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Guias e Dicas
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Antonio Carlos Wolkmer - Fundamentos de História do Direito, Notas de estudo de História do Direito

Grandes sistemas juridicos antigos

Tipologia: Notas de estudo

2010
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Compartilhado em 28/02/2010

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Baixe Antonio Carlos Wolkmer - Fundamentos de História do Direito e outras Notas de estudo em PDF para História do Direito, somente na Docsity! ANTONIO CARLOS WOLKMER o): [c/ N] An oo); FUNDAMENTOS DRE ENO TO DO, DIREITO PARiL pa EDIÇÃO Y» q a O TEÇÃSS M x FUNDAMENTOS DE HISTÓRIA DO DIREITO SUMÁRIO NOTA À 3 a EDIÇÃO ................................................................................................................ xi NOTA À 2 a EDIÇÃO .............................................................................................................. xiii APRESENTAÇÃO À 1ª EDIÇÃO .......................................................................................... xv CAPÍTULO 1 O DIREITO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS Antonio Carlos Wolkmer 1. Introdução .............................................................................................................................. 1 2. Formação do direito nas sociedades primitivas ...................................................................... 2 3. Características e fontes do direito arcaico .............................................................................. 5 4. Funções e fundamentos do direito na sociedade primitiva ..................................................... 6 5. Conclusão ............................................................................................................................... 9 6. Referências bibliográficas .................................................................................................... 10 CAPÍTULO 2 DIREITO E SOCIEDADE NO ORIENTE ANTIGO: MESOPOTÂMIA E EGITO Cristiano Paixão Araújo Pinto 1. Introdução ............................................................................................................................. 11 2. Elementos de transição na sociedade e no direito ................................................................ 12 3. Mesopotâmia e Egito: aspectos geográficos, políticos e econômicos .................................. 16 3.1 Geografia ............................................................................................................................ 17 3.2 Política ................................................................................................................................ 19 3.3 Economia ............................................................................................................................ 21 4. A vigência do Direito: seus elementos, manifestações e instituições................................... 22 4.1 A Mesopotâmia: compilações de normas jurídicas e sua aplicação ................................... 23 4.2 O Egito: o princípio de justiça divina ................................................................................. 29 Conclusão ................................................................................................................................. 30 Referências consultadas ............................................................................................................ 33 CAPÍTULO 3 O DIREITO GREGO ANTIGO Raquel de Souza Introdução ................................................................................................................................. 37 A escrita grega .......................................................................................................................... 41 A lei grega escrita como instrumento de poder ........................................................................ 46 O direito grego antigo .............................................................................................................. 49 A retórica grega como instrumento de persuasão jurídica ....................................................... 54 As instituições gregas ............................................................................................................... 59 Conclusão ................................................................................................................................. 63 Referências bibliográficas ........................................................................................................ 65 CAPÍTULO 4 A INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA EM A CIDADE ANTIGA Jenny Magnani de O. Nogueira Introdução ................................................................................................................................. 67 O culto e as antigas crenças ...................................................................................................... 69 A família antiga ........................................................................................................................ 73 Conclusão ................................................................................................................................. 79 Referências bibliográficas ........................................................................................................ 81 CAPÍTULO 5 DIREITO ROMANO CLÁSSICO: SEUS INSTITUTOS JURÍDICOS E SEU LEGADO Francisco Quintanilha Véras Neto 1. Introdução ............................................................................................................................. 83 2. A importância do direito romano e a sua presença nos ordenamentos jurídicos modernos . 89 3. As fases históricas da civilização romana e de suas instituições jurídico-políticas ............. 91 4. Leis e institutos romanos: o direito de propriedade e das obrigações .................................. 94 5. A queda do Império Romano e a emergência do mundo feudal ........................................ 104 6. A retomada pelos estudos romanísticos no direito do ocidente europeu ........................... 107 7. A recepção do direito romano ............................................................................................ 108 8. Conclusão ........................................................................................................................... 113 9. Referências bibliográficas .................................................................................................. 114 CAPÍTULO 6 A NATUREZA HISTÓRICA DA INSTITUIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE Valcir Gassen 1. Introdução ........................................................................................................................... 115 2. A propriedade primitiva e antiga: uma visão como representação da crença dos homens 117 3. A propriedade antiga, medieval e moderna a partir do materialismo histórico .................. 121 4. Os pontos de vista em torno da história da propriedade ..................................................... 129 5. Conclusão ........................................................................................................................... 134 6. Referências bibliográficas .................................................................................................. 136 CAPÍTULO 7 O DIREITO ROMANO E SEU RESSURGIMENTO NO FINAL DA IDADE MÉDIA Argemiro Cardoso Moreira Martins 1. Introdução ........................................................................................................................... 137 O direito romano .................................................................................................................... 137 2.1 Breve histórico socioeconômico da Roma antiga............................................................ 138 2.2 O direito antigo ................................................................................................................ 144 2.3 O direito clássico ............................................................................................................. 145 2.4 O direito pós-clássico ....................................................................................................... 147 O direito medieval ................................................................................................................. 149 O ressurgimento do direito romano ....................................................................................... 151 4.1 Fatores culturais ................................................................................................................ 152 4.2 Fatores econômicos .......................................................................................................... 154 4.3 Fatores políticos ............................................................................................................... 156 4.4 Fatores sociológicos ........................................................................................................ 158 4.5 Fatores epistemo1ógicos.................................................................................................. 159 Conclusão ............................................................................................................................... 163 Referências bibliográficas ..................................................................................................... 167 CAPÍTULO 8 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DOGMÁTICA JURÍDICO-CANÔNICA MEDIEVAL Rogério Dultra dos Santos Introdução .............................................................................................................................. 169 A Idade Média e o vínculo feudal como instrumento de dominação através da autoridade . 171 A Igreja Católica medieval e a institucionalização do direito canônico como prática repressiva ......................................................................... 177 Conclusão .............................................................................................................................. 182 Referências bibliográficas ..................................................................................................... 185 CAPÍTULO 9 ASPECTOS HISTÓRICOS, POLÍTICOS E LEGAIS DA INQUISIÇÃO Samyra Haydêe Naspolini 1.Introdução 187 2.Aspectos históricos e políticos 188 3.Aspectos legais 191 3.1 O processo penal acusatório 192 3.2 O processo por inquérito 193 3.3 A tortura 196 3.4 A condenação 198 4.Conclusão 199 5.Referências bibliográficas 199 CAPÍTULO 10 DA DESCONSTRUÇÃO DO MODELO JURÍDICO INQUISITORIAL Salo de Carvalho 1.Introdução 201 2.A utilização do aparelho judiciário secular pelo clero 203 3.Da secularização e do secularismo 206 4.As causas do declínio 208 4.1 A jurisprudência revolucionária 209 4.2 O humanismo e o racionalismo 213 5.Conclusão 218 6.Referências bibliográficas 220 CAPÍTULO 11 DA “INVASÃO” DA AMÉRICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJE: O DISCURSO DA “INFERIORIDADE” LATINO-AMERICANA José Carlos Moreira da Silva Filho 1. Introdução 221 2. O eurocentrismo da visão moderna 223 3.O mundo de Colombo: o conquistador europeu e o genocídio colonial 225 NOTA À 3 a EDIÇÃO É por demais significativo e estimulador o interesse que esta obra tem despertado, bem como a sua recepção nas disciplinas de fundamentação dos cursos jurídicos em nível nacional, especificamente em atender as demandas crescentes de pesquisa no âmbito introdutório da historiografia jurídica. Já consolidada no país, “Fundamentos de História do Direito” alcança, agora, sua 3 a edição, revista e atualizada, pretendendo ampliar ainda mais a discussão, a produção e a informação das fontes de conhecimento jurídico. Renovando, assim, a preocupação que norteia a presente coletânea - reinterpretação de teor crítico-interdisciplinar da historicidade jurídica - cabe assinalar a revisão do capítulo 2, de autoria do Prof. Cristiano Paixão A. Pinto, para, posteriormente, a inserção de uma nova contribuição (o capítulo 12). Assim, busca-se oferecer um breve panorama e uma valiosa investigação da Profª Thais Luzia Colaço sobre as práticas jurídicas no interior das comunidades missioneiro-jesuíticas do sul da América. Certos da costumeira receptividade de nossos alunos e professores, almejamos que a presente edição, por seu enriquecido conteúdo, favoreça ainda mais o estudo pelos caminhos sempre fascinantes da história da cultura jurídica. Florianópolis, junho de 2004 Professor Dr. Antonio Carlos Wolkmer NOTA À 2 a EDIÇÃO É com satisfação que estamos encaminhando a presente edição, revista e atualizada, para a comunidade acadêmica e, principalmente, para a área jurídica do país, Fica o nosso reconhecimento aos professores e aos alunos pela acolhida e pelo êxito desta obra, que vem sendo utilizada como fonte instrumental de consulta e pesquisa para disciplinas históricas no âmbito do Direito. Embora mantenha sua estrutura central, a obra foi enriquecida com mais quatro textos que introduziram temas não trabalhados ou pouco aprofundados na 1ª edição, Assim, o 2° Capítulo da edição anterior (O despotismo oriental e o modo de produção asiático) foi substituído, pelo próprio autor, por outro artigo em que é desenvolvido, com interesse e vigor descritivo, a especificidade do Direito nas antigas sociedades da Mesopotâmia e do Egito, Além de necessária, a troca tornou-se extremamente oportuna. Outra valiosa e excelente contribuição é o aparecimento da instigante e erudita pesquisa sobre o direito grego antigo, da jovem pesquisadora e estudiosa das instituições helênicas Raquel de Souza. Igualmente, com segurança e seriedade, o professor Francisco Quntanilha Véras Neto contribui com apreciada retomada do Direito Romano Clássico e seus principais institutos. Estas três investigações sobre o direito antigo nas sociedades da Mesopotâmia, do Egito, da Grécia e da Roma Clássica foram solicitadas pelo organizador, levando em conta ausências temáticas e obedecendo a certos critérios formais, sendo atendidas prontamente pelos autores com eficiência, determinação e competência. Na seqüência, outro resgate histórico importante é a colaboração do Professor Rogério Dultra dos Santos, que discute, criticamente, a dogmática jurídica canônica medieval sob a inspiração interdisciplinar de Pierre Legendre e Michel Foucalt. Por último, a inserção de um texto conhecido e já clássico do renomado historiador e pesquisador Arno Wehling sobre a regulamentação civil e penal da escravidão no Brasil do século XIX. Trata-se de trabalho publicado há mais de dez anos pelo Museu Imperial (Rio de Janeiro) e cuja inclusão o autor gentilmente permitiu, possibilitando estimular a rica discussão histórica sobre os aspestos jurídicos de um dos grandes temas que dominaram a sociedade brasileira no tempo do império. Fica, portanto, o convite para que, na consulta permanente da obra, todos que se voltam ao passado tenham uma leitura informativa e questionadora, sem deixar de ser prazeirosa. Novembro de 2000 Professor Dr. Antonio Carlos Wolkmer APRESENTAÇÃO À 1ª EDIÇÃO Diante das transformações da sociedade contemporânea, da crise das grandes narrativas de fundamentação e das mudanças dos paradigmas científicos, atualmente, adquire relevância redefinir as tradicionais relações entre o Direito e a História. Perde espaço e significação o cultivo de um historicismo jurídico oculto no mito da neutralidade do saber e na universalidade dos princípios do formalismo positivista, que serviram de instrumentos de justificação da ordem liberal-individualista e da racionalidade burguês-capitalista. Hodiernamente, vive-se o descrédito de uma historiografia jurídica demasiadamente apegada a textos legais, à interpretação firmada na autoridade de notáveis juristas, a construções dogmáticas e abstrações desvinculadas da realidade social, acabando por consagrar uma História elitista, erudita, idealista, acadêmica e conservadora. Busca-se, agora, a renovação crítica da historiografia do Direito, nascida e articulada na dialética da produção da vida material e das relações sociais concretas. Trata-se de pensar a historicidade do Direito - no que se refere à sua evolução histórica, suas idéias e suas instituições - a partir de uma reinterpretação das fontes do passado sob o viés da interdisciplinaridade (social, econômico e político) e de uma reordenação metodológica, em que o fenômeno jurídico seja descrito sob uma perspectiva desmistificadora. Naturalmente, para se alcançar esta condição histórico-crítica sobre determinado tipo de sociedade e suas instituições jurídicas, impõe-se, obrigatoriamente, visualizar o Direito como reflexo de uma estrutura pulverizada não só por um certo modo de produção da riqueza e por relações de forças societárias, mas, sobretudo, por suas representações ideológicas, práticas discursivas hegemônicas, manifestações organizadas de poder e conflitos entre múltiplos atores sociais. Com o intento de recuperação da verdadeira história, aquela que nem sempre foi escrita, traduzida e interpretada (a história dos vencidos e periféricos), é que surgiu a proposta desta síntese de investigações jurídicas, dentro de um projeto direcionado para uma Nova História, fundada na inquietude e no engajamento de uma jovem geração de juristas imbuídos pela força da crítica, da transgressão, do inconformismo e da postura libertária. Certamente que a coletânea Fundamentos de História do Direito vem preencher, de modo muito oportuno e relevante, o imenso espaço vazio que existia na produção bibliográfica acadêmico-universitária do país, tanto no que diz respeito a obras sobre a História do Direito, História das Idéias ou História das Instituições Jurídicas, quanto de pesquisas históricas da cultura legal de uma nova orientação metodológica: interdisciplinar e crítico-desmistificadora. Com exceção do primeiro e do último texto, cabe observar que os trabalhos aqui reunidos foram escritos num período de dois anos (1994-1995), por alunos-mestrandos, nascidos sob a forma de papers, provenientes de apresentações e debates nos seminários da disciplina “História das Instituições Jurídicas”, do Curso de Pós-Graduação em Direito, em nível de Mestrado, na Universidade Federal de Santa Catarina. A ordem dos textos não se originou de forma natural e espontânea, mas envolveu critérios metodológicos (de acordo com o referencial teórico da disciplina), bem como o processo de tempos modernos -, finalmente chega-se às terras do Brasil. Nisso reside a importância destes textos sobre a historicidade nacional: não só oferecem um fechamento coerente com todo o desenvolvimento temático (do fenômeno jurídico geral para o periférico), como, sobretudo, situam a narrativa histórica sobre o processo de formação da nossa cultura legal no bojo de uma articulação crítico-desmistificadora. De fato, no artigo O Direito no Brasil Colonial, Cláudio Valentim Cristiani discorre sobre os fatores sociais, econômicos e culturais que influenciaram o Direito brasileiro no período da colonização. Naturalmente, a legislação da colônia não era expressão da vontade das populações originárias e nativas, mas imposição do projeto colonizador português, que encontrava respaldo na dominação das elites agrárias. Do mesmo modo, a formação e a organização do Poder Judiciário foram implantadas nos moldes da burocracia existente na Metrópole, tendo por finalidade representar os interesses de Portugal e não as aspirações autênticas e as reais necessidades locais. No penúltimo capítulo, denominado Instituições, Retórica e o Bacharelismo no Brasil, José Wanderley Kozima examina, com desenvoltura e forma ensaística, a questão do bacharel de Direito, ao longo do Império, no Brasil. O autor amarra perspicazmente a institucionalização de um certo tipo de cultura - retórica, formalista e abstrata -, presente na formação e perfil dos advogados, com o peso de uma herança alimentada por uma organização política patrimonialista, uma estrutura social escravista e um saber clerical-jesuítico. O texto final, Uma Introdução à História Social e Política do Processo, do jusfilósofo e historiador-jurista da USP, José Reinaldo de Lima Lopes, que encerra a coletânea, foi elaboração à parte e desvinculada do projeto inicial que norte ou a totalidade desta produção. Entretanto, pela seriedade da investigação, pela importância do resgate de um tema não contemplado nos outros trabalhos (processo judicial) e pelo tipo de preocupação demonstrada na interpretação dos inúmeros períodos da processualística ocidental, o texto acaba aproximando-se e integrando-se ao perfil das demais incursões históricas. Certamente, esta inclusão honrosa justifica-se, porquanto o autor discorre, com segurança e densidade, sobre a evolução histórico-comparativa da tradição processual na Antigüidade e Idade Média, bem como os diferentes caminhos assumidos na modernidade pelo Direito romano-canônico e pelo Direito inglês, ora privilegiando a função decisória dos leigos, ora dos profissionais; ora consagrando o processo inquisitorial, ora o modelo acusatório. Em suma, o processo é redimencionado numa historicidade que democratiza o acesso à justiça e contribui para a efetivação dos direitos de cidadania. Enfim, este esforço coletivo de contextualizar uma Nova História do Direito, assentada numa múltipla e rica fragmentação de enfoques e perspectivas crítico-desmistificadoras, revela não só o rumo para uma obrigatória atualização, profunda revisão e necessária ruptura com as práticas da historiografia jurídica tradicional, como, sobretudo, aponta o desafio de caminhos que avançam na direção de uma historicidade forjada na justiça, emancipação e solidariedade. Professor Antonio Carlos Wolkmer Capítulo 1 O DIREITO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS ANTONIO CARLOS WOLKMER 1 SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Formação do direito nas sociedades primitivas 3. Características e fontes do direito arcaico 4. Funções e fundamentos do direito na sociedade primitiva 5. Conclusão 6. Referências bibliográficas. 1. INTRODUÇÃO Toda cultura tem um aspecto normativo, cabendo-lhe delimitar a existencialidade de padrões, regras e valores que institucionalizam modelos de conduta. Cada sociedade esforça-se para assegurar uma determinada ordem social, instrumentalizando normas de regulamentação essenciais, capazes de atuar como sistema eficaz de controle social. Constata- se que, na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada parte nuclear de controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios das regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito ordenado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão do grupo social. Certamente que cada povo e cada organização social dispõe de um sistema jurídico que traduz a especialidade de um grau de evolução e complexidade. Falar, portanto, de um direito arcaico ou primitivo implica ter presente não só uma diferenciação da pré- história e da história do direito, como, sobretudo, nos horizontes de diversas civilizações, precisar o surgimento dos primeiros textos jurídicos com o aparecimento da escrita. Não só subsiste um certo mistério, como falta uma explicação cientificamente correta e respostas conclusivas acerta das origens de grande parte das instituições jurídicas no período pré-histórico. Entretanto, ainda que prevaleça uma consensualidade sobre o fato de 1 Professor Titular de História das Instituições Jurídicas da UFSC. Doutor em Direito e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ). É pesquisador integrante do CNPq, CONPEDI e da Fondazione Cassamarca (Treviso – Itália). Professor visitante dos cursos: Mestrado e Doutorado em História Ibero-Americana (UNISINOS-RS); Pós-Graduação em Direito Processual do IBEJ (Curitiba-PR) Mestrado em Criminologia e Direito Penal da Universidade Cândido Mendes (RJ); Doutorado em Derechos Humanos y Desarrollo na Universidad Pablo de Olavide (Sevilha - Espanha). Autor e organizador de inúmeros livros, dentre os quais: Direito e justiça na América indígena: da conquista à colonização. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998; História do direito no Brasil. 3. ed, Rio de Janeiro: Forense, 2003; Introdução à História do Pensamento Político. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; Humanismo e Cultura Jurídica no Brasil. Florianóplis: Fundação Boiteux, 2003; Direitos Humanos e Filosofia Jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004; Fundamentos do Humanismo Jurídico no Ocidente. São Paulo: Manole, 2005. que os primeiros textos jurídicos estejam associados ao aparecimento da escrita, não se pode considerar a presença de um direito entre povos que possuíam formas de organização social e política primitivas sem o conhecimento da escrita. Autores como John Gilissen questionam a própria expressão “direito primitivo”, aludindo que o termo “direito arcaico” tem um alcance mais abrangente para contemplar múltiplas sociedades que passaram por uma evolução social, política e jurídica bem avançada, mas que não chegaram a dominar a técnica da escrita. Assim sendo, as inúmeras investigações científicas têm apurado que as práticas legais de sociedades sem escrita assumem características, por vezes, primitivas, por outras, expressam um certo nível de desenvolvimento. Certamente que a pesquisa dos sistemas legais das populações sem escrita não se reduz meramente à explicação dos primórdios históricos do direito, mas evidencia, sobretudo, um enorme interesse em curso, porquanto “milhares de homens vivem ainda atualmente, na segunda metade do século XX, de acordo com direitos a que chamamos „arcaicos‟ ou „primitivos‟. As civilizações mais arcaicas continuam a ser as dos aborígenes da Austrália ou da Nova Guiné, dos povos da Papuásia ou de Bornéu, de certos povos índios da Amazônia no Brasil”. 2 Não parece haver dúvida de que o processo contemporâneo de colonização gerou um surto de pluralismo jurídico, representado pela convivência e dualismo concomitante, de um direito “europeu (common law nas colônias inglesas e americanas, direitos romanistas nas outras colônias) para os não indígenas e, por vezes, para os indígenas evoluídos; e outro, do tipo arcaico para as populações autóctones”. 3 Tendo em conta estas asserções iniciais, cabe pontualizar alguns aspectos do direito nas sociedades primitivas como a formação, caracterização, fontes e funções. 2. FORMAÇÃO DO DIREITO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS A dificuldade de se impor uma causa primeira e única para explicar as origens do direito arcaico deve-se em muito ao amplo quadro de hipóteses possíveis e proposições explicativas distintas. O direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade pré-histórica fundamenta-se no princípio do parentesco, nada mais natural do que considerar que a base geradora do jurídico encontra-se primeiramente, nos laços de consangüinidade, nas práticas de convívio familiar de um mesmo 2 GILISSEN, John. Introdução histórica do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 33. 3 GILISSEN, John. Op. cit., p. 34. longa e progressiva evolução das obrigações e dos deveres jurídicos da condição de status (as obrigações são fixadas na sociedade, de acordo com o status que ocupam seus membros), inerentes ao direito primitivo, para o da relação contratual dependente da vontade e autonomia das partes, características já do direito legislativo e formal. 3. CARACTERÍSTICAS E FONTES DO DIREITO ARCAICO Pode-se distinguir, segundo as lições de John Gilissen, algumas características do direito nas sociedades arcaicas. Primeiramente, o direito primitivo não era legislado, as populações não conheciam a escritura formal e suas regras de regulamentação mantinham-se e conservavam-se pela tradição. Um segundo fator de conhecimento é que cada organização social possuía um direito único, que não se confundia com o de outras formas de associação. Cada comunidade tinha suas próprias regras, vivendo com autonomia e tendo pouco contato com outros povos, a não ser em condições de beligerância. Um terceiro aspecto a considerar é a diversidade dos direitos não escritos. Trata-se da multiplicidade de direitos diante de uma gama de sociedades atuantes, advinda, de um lado, da especificidade para cada um dos costumes jurídicos concomitantes, de outro, de possíveis e inúmeras semelhanças ou aproximações de um para outro sistema primitivo. Além de apontar a inexistência de uma legalidade não escrita, de uma certa unicidade de jurídico para cada comunidade e, por fim, a pluralidade dos direitos não escritos, Gilissen reconhece também que o direito arcaico está profundamente contaminado pela prática religiosa. 12 Tal é a influência da religião sobre a sociedade e sobre as leis, que se toma intento pouco fácil estabelecer uma distinção entre o preceito sobrenatural e o preceito de natureza jurídica. Na verdade, o direito estava totalmente subordinado à imposição de crenças dos antepassados, ao ritualismo simbólico e à força das divindades. Um secretismo nebuloso mesclava e integrava, no religioso, as regras de cunho social, moral e jurídico. 13 Por último, Gilissen chama atenção para o fato de que os direitos primitivos são “direitos em nascimento”, ou seja, ainda não ocorre uma diferenciação efetiva entre o que é jurídico do que não é jurídico. Assinala-se, no entanto, que as regras de controle podem variar no tempo e no espaço. Os critérios que permitem auferir, na sociedade moderna, o que é jurídico podem não ser aplicados às comunidades da pré-história. Admite-se, assim, que um costume de épocas arcaicas assume em caráter jurídico na medida em que, constrangendo, 12 Cf. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 35. 13 GILISSEN, John. Op. cit. garante o cumprimento das normas de comportamento. 14 Ainda, seguindo as incursões históricas do erudito pesquisador belga, cabe mencionar urna breve passagem pela questão das fontes do direito entre as sociedades sem escrita. Do pouco que se sabe e que, com certeza, pode-se apontar, é que as fontes jurídicas primitivas são poucas, resumindo-se, na maioria das vezes, aos costumes, aos preceitos verbais, às decisões pela tradição, etc. No que concerne aos costumes, há de se reconhecer corno a fonte mais importante e mais antiga do direito, manifestação que se comprova por ser a expressão direta, cotidiana e habitual dos membros de um dado grupo social. Novamente, aqui, a religião aparece corno fenômeno determinante, na medida em que o receio e a ameaça permanente dos poderes sobrenaturais é que garante o rígido cumprimento dos costumes. 15 Neste quadro, colocam-se, igualmente, certos preceitos verbais, não escritos proferidos por chefes de tribos ou de clãs, que se impõem pela autoridade e pelo respeito que desfrutam. Trata-se de verdadeiras leis ainda que não escritas, repousando no prestígio daqueles que detêm o poder e o conhecimento. Por fim, parece significativo mencionar, corno fonte criadora de preceituações jurídicas nas sociedades arcaicas, certas decisões reiteradas utilizadas pelos chefes ou anciãos das comunidades autóctones para resolver conflitos do mesmo tipo. Conjuntamente ao que designa de “precedente judiciário”, Gilissen acrescenta também os procedimentos orais propagados por gerações corno os “provérbios e adágios”. 16 4. FUNÇÕES E FUNDAMENTOS DO DIREITO NA SOCIEDADE PRIMITIVA Algumas reflexões mais genéricas sobre a formação, características e fontes do direito primitivo, toma-se relevante destacar um pouco mais as funções e os fundamentos das formas de controle social em sociedades ainda não possuidoras do domínio técnico da escrita. Para urna outra leitura da natureza e das funções do direito arcaico, tomar-se-á em conta as investigações pioneiras e clássicas de Bronislaw Malinowski (1884-1942), feitas empiricamente com populações das Ilhas Trobriand, ao nordeste da Nova Guiné, e que resultaram em 1926, na obra Crime e costume na sociedade selvagem. Inicialmente, constata-se que em cada cultura humana desenvolve-se um corpo de 14 GILISSEN, John. John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. 15 GILISSEN, John. Op. cit., p. 37. 16 GILISSEN, John. Op. cit., p. 37-38. obrigações, proibições e leis que devem ser cumpridas por motivos práticos, morais ou emocionais. Há que se considerar, para Malinowski, que, além das regras jurídicas sancionadas por um aparato social com poderosa força coagente, subexistem outros tipos diferenciados de normas tradicionais gerados por motivos psicológicos. Naturalmente, a base de toda investigação do direito primitivo está na imposição rígida e automática aos costumes da tribo. 17 A importância da interpretação de Malinowski está no fato de que, ainda que priorize a criminalidade, as formas de castigo e a recomposição da ordem, acaba tratando, igualmente, dos conflitos entre sistemas jurídicos (penal e civil), do direito matrimonial, da vida econômica, dos costumes religiosos, do desenvolvimento do comunismo primitivo e do princípio da reciprocidade corno base de toda a estrutura social. É necessário reconhecer o significado de algumas de suas premissas enquanto primeira tentativa de análise antropológica da lei primitiva. Um primeiro aspecto que chama a atenção, na proposta de Malinowski, está na tentativa de desmistificar a lei criminal entendida como núcleo exclusivo de todo e qualquer direito primitivo, pressuposto que se tornou entre alguns antropólogos do direito. Acertadamente, a regra jurídica primitiva não se reduz tão-somente a imposições, “nem tampouco a lei dos selvagens é somente lei criminal. Não se pode pretender que, com mera descrição do crime e do castigo, o tema do direito se esgote no que concerne à comunidade primitiva”. 18 Com decorrência desse processo, o autor dos Argonautos do Pacífico Ocidental apontou corno segundo aspecto a inconsistência da tese de que não haveria um direito civil entre as sociedades aborígines. Assim, divergindo da posição de muitos antropólogos de sua época que insistiam na base religiosa e no teor exclusivamente criminal da jurisprudência primitiva, Malinowski introduz o argumento de que existia um direito civil consensualmente aceito e respeitado. 19 As regras de direito civil caracterizadas por uma certa flexibilidade e abrangência, enquanto ordenação positiva regulamentadora dos diversos momentos da organização tribal, compreendiam um conjunto de “obrigações impositivas consideradas como justas por uns e reconhecidas como um dever pelos outros, cujo cumprimento se assegura por um mecanismo específico de reciprocidade e publicidade inerentes à estrutura da sociedade”. 20 A lei civil primitiva não tem apenas um aspecto negativo no sentido de que todo o descumprimento resulta num castigo, mas assume um caráter positivo através da recompen- sa para os que cumprem e respeitam as regras de convivência. 17 Cf. MALINOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona: Ariel, 1978, p, 26, 69 e 70. 18 MALINOWSKI, Bronislaw. Op. cit., p. 71. 19 MALINOWSKI, B. Op. cit., p. 73-74. 20 MALINOWSKI, B. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona: Ariel, 1978, p. 74. certo evolucionismo darwinista. Sua concepção societária parte de uma lenta evolução cujo processo permitiu que o direito transpusesse o período antigo do status para a fase moderna do “contrato”. Naturalmente transpareceu, em sua clássica e erudita investigação, a superioridade da cultura jurídica européia moderna sobre a ingenuidade e o primarismo normativo das sociedades arcaicas. 31 Por último, cabe elencar algumas críticas às concepções jurídicas de B. Malinowski, autor que foi privilegiado em boa parte deste artigo. Para isso, seguem-se as considerações de Norbert Rouland, para quem as teses jurídicas de Malinowski não gozam mais do grande prestígio que alcançaram no passado. Trabalhos de antropologia jurídica mais recentes apontam certas inverdades sujeitas a comprovação. Um dos erros é conceber que, nas sociedades primitivas, o direito civil não podia ser violado. Por outro lado, o direito seria objeto de consenso, sendo muito mais respeitado entre os autóctones do que na sociedade moderna. Escreve Norbert Rouland que algumas investigações etnográficas mostram o contrário, pois o indivíduo, pensando que há menos vantagem do que inconveniência em respeitar a lei, acaba muitas vezes violando-a. 32 Em suma, foi pertinente começar a longa trajetória histórica das instituições jurídicas através de uma breve reflexão sobre as formas, natureza e características da legalidade nas sociedades primitivas. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Hemus, 1975. FRAZER, Sir James George. O ramo de ouro. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. GIUSSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. LUHMANN, Nilkas. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 75, 1983,v.I MAUNOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvage. Barcelona: Ariel, 1978. RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópo1is: Vozes, 1973. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique. Paris: PUF, 1988. SUMMER MAINE, Henry. El derecho antiguo: parte general. Madrid: Alfredo Alonso, 1893. 31 Cf. ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique. Paris: PUF, 1988, p. 50. 32 ROULAND, Norbert. Op. cit., p. 101. Capítulo 2 DIREITO E SOCIEDADE NO ORIENTE ANTIGO: MESOPOTÂMIA E EGITO CRISTIANO PAIXÃO ARAÚJO PINTO 1 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Elementos de Transição na Sociedade e no Direito. 3. Mesopotâmia e Egito: aspectos geográficos, políticos e econômicos; 3.1 Geografia; 3.2 Política; 3.3 Economia. 4. A Vigência do Direito: seus elementos, manifestações e instituições; 4.1 A Mesopotâmia: compilações de normas jurídicas e sua aplicação; 4.2 O Egito: o princípio de justiça divina. 5. Conclusão. 6. Referências consultadas. 1. INTRODUÇÃO O presente ensaio tem por objetivo descrever os principais aspectos relacionados à produção, vigência e aplicação do direito em duas civilizações orientais da Antigüidade: Mesopotâmia e Egito. Serão abordados, de início, alguns fatores históricos que caracterizaram uma mudança fundamental na forma de sociedade e propiciaram a emergência de novas manifestações do direito. Em segundo lugar, apresenta-se uma rápida recapitulação do panorama geográfico, político e econômico que permeou as civilizações mesopotâmica e egípcia, com observância de certas similaridades e distinções fundamentais naquelas sociedades. Passa-se, então, ao tema central do artigo: as formas de manifestação do direito e as instituições encarregadas de sua aplicação e propagação, tudo em consonância com as ponderações anteriormente lançadas. E, por fim, serão aventadas algumas possibilidades de subsistência de institutos jurídicos surgidos na Mesopotâmia e Egito nas civilizações clássicas que se desenvolveram posteriormente. 2. ELEMENTOS DE TRANSIÇÃO NA SOCIEDADE E NO DIREITO Não é possível separar, em qualquer momento histórico que se procure enfocar, a 1 1 Professor da Faculdade de Direito da UnB. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UFSC. Doutor em Direito Constitucional na UFMG. Procurador do Ministério do Trabalho (Brasília-DF). Autor da obra: Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. modificação da sociedade e a evolução do direito. A simples descrição de textos jurídicos e instituições judiciárias não é suficiente para que se possa aferir o real significado das manifestações do direito que surgem ao longo do tempo. Todo o trabalho retrospectivo direcionado à recuperação de documentos, testemunhos, vestígios enfim, fontes históricas - só se justifica a partir de um olhar abrangente; é preciso, antes de tudo, ampliar o campo histórico, buscar os elementos fundamentais de cada civilização e, a partir dessa perspectiva, passar ao estudo do direito propriamente dito. Não há direito fora da sociedade. E não há sociedade fora da história. 2 Assim, a atividade do historiador do direito envolve duas dimensões: a cartografia das formas de sociedade (ou, como diria Braudel, a “Gramática das Civilizações” 3 ) e a percepção do fenômeno jurídico que brota na coletividade. Numa obra já tomada clássica nos contextos brasileiro e europeu, 4 Niklas Luhmann classifica três grandes grupos de manifestações do direito - que ele denomina “estilos” - ao longo da história: (l) o direito arcaico, característico dos povos sem escrita; 5 (2) o direito antigo, que surge com as primeiras civilizações urbanas e (3) o direito moderno, próprio das sociedades posteriores às Revoluções Francesa e Americana. 6 Os dois primeiros modelos de direito antigo (ou seja, o segundo “estilo” de direito identificado por Luhmann) são aqueles verificados na Mesopotâmia e no Egito. Assim, a 2 Adota-se, aqui, a orientação teórica já explicitada pela Escola francesa dos Annales, fundada por Bloch e Febvre em 1929, continuada com a obra de Braudel e disseminada no movimento atualmente denominado Nova História. Cf., entre vários: BLOCH, Marc. Introdução à história - edição revista, aumentada e criticada. Trad. Maria Manuel et al. Portugal: Europa-América, 1997. LE GOFF, Jacques (Org.). A história nova. 3. ed. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. VOVELLE, Michel. A história e a longa duração. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A história nova. Op. cit., p. 68-96. BRAUDEL, Femand. Escritos sobre a história. 2. ed. Trad. J. Guinsburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. São Paulo: Perspectiva, 1992. BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989) - a Revolução Francesa da historiografia. Trad. Nilo Odália. São Paulo: Unesp, 1991. REIS, José Carlos. A escola dos Annales - a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000. Sobre a influência desse movimento na história do direito, ver a fundamental obra de LOPES, José Reinaldo Lima. O direito na história - lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000, especialmente p. 17-28. 3 Cf. BRAUDEL, Femand. Gramática das civilizações. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 25-55. 4 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito (I e II). Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983 e 1985. 5 Aqui, é fundamental observar a impossibilidade de adoção de um critério puramente cronológico. Evidentemente, há sociedades que passaram a dominar a escrita em períodos mais remotos (como é o caso das civilizações tratadas neste artigo), outras que permaneceram numa espécie de organização em forma de tribos ou clãs por um período maior (como os reinos chamados “bárbaros”, ou “germânicos”, que se mantiveram fora do mundo clássico, grego e romano, por toda a Antigüidade) e aquelas que até os dias atuais conservam características tribais ou clânicas e que são fundamentais para o estudo do direito dos povos sem escrita, consoante bem observado por GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Trad. A.M. Botelho Hespanha e I.M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 32. 6 Fenômeno identificado, de forma explícita, com o surgimento do movimento do constitucionalismo, no final do século XVIII. Para uma melhor explicitação deste ponto, ver: LUHMANN, Niklas. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg. Il futuro delta costituzione. Torino: Einaudi, 1996. Uma última palavra merece ser enunciada, agora em relação ao advento do comércio. Não obstante ser extremamente difícil, em termos exatos, definir a data em que surge a modalidade de agregação de valor e posterior comercialização de bens, é bastante plausível citar o incremento e sistematização das trocas de mercadorias (por intermédio da venda em mercados ou da navegação) como um aspecto preponderante da passagem das sociedades arcaicas para o mundo antigo. De fato, como será observado a seguir, o comércio é um elemento fundamental na consolidação das civilizações da Mesopotâmia e Egito. Segundo a já clássica contribuição de Engels, a origem do comércio localiza-se na divisão do trabalho gerada pela apropriação individual dos produtos antes distribuídos no seio da comunidade; com a retenção do excedente, a criação de urna camada de comerciantes e a atribuição de valor a determinados bens, o homem deixa de ser senhor do processo de produção. Inaugura- se, então, segundo Engels, urna as simetria no interior da comunidade, com a introdução da distinção rico-pobre. 11 A síntese desses três elementos - cidades, escrita, comércio representa a derrocada de urna sociedade fechada, organizada em tribos ou clãs, com pouca diferenciação de papéis sociais e fortemente influenciada, no plano das mentalidades, por aspectos místicos ou religiosos. Há, nessas sociedades arcaicas, um direito ainda incipiente, bastante concreto, cognoscível apenas pelo costume e que se confunde com a própria religião. Mas, aos poucos, vai se construindo uma nova sociedade - urbana, aberta a trocas materiais e intercâmbio de experiências políticas, mais dinâmica e complexa -, que demandará um novo direito. As primeiras manifestações desse novo tipo de sociedade - e, por conseqüência, desse novo estilo de direito - ocorrem na Mesopotâmia e no Egito. 3. MESOPOTÂMIA E EGITO: ASPECTOS GEOGRÁFICOS, POLÍTICOS E ECONÔMICOS As civilizações ora estudadas fornecem um raro exemplo de simultaneidade do tempo histórico: elas são construídas de forma lenta, mas a finalização do processo de mudança dá-se no mesmo período. Com efeito, existem indícios de existência de vida humana na Mesopotâmia e Egito já na Era Neolítica (ano 7000 a.C. na região da Mesopotâmia 12 e 11 ENGELS, Friedrich.A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3.ed. Trad. José Silveira Paes São Paulo: Global, 1986. 12 CARDOSO, Ciro Flamarion. Antigüidade oriental- política e religião. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1997, p. 23. 5500 a.C. no Egito). 13 Mas é no quarto milênio a.C. que a proximidade de datas fica mais evidente. Ambas as civilizações urbanizam-se e adotam a escrita em períodos muito próximos. Corno já dito, as primeiras inscrições em cuneiforme aparecem na Mesopotâmia em 3100 a.C.; os primeiros textos em hieróglifos surgem no Egito no período compreendido entre 3100 e 3000 a.C. 14 Quanto às cidades, elas já existem na Mesopotâmia no lapso de tempo situado entre 3100 e 2900 a.C.; no Egito, a urbanização dá-se de forma gradual, concomitante à unificação dos povos do Sul e Norte (Baixo e Alto Egito), o que resulta na formação das cidades entre 3100 e 2890 a.C. 15 Segundo as pesquisas mais recentes, não há uma relação de causalidade entre as duas evoluções aqui descritas; ainda que existam indícios de contato entre os povos da Mesopotâmia e do Egito, possivelmente em virtude da nave- gação, hoje encontra-se superada a tese que atribui forte influência mesopotâmica na unificação do reino egípcio. 16 As fontes disponíveis indicam, ao contrário, a existência de processos autônomos. 17 É hora de ressaltar as características gerais de constituição dessas civilizações, enfatizando semelhanças e diferenças. 3.1 Geografia A proximidade das datas de consolidação das civilizações mesopotâmica e egípcia não pode, por óbvio, ser tratada como mera coincidência histórica. Na verdade, a conformação do espaço é um elemento vital para a compreensão da durabilidade e êxito dessas civilizações. 13 ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faraônico. Brasília/São Paulo: UnB e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p. 15. 14 ROBINSON, Andrew. The story of writing - alphabets, hieroglyphs and pictograms. Op. cit., p. 16. 15 ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faraônico.Op. cit.,p. 15. 16 CARDOSO, Ciro F1amarion. Sete olhares sobre a Antigüidade. 2. ed. Brasília: UnB, 1998, p. 72. 17 A respeito das fontes históricas, duas observações tomam-se necessárias. É preciso ressaltar, em primeiro lugar, o papel cada vez mais importante que a arqueologia vem assumindo quanto ao esclarecimento de questões ligadas à história antiga. Historiadores de várias tendências e métodos concordam em relação a esse tema. De outra parte, cabe acentuar o aumento do grau de conhecimento moderno acerca dos textos antigos em virtude da decifração dos idiomas sumério, acádico e egípcio antigos (escritas cuneiformes e hieroglífica), fundamental para a elaboração de modelos históricos sobre o Oriente antigo. Ver, quanto ao primeiro aspecto, entre outros: SCHNAPP, Alain. A arqueologia. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Org.). História - Novas Abordagens. Trad. Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 1-20. FINLEY, M.I. História antiga- testemunhos e modelos. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 11-35. HILBERT, Klaus. História antiga e arqueologia - uma pequena e confusa história de rótulos. In: BAKOS, Margaret M. e POZZER, Katia M.P. (Org.). III Jornada de Estudos do Oriente Antigo - línguas, eScritas e imaginários. Porto Alegre: Ed. PUCRS, 1998, p. 15-22. E, no que se refere à decifração de textos, cf.: ROBINSON, Andrew. The story ofwriting - alphabets, hieroglyphs and pictograms. Op. cit., p. 21-35 e 70-91 e ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faraônico. Op. cit., p. 23. Isso porque as duas regiões, situadas no Oriente Próximo, 18 contavam com um elemento que lhes atribuía substancial vantagem em relação às demais localidades adjacentes: a proximidade de bacias hidrográficas. Ao contrário de povos que precisavam manter-se em território litorâneo, desértico ou montanhoso - corno os habitantes das regiões da Fenícia, Síria, Palestina ou Pérsia -, os mesopotâmicos e egípcios formaram suas civilizações em torno dos rios Tigre, Eufrates e Nilo. Tal circunstância permite, por óbvio, a existência de solo propício à agricultura, bem corno a navegação fluvial, essencial para o transporte de mercadorias e sofisticação do comércio. E todos esses fatores contribuem para um crescimento mais acelerado da população dessas sociedades, bem como um maior desenvolvimento político e econômico. 19 Uma diferença, contudo, merece ser notada, em face da repercussão que refletir- se-á nas crenças e mentalidades manifestadas pelos povo: aqui estudados. No que se refere ao antigo Egito, os períodos de cheia (recuo das águas do Nilo são previsíveis e estáveis; em se tratando de povos de credo politeísta, é comum a associação entre as divindades (fenômenos da natureza. Assim, a regularidade do ciclo das águas do Nilo trazia, aos habitantes do Egito antigo, urna sensação de continuidade, de evasão da passagem do tempo, que acabou por ser associada: um rito de imortalidade: o culto a Osíris. 20 Tal crença - na possibilidade de um ciclo natural de vida, morte e renas cimento - não poderia surgir nas cidades da Mesopotâmia, já que a cheia e recuo das águas do Tigre e do Eufrates possui um caráter pouco regular e 18 A Mesopotâmia antiga corresponde, de modo geral, ao atual Iraque, com algumas regiões localizadas em partes das nações hoje designadas Turquia (antiga Ásia Menor), Irã e Arábia Saudita, enquanto o antigo Egito compreendia o Estado moderno egípcio e, em alguns períodos, boa parte do atual Sudão, antiga região da Núbia. Para maior detalhamento das variações de fronteira ao longo dos séculos, v. KINDER, Hermann; HILGEMANN, Werner. Atlas of World History. Update, edition. London: Penguin, 1995 e McEVEDY, Colin. Atlas da História Antiga. 2 ed. Trad. de Antônio G. Mattoso. São Paulo: Verbo, 1990. 19 Nas palavras de Ciro Flamarion Cardoso: “A partir de um longo investimento coletivo de trabalho, adaptando e modificando os dados naturais através da construção de diques, barragens, canais, reservatórios, formaram-se nos vales fluviais em questão, sociedades complexas e urbanizadas, baseadas na irrigação. A agricultura irrigada é muito produtiva, e por isso o Egito e a Mesopotâmia tinham populações muito mais densas do que as de regiões como a Ásia Menor, a Síria- Palestina e o Irã onde a irrigação, pelas condições naturais, só podia ter um papel muito limitado, onde a agricultura - quase sempre dependente da água de chuva, às vezes retidas em cisternas - era no conjunto menos produtiva. Este contraste ajuda a entender certa diferenças importantes na organização política e econômica”. CARDOSO, Ciro Flamarion. Antigüidade oriental- política e religião. Op. cit., p. 16. 20 Eis a narrativa de Gerald Whitrow: “No Egito, onde tudo dependia do Nilo, coroação de um novo faraó era muitas vezes adiada até que um novo início de ciclo da natureza fornecesse um ponto de partida propício a seu reinado. A cerimônia era marcada de modo a coincidir ou com a cheia do rio, no início do verão, ou com a baixa das águas, no outono, quando os campos, fertilizados estavam prontos para a semeadura. O ritual real era estreitamente associado história de Osíris, o protótipo divino que os faraós tomavam por modelo, repetindo seus feitos tradicionais. Osíris representava as águas doadoras de vida e o sol, fertilizado pelo Nilo. Depois que o Nilo recuava, a terra conseqüentemente parecia morta, mas quando as águas retomavam, revivia. O mito de Osíris, que corporificava esse ciclo de nascimento, morte e renascimento, encerrava uma promessa de imortalidade (...) De início esse caminho para a imortalidade era essencialmente uma prerrogativa real, mas acabou-se por considerar que a imortalidade seria conferida a todos que pudessem imitar esses ritos.” WHITROW, G.J. O tempo na história - concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 38-39. humano. Um interessante ritual praticado na Babilônia ressalta essa característica. 28 3.3 Economia No plano da economia, há dois aspectos comuns que são essenciais, até mesmo como elementos distintivos entre a evolução dos povos que habitavam a Mesopotâmia e o Egito e daqueles que estavam além de suas fronteiras: a utilização do solo para plantio e o crescente emprego da navegação como meio de transporte de mercadorias. No entanto, é fundamental ressaltar que o Egito era rico em vários produtos de origem mineral - ouro, cobre, sílex, ametista e granito para construção -, mas pobre em madeira, que era importada da região da Fenícia, por meio do porto de Biblos. 29 Além disso, as condições de irrigação e drenagem do solo eram bastante favoráveis na extensão do Rio Nilo, 30 ao passo que na Mesopotâmia havia carência, em regra, de minerais (com exceção do cobre) e o solo, ainda que bastante fértil, apresentava problemas quanto à dificuldade de drenagem e de contenção do avanço da vegetação desértica. Não é difícil concluir, portanto, que as cidades da Mesopotâmia dependiam do comércio em grau sensivelmente superior ao Egito, o que terá reflexos, como poder-se-á observar, no desenvolvimento do direito privado nessas duas civilizações. 4. A VIGÊNCIA DO DIREITO: SEUS ELEMENTOS, MANIFESTAÇÕES E INSTITUIÇÕES Há que se ponderar, de imediato, que o estudo do direito das sociedades pré- clássicas representa um campo relativamente novo na história do direito. Muitas das descobertas fundamentais, no terreno da arqueologia, são posteriores ao início do século XX. As principais expedições foram enviadas à Mesopotâmia e ao Egito nos anos vinte: as célebres escavações em Ur lideradas por Wooley (1922-1929) e a descoberta e catalogação dos tesouros da tumba de Tutankhamon, efetuadas por Carter, no Vale dos Reis (1922-1924). Evidentemente, a reaparição de elementos da cultura escrita e material, proporcionada pela 28 “Na Babilônia, por ocasião dos ritos de Ano-Novo no templo de Marduk, o rei era esbofeteado (e não gentilmente: o signo favorável esperado era que lágrimas saltassem de seus olhos!) por um sacerdote do deus, que lhe retirara previamente os signos da realeza e depois devia puxá-lo pelas orelhas para fazê-lo prosternar-se diante da imagem divina. Nessa ocasião, o rei deveria declarar à divindade estar livre de pecados; entre estes pecados não-cometidos constava o de „fazer chover golpes na face de um subordinado‟, e também o de „humilhar‟ os súditos. No Egito, algo semelhante seria, mais uma vez, impensável, sendo o faraó um deus encarnado”. CARDOSO, Ciro Flamarion Sete olhares sobre a Antigüidade. Op. cit., p. 50-51. 29 Cf. McEVEDY, Colin. Atlas da História Antiga. Op. cit., p. 49 e CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a Antigüidade. Op. cit., p. 20. 30 CARDOSO, Ciro Flamarion.Antigüidade oriental-política e religião. Op. cit., p. 40. arqueologia, é apenas o início de um longo trabalho que inclui a decifração dos textos, a compilação e confronto do material e a posterior tentativa de obter-se uma reprodução aproximada de determinado aspecto de uma sociedade, a saber, algum rito religioso, alguma manifestação política ou movimento econômico. 31 Não é, dessarte, de se estranhar que uma obra clássica de história do direito escrita no século XIX, como a de Sir Henry Sumner Maine, não dedique uma linha sequer aos direitos da Mesopotâmia e do Egito. 32 Hoje a história vale-se da lingüística e da arqueologia para tentar aprofundar o estudo dos direitos dos povos do Oriente próximo; é possível, com isso, esclarecer algumas características dos sistemas jurídicos da época clássica e posterior. Para tanto, cumpre ressaltar um dado fundamental no início da presente exposição; tanto os direitos da Mesopotâmia como o direito egípcio possuem uma característica comum: a idéia de revelação divina. Como já observado no item anterior, as sociedades mesopotâmica e egípcia, em face de seu caráter urbano e comercial, passaram a desenvolver um grau de complexidade que exigia a vigência de um direito mais abstrato do que o simples costume ou tradição religiosa. Era necessário um conjunto de leis escritas, que desse previsibilidade às ações no campo privado, que estipulasse algum tipo de tribunal ou juiz para resolver controvérsias e que fosse inteiramente seguido em toda a extensão do reino para o qual se destinava. Ambas as sociedades aqui estudadas atingiram esse estágio. Deve ser ressalvado, contudo, o fato de que uma característica do direito arcaico ainda produziu efeitos nessas civilizações urbanas: as normas de direito tinham sua justificação no princípio da revelação divina. A noção de responsabilidade política pela decisão legislativa é estranha à Mesopotâmia e ao Egito. 33 O exemplo mais enfático dessa revelação consta do Código de Hammurabi: num extenso prólogo, fica ali explicitado que o conjunto de leis foi oferecido ao povo da Babilônia pelo deus Sarnas, por intermédio do rei Hammurabi, e não por decisão deste. Na exata descrição de Aymard e Auboyer, “Hammurabi, ao publicar o seu código, quer satisfazer a Sarnas, deus da justiça, „fazer resplandecer o direito no país, arruinar o mau e o malfeitor, impedir que o forte maltrate o fraco‟. Mas a justiça, no fundo, identifica-se à vontade dos deuses, cujas razões escapam à compreensão dos homens: e estes não devem julgá-la”. 34 O mesmo raciocínio se aplica, com maior evidência, ao direito egípcio. Como o faraó é a própria 31 Cf. TAVARES, António Augusto. As civilizações pré-clássicas - guia de estudo 3. ed. Lisboa: Estampa, 1995, p. 56. 32 MAINE, Sir Henry Sumner. Ancient Law. USA: Dorset Press, 1986. 33 Cf. FINLEY, M.I. Política. In: FINLEY, M.I. (Org.). O legado da Grécia - uma nova avaliação. Trad. Yvette V. Pinto de Almeida. Brasília: UnB, 1998, p. 31-33 e GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Op. cit., p. 53 e 62. 34 AYMARD, André e AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga - vol. I. As Civilizações Imperiais. Volume 1 da coleção organizada por CROUZET, Maurice. História geral das civilizações. 2. ed. Trad. Pedro Moacyr Campos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 197. encarnação da divindade, e dele emanam todas as normas, não será possível conceber qualquer decisão política que vincule o soberano pelo seu simples poder temporal. O direito terá de se originar num plano superior: a revelação divina. Consignada essa premissa fundamental - comum às duas civilizações ora estudadas -, é hora de resgatar as principais manifestações do direito na Mesopotâmia e no Egito. 4.1 A Mesopotâmia: compilações de normas jurídicas e sua aplicação É pertinente iniciar a descrição dos fenômenos ligados à criação, vigência e aplicação do direito nas cidades da Mesopotâmia com uma advertência constantemente reprisada, mas que é ainda necessária: quando se fala da existência de “códigos” na antiga Mesopotâmia, é claro que esta expressão não deve ser compreendida em seu sentido moderno (como um documento sistematizado, dotado de princípios gerais, categorias, conceitos e institutos, pensado para vigorar como um conjunto de preceitos gerais e abstratos). A configuração do direito, no alvorecer da Antigüidade, reflete o estado de maturidade política e institucional da época. O emprego da expressão “código” para descrever as normas de direito escrito produzidas na Mesopotâmia encontra fundamento tão-somente na tradição. Não há qualquer paralelo com os códigos de inspiração napoleônica. O primeiro desses “códigos” da antiga Mesopotâmia surge no período compreendido entre 2140 e 2004 a.C., na região da Suméria. Esta região, aliás, localizada na Baixa Mesopotâmia, foi a sede do primeiro império 35 fundado na bacia do Eufrates e do Tigre; o centro vital desse império inicial foi a cidade de Umma, que conquistou algumas cidades vizinhas entre 2465 e 2370 a.C. O império seguinte foi o acádico, teve como principal figura histórica o rei Sargão, e se estendeu de 2370 a 2140 a.C. A queda do império acádico veio com a recuperação da hegemonia suméria, por intermédio da refundação do primeiro império, agora com sede na cidade de VI. É nesse momento que surge o primeiro documento escrito da história do direito. O fundador desse novo império na Suméria (que inicia a chamada III dinastia de 35 É fundamental registrar que a expressão “império”, aqui utilizada, deve ser compreendida em sentido restrito, ou seja, considerando a sua efemeridade; nunca se formou, na Mesopotâmia, de modo duradouro, um império nos moldes daqueles existentes no Egito unificado e, posteriormente, em Roma. O alto grau de independência das cidades mesopotâmicas impediu a consolidação de uma hegemonia política de longa duração. espancando a filha de um homem livre, faz com que ela aborte pagará uma indenização de 10 siclos de prata; se se tratar da filha de um subalterno, 5 siclos; de um escravo, apenas 2.” 46 Alguns elementos surpreendentemente modernos marcam a delimitação do direito de família no Código de Hammurabi. A mulher, dotada de personalidade jurídica, mantém-se proprietária de seu dote mesmo após o casamento, e tem liberdade na gestão de seus bens. É prevista a possibilidade de repúdio da mulher pelo marido, mas a recíproca é igualmente verdadeira: a mulher pode alegar má conduta do marido e propor ação para retomar a sua família originária, levando de volta o seu patrimônio. 47 A organização familiar é em regra monogâmica, sendo, contudo, flexibilizada quando se tratar da continuidade da linhagem familiar; é permitida, em alguns casos, a inserção de uma segunda esposa, uma espécie de concubina, quando o casal não conseguir gerar filhos, mas fica mantida a precedência da primeira esposa em relação à segunda. 48 O Código prevê, ainda, com minúcias, os institutos da adoção (estipulando as conseqüências jurídicas da ruptura do vínculo entre adotante e adotado) e da sucessão (com limitações ao poder de dispor sobre o patrimônio, especialmente se isso ocorrer em detrimento de algum dos filhos sobreviventes). No que se refere ao domínio econômico, o Código consagra alguma intervenção na atividade privada, por meio da delimitação de salários e preços. Não existem dados seguros acerca do êxito dessa tentativa, e da sua estrita observância pelos agentes econômicos da época. Mas, como pontuam Aymard e Auboyer, “determinando um bom número de salários e preços, a legislação de Hammurabi surge-nos como a mais ampla experiência, numa época antiga, do tabelamento oficial”. 49 O direito penal trazido pelo Código de Hammurabi reflete o momento de elaboração do próprio documento; buscando uma extrema centralização do poder nas mãos do 46 AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga - vol. I. As Civilizações Imperiais. Op. cit., p. 213. 47 Cumpre invocar, agora a respeito da conduta que a mulher deveria obedecer em caso de ocorrência do que seria chamado hoje como abandono do lar, os seguintes dispositivos do Código: “133. Se um homem desaparecer e na sua casa há de comer, a sua esposa manterá a sua casa e tomará conta de si; não entrará na casa de outrem. Se essa mulher não tomou conta de si e se entrou na casa de outro, essa mulher será condenada e será deitada à água”; “134. Se um homem desapareceu e se não há de que comer na sua casa, a sua esposa poderá entrar na casa de um outro; essa mulher não é culpada.” Adota-se, para os fins do presente trabalho, a versão apresentada por John Gilissen para a redação do Código de Hammurabi. Cf., então, nos casos citados, e nos doravante transcritos, GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Op. cit., p. 65-66. É possível, por outro lado, ter acesso a várias transcrições do Código em páginas da Internet ligadas à história do direito. Veja-se, como exemplo, o site: <http://eawc.evansville.edu/anthology/ hammurabi.html>, em que consta a íntegra do texto com criteriosa tradução de L.W. King (acesso em: 18.3.2002). 48 Eis o teor do art. 145: “Se um homem casou com uma sacerdotisanaditum e se ela não lhe deu filhos e se ele se propôs casar com uma sacerdotisa sugétum, este homem poderá casar com uma sugétum; e poderá fazê-la entrar na sua casa. Esta sugétum não será tida em pé de igualdade com a naditum”. 49 AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga - vol. I As Civilizações Imperiais. Op. cit., p. 218. No mesmo sentido: TAVARES, António Augusto. As civilizações pré-clássicas - guia de estudo. Op. cit., p. 103. soberano, o Código, na parte alusiva aos delitos e às penas, consagra uma fusão de elementos sobrenaturais, princípios de autotutela e retaliação e penas ligadas à mutilação e ao castigo físicos. 50 E, por fim, um dos principais legados da obra de Hammurabi para o direito superveniente localiza-se na regulamentação do direito privado. Várias modalidades de contratos e negócios jurídicos são contempladas no texto do documento. Por intermédio de artigos do Código, sabe-se que na Mesopotâmia já eram praticados os seguintes contratos: compra e venda (inclusive a crédito), arrendamento (com ênfase na regulamentação das terras cultiváveis) e depósito. A responsabilidade civil é levada às últimas conseqüências. Há previsão, ainda, de empréstimo a juros, títulos de crédito, operações de caráter bancário e de sociedades de comerciantes. Após a declinação das principais características dessas normas escritas que regiam as sociedades da antiga Mesopotâmia, uma pergunta se impõe: como se davam os processos de aplicação do direito? A resposta é proporcionada pela subsistência de milhares de documentos escritos, conservados sob a forma de tabletes de argila ou de cilindros de pedra, que reproduzem decisões judiciárias tomadas em casos concretos. Mesmo no período de maior centralização do poder político auge dos impérios sumério, acádico, babilônico, assírio e neobabilônico -, não se formou, nas cidades da Mesopotâmia, uma estrutura burocrático- profissional nos moldes existentes no Egito antigo. Havia, isso sim, funcionários do palácio real e sacerdotes locais, que auxiliavam o soberano na aplicação do direito. Mas, em regra, os juízes eram nomeados pelo próprio monarca, que poderia, igualmente, ser instado para decidir, em grau de recurso, determinada causa existente no reino. Eis a descrição de Aymard e Auboyer, característica do período de Hammurabi: “Ao lado da justiça das cidades e da dos templos, existe urna justiça real cujos representantes são nomeados pelo rei. Ainda mais, Hammurabi oferece a todos a possibilidade de apelo ao rei ou ao seu ministro „supremo‟.” 51 50 É oportuno invocar os seguintes preceitos do Código, a título ilustrativo: “1. Se alguém acusou um homem, imputando-lhe um homicídio, mas se ele não pôde convencê-la disso, o acusador será morto”; “2. Se alguém imputou a um homem atos de feitiçaria, mas se ele não pôde convencê-la disso, aquele a quem foram imputadas as atividades de feitiçaria, irá ao Rio; mergulhará no Rio. Se o Rio o dominar, o acusador ficará com a sua casa. Se este homem for purificado pelo Rio, e se sair são e salvo, aquele que lhe tinha imputado atos de feitiçaria será morto; aquele que mergulhou no Rio ficará com a casa do seu acusador”; “195. Se um filho agrediu o pai, ser- 1he-á cortada a mão por altura do pulso”; “196. Se alguém vazou um olho de um homem livre, ser-lhe-á vazado o olho”; “197. Se ele partiu o osso de um homem livre, ser-lhe-á partido o osso”. 51 AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga - vol. I As Civilizações Imperiais. Op. cit., p. 207. Para um elaborado exame de fontes primárias relacionadas com a aplicação do direito na Mesopotâmia, ver: JOANNES, Francis (Dir.). Rendre la justice en Mésopotamie - Archives judiciaires du Proche-Orient ancien. Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2000. 4.2 O Egito: o princípio de justiça divina É lamentável que o historiador do direito não possua, no estudo do direito egípcio, a mesma riqueza de fontes de que dispõe no exame dos direitos das cidades da Mesopotâmia. Nenhum texto legal do período antigo do Egito chegou ao conhecimento do homem moderno. Há, contudo, excertos de contratos, testamentos, decisões judiciais e atos administrativos - além, é claro, de urna abundância de referências indiretas às normas jurídicas em textos sagrados e narrativas literárias que permitem inferir alguns aspectos da experiência egípcia no campo do direito. 52 A contribuição mais interessante ao estudo das relações entre sociedade e direito que se pode retirar do Egito antigo é a consagração, na aplicação do direito, de um princípio de justiça que é simbolizada pela figura de urna deusa, de nome maat. Consoante a descrição de José das Candeias Sales, “Os egípcios acreditavam numa lei reguladora e organizadora dos sistemas de coisas, numa noção de eterna ordem das coisas e do Universo, a maat, que gozou no Egito faraônico de enorme popularidade e importância na estruturação e funcionamento da própria realeza. Podemos afirmar que é o elemento basilar do Estado”. 53 A aplicação do direito estava subordinada, então, à incidência de um critério divino de justiça. A conclusão que daí decorre é evidente: ao faraó, que tinha atributos de divindade, incumbia velar pela vigência do princípio de justiça simbolizado pela deusa maat: “Indissociável do faraonato como instituição fulcral da vida egípcia, a maat possui um conteúdo e uma vertente social, ética e cósmica que confere direta e expressamente ao faraó a responsabilidade de estabelecer a Justiça, a Paz, o Equilíbrio e a Solidariedade social e cósmica da sociedade terrena. A função real devia estar conforme aos desígnios da maat.” 54 E como operava o princípio da justiça na aplicação do direito? A explicação é fomecida por Gilissen: “Maat é o objetivo a prosseguir pelos reis, ao sabor das circunstâncias. Tem por essência ser o 'equilíbrio'; o ideal, a esse respeito, é por exemplo „fazer com que as duas partes saiam do tribunal satisfeitas‟. Como é neste preceito que reside a „verdadeir’ justiça, Maat pode ser traduzido por Verdade e Ordem como por Justiça propriamente dita.” 55 52 Cf., a respeito da inexistência de fontes diretas para a percepção do fenômeno jurídico no Egito Antigo, HUSSON, Genevieve; VALBELLE, Dominique. L 'État et les institutions en Égypte - des premiers pharaons aux empereurs romains. Paris: Armand Colin, 1992, p. 121-125. 53 SALES, José das Candeias. A ideologia real acádica e egípcia - representações do poder politico pré-clássico. Op. cit., p. 223. Ver também, para maior explicitação dos fundamentos religiosos que governavam o culto à deusa maat, ARAÚJO, EmanueI. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faraônico. Op. cit., p. 403. 54 SALES, José das Candeias. A ideologia real acádica e egípcia - representações do poder politico pré- clássico. Op. cit., p. 229. 55 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Op. cit., p. 53 (grifo do autor). É plausível supor, nesse contexto, que alguns dos institutos jurídicos existentes na Mesopotâmia e do Egito tenham sido absorvidos pelos hititas e posteriormente transferidos para as sociedades do mundo grego. Essa é a linha de investigação proposta por Gilissen, 65 e que parece respaldada por razoáveis indícios históricos. Tampouco seria equivocado apontar a subsistência, na sociedade e no direito romanos, de institutos provenientes da Mesopotâmia e do Egito antigos, como a celebração de espécies diversificadas de contratos e a centralização administrativa apoiada por um corpo burocrático estável. É razoável conceber, então, um panorama de circulação de idéias na região do Mediterrâneo, que pode ter auxiliado na conformação de institutos jurídicos posteriormente legados ao patrimônio do Ocidente. 66 Talvez seja chegado o momento de identificar as origens dos direitos modernos em sociedades que nasceram, se desenvolveram e encontraram sua mais profunda decadência antes mesmo do surgimento das civilizações clássicas. Talvez tenha sido atingido o estágio de ampliar os horizontes do tempo histórico, pois, na vigorosa e singela afirmação de Marc Bloch, o verdadeiro tempo da história “é, por natureza, contínuo. É também perpétua mudança”. 67 6. REFERÊNCIAS CONSULTADAS ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faraônico. Brasília/São Paulo: UnB e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000. AYMARD, André e AUBOYER, Jeannine. “O Oriente e a Grécia Antiga - vol. I: As Civilizações Imperiais”. Volume 1 da coleção organizada por CROUZET, Maurice. História geral das civilizações. Trad. de Pedro Moacyr Campos. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. BLOCH, Marc. Introdução à história - edição revista, aumentada e critica da. Trad. de Maria Manuel et. al. Portugal: Europa-América, 1997. BRAUDEL, Femand. Escritos sobre a história. Trad. de J. Guinsburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. 65 “Os Hititas estavam instalados no segundo milênio na região de Hatti, ao centro da atual Turquia asiática (região de Ankara). Cerca de 1800 antes de Cristo, formou-se aí um reino hitita, pela reunião de vários pequenos principados; reino de tipo feudal, ele vai no decurso dos séculos seguintes aumentar o seu poderio, para se tornar cerca de 1400 a 1300 num vasto império (...) Desaparece cerca de 1200 após as grandes invasões dos „povos do mar‟. Parece no entanto ter sido um elo de ligação entre os direitos mesopotâmicos e os direitos gregos”. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Op. cit., p. 62. [Grifos nossos]. 66 Cf., como exemplo das possibilidades dessa abordagem que privilegia a circulação de idéias, os ensaios pioneiros de Amaldo Momigliano acerca da troca de informações entre civilizações da Antigüidade: MOMIGLIANO, Amaldo. Os limites da helenização - a interação cultural das civilizações grega romana. céltica, judaica e persa. Trad. Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991 e Ensayos de historiografía antigua y moderna. Trad. Stella Mastrangelo. México: Fondo de Cultura Econámica, 1997. 67 BLOCH, Marc. Introdução à história. Op. cit., p. 90. BRAUDEL, Femand. Gramática das civilizações. Trad. de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BRAUDEL, Femand. Memórias do mediterrâneo - Pré-história e antigüidade. Trad. de Teresa Antunes Cardoso et. aI. Lisboa: Terramar, 2001. BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989) - a Revolução Francesa da historiografia. Trad. de Nilo Odália. São Paulo: Unesp, 1991. 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Além de ser a pólis da qual mais se tem informações (Aristófanes, oradores áticos, historiadores e a Constituição de Atenas de Aristóteles), Atenas foi onde a democracia melhor se desenvolveu e o direito atingiu sua mais perfeita forma quanto a legislação e processo. É comum utilizar direito grego e direito ateniense como sinônimos. No entanto, deve-se ter em mente que nem sempre são a mesma coisa, e não se pode falar de direito grego no sentido de sistema único e abrangendo todas as pólis. Aqui, novamente, Esparta é a grande exceção. A época arcaica é um período de transformações e se caracteriza por certo número de criações e inovações. Um dos fenômenos mais característicos dessa época foi o da colonização, prática que continuou até o período helenístico. Seja por motivos de excesso de população, secas ou chuvas em demasia, sempre que a pólis tinha dificuldade em alimentar a população, decidia pelo envio de urna parte para outro lugar, com o objetivo de fundar urna colônia, a qual denominavam apokia (residência distante). Foi dessa forma que os gregos se espalharam pelo Mediterrâneo. Além de dispersarem os gregos geograficamente, essas colonizações estimularam o comércio e a indústria. As colônias precisavam realizar troca de mercadorias com o continente e também colocavam os gregos em contato com outros povos, os bárbaros, na visão dos gregos. Logo o comércio transformou-se em atividade autônoma e próspera, estimulando a indústria, principalmente a produção de cerâmica. Com respeito às inovações do período arcaico, Paul Faure 3 apresenta cinco: (1) o armamento naval com as trirremes; (2) o armamento terrestre com os hoplitas; (3) o cavalo montado, substituindo os carros de guerra puxados por cavalos; (4) a moeda e (5) o alfabeto. Desses, interessa em particular os hoplitas, a moeda e o alfabeto, que será assunto dos tópicos seguintes. O hoplitia, uma transformação de tática militar, retirou da aristocracia a hegemonia do poder militar, permitindo o acesso a maior número de cidadãos. Mesmo tendo o hoplita de custear seu equipamento, este ainda era mais barato que o custo de um cavalo, privilégio dos nobres. Segundo Paul Faure, “A nação em armas substitui os campeões, os heróis, os senhores de guerra. Todos os proprietários de um lote de terra, capazes de pagar seu equipamento, são de direito e de fato remadores e hoplitas.” 4 Tendo aparecido na Lídia em meados do século VII a.C., a moeda foi logo 3 FAURE, Paul; GAIGNEROT, Marie-Jeanne. Guide grec antique. Paris: Hachette, 1991, p. 72-76. 4 FAURE, Paul; GAIGNEROT, Marie-Jeanne. Op. cit., p.73. adotada pelos gregos, contribuindo para incrementar o comércio e permitir a acumulação de riquezas. Com o aparecimento dos plutocratas corno urna nova classe, a aristocracia perdeu o poder econômico, embora ainda mantivesse o poder político, que seria por ela controlado, contudo finalmente retirado com as reformas introduzi das pelos legisladores e tiranos. A escrita surge como nova tecnologia, permitindo a codificação de leis e sua divulgação através de inscrições nos muros das cidades. Dessa forma, junto com as instituições democráticas que passaram a contar com a participação do povo, os aristocratas perdem também o monopólio da justiça. Retirar o poder das mãos da aristocracia com leis escritas foi o papel dos legisladores. Coube-lhes compilar a tradição e os costumes, modificá-los e apresentar urna estrutura legal em forma de leis codificadas. O primeiro legislador de que se tem conhecimento é Zaleuco de Locros (por volta de 650 a.C.), figura lendária a quem é atribuído o primeiro código escrito de leis. Em seu livro A Grécia antiga, 5 José Ribeiro Ferreira cita Éforo e Diodoro corno atribuindo a Zaleuco o mérito de ter “sido o primeiro a fixar penas determinadas para cada tipo de crime”. Tem-se a seguir Carondas, legislador de Catânia (cerca de 630 a.C.), e Licurgo, em Esparta. São de particular interesse dois legisladores atenienses: Drácon e Sólon. O primeiro (620 a.C.) fornece a Atenas seu primeiro código de leis, que ficou conhecido por sua severidade e cuja lei relativa ao homicídio foi mantida pela reforma de Sólon, sobrevivendo até nossos dias graças a urna inscrição em pedra. 6 Deve-se a Drácon a introdução de importante princípio do direito penal: a distinção entre os diversos tipos de homicídio, diferenciando entre homicídio voluntário, homicídio involuntário e o homicídio em legítima defesa. Ao Areópago cabia julgar os homicídios voluntários; os demais tipos de homicídios eram julgados pelo tribunal dos Éfetas. Sólon (594-593 a.C.) não só cria um código de leis, que alterou o código criado por Drácon, como também procede a urna reforma institucional, social e econômica. No campo econômico, Sólon reorganiza a agricultura, incentivando a cultura da oliveira e da vinha e ainda a exportação do azeite. No aspecto social, entre as várias medidas, são de particular interesse aquelas que obrigavam os pais a ensinarem um ofício aos filhos; caso contrário, estes ficariam desobrigados de os tratarem na velhice; a eliminação de hipotecas por dívidas e a libertação dos escravos pelas mesmas e a divisão da sociedade em classes 5 FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia antiga. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 64. 6 A inscrição da lei de Drácon, relativa ao homicídio, está reproduzida em A selection of Greek historical inscriptions, n. 86, de Meiggs-Lewis. societárias. Atrai também artífices estrangeiros com a promessa de concessão de cidadania. Com respeito às instituições, manteve os Arcontes, o Areópago e a Assembléia, mas com algumas alterações. Acredita-se que a Boulê (Conselho) tenha sido uma criação de Sólon, mas formada inicialmente por 400 pessoas e sendo um conselho paralelo ao Areópago. Uma criação importante e de grande repercussão no direito ateniense foi o tribunal da Heliaia. José Ribeiro Ferreira observa que esse tribunal, ao qual qualquer pessoa podia apelar das decisões dos tribunais, assegurava a idéia “de que a lei se encontrava acima do magistrado que tinha a cargo sua aplicação.” 7 Também é da época arcaica o aparecimento de tiranos, sendo comumente aceito o período de 640-630 a.C. De início, o termo tirano não tinha ainda o sentido pejorativo que apareceria em Atenas, no século V a.C., com o governo dos Trinta Tiranos (404 a.C.). Em Atenas, Pisístrato é o grande nome e aquele, após algumas tentativas, que estabelece a tirania de 546 a 510 a.C., comportando-se como déspota esclarecido. Seu período de tirania coincide com importante fase de desenvolvimento econômico para Atenas. São desse período as famosas moedas de prata com a imagem da coruja, símbolo da deusa protetora da cidade. Com respeito às instituições e leis, mantém o que Sólon tinha estabelecido. Outros tiranos importantes foram Periandro, em Corinto, no período de 590 a 560 a.c., e Policrato, tirano de Samos, entre 538 a 522 a.C. Com a queda da tirania de Pisístrato em 510 a.C., o povo ateniense reage, não aceita a liderança de Iságoras e elege Clístenes, considerado, posteriormente, o pai da democracia grega. Clístenes atua como legislador, realizando verdadeira reforma e instaurando nova Constituição. Com as guerras Pérsicas (490 e 489-479 a.C.) inicia-se o que se conhece como era clássica da Grécia. São figuras importantes, nesse período: Milcíades, com a vitória em Maratona; Temístocles, com a vitória naval de Salamina; Efialtes, que consegue retirar do Areópago a maioria dos poderes e, finalmente, Péric1es, que estabelece a remuneração (mistoforia) para o tempo que se estivesse a serviço da pólis. Nessa época se consolidam as principais instituições gregas: a Assembléia, o Conselho dos Quinhentos (Boulê) e os Tribunais da Heliaia. Pode-se ainda citar Creon, tristemente conhecido pelas comédias de Aristófanes. Ao iniciar a Guerra do Peloponeso, por volta de 430 a.C., estima-se que Atenas tivesse cerca de 300 mil habitantes, dos quais de 30 a 40 mil eram cidadãos. Quanto aos 7 FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia antiga. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 71. Como se vê, direito e escrita estão relacionados, e não somente a escrita como tecnologia, mas também os meios de escrita, como tecnologias auxiliares, de forma a permitir a produção e a divulgação das leis. Assim, para melhor entender o direito grego, é apropriado aprofundar-se na história da escrita, particularmente porque direito e escrita se confundem com a própria história da civilização grega. Como expressão oral, a língua grega é uma língua indo-européia. Logo após o III milênio a.C., as populações que falavam línguas indo-européias começaram a mover-se em direção à outras regiões como a Gália, Bretanha, Germânia, Península Ibérica, Ucrânia Rússia, etc., onde acabaram fixando-se. Os aqueus foram um desses povos e se dirigiram para a Grécia (aproximadamente 2000 a.C.), onde sua língua indo-européia tornar-se-ia o veículo da futura civilização Micênica. 13 Foram seguidos pelos jônios e pelos eólios, que formaram com os aqueus a primeira onda migratória, enquanto os dórios constituíram a segunda onda alguns séculos mais tarde (1200 a.C.). São essas as origens longínquas do grego antigo. É aos aqueus que se deve, no Peloponeso, a civilização Micênica, que depois se estendeu até Creta, chegando ao fim com a chegada dos dórios, que, por sua vez, expulsaram os aqueus. A Grécia conheceu nessa época lima multiplicidade de dialetos, dentre os quais distinguiram-se quatro: o dório, o arcárdio-cipriota, o eólio e o jônio-ático. As grandes obras de Atenas do século V a.C. foram escritas em dialeto ático, mas a Odisséia, datada do século VIII a.C., foi escrita em dialeto jônico. Depois da destruição da civilização micênica no século XIII a.C., os gregos ignoraram a arte da escrita durante séculos. A tradição grega data a adoção do alfabeto fonético a partir da primeira olimpíada, ou seja, em 776 a.C., data esta aceita pela maioria dos arqueólogos e historiadores. Os gregos adotaram uma versão do alfabeto semítico utilizado pelos fenícios, provavelmente porque estes utilizam a via marítima para o comércio e tinham contatos com os gregos. A maioria das letras gregas consonantais deriva seus valores da escrita semítica ancestral de maneira direta. No entanto, a grande contribuição dos gregos foi a criação de vogais, visto que as diferenças entre as vogais eram muito mais decisivas em grego que nas línguas semíticas. As palavras gregas amiúde começam com vogais. 13 A escrita dos gregos durante a civilização micênica foi a linear B, uma escrita silábica, utilizada para escrever uma forma arcaica do grego nos séculos 16 a 13 a.C., muito antes de os gregos terem inventado a escrita alfabética. Essa escrita foi decifrada somente em 1952 por Michael Ventris, um arquiteto inglês. Antes disso, achava-se que a escrita linear B não fosse grego. John Chadwick, um colaborador de Ventris, tem escrito vários livros sobre a escrita linear B e entre eles The decipherment of linear B (O deciframento da linear B), editado por Cambridge University Press. Naturalmente, os gregos seguiram a prática semítica de escrever da direita para a esquerda, passaram ao estilo “a volta do boi”, alternadamente da direita para a esquerda e da esquerda para a direita em linhas sucessivas, como os sulcos do arado, e evoluíram para a forma de escrita, ainda hoje empregada, da esquerda para a direita. 14 Ao passar do silabário ao alfabeto fonético e com a criação de símbolos para as vogais, o grego exerceu um papel essencial na história da escrita. David R. Olson menciona que: (...) duas das revoluções culturais mais notáveis, e seguramente das mais estudadas - a da Grécia do V, IV e III séculos a.C., e a da Europa renascentista, que vai aproximadamente dos séculos XII ao XVII da nossa era - foram acompanhadas de mudanças drásticas no modo e na extensão com que se leu e escreveu, ou seja, na natureza e abrangência do uso da escrita. 15 É famosa a declaração de Aristóteles em De interpretatione: “As palavras são símbolos ou signos de afeições ou impressões da alma; as palavras escritas são signos das palavras faladas.” 16 Essa declaração gerou o mal entendido de que a escrita seria uma mera transcrição da fala. Na verdade, a escrita é um modelo para a própria fala. Aprender a ler e escrever significa, em parte, ouvir e pensar a fala de uma nova forma. Apesar de ter sido o berço da democracia, da filosofia, do teatro e da escrita alfabética fonética, a civilização grega tinha algumas características bastante particulares. Duas delas podem ter contribuído para o obscurecimento do direito grego ao longo da história. A primeira é a recusa do grego em aceitar a profissionalização do direito e da figura do advogado que, quando existia, não podia receber pagamento. A segunda é a de que preferia falar a escrever. Sobre a primeira se verá mais adiante; no entanto, quanto à segunda, parece até um paradoxo que o povo que inventou a escrita desse primazia à fala. Esse paradoxo é ainda mais reforçado pela sua alta produção literária. O historiador Moses Finley, em seu livro Os gregos antigos, chama a atenção para essa característica dos gregos: Os gregos preferiam falar e ouvir; a sua própria arquitectura é a de um povo que gostava de falar; não apenas os grandiosos teatros ao ar livre e os recintos de reuniões, mas também as mais características de todas as estruturas gregas, a stoá ou coluna tapada. Por cada pessoa que lia uma tragédia, havia dezenas de milhares que as conhecia por representação ou audição. O mesmo acontecia com a poesia lírica, composta habitualmente para execução pública (frequentemente por coros) em ocasiões festivas, quer casamentos, festas religiosas ou para celebrar um triunfo 14 SAMPSON, Geoffey. Sistemas de escrita: tipologia, história e psicologia. São Paulo: Ática, 1996, p. 109. 15 OLSON, David R. O mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997, p. 61. 16 ARISTÓTELES. De interpretatione. The complete work os Aristotle. Princeton University Press, v. I, p. 25. militar ou uma vitória nos Jogos. O mesmo se verificava ainda, embora dentro de um certo limite, em relação à prosa. Heródoto, por exemplo, fez leituras públicas da sua História. Os filósofos ensinavam mediante o discurso e a discussão. Platão exprimiu abertamente a sua desconfiança em relação aos livros: não podem ser inquiridos e, por conseguinte, as suas idéias estão fechadas à correcção ou ao maior aperfeiçoamento e, além disso, enfraquecem a memória (Fedro 274-8). O seu mestre Sócrates conseguiu a sua reputação apenas com uma longa vida de conversação, já que não escreveu uma só linha. 17 Os próprios escritos de Platão são na forma de diálogos, em que as suas idéias filosóficas são desenvolvidas através de discussões, utilizando pessoas e situações reais. Os escritores do século IV eram na sua maioria oradores e professores de retórica. Não por acaso, o direito grego é, antes de tudo, um direito retórico. A característica dos gregos de dar preferência à fala em detrimento da escrita era também reforçada pelas dificuldades que a escrita ainda apresentava, mesmo no século V a.C., como a disponibilidade e custo do material para escrita e produção de obras para consumo. O próprio Moses Finley reconhece tais dificuldades: O livro-códice mais cómodo, a que estamos habituados, assim como a folha de pergaminho mais suave (vellum), só apareceram muitos séculos depois. O leitor do rolo de papiros tinha poucas ajudas: não havia sinais de pontuação regular, os títulos e parágrafos eram irregulares mesmo nos textos literários, as palavras geralmente não estavam separadas. Todas as cópias eram escritas a mão e temos de supor que existiriam poucas de qualquer livro, num dado momento. Nos fins do século V, fala-se já de livrarias, mas o comércio teria de ser muito pequeno, com uma circulação sobretudo de base pessoal e não comercial. 18 Em seu livro The history and power of writing 19 (A história e poder da escrita), Hemi-Jean Martin confirma a situação da escrita e do livro na Grécia Antiga. Segundo ele, os gregos tiveram acesso ao papiro por volta do século VII a.C., a partir de Naucratis, um grande centro comercial utilizado por mercenários e mercadores gregos. No entanto, até meados do século IV a.C., os gregos não tinham acesso a um meio de escrita barato e acessível. O grego comum escrevia em qualquer lugar, ou coisa: cacos de louça, pele, couro, cerâmica, e tábuas de cera. A situação começou a mudar com a introdução em grande escala do papiro, depois do século IV a.C., como resultado do apoio dado por Ptolomeu I à exportação do papiro pelo Egito. O grande passo seguinte no desenvolvimento de material para escrita foi o 17 FINLEY, Moses I. Os gregos antigos. Tradução para o português da edição inglesa The ancient greeks, de 1963. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 82. 18 FINLEY, Moses. Os gregos antigos. Lisboa: Edições 70,1977, p. 81. 19 MARTIN, Henri-Jean. The history and power of writing. Trad. o inglês do original francês Histoire et pouvoirs de l‟écrit, de 1988. Chicago: The University of Chicago Press, 1994, p. 46-52. fazer isso: temos o exemplo de Esparta que, de forma consciente, rejeitou o uso de leis escritas e aumentou o seu grau de controle sobre o sistema educacional para atingir similarmente uma autoridade forte sobre os cidadãos. Atenas e outras cidades optaram pelo uso da nova tecnologia, a escrita. O entendimento de Gagarin está em harmonia com a explicação dada pela moderna teoria geral do processo para o surgimento da jurisdição em substituição à autotutela, onde “a justiça privada dá lugar à justiça pública em que o Estado, já suficientemente forte, impõe-se sobre os particulares e, prescindindo da voluntária submissão destes, impõe-lhes autoritativamente a sua solução para os conflitos de interesses. À atividade mediante a qual os juízes estatais examinam as pretensões e resolvem os conflitos dá-se o nome de jurisdição”. 24 Assim, as inscrições públicas das primeiras leis não fortaleceram determinadas formas de governo, democrático, aristocrático, oligárquico ou tirânico, mas reduziram as contendas entre os membros da pólis e, aumentando o alcance e a eficiência do sistema judiciário, apoiava e fortalecia o grupo, não importando qual deles estivesse no controle da cidade. Independente do tipo de governo, todas as cidades gregas começaram gradualmente a aumentar seu poder, às custas das famílias e dos indivíduos. À medida que as cidades aumentavam em tamanho e complexidade, reconheciam a necessidade de um conjunto oficial de leis escritas, publicamente divulgadas, para confirmar sua autoridade e impor a ordem na vida de seus cidadãos. Não se discute aqui o bom ou mau uso desse exercício de poder, ou de se é justo ou injusto, mas apenas a sua razão social para o estabelecimento de leis escritas, Leis que serviriam não apenas ao interesse de algum grupo, ou partido político, mas de todos os cidadãos incorporados nessa instituição única, a cidade (pólis). Além de Gagarin,mais recentemente outros especialistas em história da escrita e em direito grego antigo tem reconhecido que as leis gregas antigas, principalmente as inscrições públicas em muros, demonstraram poder da cidade sobre o povo. Marcel Dettienne, em seu artigo L’écriture et ses nouveaux objets intelleetuels en Grèce 25 (A escrita e seus novos objetos intelectuais na Grécia), desenvolve a idéia de que a escrita, nos povos antigos, além de sua complexidade intrínseca, estava confinada aos palácios e era privativa de especialistas letrados. Assim foi também com a escrita linear B do período Micênico, de uso restrito para atividades administrativas. Porém, com a nova escrita alfabética, mercadores, poetas, artesãos e o povo em geral, cada um a sua maneira, começaram a usar escrita. Com os 24 Citado de CINTRA, A. C. de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; CÂNDIDO R. Dinamarco, Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, p. 23. 25 DETTIENNE, Marcel. Le savoir de l‟écriture en Grèce ancienne (Os saberes da escrita na Grécia antiga), sob a direção do próprio Marcel Dettienne. legisladores criando e codificando leis, a escrita muda de status e se torna “operador de publicidade”. As leis escritas são tornadas públicas através de inscrições em pedra, mais afirmando do que informando. Assim se refere Marcel Dettienne: “Mas também afirmando uma vontade para agir, de transformar a vida pública, de impor novas práticas seja na intervenção da cidade nos crimes de sangue ou a obrigação para a assembléia de aceitar a vontade da maioria.” 26 Henri-Jean Martin faz referência a Marcel Dettienne e conclui: “Isto demonstra que a importância das inscrições públicas na cidade antiga era mais para assegurar uma presença do que para ser lida.” 27 4. O DIREITO GREGO ANTIGO Após o período Micênico, a Grécia atravessou um período denominado “era das trevas”, que se estendeu de 1200 a 900 a.C. e, no começo de 900 a.C., os gregos não tinham leis oficiais ou sistemas formalizados de punição. Os assassinatos eram resolvidos pelos membros das famílias das vítimas, que buscavam e matavam o assassino, dando início a disputas sangrentas sem fim. Somente no meio do século VII a.C. estabeleceram os gregos suas primeiras leis codificadas e oficiais. As fontes das leis escritas gregas dividem-se em duas categorias fontes literárias e fontes epigráficas. Devido à característica democrática dos gregos, particularmente dos atenienses, de publicar documentos em forma pública e permanente (madeira, bronze e pedra), grande número dessas inscrições em pedra sobreviveram até os dias atuais e constituem as fontes epigráficas. 28 Quanto às fontes literárias temos uma classificação dada por S. C. Todd: 29 (i) discursos forenses dos dez oradores áticos; 30 (ii) monografias constitucionais; 31 (iii) filósofos do direito 32 e (iv) antiga e nova comédia. 33 De modo geral, a tradição vê em Zaleuco o primeiro legislador que escreveu leis (cerca de 662 a.C.) em Locros, no sul da Itália. A primeira inscrição legal conhecida é a de Dreros em Creta, datada tentativamente para o meio ou segunda metade do sétimo século a.C. 26 DETTIENNE, Marcel. Op. cit., p. 14. 27 MARTIN, Henri-Jean. The history and power of writing. Chicago: The University of Chicago Press, 1994, p. 47. 28 Duas coletâneas de inscrições gregas são relativamente de fácil acesso: A selection of Greek historical inscriptions (Uma seleção de inscrições históricas gregas) editado por Russel Meiggs e David Lewis e Greek historical inscriptions (Inscrições gregas históricas), editado por Marcus N. Todd. 29 TODD, S. C. The shape of Athenian law. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 36-42. 30 Os dez oradores áticos são: Antífonas, Lísias, Isaeus, Isócrates, Demóstenes, Ésquino, Licurgo, Hipérides e Dinarco. 31 Todd inclui aqui a Constituição de Atenas de Aristóteles. 32 Todd se refere a Platão, em particular As leis; no entanto cita Teósfatos (c. 370-285 a.C.) de cuja obra somente se conhecem fragmentos e citações e que, na opinião de Todd, seria mais útil do que o trabalho de Platão. 33 O principal representante da velha comédia ateniense é Aristófanes, e Menandro para a nova comédia. No meio do sexto século, muitas cidades gregas já tinham leis escritas, sendo Esparta a exceção. Os gregos não elaboraram tratados sobre o direito, limitando-se apenas à tarefa de legislar (criação das leis) e administrar a justiça pela resolução de conflitos (direito processual). Adicionalmente, devido à precariedade dos materiais de escrita utilizados na época (inscrições em pedra e madeira e textos escritos em papiro), um texto literário, filosófico ou lei escrita, somente chegaria aos nossos dias, não pela conservação do original, mas pelas contínuas transcrições e reproduções e até mesmo citações por autores posteriores. Assim aconteceu com os escritos dos filósofos e escritores gregos do passado e, mesmo assim, muita coisa se perdeu. Sabe-se que Sófocles escreveu 120 peças, porém somente dispomos de sete tragédias completas e fragmentos de outras. Tem-se conhecimento de que Aristóteles escreveu um segundo volume da Poética versando sobre a comédia, no entanto o original se perdeu e nenhuma cópia sobreviveu até nossos dias. Com o direito grego aconteceu um processo diferente do tratamento dispensado à filosofia, literatura e história. Enquanto estes foram copiados, recopiados e constantemente citados, nada se fez com relação às leis gregas, não havendo compilações, cópias, comentários, mas Pouquíssimas citações. 34 Ficaram apenas algumas fontes epigráficas e as menções feitas por escritores, filósofos e oradores. Douglas MacDowell, em seu livro The law in classical Athen (O direito na Atenas Clássica), menciona: Temos os textos de um número de leis (embora seja somente uma pequena proporção do total que deve ter existido), seja nas inscrições originais em pedra ou em citações nos discursos forenses que sobreviveram. Muito pouco destes textos são completos. 35 Uma forma utilizada para classificar as leis gregas é a utilizada por Michael Gagarin, 36 categorizando-as em crimes (incluindo tort), 37 família, pública e processual. 38 A categoria denominada por crimes e tort, que aproximadamente corresponderia ao nosso direito penal, inclui o homicídio que os gregos, já com Drácon (620 a.C.), diferenciavam entre 34 Uma compilação moderna de leis gregas antigas, com seu contexto histórico legal, foi publicada por Ilias Arnaoutogou sob o título Ancient greek laws (Leis gregas antigas), As leis apresentadas são classificadas em família (oikos) - casamento, divórcio, herança, adoção, ofensas sexuais e situações pessoais como cidadania, filhos, escravos, casamentos mistos; mercado ou praça pública (ágora) - comércio, finanças, vendas, aluguéis; Estado (pólis) - constituição, processo legislativo, deveres públicos, propriedades e dívidas, estabelecimento de colônias, construção, assuntos navais, relação entre cidades. 35 MACDOWELL, Douglas, The law in classical Athens. New York: Cornell University Press, 1986, p. 54. 36 GAGARIN, Michael. Op. cit., p. 63. 37 Tort: palavra inglesa que significa agravo, dano, delito de natureza civil. Tort ocorre quando alguém causa dano a outro ou à sua propriedade. Homicídio é incluído nessa categoria. 38 Um dos mais completos livros sobre o direito grego antigo é o de A. R, Harrison, The law of Athens (O direito de Atenas), em dois volumes. O primeiro volume trata do direito relativo à família e à propriedade e o segundo volume trata do direito processual ateniense. sexual (diké biaion); ilegalidade (diké paranomon); roubo (dike klopes). Exemplos de ações públicas (graphé): contra oficial que se recusa a prestar contas (graphé alogiou); por impiedade (graphé asebeias); contra oficial por aceitar suborno (graphé doron); contra estrangeiro pretendendo ser cidadão (graphé xenias); contra o que propôs um decreto ilegal (graphé paranomon); por registrar falsamente alguém como devedor do Estado (graphé pseudengraphes). 6. A RETÓRICA GREGA COMO INSTRUMENTO DE PERSUASÃO JURÍDICA Em A cidade grega, Gustave Glotz chama a atenção ao que considera característica do individualismo grego aplicado ao direito: “Não há magistrado que inicie um processo, não há ministério público que sustente a causa da sociedade. Em princípio, cabe à pessoa lesada ou a seu representante legal intentar o processo, fazer a citação, tomar a palavra na audiência, sem auxílio de advogado.” 44 Steven Johnstone inicia seu livro Disputes and democracy: the consequences of litigation in ancient Athens (Disputas e democracia: as conseqüências da litigação na Atenas antiga), declarando: A lei ateniense era essencialmente retórica. Não havia advogados, juizes, promotores públicos, apenas dois litigantes dirigindo-se a centenas de jurados. Este livro analisa as maneiras como os litigantes procuravam persuadi-los. 45 Essas duas declarações sobre a ausência, no direito grego, de juízes, promotores e advogados, pelo menos na forma como os conhecemos hoje, ajudam a entender por que os gregos não influenciaram as sociedades subseqüentes no aspecto do direito. É S.C. Todd quem talvez esclareça os motivos que levaram os gregos a conservarem o direito nas mãos de amadores: “Um dos mais notórios aspectos da administração da justiça na Inglaterra de nossos dias é o seu alto custo. (...) A lei inglesa é cara porque é profissional.” 46 Mais adiante, referindo-se ao direito em Atenas, acrescenta: Em Atenas, contudo, a administração da justiça foi mantida, tanto quanto possível, nas mãos de amadores, com o efeito (e talvez também o objetivo) de permanecer barata e rápida. Todos os julgamentos eram aparentemente completados em um dia, e os casos privados muito mais rápidos do que isto. Não era permitido advogado 44 GLOTZ, Gustave. A cidade grega. (Tradução de La cité grecque, 1928). São Paulo: Difel, 1980, p. 191. 45 JOHNSTONE, Steve. Dispute and democracy: the consequences of 1itigation in ancient Athens. Austin: University of Texas Press, 1999, p. 1. 46 TODD, S. C. The shape of Athenian law. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 77. profissional; e embora a arte dos logógrafos tendesse, na prática, a burlar essa regra, nenhum litigante corria o risco de admitir que seu discurso era na realidade um discurso 'fantasma' feito por um orador profissional. O presidente da corte não era um profissional altamente remunerado, mas um oficial designado por sorteio. 47 Douglas Macdowell vai mais além e atribui aos atenienses a invenção do júri popular: O direito a um julgamento por um júri formado de cidadãos comuns (em vez de pessoas tendo alguma posição especial e conhecimento especializado) é comumente visto nos estados modernos como uma parte fundamental da democracia. Foi uma invenção de Atenas. 48 É justamente nessa parte processual do direito, formada por litigantes, logógrafos e júri popular, que se encontra a grande particularidade do direito grego antigo: a retórica da persuasão. O assunto não é novo, apesar de somente nos últimos dez anos terem os especialistas voltado a atenção para a oratória grega forense e a análise pormenorizada dos discursos dos oradores áticos. Na introdução de seu livro sobre os discursos de Antífonas, Michael Gagarin faz a seguinte citação: Mas até o século dezenove houve pouco interesse na oratória ática como evidência do direito ateniense - o direito da Atenas clássica sendo de pouca relação aos romanos e juristas europeus posteriores, cujas próprias leis não foram influenciadas por ele - e só recentemente os escolares compreenderam o valor dos oradores para um estudo mais amplo da sociedade de Atenas. 49 Em 1927, Robert Bonner, professor de grego da Universidade de Chicago, publicou um dos mais importantes livros sobre o direito grego e as origens do advogado, intitulado Lawyers and litigans in ancient Athens (Advogados e litigantes na Atenas antiga). 50 Esse livro, junto com The history of lawyers: ancient and modem (A história dos advogados: antiga e moderna) 51 de William Forsyth, publicado originalmente em 1875, são, provavelmente, duas das melhores fontes sobre as origens e a história do advogado. Ambos conflitam com a afirmação de Michel Foucault sobre as origens do advogado em seu livro A verdade e as formas jurídicas. 52 47 TODD, S. C. The shape of Athenian law. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 77-78. 48 MACDOWELL, Douglas M. The law in classical Athens. Cornell University Press, 1978, p. 34. 49 GAGARIN, Michael. Antiphon: the speeches. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 1-2. 50 BONNER, Robert J. Lawyers and litigants in ancient Athens. Chicago: The University of Chicago Press, 1927. 51 FORSYTH, William. The history of lawyers: ancient and modern. Boston: Estes & Lauriat, 1875. 52 Em A verdade e as formas jurídicas, Capítulo III, Michel Foucault analisa o direito na Idade Média. Consciente ou inconscientemente, Foucault mistura fatos e características da Idade Média com a Grécia antiga. Nas páginas 59 a 61, fala das provas do tipo verbal e das fórmulas escritas para o acusado por uma terceira pessoa “que mais tarde se tomaria, na história do direito, o advogado”. Essa é justamente a situação que existia na Grécia antiga com os oradores áticos (logógrafos). Já então Robert Bonner reconhecia a importância dos oradores áticos e de seus discursos como fonte de informação do direito grego, a ponto dedicar todo um capítulo à retórica forense e outro aos oradores áticos. O direito grego através de seus tribunais formados por um júri composto de cidadãos comuns, cujo número chegava a várias centenas, era atividade que fazia parte do dia- a-dia da maioria das cidades gregas. Os atenienses pleiteavam o crédito de terem sido os primeiros a estabelecer um processo regular jurídico, e tanto tinham razão que era reconhecido por Cícero. Na sociedade moderna, a administração da justiça está nas mãos de profissionais especializados, os juízes. Na Atenas clássica, a situação era o reverso. A heliaia era o tribunal popular que julgava todas as causas, tanto públicas como privadas, à exceção dos crimes de sangue que ficavam sob a alçada do areópago. Os membros da heliaia, denominados heliastas, eram sorteados anualmente dentre os atenienses. O número total era de seis mil e, para julgar diferentes causas, eram sorteados novamente para evitar fraudes. O número de heliastas atuando como júri em um processo variava, mas atingia algumas centenas. Para permitir que o cidadão comum pudesse participar como heliasta sem prejuízo de sua atividade, recebiam um salário por dia de sessão de trabalho. As sessões de trabalho para julgar os casos apresentados eram chamadas dikasterias, e as pessoas que compunham o júri eram referidas como dikastas em vez de heliastas. Os dikastas eram apenas cidadãos exercendo um serviço público oficial, e sua função se aproximava mais da de um jurado moderno. A decisão final do julgamento era dada por votação secreta, refletindo a vontade da maioria. A apresentação do caso era feita por discurso contínuo de cada um dos litigantes, 53 interrompido somente para a apresentação de evidências de suporte, e era dirigido aos dikastas, cujo número poderia variar em algumas centenas, por exemplo 201 ou 501, por julgamento; o número total era sempre ímpar para evitar empate. A votação era feita imediatamente após a apresentação dos litigantes, sem deliberação. Não havia juiz: um magistrado presidia o julgamento, mas não interferia no processo. Os litigantes dirigiam-se diretamente aos jurados através de um discurso, sendo algumas vezes suportados por amigos e parentes que apareciam como testemunhas. O 53 Uma anedota é relatada por Plutarco, com respeito a Lísias, sobre a característica dos tribunais gregos de limitarem aos litigantes apenas um discurso. Consta que Lísias escreveu um discurso para um cliente e que este pegou o texto para aprende-lo e poder recitá-lo no júri. Devolveu-o no dia seguinte, queixando-se que ao lê-lo pela primeira vez achou um discurso formidável, na segunda leitura começou a ter dúvidas e na terceira seus defeitos eram como golpes no rosto. Lísias, segundo Plutarco, replicou secamente que os dikastas iriam ouvir o discurso apenas uma vez (Relatado por S. C. Todd em The shape of Athenian law, p. 36-37). justiça, os tribunais. No primeiro grupo (governo da cidade), tem-se a Assembléia do Povo (Ekklêsia), o Conselho (Boulê), a Comissão Permanente do Conselho (prítanes), os estrategos e os magistrados (arcontes e secundários). O segundo grupo (administração da justiça) estava organizado em justiça criminal (o Areópago e os Efetas) e justiça civil (os árbitros, os heliastas e os juízes dos tribunais marítimos). Os órgãos do governo A Assembléia (ekklêsia) era composta por todos os cidadãos acima de 20 anos e de posse de seus direitos políticos. Dentre os 40 mil cidadãos de Atenas, de uma população de 300 mil, dificilmente se conseguia reunir mais de 6 mil, seja na praça pública (ágora), seja na colina da Pnice ou, já no quarto século, no grande teatro de Dionísio. l)c início não havia pagamento, mas, entre 425 e 392 a.C., os participantes recebiam um óbolo por sessão, depois dois, três e finalmente, em 325 a.C., seis óbolos. A Assembléia constituía-se no órgão de maior autoridade, com atribuições legislativas, executivas e judiciárias. Competiam-lhe: as relações exteriores, o poder legis1ativo, a parte política do poder judiciário e o controle do poder executivo, compreendendo a nomeação e a fiscalização dos magistrados. 62 No quinto século, o presidente da Assembléia era o epistatês dos pritanes. O Conselho (boulê), composto de 500 cidadãos (50 para cada tribo), com idade acima de 30 anos e escolhidos por sorteio a partir de candidatura prévia, era renovado a cada ano. Eram submetidos a exame moral prévio (dokimasia) pelos conselheiros antigos e a prestação de contas (euthynê) no final de sua atividade. Segundo Glotz “os ambiciosos cuja vida não era sem mácula não ousavam apresentar-se, porque temiam o interrogatório da docimasia feito pelo Conselho em poder”. 63 A atividade no Conselho requeria dedicação total durante um ano inteiro e, embora fosse paga - cinco óbolos por dia na época de Aristóteles -, não era suficiente para um ateniense de pouca renda se dedicar a tal atividade. Por meio da mediante Assembléia, o povo era o real soberano, mas encontrava algumas dificuldades para o exercício contínuo de sua soberania. Não podia manter-se em sessão permanente para preparar textos e decretos para discussão e votação nas assembléias e nem tinha como assegurar-se de que fossem adequadamente executados os projetos aprovados. Tinha de fiscalizar a administração pública, negociar com estados estrangeiros, 62 GLOTZ, Gustave. A cidade grega. São Paulo: DIFEL, 1980, p.135. 63 GLOTZ, Gustave. Op. cit., p. 151. 63 além de receber seus representantes. O papel do Conselho, devido a sua dedicação total à atividade pública, era o de auxiliar a Assembléia e aliviá-la das atividades que requeriam dedicação total, funcionando como parlamento moderno. Entre suas principais atividades, destacam-se a de preparar os projetos que seriam submetidos à Assembléia, controlar os tesoureiros, realizar a prestação de contas dos magistrados, receber embaixadores, investigar as acusações de alta traição, examinar os futuros conselheiros e os futuros magistrados. Os prítanes é o que se pode chamar de comitê diretor do Conselho (Boulê). Os 500 membros do Conselho eram organizados em 10 grupos de 50 (um grupo para cada tribo) e cada grupo exercia a pritania durante um décimo do ano. O epistatês era o presidente de cada grupo e era escolhido diariamente por sorteio e somente podia ser escolhido uma vez. Atuava como presidente do Conselho e da Assembléia e tomava-se o guardião das chaves dos templos onde ficavam os tesouros e os arquivos. Os prítanes eram o elo entre o Conselho e a Assembléia, os magistrados, os cidadãos e os embaixadores estrangeiros. Os estrategos foram instituídos em 501 a.C., em número de dez, sendo eleitos pela Assembléia, e podendo ser reeleitos indefinidamente (foi o caso de Péricles, eleito estratego 15 vezes) e devendo prestar contas no final da atividade. Como requisito, tinham de ser cidadãos natos, casados legitimamente (não eram elegíveis os solteiros) e possuir uma propriedade financeira na Ática que assegurasse alguma renda, porque a atividade não era remunerada. Tinham como atividades principais o comando do exército, distribuição do imposto de guerra, dirigir a polícia de Atenas e a defesa nacional. Como atividades políticas podiam convocar assembléias extraordinárias, assistir às sessões secretas do Conselho e, no exterior, eram embaixadores oficiais e negociadores de tratados. Embora, pela sua origem, sua atividades estivessem mais associadas com a guerra, foram, aos poucos ampliando suas funções e acabaram substituindo os arcontes como verdadeiros chefes do poder executivo. Os magistrados eram sorteados dentre os candidatos eleitos, renovados anualmente e não podiam ser reeleitos, o que impedia qualquer possibilidade de continuidade política (o que não acontecia com os estrategos). Os atenienses tinham vários tipos de magistraduras, quase sempre agrupadas em forma de colegiado (normalmente dez por categoria), sendo o grupo mais importante dos arcontes. Estes também em número de dez (nove arcontes e um secretário) tinham nomes particulares, dependendo de sua atividade. O arconte propriamente dito dava seu nome ao ano e passou a ser chamado de arconte epônimo no período romano, cabendo-lhe regulamentar o calendário, presidir as Grandes Dionisíacas, instruir os processos de sucessão e tutelar viúvas e órfãos. O arconte rei (basileu) tinha funções apenas religiosas e presidia os tribunais do Areópago. O arconte polemarco não era mais o chefe do exército, mas o responsável pelas cerimônias fúnebres dos cidadãos mortos em combate com o inimigo. Seis arcontes (thesmothétai) eram os presidentes de tribunais e, a partir do quarto século a.C., passaram a revisar e coordenar anualmente as leis.O arconte era o secretário (grammateus). Os demais magistrados, conhecidos também por magistrados, conhecidos também por magistrados secundários, ocupavam-se de atividades como: executar as sentenças de morte, inspecionar os mercados, os sistemas de água, o sistema de medidas e demais atividades relacionadas com a administração municipal. Resumindo, as instituições políticas que se ocupavam do governo da cidade eram organizadas da seguinte forma: 64 O Conselho: - examina; - prepara as leis; - controla. A Assembléia: - delibera; - decide; - elege e julga. Os Estrategos: - administram a guerra; - distribuem os impostos; - dirigem a polícia. Os Magistrados: - instruem os processos; - ocupam-se dos cultos; 64 Extraído de FAURE, Paul; GAIGNEROT, Marie-Jeanne. Guide grec antique Paris: Haehette, p, 119. perpetuado em nossa cultura, distorcendo os fatos: o de que os gregos não eram fortes em direito e o da severidade das leis draconianas que tudo punia com a morte. 66 Este trabalho tratou particularmente do primeiro e procurou mostrar como o direito grego surgiu simultaneamente com a escrita no oitavo século a.C., tomando-se um sistema relativamente sofisticado em Atenas, principalmente com respeito à parte processual. O direito grego antigo é uma das áreas da história do direito em que podemos garimpar e descobrir uma rica mina pouco explorada, conforme reconheceu Kenneth Dover, e que tem sido por muitos anos relegado ao ostracismo devido à visão meramente filosófica dos estudiosos e a influência romanista no direito ocidental. Além disso, três fatores adicionais contribuíram para o direito grego não ocupar a importância que merece. Primeiro, o desenvolvimento da escrita e a publicação de textos em material durável aconteceu paralelamente à evolução da sociedade grega e do direito. Em segundo lugar, a obstinação dos gregos em não aceitar a profissionalização do direito, sendo bem apropriadas as palavras de Robert J. Bonner: “Tivessem os advogados sido livres para falar pelo litigante como o logógrafo estava, Atenas teria rapidamente desenvolvido um corpo de peritos legais comparável ao juris consulti romano ou aos modernos advogados.” 67 Finalmente, devido ao tipo de material da época para a produção de leis e textos escritos (madeira, pedra e papiro), associado à pequena reprodução de cópias pelos escritores posteriores, muito pouco material sobreviveu para servir ao estudioso moderno do direito grego antigo. Mesmo assim, nos últimos dez anos, um sem-número de obras sobre o direito grego antigo tem aparecido, e as pesquisas dos escolares têm-se intensificado no estudo e na interpretação dos discursos dos oradores áticos, lançando novas luzes e outra visão sobre o assunto. Contrariamente ao pressuposto de que o direito começou a ser escrito na Grécia antiga, tão logo surgiu a escrita, para que o povo tivesse acesso às leis, os estudos publicados nos últimos anos reconhecem na inscrição das primeiras leis escritas uma demonstração de poder da cidade (pólis) sobre os cidadãos. A escrita é vista como nova tecnologia que, ao se tomar disponível, foi utilizada como meio de controle e persuasão. Dessa forma, confirmava- se a autoridade da cidade e impunha-se a ordem na vida dos cidadãos. Situação idêntica ocorreu com o surgimento do Estado moderno. 66 A proverbial severidade das leis de Drácon é questionada por Michael Gagarin em seu livro Drakon and early athenian homicide law (Drácon e antiga lei ateniense de homicídio), p, 116-118. Um dos argumentos de Gagarin é baseado no fato de que uma das leis de Drácon sobreviveu até nossos dias, em uma inscrição em pedra datada de 409 a.C., e pune o homicídio involuntário com o exílio. 67 BONNER, Robert J. Lawyers and litigants in ancient Athens. Chicago: The University of Chicago Press, 1927, p. 209. Os gregos antigos não só tiveram um direito evoluído, como influenciaram o direito romano e alguns de nossos modernos conceitos e práticas jurídicas: o júri popular, a figura do advogado na forma embrionária do logógrafo, a diferenciação de homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa, a mediação e a arbitragem, a gradação das penas de acordo com a gravidade dos delitos e, finalmente, a retórica e eloqüência forense. Essa influência não foi resultado de um acaso, mas fruto da atividade, do envolvimento e da genialidade de um povo que, além de se haver destacado na filosofia, nas artes e na literatura, destacou-se também no direito. Na história de uma civilização, a diferença muitas vezes reside naquilo que as gerações seguintes, atuando como filtro, preservaram e transmitiram, ou deixaram de fazê-lo. 68 Em sua tragédia Édipo em Colono, Sófocles sintetizou a visão do ateniense sobre o direito quando Teseu, rei de Atenas, profere suas famosas palavras a Creonte, rei de Tebas: "Entra num território submisso à justiça, e decide cada coisa de acordo com a lei.” 69 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLEN, Danielle. The world of prometheus: the politics of punishing in democratic Ahens. Princeton: Princeton University Press, 2000. ARISTÓTELES. A constituição de Atenas, IX, L Edição bilíngüe. Trad. Francisco Murari Pires. São Paulo: Hucitec, 1995. ARISTÓTELES. Arte da retórica, I, XIII (1374b). 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O primeiro foi o trabalho de compilação realizado pelo Imperador Justiniano, conhecido como Corpus Iuris Civilis, que permitiu a sobrevivência dos trabalhos dos juristas romanos. Fora da compilação de Justiniano, somente as Institutas, do jurista Gaio, sobreviveu. O segundo, apesar de quase cair no esquecimento após a queda do Império, o direito romano foi redescoberto (a partir de 1070 a.C.) e teve novo apogeu na Idade Média com os glosadores e a escola de Bolonha (Ver JONES, Peter; SIDWELL, Keith. The world of Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 257 e 322). 69 SÓFOCLES. Édipo em Colono. Edição bilíngüe com tradução para o inglês de Hugh Lloyd-Jones. Loeb Clàssical Libray, editado por Harvard University Press, 1998, p. 519. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições da filosofia do direito. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1951. DETTIENNE, MareeI. L‟ écriture et ses nouveaux objets intellectuels en Grèce. In: Le savoirs de l'écriture en Grece ancienne. 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O renomado autor, estudando o ciclo evolutivo das cidades antigas desde o seu nascimento até o seu desaparecimento, em face da desagregação dos costumes, defende que é possível a sua explicação, com a renovação do entusiasmo que caracterizou o seu tempo, para gerar uma nova concepção de vida. Evidentemente, fazendo substituir o temor aos deuses pelo amor de Deus, superando formas e conceitos de religião doméstica por uma religião universal, em que passam a ser respeitados os anseios humanos. O autor procura pois, neste estudo, analisar as causas profundas da transformação da sociedade, sem emitir qualquer juízo de valor; trata apenas de explicar, de esclarecer as forças ocultas do movimento, fazendo delas derivar os fatos históricos. Alguns intérpretes dirigem certas críticas à obra de Fustel de Coulanges, ou discutindo sua interpretação, questionando, por exemplo, acerca da fundamental importância que o culto aos mortos tinha para a história dos municípios antigos; ou ainda alegando ser o método utilizado, nesta obra - racional cartesiano - inadequado. Contudo, essas críticas não diminuem o valor da obra que se apresenta como uma extraordinária descrição, proporcionando notável apreensão da essência social da cidade antiga, de sua arquitetura social , consolidada em estudo de inigualável valor. O método utilizado permitiu concluir as evidências e ressaltar defeitos. Uma crítica anotada à sua obra é dirigida ao apego excessivo ao valor dos textos, abstraindo-se da crítica filológica e diplomática das fontes. Outra incidiu sobre o uso ingênuo das fontes decorrentes da consideração da história como uma ciência de objetivo absoluto, subestimando outros enfoques que permitem chegar à verdadeira história em sua relatividade no tempo, para compreendê-la contemporaneamente. Dotado de raciocínio cartesiano, Fustel de Coulanges pretende apresentar as instituições políticas, religiosas e sociais com essa concepção de pensamento. Tentando simplificar a linha do seu entendimento, conseguiu abranger o complexo universo do estudo de uma maneira pessoal, reduzindo as variáveis importantes em beneficio da objetividade do fenômeno, que buscou detalhar as condições emergentes que lhe valeram diversas críticas. Apesar delas e das omissões certamente existentes, a obra A cidade antiga, em seus cem anos, continua sendo considerada um marco necessário para um estudo aprofundado sobre a religião, o direito e as instituições greco-romanas. 2. O CULTO E AS ANTIGAS CRENÇAS O princípio conformador da família e de todas as instituições nessa época é a religião, mas uma religião primitiva, formada por diversas crenças muito antigas. A primeira delas elencada por Fustel de Coulanges é a respeito da alma e da morte. 2 Os antigos já acreditavam numa segunda existência depois da morte física, porém, que nessa segunda existência a alma continuava unida ao corpo, que não sofria decomposição. Não se podia conceber a metempsicose, ou que os espíritos subissem a um outro lugar, a uma região de luz e energia; essa concepção é relativamente recente na nossa história. Assim, alma e corpo não se separavam com a morte e os antigos pensavam estar enterrando no mesmo lugar, além do corpo inerte, alguma coisa com vida - a alma. Essas crenças chegaram ao nosso conhecimento através de alguns testemunhos autênticos, como o rito fúnebre, sobrevivente às crenças primitivas. Necessário se faz salientar que não bastava que o corpo fosse confiado à terra. Era preciso ainda obedecer a alguns ritos tradicionais e pronunciar determinadas fórmulas, porque do contrário as almas tomar-se-iam errantes, não repousariam nos túmulos, como inscrevia-se no epitáfio. Nas cidades antigas punia-se os grandes culpados com um castigo considerado terrível: a privação da sepultura. Punia-se-lhe assim a sua própria alma, infligindo- lhe um suplício quase eterno. 3 Os antigos acreditavam que os mortos, assim como os vivos, precisavam se alimentar, por isso, em determinados dias do ano, levava-se uma refeição a cada túmulo; era o banquete fúnebre, que não era apenas uma espécie de comemoração; o alimento que a família levava ao túmulo destinava-se efetivamente ao morto, exclusivamente a este. Assim, cavavam buracos nos túmulos para que o alimento chegasse até o morto e derramavam água e vinho para saciar sua sede. Desde os mais remotos tempos, deram essas crenças lugar a regras de conduta. Como, entre os antigos, o morto necessitava de alimento e de bebida, tornou-se um dever, uma obrigação dos vivos, satisfazer-lhe essa necessidade. Dessa forma, estabeleceu-se uma verdadeira religião da morte, cujos dogmas logo desapareceram, perdurando, no entanto, os seus rituais até o triunfo do cristianismo. Os mortos eram considerados criaturas sagradas; assim, cada morto era um deus e 2 Cf. COULANGES, Fuste1 de. A cidade antiga. Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d], p. 11-28. 3 COULANGES, Fustel de. Op.cit., p. 13. seu túmulo um templo. Esta espécie de apoteose não era atributo dos grandes homens; entre os mortos, para os antigos, não havia distinção de pessoas; todos, ao morrerem, tomavam-se deuses de suas famílias. As sepulturas eram os templos dessas divindades, que gozavam de uma existência bem aventurada. “Contudo, era necessário preencher-se uma condição indispensável para sua felicidade; era imprescindível que em determinadas épocas os vivos lhes trouxessem suas oferendas.” 4 Quando isso deixava de acontecer, acreditavam os antigos que as almas deixavam a pacífica morada e tornavam-se almas errantes, atormentando os vivos. Assim, os manes, as almas dos mortos consideradas divindades, eram verdadeiros deuses, às quais dirigiam orações e súplicas, mas eram-no tão-somente enquanto os vivos os venerassem com o seu culto. Essa religião dos mortos parece ter sido a mais antiga que existiu entre estes povos, segundo preleciona Fustel de Coulanges. Dessa forma, pode-se crer ter o sentimento religioso do homem origem com este culto. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a idéia do sobrenatural e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão de seus olhos. Uma outra crença cultuada pelos antigos era o culto ao fogo. 5 Toda casa de grego ou de romano possuía um altar com um fogo aceso, que só deixava de brilhar quando a família inteira houvesse morrido. Fogo extinto significava família extinta. Esse fogo no altar doméstico não era um costume qualquer; possuía algo de divino: adoravam-no e prestavam-lhe verdadeiro culto. As regras e os ritos então observados fazem-nos crer que esse fogo era considerado puro, não lhes sendo permitido alimentá-Io com qualquer tipo de madeira. A religião distinguia, entre as árvores, aquelas espécies que podiam ser usadas para esse fim, e aquelas cujo uso era taxado de impiedade. O fogo do lar era, pois, a providência da família; extinguindo-se o fogo deixava de existir o seu deus tutelar, decorrendo daí a obrigação indelegável do dono da casa de mantê-lo sempre aceso. Pode-se fazer uma comparação entre esse culto ao fogo sagrado com o culto dos mortos, porque há entre eles uma estreita ligação. O fogo mantido no lar, no entendimento dos clássicos, não é o mesmo fogo de natureza material, possuindo uma natureza inteiramente diversa. É um fogo puro, uma espécie de ser moral. Os deuses “lares”, os deuses cultuados pela família, eram simplesmente as almas 4 COULANGES, Fustel de. Dp. cit., p. 17. 5 submissão ao mesmo pater familias. Dessa feita, a família ou gens era um grupo mais ou menos numeroso subordinado a um chefe único: o pater familias, cujo poder ilimitado era concedido pela religião. Feitas essas breves considerações a propósito da estrutura da família antiga, cabe descrever, agora, o seu funcionamento, as suas relações de dependência e subordinação. Afirma-se que a religião doméstica determinava a constituição da família antiga; isso equivale a dizer que era a religião que determinava o parentesco entre os homens. Assim, dois homens seriam parentes quando tivessem os mesmos deuses, o mesmo lar e o mesmo banquete fúnebre. Dessa forma, o princípio do parentesco não era o ato material do nascimento, porém o culto. A isto chamava-se agnação. 11 Como o direito de ofertar sacrifícios ao fogo sagrado só se transmitia de homem para homem, o direito do culto também só era transmitido em linha masculina, e da mesma forma dava-se a agnação. Assim, não eram agnados os parentes da mulher e, como tal, sofriam as conseqüências resultantes do fato, tais como a proibição do direito de herdar e tantos outros, como se verá mais adiante. O casamento foi a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica e era considerado um ato dotado de extrema importância e seriedade para ambos os cônjuges, porque não se tratava, na Antigüidade, de mera troca de moradia, por parte da mulher, e sim de abandonar definitivamente o lar paterno, para invocar dali em diante os deuses do esposo. Tratava-se, pois, de trocar de religião, de passar a praticar outros ritos e adorar outros deuses. Assim, a partir do casamento, a mulher nada mais tinha em comum com a religião doméstica dos seus pais, passando a cultuar e adorar outros deuses até então desconhecidos. Isso decorria da impossibilidade de se cultuar deuses de famílias diferentes, já que não se poderia permanecer fiel a um deus, honrando outro, porque, de acordo com a religião, era princípio imutável a mesma pessoa não poder invocar dois fogos sagrados nem duas séries de ancestrais. O casamento era a cerimônia sagrada que devia produzir esses grandes e graves efeitos. Por esse motivo, na cidade antiga, a religião não admitia a poligamia e o divórcio só era permitido através de cerimônia religiosa e em poucas circunstâncias. 12 A família antiga foi constituída pelas crenças referentes aos mortos e pelo culto a eles devido. Os antigos julgavam que a felicidade do morto dependia não da sua conduta em 11 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d], p. 41-43. 12 Cf. COULANGES, Fuste1 de. Op. cit., p. 31-38. vida, mas da conduta que seus descendentes tinham a seu respeito, após sua morte. Dessa forma, os mortos tinham necessidade de que a sua descendência jamais se extinguisse, porque a extinção da família provocaria a ruína de sua religião e a infelicidade dos ancestrais. Assim, “todos tinham, pois, grande interesse em deixar um filho, convencidos de que com isso, tornavam feliz sua imortalidade”. 13 Por esse motivo o filho primogênito era aquele gerado para o cumprimento do dever, já que o grande interesse da vida humana consistia em continuar a descendência para, por ela, dar seqüência ao culto. Dessa forma, o celibato era considerado uma impiedade grave e uma desgraça para a família, unidade central da Antigüidade clássica. Essas crenças, por muito tempo, evitaram o celibato que, em algumas cidades gregas, era até mesmo punido como delito, porque o homem, segundo as crenças, não pertencia a si mesmo, mas à sua família, e tinha o dever de continuar o culto. Porém, não era bastante a geração de um filho; era necessário que Fosse fruto de casamento religioso, senão a família não se perpetuaria por seu intermédio. Se a mulher não estivesse associada ao culto do marido, seu filho também não estaria. Isso significou a sacralização do casamento, que era portanto obrigatório para a perpetuação do culto. Nesse sentido, torna-se fácil entender que um casamento poderia ser perfeitamente desfeito se a mulher fosse estéril. A religião determinava “que a família não podia extinguir-se e todo o afeto e todo o direito natural cediam perante esta regra absoluta”. 14 Dessa forma, a entrada de um filho numa família dava-se através de um ato religioso, em que, primeiramente, havia o reconhecimento pelo pai, que decidia se o recém-nascido seria ou não da família. O nascimento constituía, assim, apenas o vínculo físico; essa declaração do pai é que criava o vínculo moral e religioso e admitia, portanto, a criança nesta espécie de associação sagrada que era a família. Uma criança poderia ainda fazer parte de uma família tendo nascido fora dela. Fustel de Coulanges esclarece com nitidez: A mesma religião que obrigava o homem a se casar, que concedia o divórcio em casos de esterilidade, que substituía o marido por algum parente nos casos de impotência ou de morte prematura, oferecia ainda à família um último recurso, como meio de fugir à desgraça tão temida da sua extinção; esse recurso encontramo-lo no direito de adoção. 15 13 COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 35. 14 COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 37. 15 COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 39. Pode-se notar, assim, que o dever de perpetuar o culto doméstico foi a fonte do direito de adoção entre os antigos e exatamente por esse motivo só era permitida a adoção a quem não tinha filhos. A adoção também se realizava por uma cerimônia religiosa, que admitia o adotado em uma nova família, tomando-o estranho à sua natural. Saliente-se novamente que era a religião, na cidade antiga, que determinava a existência ou não do parentesco, pois o vínculo do culto o substituía. O instituto da emancipação também foi contemplado pelos antigos. 16 Através dele, um filho libertava-se da religião de sua família e jamais poderia ser considerado novamente seu membro, nem pela religião nem pelo direito. Assim, para que um filho pudesse entrar em nova família, era preciso estar apto a sair da antiga, e o fazia através da emancipação, da renúncia àquele culto. Da mesma forma que a religião determinava a constituição da família, do parentesco entre os homens, com o objetivo de perpetuação ad infinitum, ela regulava o direito de propriedade com o mesmo objetivo, o de perpetuar o culto e a religião. Nesse sentido, menciona-se um trecho bastante esclarecedor da obra A cidade antiga: Há três coisas que, desde as mais remotas eras, se encontram fundadas e estabelecidas solidamente pelas sociedades grega e italiana: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade; três coisas que apresentaram entre si manifesta relação e que parece terem mesmo sido inseparáveis. 17 Segundo a concepção dos antigos, a idéia da propriedade privada fazia parte da própria religião. Como a religião determinava que cada família deveria ter o seu lar e os seus antepassados, e estes só poderiam ser adorados pela sua família, e só a ela protegiam, eram tanto estes como aquele sua propriedade particular. Assim, cada família, tendo os seus deuses e o seu culto, devia também ter o seu lugar particular na terra, a sua propriedade, que não era individual, mas da família, um lugar onde os antepassados “repousavam” e a eles era oferecido o banquete fúnebre. O solo da família, onde eram enterrados os mortos que viravam deuses, transformava-se, dessa forma, em propriedade inalienável e imprescritível. Não foram as leis, porém a religião que, a princípio, garantiu o direito de 16 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga, Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d], p. 39 et seq. 17 COULANGES, Fustel de. Op, cit., p. 44. àquela família, ao preço de sua liberdade. Para antes e depois da morte, todas as pessoas submetidas ao poder do pater familias, concedido pela religião, estavam indefinidamente numa situação de sujeição total ao pai e, no caso de sua morte, ao primogênito, que era a quem caberia o direito e o dever de presidir a religião doméstica e a família. 24 No dizer de E. E. Evans-Pritchard, é a análise feita na obra A cidade antiga o mais geral e extenso exame sociológico da religião feito até os nossos dias. O tema nuclear do livro A cidade antiga de Fustel de Coulanges (...) é o de que a antiga sociedade clássica estava centrada na família, no sentido mais amplo que se possa dar a esta palavra, compreendendo família conjunta ou linhagem, e que o que mantinha unido o grupo agnático como uma corporação, dando-lhe permanência, seria o culto do ancestral, no qual o chefe da família atuaria como um sacerdote. À luz desta idéia central e somente a partir dela - onde os mortos aparecem como as deidades da família - todos os costumes do período podem ser compreendidos: normas e cerimônias de casamento, o levirato, a adoção, a autoridade paterna, regras de descendência, herança e sucessão, leis, propriedades, os sistemas de nominação, calendário, escravidão, clientela e muitos outros costumes. Quando os estados-cidade se desenvolveram, tomaram o mesmo padrão estrutural que havia informado a religião nestas condições sociais iniciais. 25 4. CONCLUSÃO No que tange à família em A cidade antiga, é preciso considerar as circunstâncias históricas e os contingenciamentos genéricos que a instituíram e conformaram para verificar, convenientemente, o desenvolvimento de todas as instituições antigas, como realizaram, com propriedade, Fustel de Coulanges e outros, como Gustave Glotz; este último dando maior enfoque à complexidade das sociedades humanas, em face das diferentes variáveis existenciais. Escreve H. Berr, na introdução da obra A cidade grega de Gustave Glotz, ser necessária a leitura de A cidade antiga por conter uma larga parte de verdade e porque se “constitui numa admirável construção de linhas severas e puras”. Mas, por ter extrapolado a união das instituições e crenças, Fustel de Coulanges teria exagerado a “semelhança dos gregos e dos romanos”, como também a diferença - que estima “radical e essencial” - entre os povos antigos e as sociedades modernas. 26 Neste sentido, A cidade grega de Gustave Glotz constitui, segundo H. Berr, um complemento necessário ao clássico trabalho de Fustel de Coulanges. Muitas teses e 24 Cf. COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 71-79. 25 PRITCHARD, E.E. Evans. Antropologia social da religião: contribuições em antropologia, história, sociologia. Trad. Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Campus, 1978, p. 75. 26 BERR, Hemi. Apud GLOTZ, Gustave. A cidade grega. Rio de Janeiro: Dufel, 1980, p. XVII. afirmações categóricas desse autor apresentam-se bem discutidas e equilibradas na obra citada. Entretanto, cabe ressaltar que A cidade antiga apresenta um panorama mais amplo quanto às instituições romanas e gregas. É preciso convir que uma tese formulada com detalhes, como é a A cidade antiga, corre o risco inerente de se tornar arbitrária, acabando por agredir a complexidade das causas. No entanto, no contexto dos numerosos estudos sobre a história das instituições greco- romanas, esta obra pode ser considerada indispensável para qualquer estudo sério, pelo fato de ser extremamente elucidadora e fazer uma análise singular da sociedade antiga sob o prisma religioso, enquanto outros intérpretes fazem-no sob outras influências. O livro clássico, aqui evidenciado, apresenta a família antiga concebida em função da religiosidade e, como tal, influenciando o poder, sobretudo o poder político do Império Romano, que nasceu de sua organização. O pater familias, tendo poderes ilimitados sobre a sua descendência e todos aqueles que estivessem sob a sua responsabilidade, exercia autoridade suprema, dispondo livremente de suas vidas e patrimônio. A mulher da família antiga lhe era totalmente dependente e seus filhos jamais alcançavam a maioridade, que não era concedida pela religião. Essas regras, para nós desumanas e até mesmo impiedosas, possibilitaram uma forte disciplina familiar com favoráveis implicações na organização militar daquele povo. Com o desenvolvimento da história, estas severas regras arrefeceram quando se impuseram à sociedade familiar outros direitos, destacando-se o do cidadão, sobrepondo-se ao doméstico. Fustel de Coulanges, estudando o caráter essencialmente cívico-religioso do Estado-urbano, explica com clarividência a natureza de suas instituições, mostrando o equívoco das conclusões apressadas entre a democracia moderna e a democracia que os antigos alcançaram e valorizaram nos momentos culminantes de sua história. Na verdade, o historiador francês apresenta o Estado grego e romano como um Estado (...) em que a religião é a senhora absoluta da vida privada e da vida jurídica, o Estado uma comunidade religiosa; o rei, um pontífice; o magistrado, um sacerdote; a lei, uma fórmula sagrada; o patriotismo, piedade; o exílio, excomunhão. O homem vê-se submetido ao Estado pela alma, pelo corpo e pelos bens. É obrigatório o ódio ao estrangeiro, pois a noção do direito e do dever, da justiça e da afeição, não ultrapassa os limites da cidade (...). 27 27 COULANGES, Fustel de. Apud REALE, Migue1. Horizontes do direito e da história. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 20. Com estes pressupostos, não era mesmo possível a liberdade individual, pois só se compreendia a plenitude da personalidade dentro do Estado e pelo Estado, a tal ponto que era apenas como parte componente de lima comunidade político-religiosa que o homem se revestia da qualidade de cidadão e, portanto, de ser livre. Porém, na sua evolução pós-romana, a família moderna, recebendo a contribuição do direito germânico, mudou a sua concepção. Recolhendo, sobretudo, a espiritualidade cristã, reduziu o grupo familiar aos pais e filhos, sucedendo à organização autocrática uma orientação democrática afetiva. Assim, o centro de constituição familiar deslocou-se do princípio da autoridade paterna para o da compreensão e do amor. As relações de parentesco permutaram o fundamento político da agnação pela vinculação biológica da consangüinidade. E o pai, na modernidade, passou a exercer o pátrio poder exclusivamente no interesse dos filhos, menos como direito e mais como dever. 28 Tudo isso levou a uma nova concepção da instituição familiar, abandonando-se o caráter hierático e conquistando-se novas relações e papéis, que encaminham modernamente a evolução da civilização humana. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERR, Henri. Apud GLOTZ, Gustave. A cidade grega. Rio de Janeiro: Difel, 1980. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, (s/d), COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Introdução do Prof. Riolando Azzi do Instituto Pio XI. São Paulo: Editora das Américas, 1967, v. I GLOTZ, Gustave. A cidade grega. Trad. Henrique de Araújo Mesquita e Roberto Cortes de Lacerda. São Paulo: Difel, 1980. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1973. PEREIRA, Virgilio de Sá. Direito de família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959. PRITCHARD, E. E. Evans. Antropologia social da religião: contribuições em antropologia, história, sociologia. Rio de Janeiro: Campus, 1978. REALE, Miguel. Horizontes do direito e da história. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1977. ROCHA, José V.C. Branco. O pátrio poder. Rio de Janeiro: Tupã, 1960. 28 Ver, neste sentido: MONTElRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 259 et seq. e PEREIRA, Virgílio de Sá. Direito de família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1950, p. 61 et seq. jurídico construí do por formas peculiares de controle social, mantidas pela força coativa e pela persuasão de um universo cultural constituído por uma religião, 34 uma moral e filosofia típicas daquela civilização da Antigüidade Clássica. A evidência do reconhecimento da prática da eugenia e do poder exacerbado do pater familias romano (pátrio poder), por exemplo, constituem-se em evidências historiográficas, que demarcam as diferenças culturais daquela sociedade patriarcal da Antigüidade, mais próxima talvez do nosso período colonial escravagista brasileiro, já imerso nas relações pré-capitalistas de produção típicas do capitalismo mercantilista colonial (pacto metropolitano). O nascimento de um romano não é apenas um fato biológico. Os recém-nascidos só vêm ao mundo, ou melhor, só são recebidos na sociedade em virtude de uma decisão do chefe de família; a contracepção, o aborto, o enjeitamento das crianças de nascimento livre e o infanticídio do filho de uma escrava são, portanto, práticas usuais e perfeitamente legais. Só serão malvistas, e, depois, ilegais, ao se difundir a nova moral que, para resumir, chamamos de estóica. Em Roma um cidadão não „tem‟ um filho: ele o „toma‟, „levanta‟ (tollere); o pai exerce a prerrogativa, tão logo nasce a criança, de levantá-la do chão, onde a parteira a depositou, para tomá-Ia nos braços e assim manifestar que a reconhece e se recusa a enjeitá-la. A mulher acaba de dar à luz (sentada, numa poltrona especial, longe de qualquer olhar masculino) ou morreu durante o trabalho de parto, e o bebê foi extraído de seu útero incisado: isso não basta para decidir a vinda de um rebento ao mundo. 35 O abandono de crianças condicionava-se a diferentes motivos, que iam desde a má formação do feto até questões relacionadas à classe social, sendo a criança enjeitada tanto por miséria como por políticas familiares de sucessão entre os ricos, visando a permitir educação mais aprimorada para uma pequena prole, dotando-a, portanto, de melhores condições para competir naquela sociedade: A criança que o pai não levantar será exposta diante da casa ou num monturo público; quem quiser que a recolha. Igualmente será enjeitada se o pai, estando ausente, o tiver ordenado à mulher grávida; os gregos e os romanos sabiam de uma particularidade dos egípcios, dos germanos e dos judeus, que consistia em criar todas as suas crianças e não enjeitar nenhuma. Na Grécia era mais freqüente enjeitar meninas que meninos; no ano I a,C., um heleno escreveu à esposa: „Se (bato na madeira!) tiveres um filho, deixa-o viver; se tiveres uma filha, enjeita-a‟. Mas não é certo que os romanos tivessem a mesma parcialidade. Enjeitavam ou afogavam as crianças malformadas (nisso não havia raiva, e sim razão, diz Sêneca: „É preciso separar o que é bom do que não pode servir para nada‟), ou ainda os filhos de sua filha que „cometeu uma falta‟. Entretanto, o abandono de filhos legítimos tinha 34 Primeiro, a religião era politeísta e antromorfizada, como para os gregos (deuses com formas e defeitos humanos), representando a guerra, o amor, a traição, etc. No final do Império, a partir do dominato, ocorre a expansão da religião cristã, que se toma inclusive a religião oficial do Império Romano, atingindo o auge na sua fase designada como Césaro Papismo (fase em que o imperador se toma também o chefe religioso cristão do Império). 35 ARIES, Philippe; DUBY, Georges (Dir.). História da vida privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, v. 1, p. 23. como causa principal a miséria de uns e a política matrimonial de outros. Os pobres abandonavam as crianças que não podiam alimentar; outros „pobres‟ (no sentido antigo do termo, que hoje traduziríamos por „classe média‟) enjeitavam os filhos „para não vê-los corrompidos por uma educação medíocre que os torne inaptos à dignidade e à qualidade‟, escreve Plutarco; a classe média, os simples notáveis, preferia, por ambição familiar, concentrar esforços e recursos num pequeno número de rebentos. Contudo, mesmo os mais ricos podiam rejeitar um filho indesejado cujo nascimento pudesse perturbar disposições testamentárias já estabelecidas. Dizia uma regra de direito: „O nascimento de um filho (ou filha) rompe o testamento‟ já selado anteriormente, a menos que o pai se conforme com deserdar de antemão o rebento que poderia vir a ter; talvez se preferisse nunca mais ouvir falar nele ou deserdá-lo. 36 O universo cultural e a significação moral advindas desse mundo escravagista atribuíam ao direito civil romano a forma de direito material e instrumental, baseado em ardis e fraudes, que por sua vez acabavam beneficiando os mais fortes em face da existência de uma sociedade extremamente desigual, em que o direito formal permitia usualmente apenas aos mais fortes beneficiar-se do sistema jurídico existente devido ao seu poder material alicerçado nos planos econômico e militar: Em época normal, os costumes romanos são traduzidos com bastante exatidão pelo direito civil, cujo cordão umbilical com a moral vigente nunca foi realmente cortado: a técnica desse direito, mais verbal que conceptual e ainda menos dedutiva, permitia a seus profissionais entregarem-se a exercícios de virtuosismo. Tal direito realmente permitia obter justiça? Fazia respeitar as regras do jogo quando os indivíduos as violavam para oprimir o próximo? Numa sociedade tão desigual, desigualitária e atravessada por redes de clientelas, não é necessário dizer que os direitos mais formais não eram reais e que a um fraco pouco tinha a ganhar processando os poderosos. E mais: mesmo quando não era violada, a justiça abria vias legais eficazes para obter o cumprimento do direito? Bastará um exemplo, no qual veremos que o poder público organiza a vendeta privada e não faz nada para impedir. 37 Não existiam a autoridade e a coerção públicas indispensáveis à implementação de decisões judiciais; e as violações mais cruéis possuíam apenas um caráter civil; não existia, portanto, coação pública capaz de impor a sanção penal, visando à proteção contra a violência que atingisse os bens jurídicos relevantes; as citações eram feitas pelas próprias partes, que dependiam muitas vezes de poder militar para obter êxito nesta iniciativa; não existia, pois, um poder público coativo e exterior, capaz de impor a sanção jurídica de forma organizada e centralizada: Suponhamos que um devedor não quer pagar o dinheiro que tomou emprestado; ou ainda que temos como única fortuna um pequeno sítio, ao qual nos apegamos porque nossos ancestrais ali viveram ou porque a região é agradável. Um poderoso vizinho cobiça nosso bem; à frente de seus escravos armados, invade a propriedade, mata 36 ARIES, Philippe; DUBY, Georges. (Dir.). História da vida privada. São Paulo: Cia, das Letras, 1997, v. 1, p, 24. 37 ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Dp. cit., p. 166. nossos escravos que tentavam nos defender, nos mói de pancadas, nos expulsa e se apodera do sítio como se lhe pertencesse. O que fazer? Um moderno diria: apresentar queixa ao juiz (litis denuntiatio), obter justiça e recuperar nosso bem através da autoridade pública (manu militari). Sim, as coisas serão mais ou menos assim no final da Antiguidade, quando os governantes de província terão finalmente feito triunfar em todas as coisas seu ideal de coerção pública. Mas na Itália dos dois ou três primeiros séculos de nossa era, a situação será diferente. A agressão de nosso poderoso vizinho constitui um delito puramente civil e não implica coerção penal; cabe-nos, pois, garantir o comparecimento do adversário perante a justiça; para isso, precisamos agarrar esse indivíduo no meio de seus homens, arrastá-lo e acorrentá-lo em nossa prisão privada até o dia do julgamento. Se não pudermos levá-lo à presença do juiz, não haverá processo (litis contestatio). Mas conseguimos e, graças à intervenção de um homem poderoso que nos aceitou como cliente, obtivemos justiça: a sentença diz que o direito está a nosso favor; nada mais nos resta do que executar pessoalmente a sentença, desde que tenhamos os meios. Trata-se aparentemente de lutar para reaver a terra de nossos ancestrais? Não. Por uma bizarrice inexplicável, um juiz não pode condenar um acusado a simplesmente restituir a coisa roubada. Abandonando nosso sítio à própria sorte, ele nos autorizará a tomar posse de todos os bens e domínios de nosso adversário, que venderemos em leilão; guardaremos uma soma de dinheiro igual ao valor que o juiz atribuiu ao sítio (aestimatio) e entregamos o restante a nosso adversário. 38 A estratificação social romana composta por homens livres e escravos é importante para entender posteriormente, por exemplo, o tipo de casamento estabelecido por aquela população romana e as suas diferenças em relação às formas existentes hoje: Na Itália romana, um século antes ou depois de nossa era, cinco ou seis milhões de homens e mulheres são livres e cidadãos; vivem em centenas de territórios rurais (civitas) que têm como centro uma cidade (urbs) com seus monumentos e casas ou domus. Contam-se ainda um ou dois milhões de escravos, que são ou domésticos ou trabalhadores agrícolas. Sobre seus costumes, sabemos apenas que a instituição privada do casamento lhes era proibida e como tal permanecerá até o século III. Consta que essa gente vivia em estado de promiscuidade sexual, com a exceção de um punhado de escravos de confiança que administravam a casa do senhor ou que, servindo ao próprio imperador, eram os funcionários da época. Esses privilegiados tomavam por longo tempo uma concubina exclusiva ou a recebiam das mãos do senhor. 39 O casamento romano não possuía urna configuração que permitisse a intervenção de um poder público e estava essencialmente disciplinado pelo direito privado, que não era escrito, pelo contrário, era informal e oral, ocorrendo apenas a presença precária de testemunhas e em última instância da prova verbal dos nubentes restabelecedores da celebração através de suas memórias: (...) o casamento romano é um ato privado, um fato que nenhum poder público deve sancionar: ninguém passa diante do equivalente de um juiz ou de um padre; é um ato não escrito (não existe contrato de casamento, mas apenas um contrato de dote) e até informal: nenhum gesto simbólico, por mais que se diga, era obrigatório. Então, 38 ARIES, Philippe; DUBY, Georges. (Dir.). História da vida privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, v. 1, p. 166. 39 ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Op. cit., p. 45.
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