ele sempre levava para onde ia, pois achava que ele havia salvado o livro de se perder no rio Urubu. Cataram gravetos e galhos secos, limparam um lugar na areia, fizeram uma fogueira e sentaram-se quietos, enquanto Isaac Porto tentava pescar alguma coisa. Os sons da floresta aumentaram em intensidade. Havia suspense nos olhos de todos. Então Abellardo começou a sentir muito frio. Crysha colocou a mão sobre a testa dele e ficou apavorada. - Esse homem está ardendo em febre. Ponha o meu casaco e fique perto do fogo, mas não muito. Só o suficiente para se aquecer. O estado de Abellardo não era grave, mas poderia se tornar. Afinal, pelo que estavam pressentindo, era ali que teriam que
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