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Guias e Dicas
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Ensaio sobre a criação da psicanalisa, Notas de estudo de Psicologia

psicanalise

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 03/02/2013

juju-dias-3
juju-dias-3 🇧🇷

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Baixe Ensaio sobre a criação da psicanalisa e outras Notas de estudo em PDF para Psicologia, somente na Docsity! Ped " ns ] e Y N | Di ERR do spa o | aa a E | f À | | À | | E = À ) | N y ' / | ais / | N ! | VM ho q des Em | RS sbre ER dE [e (o NE em NS So De Vea PALA) Abrapam e ra Era ca | | Ata Ra Fédida Seguido de Fora de Jacques Derrida A | O presente livro é oriundo da clínica psicanalítica e de sua interrogação metapsicológica. O autor, considerando a clínica psicanalítica como o ponto de partida de sua pesquisa e na qual toda a reflexão teórica se apóia, encontra a obra de Ferenczi como referência desta primazia da clínica no pensamento psicanalítico. O leitor encontrará neste volume três incursões profundas na obra ferencziana, por meio dos percursos dos conceitos de introjeção das pulsões, de símbolo e de identificação ao agressor. Nenhuma obra polêmica foi evitada, e a controvertida Talassa foi respeitada pelo autor como central no pensamento ferencziano. Mas Freud e Ferenczi não conheceram a criação do Universo Concentracionário. A hipótese interpretativa deste livro é que a herança dos fundadores da doutrina psicanalítica não pode ser aceita como uma dádiva pelos psicanalistas atuais, tornando-os discípulos ou continuadores. A geração pós- Auschwitz está na contingência de recriar ou de refundar a conceptualidade psicanalítica. Os pais da doutrina deixaram indicações; mas cabe à geração pós-Holocausto a tarefa de pensar como um dos destinos do Outro Homem vem a ser o seu extermínio. Fabio Landa comenta a obra de Nicolas Abraham e de Maria Torok na perspectiva de um psicanalista da segunda geração do pós- guerra em contato com psicanalistas que ENSAIO SOBRE A CRIAÇÃO TEÓRICA EM PSICANÁLISE DE FERENCZI A NICOLAS ABRAHAM E MARIA TOROK FABIO LANDA Seguido de FORA AS PALAVRAS ANGULOSAS DE NICOLAS ABRAHAM E MARIA TOROK JACQUES DERRIDA Prefácio de PIERRE FÉDIDA Copyright © 1998 by Editora UNESP Copyright © 1976 by Aubier Título original em francês: "Fors. Les mots anglés de Nicolas Abraham et Maria Torok." Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900-São Paulo-SP Tel.: (Oxxl1)232-7171 Fax: (Oxxl1)232-7172 Home page: www.editora.unesp.br E-mail: feu@editora.unesp.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Editora afiliada: Landa, Fabio Ensaio Sobre a criação teórica em psicanálise: de Ferenczi a Nicolas Abraham e Maria Torok/Fabio Landa; prefácio de Pierre Fédida. - São Paulo: Editora UNESP: FAPESP, 1999. - (Prismas) "Seguido de FORA as palavras angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok, Jacques Derrida". Bibliografia. ISBN 85-7139-253-6 1. Abraham, Nicolas 2. Ferenczi, Sandor, 1873-1933 3. Psicanálise 4. Psicanálise - História 5. Torok, Maria I. Título. II. Série. 9-3318 CDD-150.195 Índices para catálogo sistemático: 1. Psicanálise: Teorias: Psicologia 150.195 PREFÁCIO Nós fomos numerosos, entre os psicanalistas da minha gera- ção, a ter pressentido nos anos 60 e 70 que os escritos de Nicolas Abraham e de Maria Torok deviam nos iluminar por muito tempo em nosso trabalho psicanalítico. Antes mesmo que esses escritos fossem reunidos numa primeira coletânea em (1987) L'écorce et le noyau, vivemos um intercâmbio extremamente fecundo com esses textos, que são (1968) "Maladie du deuil et fantasme du cadavre exquis" ["Luto patológico e o fantasma do cadáver delicioso"], (1971) "La topique réalitaire" ["A tópica realitária"], (1973) "La maladie de soi-à-soi" ["A doença de si-mesmo-a-si-mesmo"] e, mais tarde, (1976) Le verbier de l'homme aux loups. Textos entre outros que balizam um percurso de trabalho percebido como in- tenso e não obstante tão modesto quanto possível quando se trata da comunicação entre analistas. Como esquecer a leitura que fez Nicolas Abraham do Vocabulaire de psychanalyse de J. Laplanche e J-B. Pontalis? Era já, pois, o "L'écorce et le noyau". Digo hoje que estes textos deviam nos iluminar por muito tem- po. Não apenas porque eles adquiriram valor de referência para as publicações, mas, antes de mais nada, porque sua inteligência ana- Capítulo 4 197 A criptoforia I O trauma e a clivagem do ego 201 II Introdução à clínica da incorporação 2 14 Conclusão 233 Bibliografia de Nicolas Abraham e de Maria Torok 243 Bibliografia sobre Nicolas Abraham e Maria Torok 247 Bibliografia geral 253 Fora 269 As palavras angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok Jacques Derrida INTRODUÇÃO Não há nada que o homem tema mais que o contato com o desconhecido. Quer ver o que vai tocá-lo, quer poder reconhe- cê-lo ou, em todo caso, classificá-lo. Sempre o homem se esquiva do contato insólito. A noite, e na obscuridade em geral, o assom- bro de um contato inesperado pode se intensificar em pânico. Mesmo as roupas não são suficientes para garantir a segurança; elas são tão fáceis de serem rasgadas, é tão fácil penetrar até a car- ne nua, lisa e sem defesa da vítima. Todas as defesas que os homens criaram ao seu redor são dita- das por essa fobia do contato. Ele se tranca em fortalezas onde nin- guém pode entrar, e somente nelas se sente um pouco seguro. O medo que sente do ladrão não provém apenas das rapaces inten- ções deste, é também o medo de seu aparecimento súbito e inespe- rado no escuro. A mão deformada em garra é sempre o símbolo utilizado dessa angústia. "Agredir" é, antes de mais nada, "atacar", o contato inofensivo se interpreta aqui como ataque perigoso, e é este último sentido que acaba prevalecendo. Uma "agressão" é um contato pejorativo. (E. Canetti, Massa e poder) Desde o início do movimento psicanalítico, cada geração de psicanalistas produz conflitos que acabam em rupturas anuncian- do uma nova psicanálise; uma nova corrente tenta se impor de ma- neira hegemônica sobre as outras, assegurando-se os meios de transmissão e de formação de novos psicanalistas. Nada disso acon- tece em relação à obra que examinamos neste estudo sobre os tra- balhos de Nicolas Abraham e de Maria Torok, mesmo se se podem observar revolucionárias inovações do ponto de vista clínico e me- tapsicológico. Numa primeira abordagem, observam-se na obra desses auto- res todos os elementos que poderiam conduzi-los a uma exclusão do movimento psicanalítico. Nela encontra-se o questionamento de alguns dos conceitos mais problemáticos do conjunto da teoria psicanalítica que se prestam a tomada de atitudes extremamente dogmáticas: a pulsão de morte, o símbolo, a transferência, a fanta- sia, a realidade. Além disso, desde os primeiros escritos, eles ado- tam uma atitude toda particular de pesquisa, afastando-se cuida- dosamente das correntes dominantes em sua época (os anos 60 e 70) no movimento psicanalítico mundial, a kleiniana e a lacaniana. Deve-se ressaltar, sobretudo, que o estilo dessa obra não é aquele habitual da literatura psicanalítica. O rigor com que os auto- res efetuam os remanejamentos dos conceitos clássicos (por exem- plo, o conceito de introjeção ou a maneira pela qual eles abordam o mito de Édipo ou ainda a inveja do pênis pela mulher) nunca im- plica uma linguagem seca do cientista, mas conduz sempre a uma abertura insuspeitada. Numa outra via, os casos clínicos, apresen- tados de uma maneira muito sucinta, mostram o essencial, sem o exibicionismo e a pretensão de criar um novo caso princeps. Tra- ta-se de uma linguagem poética que implica imediatamente o lei- tor, que depara com uma obra cujo estilo é, ao mesmo tempo, ci- entífico e poético, o que provoca uma sensação de estranhamento. Os dois estilos, habitualmente excludentes, coabitam nessa obra, o que nos leva a estabelecer uma analogia com a apresentação de ca- sos clínicos por Freud, tendo o poder de criar uma teoria ou de re- considerar antigos pontos de vista. O estilo e a clínica podem ser considerados os dois eixos que atravessam e imantam todos os textos de Nicolas Abraham e de mãe. Por um arranjo entre famílias, a moça acaba se casando com um rapaz de uma família de cinco filhos, muito rica. O rapaz, por sua vez, designado pela mãe, era o herdeiro da fortuna familiar. O jovem casal de médicos parte para uma viagem de estudos no es- trangeiro, onde reproduzem o nível de vida ao qual estavam habi- tuados no país de origem. Nesse período eles têm quatro filhos. O retorno ao país de origem marca o fim da carreira profissional da esposa, que se torna dona de casa por imposição do marido, o que a faz naufragar no alcoolismo, tornando-se toxicômana. Após uma tentativa de suicídio ela se vê afastada (por interferência da sogra) de toda decisão concernente à fortuna familiar, em grande parte provinda da família do marido. É nesse contexto que ela ini- cia uma psicoterapia e, ao mesmo tempo, segue um tratamento psiquiátrico medicamentoso. Pouco tempo depois, interrompe a psicoterapia e faz uma segunda tentativa de suicídio; a psiquiatra recomenda uma lobotomia (esse caso se passa nos fins dos anos 80). A família vai em busca do parecer de outro especialista, que desa- conselha tal procedimento cirúrgico. Todavia, alguns dias mais tar- de, a lobotomia é realizada. Três meses após a cirurgia, ela se suici- da saltando da janela do apartamento de sua mãe. Seis meses depois de seu falecimento, o viúvo se casa com a psiquiatra que tratara de sua mulher e que indicara a lobotomia. Para além da singularidade dos personagens desse caso, seria interessante frisar a importância de um discurso médico, tido por neutro e científico, postulando uma intervenção que poderia mudar o destino da paciente e, de al- gum modo, trazê-la de volta a uma "normalidade". Um pouco mais perto do nosso campo, a psicanálise, podemos citar o caso de um jovem médico que chega para um segundo pe- ríodo de análise, após um tratamento de vários anos com um ana- lista didata. O jovem conta um sonho da última sessão de sua aná- lise precedente: "eu estou efetuando uma espécie de visita guiada a um lugar sombrio. Ouço barulhos estranhos e atemorizantes e meu guia me faz entrar numa sala onde vejo um homem e seu tor- turador; permanecemos aí por um momento e saímos; a porta da sala se fecha atrás de mim e ouço um ruído que me diz que o tortu- rador acaba de matar sua vítima. Eu tinha esse sonho na cabeça e fui, na manhã seguinte, à sessão de análise. Sabia o que meu analis- ta diria. Há bom tempo ele repetia que eu deveria fazer um esforço para sair desse sempre mesmo quadro sadomasoquista. Ele dizia que eu não queria me curar nem progredir. Há tempos eu fazia uma espécie de jogo com meu analista que eu julgava poder con- trolar: eu me via falando, mas eu não estava verdadeiramente lá; eu escutava as interpretações do meu analista de uma forma, eu di- ria, automática. Suas palavras não me chegavam mais como pala- vras; em cada palavra que ele pronunciava eu sentia sempre o mes- mo ruído metálico. No fim, eu não estava mais lá. Eu me disse então que aquela seria minha última sessão, o jogo tinha ido longe demais". Essa entrevista poderia fazer pensar no que Ferenczi es- creve sobre a "franqueza" como o único elemento de que dispõe o analista para permitir a seu analisante de o criticar. Sabe-se que es- sas considerações visavam a importantes remanejamentos técnicos que ele tentava introduzir na época. As duas situações esboçadas aqui desenham, de alguma manei- ra, uma configuração que se poderia, grosso modo, considerar um bloqueio por uma razão qualquer, com um desfecho relativamente problemático. Há tempos nós nos interessamos por esse tipo de desfecho de um tratamento analítico. É preciso perguntar-se se a imagem do sonho do paciente não é, de alguma maneira, indica- ção de uma situação mortífera muito distante das considerações do seu antigo analista. De certa forma, há um grão de verdade no sonho do paciente concernente à configuração do quadro analíti- co e que interroga o acolhimento de um analisante pelo analista. O que se observa é que, à medida que a psicanálise se desenvolve, a espessura teórica do pensamento do analista funciona como uma verdadeira parede. Em vez de um contato, podem-se propor estra- tégias, táticas, para tal ou tal tipo de patologia e, no limite, po- der-se-ia quase falar de "especialidades psicanalíticas": casos "difí- ceis", psicóticos, toxicômanos etc. É preciso então perguntar se a psicanálise não está seguindo o mesmo caminho que a medicina, de uma especialização tendendo à atomização. E, nesse caso, se ainda se pode chamá-la de psicanálise. Com base nessas situações bloqueadas, seria preciso pergun- tar qual modelo nos permitiria pensar tais situações e se é possí- vel detectar a questão de uma atividade "iatrogênica" da psicaná- lise. Essa hipótese no campo da psicanálise nos levou a formular a hipótese da produção de um autismo "iatrogênico" no paciente mencionado antes. Uma hipótese em certa medida ingênua, mas que nos impeliu a repensar o modelo do autismo infantil precoce. Percorrendo a literatura a esse respeito, à parte alguns avanços clí- nicos e teóricos, encontramos a situação dessa espessura teórica que acabamos de mencionar, o que torna a maior parte dessa lite- ratura bastante homogênea. Os trabalhos de Tustin,6 Haag,7 Laz- nik-Penot8 buscam, sobretudo a partir da fineza da observação clí- nica, ultrapassar essa situação, mas não conseguem, todavia, se desvencilhar de certa dificuldade para encontrar as repercussões desses avanços para o conjunto da teoria. O artigo de Fédida9 so- bre o autismo é exceção: trata-se precisamente de reconhecer o autismo como portador de uma potencialidade modeladora para a teoria. Se, por um lado, podemos comemorar a massa de produção teórica e clínica no campo da psicanálise, por outro, é preciso re- tomar a questão da ressonância, a capacidade que deve guardar o analista de poder ser abalado em suas referências teóricas pelo dis- curso do analisante. O que quer dizer, afinal, que é a partir do de- sencadeamento da atividade inconsciente do analista, em razão da presença do analisante, que se atinge a interpretação dita psicana- lítica. A rigidez dos modelos teóricos que o analista traz acaba agindo como uma barreira de contato, seja na sessão analítica seja na produção teórica. O que vem estabelecer uma condição parti- cular nas relações dos analistas entre si. Num trabalho recente- mente surgido na França, Besserman Vianna10 conta um episódio extremamente interessante implicando a psicanálise no Brasil e que teve repercussões na França. É o episódio, bastante conheci- do, de um analista brasileiro que, sob a ditadura militar dos anos 60 e 70, dedicava uma parte de seu tempo como conselheiro médi- co de um grupo de tortura dos organismos governamentais de re- pressão. Esse personagem fez sua análise (dita didática) com um psicanalista que, por sua vez, havia sido analisado por um analista chegado ao Brasil no final dos anos 40, saído dos quadros do Insti- tuto de Psicoterapia que tomara o lugar da Sociedade Psicanalítica de Berlim após a sua "arianização" sob o regime nazista. O analista "clínica" ocupa um lugar central em sua obra. Poder-se-ia mesmo dizer que as orientações teóricas que eles to naram foram determi- nadas pela clínica. E se, em sua obra, a clínica é muito brevemente expressa em termos de apresentação de caso é porque a visada clí- nica para eles é onipresente como especulação. Não se trata de um desfile de casos clínicos, mas sim de uma interminável pesquisa de legibilidade e de tradução. Os pontos de vista metapsicológicos dos autores devem dar conta do esforço de legibilidade que eles desenvolvem em relação a seus pacientes. Não há "pacientes difí- ceis". Eles estão sempre prontos a interrogar seus modelos teóri- cos e a modificá-los diante da clínica; é desse modo que eles en- contram, a partir da clínica, os elementos que possibilitam efetuar algumas precisões conceituais como, por exemplo, a distinção en- tre a introjeção de pulsões e a incorporação de objeto. O trabalho de tradutor de Nicolas Abraham marca seu estilo de teórico da psi- canálise; sabe-se que ele chamava algumas de suas traduções dos poetas húngaros de "poesias mimetizadas". O trabalho de escritu- ra dos autores procura imitar seu tema. Deparamos então com um estilo a um só tempo científico e poético, guardando uma força performativa; os desenvolvimentos que esta proporciona aos seus leitores ultrapassam a leitura e implicam as cadeias associativas. O compromisso dos autores com a clínica os leva a escrever em um dos seus trabalhos: "salvar a análise do homem dos lobos, nos salvar". O encontro de sua obra com a de Ferenczi seria pois inevitável. Sabe-se dos esforços clínicos de Ferenczi que o condu- ziram à beira de uma ruptura com Freud. Com base nessa conver- gência entre os autores e Ferenczi desenvolvemos nosso estudo. Assim, as referências aos conceitos analíticos são feitas toman- do-se Ferenczi por base, para não perder de vista nosso ponto de partida: as questões com base na clínica. Na biografia de Nicolas Abraham (à qual neste estudo nos referimos, deliberadamente, muito pouco), encontra-se um momento de impasse importante no decurso de sua análise pessoal. Nesse episódio, que é referido ao longo deste estudo, houve a participação de um terceiro perso- nagem. Trata-se de René Major, que teve acesso às cartas que o analista de Nicolas Abraham encaminhou à Sociedade de Psicaná- lise de Paris recomendando a recusa de sua candidatura a membro efetivo dessa associação. O ato de René Major de mostrar essas cartas a Nicolas Abraham pode ser tomado como um modelo de ruptura com uma atitude virulentamente antianalítica dos analis- tas. Cremos que o ato de René Major teve o efeito de um ato analí- tico que restitui sua dimensão metafórica a uma situação que havia perdido essa dimensão. Neste nosso estudo, os capítulos em geral se organizam seguin- do uma mesma estrutura: partimos da obra de Ferenczi para apre- sentar, num segundo momento, os pontos de vista de Nicolas Abraham e de Maria Torok. O Capítulo 3 é o único a apresentar uma estrutura distinta: tomamos um trabalho de Pierre Fédida para raciocinar primeiramente sobre a questão da teorização no campo da psicanálise. Podem-se distinguir na obra de Nicolas Abraham e de Maria Torok algumas particularidades que formam uma rede de inter- secções bastante complexa. Primeiramente, é preciso assinalar um diálogo entre os dois autores que não tem simplesmente a caracte- rística de uma complementaridade ou de uma justaposição de tex- tos. A assinatura dos dois livros, L'écorce et le noyau e Le verbier de l'homme aux loups, pelos dois autores, parece ser o resultado de um método denominado por um deles de "transfenomenal", ao mesmo tempo "trans-subjetivo" e "trans-objetivo". De certa for- ma, encontramos a mesma relação entre Jacques Derrida e os au- tores. Um segundo ponto se refere ao diálogo com os textos de Imre Hermann, Dominique Geahchan, Ilse Barande, Denise Bra- unschweig, Conrad Stein, Laplanche e Pontalis (Vocabulaire de Ia psychanalyse). Mencionamos antes a importância do trabalho de tradução de Nicolas Abraham; a relação com a literatura seria um terceiro ponto. E, por fim, evidentemente, o ponto constituído pela relação com os mestres: Freud, Husserl, Ferenczi. O caminho que percorremos nos conduz da distinção entre a "introjeção de pulsões" e a "incorporação de objeto" à criptoforia, passando pelo símbolo e a anasemia. Procuramos nos manter o mais próximo da intersecção entre a clínica e o método interpreta- tivo de textos teóricos dos autores, preocupados em discernir os movimentos de transformação dos conceitos e os elementos que permitiram essa transformação até a criação da nova figura da metapsicologia, ou seja, a "cripta". Nesse sentido, os capítulos so- bre o símbolo e a anasemia podem ser considerados uma tentativa de discernir o método pelo qual se chega à figura da "casca-e- o-núcleo", que parece ser a chave e o coroamento desse método. Nos capítulos sobre o símbolo e sobre a anasemia, procuramos ex- plicitar os protocolos de leitura que permitiram aos autores consi- derar "que todos os conceitos psicanalíticos autênticos se reduzem a estas duas estruturas, aliás Complementares: símbolo e anase- mia . NOTAS 1 Abraham & Torok, 1987a. 2 Idem, 1976. 3 Stein, 1987. 4 Holocausto, o genocídio dos judeus europeus, pelos nazistas durante a Se- gunda Guerra Mundial. 5 Arendt, 1983. 6 Tustin, 1989. 7 Haag, 1983. 8 Laznik-Penot, 1995. 9 Fédida, 1990. 10 Vianna, 1997. 11 Esse episódio todo terminou com a expulsão do analista didata de suas fun- ções. 12 Médico SS encarregado das "seleções" e "experiências médicas" em Aus- chwitz. reinterpretação de sua atividade pré-analítica como hipnotizador. A estratégia argumentativa desse artigo é admiravelmente eficaz. Ela evita toda discussão sobre uma classificação, bastante proble- mática, das neuroses, e afasta também toda definição, não menos problemática, das psicoses. Quando fala das neuroses, em geral, e quando opõe os meca- nismos desta aos da paranóia, Ferenczi se encontra num terreno seguro. Ele pode afirmar (a partir de uma abordagem suficiente- mente detalhada e fundada em seus conhecimentos clínicos, mas ao mesmo tempo suficientemente genérica permitindo uma visão de conjunto) que a projeção é a característica da paranóia, enquan- to a introjeção é a característica das neuroses em geral. A partir dessa perspectiva, o artigo de 1909 é uma seqüência do artigo de 1908. Se no artigo de 1908 trata-se da prevenção das neuroses em geral (a partir da fundação de uma "pedagogia"), no de 1909 trata-se da formulação dos princípios gerais de uma teoria da clínica psicanalítica. O traço fundamental do procedimento ferencziano é de escu- tar, antes de mais nada, o sofrimento, para estabelecer, em segui- da, uma teoria. Quando a teoria se revela insuficiente, ele retoma a clínica. Há pois um ir-e-vir permanente entre a clínica cotidiana e o esforço para torná-la compreensível e eficaz. Mais tarde, veremos Nicolas Abraham retomar esses princípios ferenczianos para opô-los à utilização da teoria como um dogma. Depois de ter encontrado um ponto suficientemente próximo para ver o detalhe e suficientemente afastado para ter uma visão de conjunto, isto é, após ter encontrado a necessária distância, Fe- renczi define a transferência como o fenômeno psicanalítico por excelência, mas também como um fenômeno bastante freqüente, que se encontra na base de toda relação humana, seja no homem "normal" seja no "neurótico". Segundo Ferenczi, em toda manifestação neurótica há, no fun- do, uma transferência. Trata-se de um "esbanjamento aparente" das energias afetivas. Esse "esbanjamento aparente" é visto, num primeiro momento, como um "deslocamento da energia afetiva dos complexos de representações inconscientes sobre as idéias atuais, exagerando sua intensidade afetiva".11 Em Ferenczi, entretanto, os médicos se encontram com fre- qüência severamente questionados: "o comportamento excessivo das histéricas é bem conhecido e suscita os sarcasmos e o desprezo; mas desde Freud sabemos que é a nós, médicos, que os sarcasmos deveriam ser dirigidos, nós que não reconhecemos a representa- ção simbólica à histeria, fazendo figura de analfabetos diante da rica linguagem da histeria".12 Nessa passagem, Ferenczi não fala ainda da atitude antiana- lítica do médico. Pode-se perceber, contudo, uma primeira alusão à existência de uma contratransferência onde existe transferência. Não é apenas o paciente que pode não querer saber nada de análi- se; é sobretudo o médico que é tomado por uma cegueira voluntá- ria. Todo o artigo se dirige ao médico que quer guardar suas cren- ças (religiosas? mágicas?) em uma ciência tranqüilizadora que o colocaria fora do circuito mais problemático da clínica, e que lhe permitiria um lugar honrado e protegido. Logo, será possível ob- servar o surgimento de uma fina ironia em Ferenczi em relação ao "charme irresistível" do médico ou do hipnotizador, como expli- cação dos estados amorosos de seus pacientes. Se não nos deixarmos enganar pelo estilo inocente de Ferenczi, apresentando no começo de seu artigo o papel do médico, podere- mos detectar as bases de uma atitude clínica bem particular. Nessa atitude, a preocupação de compreender, de estar o mais perto pos- sível do sofrimento e de ser útil se desenvolve à medida que sua prá- tica clínica avança. Ela levou Ferenczi a experimentar atitudes tera- pêuticas relativamente problemáticas, como foi o uso da "técnica ativa", que quase o conduziu a uma ruptura com Freud. Não seria sem proveito estudar em detalhe esse artigo, pois trata-se de examinar o contexto do nascimento de um conceito que não teve o mesmo destino que a noção de identificação, que por sua vez tornou-se um dos pilares da doutrina freudiana. Para Nicolas Abraham, contudo, o conceito de introjeção é "crucial". Ele diz claramente que o "problema, crucial, do conflito de introjeção é o último objetivo do que se chama o desejo e do qual as fantasias são apenas eventualidades".13 Num primeiro mo- mento, trata-se de constatar que aquilo que constitui o pilar da obra de Freud, a identificação, é um conceito secundário na de Abraham & Torok. Para eles, é a introjeção que desempenha o pa- pel principal. Essa distinção é carrregada de conseqüências para o desenvol- vimento da obra de Abraham & Torok. Retomando o conceito de introjeção criado por Ferenczi e levando-o ao limite ao radicali- zá-lo, os autores chegarão a conclusões bastante diferentes das de Freud quanto à clínica, como por exemplo a retomada do caso do "Homem dos Lobos"14 e as surpreendentes interpretações a que chegam os autores. A introjeção, característica da neurose. A projeção, característica da paranóia O conceito de introjeção foi criado com base no conceito de transferência (no caso Dora).15 Para Ferenczi, no artigo de 1909, as transferências são as reedições, as reproduções de tendências e de fantasias que a pro- gressão da análise desperta e deve trazer à consciência, e que se carac- terizam pela substituição da pessoa do médico por pessoas outrora importantes.16 A transferência é, contudo, rapidamente reconhecida como um fenômeno muito mais amplo para ficar restrito ao quadro de uma psicanálise. A transferência é descrita como um "mecanismo psíquico característico da neurose em geral, que se manifesta em todas as circunstâncias da vida e está subjacente à maioria das ma- nifestações mórbidas"17 nos neuróticos. A transferência, característica dos neuróticos, é vista como parte de um quadro mórbido ao lado da "imitação" e do "contágio psíquico"; isto é, da capacidade do "enfermo" de se apropriar das características e dos sintomas de outra pessoa. Trata-se da identifi- cação histérica. Ferenczi acrescenta que se trata da capacidade desses "enfer- mos" de se colocarem no lugar de uma outra pessoa, de sentirem intensamente o que acontece aos outros. Essa característica indica- melhanças físicas insignificantes como os gestos, a cor dos cabelos etc). Ele retoma aqui a representação pelo detalhe ("Darstellung durch ein kleinstes"). Neyraut assinala: Poder-se-ia melhor traduzir, na minha opinião, pelo "o menor", isto é: o elemento próprio a suportar a transferência dos afetos in- conscientes. Mas este "Kleinstes" para Ferenczi parece mais um deta- lhe, um fragmento, uma pequena realidade que um elemento que so- mente é pequeno por se referir a um maior e sendo não apenas um pedaço, mas eventualmente o símbolo. Um ligeiro desvio mas cheio de conseqüências o faz, em sua in- terpretação da transferência, privilegiar o deslocamento do afeto em relação ao de representação. Freud reservava em sua definição a possibilidade de um desloca- mento de representação: "deslocamento de tendências, de fantasias". Para Ferenczi, a representação permanece fixada aos complexos reprimidos, apenas os afetos em excesso e os gases sob pressão buscam se fixar sobre outras representações.24 Nestas condições, o analista ou antes um detalhe ínfimo de sua pessoa se torna a nova representação: é a nova representação.25 O que Neyraut escreve aqui nos permite compreender melhor o procedimento de Ferenczi e suas conseqüências. Para Ferenczi, trata-se de discernir um fenômeno cuja importância é antes de mais nada econômica. Ele insiste sobretudo no caráter maciço e onipresente da transferência e descreve a transferência em geral e a transferência sobre o médico (que é apenas uma manifestação da "tendência geral dos neuróticos a transferir") como uma "tendên- cia", uma "impulsão", um fenômeno inevitável, quase que a "na- tureza" mesma do neurótico, e que é determinada pela economia libidinal. Trata-se de afetos livremente flutuantes, resultado de um recalcamento que não permite sequer um mínimo interesse pelas representações de prazer tornado desprazer por causa de uma in- compatibilidade com a consciência do ego civilizado. Esses afetos livremente flutuantes serão a custo tolerados pelo psiquismo. Se- gundo Ferenczi, na histeria, o "paciente" converterá uma parte da "quantidade de excitação" em sintoma orgânico e, na neurose ob- sessiva, ele a deslocará para uma idéia compulsiva. Entretanto, "subsiste uma quantidade de excitação livremente flutuante, cen- trífuga diríamos, que tenta então se neutralizar sobre os objetos do mundo exterior. É a esta quantidade de excitação 'residual' que se imputará a disposição dos neuróticos à transferência".26 A noção de introjeção aparecerá, pois, tendo por bases a noção de transferência e considerações de ordem essencialmente econô- mica. Como escreve Fédida: Ora, a transferência é um sintoma como o é também o sonho: ela participa dos mesmos mecanismos de formação. E da mesma forma que o sonho, ela assegura não apenas os meios de conhecer a vida psí- quica inconsciente do paciente, mas também os meios de agir sobre a economia27 deste.28 Em 1909, Ferenczi tenta estabelecer as fronteiras entre intro- versão, projeção e introjeção.29 Cada um desses termos remeterá a um modelo psicopatológico. A introversão irá concernir os "de- mentes precoces" ("o demente retira totalmente seu interesse do mundo exterior, se torna infantil e auto-erótico"). A projeção será a característica dos paranóicos ("o paranóico é incapaz de retirar seu interesse do mundo exterior; ele se contenta em repelir esse in- teresse para fora do seu 'ego', de projetar no mundo exterior os desejos e as tendências e crê reconhecer no outro todo o amor, todo o ódio que ele nega em si-mesmo". Na neurose, observamos um processo diametralmente oposto (à paranóia). Pois enquanto o paranóico projeta no exterior as emoções que se torna- ram penosas, o neurótico procura incluir na sua esfera de interesses uma parte tão grande quanto possível do mundo exterior, para tor- ná-lo objeto de fantasias conscientes ou inconscientes. Esse processo ... é considerado um processo de diluição, pelo qual o neurótico tenta atenuar a tonalidade penosa dessas aspirações "livremente flutuan- tes", insatisfeitas e impossíveis de satisfazer. Proponho denominar esse processo inverso da projeção: introjeção.30 A introversão, a projeção e a introjeção são concebidas, num primeiro momento, como mecanismos de defesa; modalidades as- tutas que os "pacientes" utilizam para se desfazer dessas quantida- des de energia livremente flutuantes resultado do processo de re- calcamento e que contrariam o princípio de prazer. No mesmo artigo, algumas páginas à frente, encontra-se o conceito de introjeção apresentado como um mecanismo de defe- sa que faz parte de uma argumentação com base num hipotético adversário da psicanálise se exprimindo através de Ferenczi: "po- der-se-ia objetar-me que a extensão da esfera de interesses, a iden- tificação do 'ego' com numerosas pessoas ou mesmo com a huma- nidade inteira, a receptividade com as estimulações exteriores, são qualidades compartilhadas pelos indivíduos normais, até mesmo os da elite, e que a introjeção não pode então ser considerada um processo psíquico característico dos neuróticos".31 Ferenczi res- ponde a essa hipotética objeção com o mesmo argumento de uni- versalidade: "segundo a doutrina psicanalítica, não existe uma di- ferença fundamental entre normalidade e neurose".32 A decisão de incluir o processo de introjeção entre os mecanis- mos de defesa é bastante problemática. Ferenczi nos fornece, ele mesmo, argumentos contra essa assimilação. Acabamos, no entan- to, tendo a impressão, no artigo que estamos examinando, de que, afinal, para ele, a introjeção (como processo característico dos neu- róticos) pode ser sinônimo de transferência.33 Ele indica apenas uma ligeira distinção, como nesta passagem: O termo "transferência" criado por Freud deve ser conservado para designar as introjeções que se manifestam no decurso da análise e que visam à pessoa do médico, em razão de sua importância prática excepcional. O termo "introjeção" convém a todos os outros casos implicando o mesmo mecanismo.34 Nessa perspectiva, a paranóia e a neurose seriam os dois mo- delos distintos pelos quais o problema econômico dessa quantida- de de excitação livremente flutuante, contrariando o princípio de prazer, poderia ser resolvido. Os dois mecanismos essenciais - a projeção e a introjeção - se tornariam, para Ferenczi, os mecanis- mos que ultrapassam a patologia e abrem a via para uma aborda- gem ontogenética. Não se trata mais de compreender a neurose ou a paranóia, mas de atribuir uma característica de universalidade a esses mecanismos assim descritos com base na patologia - uma maneira que se tornou clássica a partir de Freud, para compreen- der o desenvolvimento do homem a partir de sua infância. do exterior. Há partes do ego que absolutamente não lhe perten- cem. São os atributos que se instalam no ego a partir de um logro, um logro primitivo, poder-se-ia dizer. Mas há também partes do ego que são sentidas como absolutamente estrangeiras, o que constituiria a outra face do mesmo logro primitivo. Aqui se vis- lumbra já um esboço do princípio de clivagem do ego. Desse ponto de vista, a questão do fora e do dentro impõe de chofre muitos problemas. É, contudo, importante seguirmos a indicação de Ferenczi: O primeiro amor, o primeiro ódio se realizam graças à transfe- rência: uma parte das sensações de prazer ou de desprazer, au- to-eróticas em sua origem, se desloca sobre os objetos que os suscita- ram. No começo, a criança só ama a saciedade, pois ela aplaca a fome que a tortura - depois chega a amar a mãe, esse objeto que lhe traz a saciedade. O primeiro amor objetai, o primeiro ódio são, pois, a raiz, o modelo de toda transferência ulterior que não é então uma característica da neurose, mas a exageração de um processo mental normal.41 O primeiro amor, o primeiro ódio, da mesma maneira que a projeção, têm menos um sentido de originário que um sentido de primitivo. Ilse Barande, em seu livro sobre Ferenczi, não hesita em denominar Ur-transferência, Ur-projeção, Ur-amor etc.42 De fato, trata-se da força de um modelo, e do começo de um funcionamen- to iterativo. Observa-se também que, quando Ferenczi atribui ao auto- erotismo um papel central, ele estabelece um raciocínio, ao mes- mo tempo clínico e teórico, cujo desenvolvimento será concluído em Thalassa. Para Ferenczi, o papel do auto-erotismo jamais será substituído pelo do narcisismo. Ele raciocinará antes em termos de auto-erotismo do que de narcisismo. Pode-se pensar que esse racio- cínio é uma das diferenças maiores da obra de Ferenczi em relação à de Freud. Depois de "Pour introduire le narcissisme" ["Para in- troduzir o narcisismo"], o auto-erotismo praticamente desaparece dos eixos maiores da obra freudiana. Em Ferenczi, jamais. Essa fi- delidade ao conceito de auto-erotismo poderia explicar, em sua obra, a importância que ele confere ao trauma. Segundo Ferenczi, em relação ao amor que a criança tem pela saciedade, o amor da mãe é apenas uma transferência, a primeira transferência. A mãe se torna o objeto que propicia a saciedade. É a única maneira que ela dispõe de ser amada.43 A transferência é, pois, um mecanismo que se estabelece com o primeiro amor ou o primeiro ódio, pelo deslocamento dos prazeres auto-eróticos para os objetos que os propiciam. A leitura do artigo em que Ferenczi desenvolve o conceito de introjeção nos leva então a algumas conclusões. A introjeção é: • concebida como um mecanismo defensivo e uma etapa do desenvol- vimento do ego; • concebida como uma "diluição" e como um meio de aumentar o ego; • concebida como um mecanismo que se opõe à projeção, quando esses dois mecanismos são definidos como característicos do neu- rótico e do paranóico ("o ego do neurótico é patologicamente dila- tado, enquanto o paranóico sofre, por assim dizer, de um encolhi- mento do ego");44 • um mecanismo que se segue ao da projeção no desenvolvimento do ego. O conceito de introjeção depende extensamente do de transfe- rência, a tal ponto que eles não podem ser distinguidos, a não ser por um artifício, o de considerar que um deles ocorre na sessão analítica e o outro, fora ("o termo 'transferência' criado por Freud deve ser conservado para designar as introjeções que se manifes- tam no decorrer da análise e que visam à pessoa do médico, em virtude da sua importância clínica excepcional. O termo 'introje- ção' convém a todos os outros casos implicando o mesmo meca- nismo").45 A introjeção é o mecanismo fundamental da passagem do au- to-erotismo ao amor objetai. A introjeção e a projeção são os mecanismos pelos quais a pro- blemática do fora e do dentro pode se colocar numa perspectiva de um "logro primitivo". A preocupação em acabar com a confusão ao redor do conceito de introjeção Em 1912, em seu artigo "Le concept d'introjection" ["O concei- to de introjeção"],46 escrito no quadro de uma discussão a propó- sito do termo "introjeção" (em relação ao termo "exteriorização" proposto por Maeder), Ferenczi acrescenta algumas precisões so- bre a definição que ele propõe do conceito de introjeção. Muito cedo (apenas três anos após a sua criação), o conceito de introje- ção se torna um conceito polêmico. Em seu artigo "Maladie du deuil et fantasme du cadavre ex- quis" ["Luto patológico e fantasma do cadáver delicioso"]47, Ma- ria Torok sublinha a confusão existente ao redor desse conceito desde a sua criação. Segundo ela, na literatura psicanalítica, esse conceito serviu a tudo e a seu contrário. O mérito desse artigo é ter retomado rigorosamente as formulações de Ferenczi sobre o tema. A confusão à qual se presta o conceito de introjeção é devida a uma configuração aparentemente simples, mas submetida, toda- via, a múltiplos fatores que devem ser levados em conta sob pena de tornar esse conceito aporético. Em 1912, Ferenczi avança algumas precisões que devem ser sublinhadas. No quadro do artigo que examinamos anteriormente, a intro- jeção é o mecanismo fundamental da neurose, pelo qual o neuróti- co procura "diluir" os afetos livremente flutuantes. O neurótico atrai tudo o que ele pode para sua esfera de interesses, com o obje- tivo de "diluição". Ele "dispersa [seus afetos] por objetos que ab- solutamente não lhe dizem respeito, para deixar no inconsciente suas emoções ligadas a certos objetos que, sim, absolutamente lhe dizem respeito".48 De outro modo, o paranóico, quando se utiliza do mecanismo fundamental oposto, o da projeção, está também numa busca contínua de objetos, mas "é para lhe 'colar' a libido que o incomoda".49 Em 1912, Ferenczi acrescenta: "Eu descrevi a introjeção como a extensão ao mundo exterior do interesse, originalmente au- to-erótico, pela introdução dos objetos exteriores na esfera do ego".50 Nota-se, primeiramente, que o conceito de auto-erotismo é o ponto de partida do pensamento de Ferenczi. Em segundo lugar, tica. Ferenczi prepara então seu livro Thalassa59 (que será termi- nado em fins de 1913, apresentado a Freud em 1915 e publicado nos anos 20). Em Thalassa, encontra-se um capítulo ("Le dévelop- pement du sens de réalité érotique et ses stades" ["O desenvolvi- mento do sentido de realidade erótica e seus estádios"] onde ele tenta abordar a mesma problemática de outro ângulo, como vere- mos em seguida. Pode-se dizer que esses dois artigos constituem um conjunto. É, pois, dessa forma, como um conjunto único, que os abordaremos. A reviravolta no pensamento de Ferenczi, representada por esse artigo de 1913, parece ter sido desencadeada pelo artigo de Freud de 1911 citado por Ferenczi - "Formulations sur les deux príncipes du fonctionnement psychique" ["Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico"] (Freud, 1995a). Como assinala Strachey,60 Freud faz uma recapitulação de seus co- nhecimentos psicanalíticos a partir da Esquisse d'une psychologie scientifique [Esboço de uma psicologia científica] e do capítulo VII de L'interprétaion des rêves [A interpretação dos sonhos]. Essa re- capitulação trouxe conseqüências. Segundo Strachey, Freud pre- parava novas etapas teóricas: "Pour introduire le narcissisme" ["Para introduzir o narcisismo"], seguido pelos escritos metapsi- cológicos. O artigo de Freud, muito condensado, como ele mesmo comentou, não é apenas e tão simplesmente uma recapitulação. Parece anunciar alguns eixos de pesquisa que Ferenczi imediata- mente percebeu. Ferenczi tomou duas indicações de Freud, nos artigos "Le dé- veloppement du sens de réalité et ses stades" e "Le développement du sens de réalité érotique et ses stades", que constituem um pros- seguimento da pesquisa freudiana. A primeira indicação é a se- guinte: A substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade, com as conseqüências psíquicas decorrentes, foi aqui apresentada es- quematicamente e mesmo reduzida a uma só proposição; na realida- de, ela não se dá nem de uma só vez nem simultameamente em seu conjunto. Ao contrário, enquanto o desenvolvimento prossegue para as pulsões do ego, as pulsões sexuais se separam das pulsões do ego significativamente.61 E a segunda indicação: Enquanto o ego cumpre sua transformação de ego-prazer em ego- realidade, as pulsões sexuais sofrem as modificações que as condu- zem, por diversas fases intermediárias, do auto-erotismo inicial ao amor de objeto que está a serviço da função de reprodução. Se é exato que cada estádio dessas duas linhas de desenvolvimento pode se tor- nar a sede de uma predisposição a uma afecção neurótica ulterior, so- mos levados a fazer depender o que determina a forma desta (a esco- lha da neurose) da fase do desenvolvimento do ego e da libido na qual interveio a inibição de desenvolvimento predisponente. As caracterís- ticas temporais dos dois desenvolvimentos, que não foram estudados ainda, e a possibilidade de seu deslocamento de um em relação ao ou- tro tomam assim uma importância insuspeitada.62 Se citamos tão longamente essas duas passagens de Freud é para termos presente um eixo de pesquisa freudiana que em Fe- renczi vai ter um desenvolvimento completamente diferente. Se, para Freud, trata-se de isolar os elementos que permitirão efetuar a difícil passagem do auto-erotismo ao narcisismo e seu desenvol- vimento ("Pulsions et destins des pulsions" ["As pulsões e os desti- nos das pulsões"], "Deuil et mélancolie" ["Luto e melancolia"] e "Psychologie des masses et analyse du moi" ["Psicologia das mas- sas e análise do ego"], para Ferenczi trata-se de estabelecer um ra- ciocínio embasado numa abordagem palingenética,63 que culmi- nará em Thalassa. Essa diferença não é de pouca importância: trata-se de uma di- ferença de perspectivas significativa. Se, para Freud, trata-se de afinar a noção de aparelho psíquico, para Ferenczi trata-se de to- mar os ensinamentos de Freud como fatos estabelecidos de uma vez por todas e de conceber a evolução do homem com base em uma abordagem psicanalítica.64 As questões que trataremos aqui ocuparão um lugar importante no pensamento de Ferenczi. Ele retornará a elas ainda em 1926,65 quando de um balanço sobre o conceito de introjeção. A questão aqui tratada é saber se a passagem do princípio de prazer ao princípio de realidade se faz de uma só vez ou por etapas (e, nesse caso, quais seriam essas etapas). Ferenczi raciociona to- mando por base a clínica dos obsessivos, tal como Freud desenvol- veu em "Remarques sur un cas de névrose obsessionnelle" ["Obser- vações sobre um caso de neurose obsessiva"].66 Ele responde a essa questão dizendo: os obsessivos reconhecem "não poder se desfa- zer da crença na onipotência de seus pensamentos, de seus senti- mentos, de seus desejos bons ou maus".67 Freud se interroga sobre esse sentimento de onipotência, bem como sobre a base que o sus- tenta. Para ele, a passagem do princípio de prazer ao princípio de realidade é essencial para compreender o desenvolvimento do ego. Se, para Freud, é inconcebível imaginar uma organização sub- metida ao princípio de prazer, para Ferenczi trata-se de descobrir uma etapa do desenvolvimento humano onde essa perspectiva se realiza "não apenas na imaginação e aproximativamente, mas na realidade e efetivamente". É o estado em que o ser humano é ainda mais que um parasita no ventre da mãe, pois mesmo um verme in- testinal, na comparação feita por Ferenczi, deve fazer muito mais esforço para modificar o mundo exterior em relação ao feto que não precisa fazer nada para se desenvolver. É o "período da oni- potência incondicional". Para Ferenczi, o estado do feto nesse pe- ríodo permanecerá o estado que atrairá constantemente o ser hu- mano, não importa o estado de seu desenvolvimento. Em alguns trabalhos posteriores, ele falará mesmo de uma "pulsão de regres- são maternal".68 É em relação a esse período de onipotência incondicional, que supõe uma vida psíquica intra-uterina (o que para Ferenczi é evi- dente), que ele descreverá todas as outras etapas do desenvolvi- mento. O recém-nascido se acomoda antes mal que bem ao novo estado, no qual repentinamente ele é obrigado a toda uma série de esforços, como respirar. O primeiro desejo da criança só pode ser o de se reencontrar na situação de antes do nascimento. Os gritos e os gestos do recém-nascido, tão inadequados quanto possam ser, desencadeiam nos circunstantes toda uma série de cuidados para levá-lo a sentir-se em um estado tal em que ele poderia reencon- trar o estado de felicidade perdido. Contudo, não compreenden- do nada do que se passa ao seu redor, a criança deve se sentir "de posse de uma força mágica capaz de realizar efetivamente todos os seus desejos apenas pela representação de sua satisfação" por um "reinvestimento alucinatório do estado perdido". É o "período da onipotência alucinatória mágica".69 Essa descrição em termos de fases é uma prova da anteriorida- de da introjeção em relação à projeção. É também um distancia- mento em relação à posição de 1909 (na qual a introjeção e a pro- jeção eram descritas como os processos fundamentais da neurose e da paranóia). Entretanto, a noção de "fase" em relação à de "processo" colo- ca alguns problemas. Descrita como fase de onipotência, a introje- ção seria um estado de partida. Em seguida, tratar-se-ia sempre da perda de um território indevidamente ocupado. De outro modo, a introjeção concebida como processo seria a possibilidade de uma expansão do ego enquanto modelo iterativo da passagem do au- to-erotismo ao amor objetai.76 Da mesma forma que seguimos, no artigo de 1909, os avatares da transferência e do deslocamento como os avatares da introje- ção, nesse artigo de 1913, por fidelidade ao texto ferencziano, de- vemos, por ora, seguir os avatares da onipotência como os avata- res da introjeção. A passagem de uma fase de introjeção a uma fase de projeção leva Ferenczi a falar de um período animista77 de apreensão da rea- lidade: um período em que a ligação entre eu e náo-eu não foi ain- da decidida. É o período no qual a criança investe o mundo exteri- or "das qualidades que ela descobriu em si-mesma, isto é, das qualidades do ego ... na qual toda coisa se apresenta a ela como animada e na qual ela tenta reencontrar em toda coisa seus próprios órgãos ou seu funcionamento".78 Após ter adquirido a capacidade de estabelecer relações sim- bólicas79 e a capacidade do simbolismo verbal,80 a criança vai ser satisfeita pelos seus circunstantes como o foi nas etapas anteriores. É o "período dos pensamentos e palavras mágicas". Ferenczi rela- ciona a esse período a regressão dos neuróticos obsessivos, bem como os pensamentos e fórmulas verbais que mantêm seu senti- mento de onipotência. É também o período ao qual se ligam as su- perstições e a magia pelas fórmulas verbais, por exemplo as rezas. Enfim, partindo dessas considerações, pode-se dizer que a in- fância do homem é caracterizada por essa ilusão de onipotência que acaba apenas quando "a criança está completamente desligada de seus pais no plano psíquico, segundo Freud".81 É então que a onipotência cede lugar ao reconhecimento das circunstâncias e atinge seu apogeu na ciência. Reconhecer que "nossos desejos e nossos pensamentos são condicionados significa o máximo de projeção normal e a passagem da fase de introjeção (onipotência) à fase de projeção (realidade)".82 O artigo que examinamos aqui foi escrito no quadro da prime- ira tópica. Vê-se o rigor com o qual Ferenczi mantém a discrimina- ção entre as pulsões do ego e as pulsões eróticas. Ele fala de um descompasso entre os estádios de desenvolvimento da realidade (em termos de "pulsões do ego") e a sexualidade, do fato de que a realidade estabelece relações mais profundas com o ego do que com a sexualidade, porque esta pode se abster mais tempo da rea- lidade, pela possibilidade de uma satisfação auto-erótica; em vista disso, "a sexualidade permaneceria toda a vida antes submetida ao princípio de prazer, enquanto o ego sofreria a mais amarga das de- cepções por qualquer desconhecimento da realidade".83 Se consi- deramos que o auto-erotismo e o narcisismo são os estádios da onipotência do erotismo, e que jamais se abandona o narcisismo, do ponto de vista da sexualidade, podemos conservar por toda a vida a ilusão de onipotência. A seqüência dessas considerações se encontra em "Le développement du sens de réalité érotique et ses stades".84 0 complemento ao desenvolvimento do sentido de realidade: o desenvolvimento do sentido de realidade erótica Judith Dupont, grande leitora de Ferenczi, diz, em sua introdu- ção ao terceiro volume das Obras completas do autor, que Thalassa é uma publicação um pouco marginal no conjunto de sua obra.85 Outros autores, como Lacan, consideram Thalassa um "delírio bio- lógico".86 Freud, em uma nota acrescentada em 1924 ao Trois essais sur Ia théorie sexuelle [Três ensaios sobre a teoria sexual], fala de um "escrito (Thalassa) seguramente aventuroso, mas de uma extrema fineza de Ferenczi, no qual este faz derivar a vida sexual dos animais superiores da história de sua evolução biológica".87 Seria difícil saber em que Thalassa poderia não ser uma obra central no conjunto dos escritos de Ferenczi. Encontram-se nela os grandes eixos de sua construção teórica e alguns conceitos que se- rão a chave de seu pensamento: a "anfimixia", a "pulsão de regres- são maternal", suas primeiras considerações sobre o trauma (tema polêmico ainda hoje), a fundamentação e o desenvolvimento de seus pontos de vista filogenéticos, o método "utraquístico",88 suas considerações sobre o símbolo etc. Esses temas retornarão, aliás, nos seus últimos escritos, isto é, em seu Journal clinique [Diário clínico]. A leitura que Ferenczi nos dá de Trois essais sur Ia théorie sexu- elle de Freud é uma indicação desse lugar particular que ele ocupa em relação às descobertas freudianas: ele toma as teorias e os pon- tos de vista de Freud como fatos estabelecidos, e pensa com base nesses fatos.89 No começo do capítulo "Le développement du sens de réalité érotique et ses stades", de Thalassa, Ferenczi diz que se trata de um complemento às idéias que ele desenvolveu em seu artigo "Le développement du sens de réalité et ses stades". Para nosso objetivo - o estabelecimento de uma história do conceito de introjeção para discernir as raízes psicanalíticas do pensamento de Nicolas Abraham -, esse capítulo de Thalassa é mais que um complemento; é uma parte essencial para compreen- der o papel do conceito de introjeção no pensamento de Nicolas Abraham.90 Poder-se-ia dizer que a idéia central desse texto é que, a partir de Freud, as fases de desenvolvimento da sexualidade seriam uma série de tentativas, de início titubeantes e canhestras, depois cada vez mais explícitas, de retornar ao ventre materno, enquanto a fase termi- nal de toda esta evolução, o desenvolvimento da função genital, re- presenta o paralelo erótico da "função de realidade", isto é, o acesso ao "sentido de realidade erótica"91 ... Pois o ato sexual permite o re- torno real, ainda que parcial, ao útero materno.92 Para demonstrar essa idéia, Ferenczi se servirá dos conceitos de "anfimixia"93 e de "relações simbólicas", dos quais já havia in- Ferenczi, deve-se reter o que permitirá a Abraham & Torok con- cluir que o processo de introjeção leva à independência em relação ao objeto. A fase seguinte, o período de masturbação, é considerada por Ferenczi "a primeira fase que desencadeia a primazia da fase geni- tal".102 Pode-se seguir o deslocamento da agressividade, da fase oral até a fase genital, passando pela fase sádico-anal. A equação criança-fezes é substituída pela equação criança-pênis. E, em de- corrência da bissexualidade, observa-se a criança desempenhando subjetivamente o duplo papel masculino e feminino. Após essa fase, segundo Ferenczi, veremos a criança com uma arma ofensiva muito mais adequada: o pênis erétil perfeitamente capaz de encontrar o caminho da vagina materna. O objetivo principal de Ferenczi, no texto que examinamos, é demonstrar que em todas as fases do desenvolvimento erótico en- contra-se a pulsão de regressão maternal. Com a introdução do conceito de anfimixia dos erotismos ou das pulsões parciais no pensamento de Ferenczi, os afetos livremente flutuantes, que são originalmente um problema econômico, se tornam uma mistura de múltiplos erotismos parciais constituindo unidades progressi- vamente mais abrangentes, e terminam por concernir o organismo inteiro, na fase genital. Para Ferenczi, nesse conceito, não se trata apenas de constituir unidades mais abrangentes, mas também de passar a um estádio mais elevado do desenvolvimento. Pode-se ver aí, também, a ação de múltiplos processos de introjeção. Cada vez que ocorrer uma mistura de erotismos, novas representações de pulsões se apresentam ao ego, que deve se expandir para poder encontrar os meios de satisfação; o que acarreta um desenvolvi- mento do sentido de realidade e de realidade erótica obrigando o desenvolvimento de novos grupos de sinais, cada vez mais com- plexos, como se pode observar no artigo "Le développement du sens de réalité et ses stades". A partir dessas considerações, po- de-se supor a existência no raciocínio ferencziano de um nível que se poderia denominar iniciático: cada vez que uma nova constela- ção anfimíctica de pulsões se organiza, é toda a tópica que é colo- cada em questão e que deve se transformar.103 Il O CONCEITO DE INTROJEÇÃO NA OBRA DE NICOLAS ABRAHAM E MARIA TOROK Um ponto nunca abordado na obra de Nicolas Abraham e Maria Torok: a distinção entre transferência e introjeção Vimos que o conceito de introjeção foi isolado a partir do conceito de transferência, tal como ele aparece na leitura ferenc- ziana do caso Dora104 ("Transfert et introjection"105 e "Le con- cept d'introjection").106 Esse conceito sofreu uma importante transformação a partir da leitura ferencziana de "Formulations sur les deux principes du cours des événements psychiques"107 ("Le développement du sens de réalité et ses stades"108 e "Le déve- loppement du sens de réalité érotique et ses stades".)109 O conceito de introjeção, no artigo de Ferenczi de 1909, apa- rece quase como indistinguível do de transferência. Na seção I deste capítulo, vimos que nessa época Ferenczi dizia simplesmente que a transferência dizia respeito ao que se passava na sessão analí- tica e que, fora da sessão, os mesmos fatos diziam respeito ao con- ceito de introjeção. Mesmo se, ulteriormente, na obra de Ferenczi, introjeção e transferência se tornam indissociáveis, seria útil, aqui, precisar a distinção que as diferencia, ainda mais porque em ne- nhuma parte de sua obra Nicolas Abraham e Maria Torok se de- têm nesse aspecto. A assimilação dos dois conceitos (transferência e introjeção) em um só (quer seja o alvo o analista ou não) é inaceitável para Neyraut.110 O argumento que ele utiliza é de ordem essencialmen- te clínica: se a análise da transferência tem por efeito principal destruí-la, não se pode analisar a transferência como se analisa a introjeção. Se o conceito de introjeção foi definido por oposição ao de projeção, eles não têm, contudo, o mesmo valor. A introje- ção não pode ser apagada pela análise, em razão de seu caráter de- finitivo e, "se quisermos, nutritivo".111 Entretanto, a análise pode chegar a um apagamento da projeção, ao seu aniquilamento. Nesta abordagem eminentemente clínica, seria proveitoso precisar o que Neyraut denomina transferência: Chamamos transferência o momento em que o sujeito mostra a seu analista alguma coisa, como ele a mostrou outrora a alguém, que pode ser o ideal do ego por exemplo, e não-transferência o fato que ele tenha outrora perdido, encontrado, reencontrado, guardado etc. alguma coisa.112 A transferência é, pois, um momento distinto de qualquer ou- tro. Não apenas porque se trata de um presente em relação a um passado, mas sobretudo por causa de sua localização geográfica única, ou seja, o espaço analítico. Nesse espaço, caracterizado pela presença de alguém que é chamado de analista e que no tratamen- to analítico tem o valor de um substantivo comum e de um nome próprio,113 se constitui um campo no qual esse ato de mostrar al- guma coisa se reveste do caráter não de uma repetição, mas de uma metáfora de alguma coisa que se passou outrora e em algum outro lugar. Se, como diz Neyraut seguindo Freud, uma análise tem um fim quando o analista e o analisando se separam, esse es- paço dito analítico é determinado por uma realidade que se impõe de uma maneira brutal e que instaura a perspectiva da morte, isto é, a morte da análise. Nesse sentido, existem, pois, um nascimento analítico, uma vida analítica e uma morte analítica. O fim da análise é, ao mesmo tempo, "uma metáfora da morte e um fim real".114 A situação analítica se encontra portanto limita- da por essa morte analítica, que dará ao processo analítico "uma dinâmica temporal própria em que a vida analítica com uma morte analítica são os parênteses numa verdadeira vida e uma verdadeira morte".11S No decurso desse parêntese na vida, isto é, a situação analítica caracterizada pelo fenômeno da transferência, a introjeção pode ser claramente distinguida, e não se poderá mais confundi-la com a transferência. Na transferência, assiste-se a um processo específi- co: os obstáculos presentes e ligados ao quadro da situação analíti- ca se opõem à repetição dos conflitos infantis. Para que essa repe- tição se torne realidade, o analisando deve negar a realidade da situação analítica e a situação transferenciai que se instaura nela. com base em Ferenczi é apenas uma das diretivas maiores desen- volvidas pelos autores a partir desse texto. O artigo de 1963, "Le 'crime' de 1'introjection", começa por esta afirmação: "em todas as análises, está-se confrontando de uma maneira ou de outra com a noção de culpabilidade".124 Essa observação, a partir de uma constatação clínica, nos coloca no ponto de partida de um esforço de construção teórica bastante complexo. A sessão analítica é o lugar privilegiado onde se pode "ler" a obra de Nicolas Abraham. É talvez o único "lugar" onde seus escritos podem ser "lidos". A partir dessa observação inaugu- ral, até a revisão do caso do Homem dos Lobos e suas surpreen- dentes conclusões, estamos sempre numa sessão analítica. Come- ça-se o raciocínio a partir de um sonho: Eu sonhei: experimentava uma profunda angústia de ter matado uma mulher, de tê-la enterrado, de despedaçá-la. Não sabia quem era ela. Eu não sei. Como se tivesse enterrado um pecado. Em relação à minha mãe eu me sentia misteriosa, escondia minha hostilidade. Nin- guém suspeitava de mim, apenas eu sabia sobre esse rancor ... O cadá- ver representando minha falta ... Alguma coisa que eu devo ter escon- dido de minha infância. Na tumba de meu pai, eu queria estar sozinha, completamente só com ele.125 Nicolas Abraham tem uma abordagem parecida com a de Fe- renczi a propósito de um sonho de uma paciente, que ele conta em seu artigo de 1909 ("Transfert et introjection"). Nesse artigo, Fe- renczi dá um exemplo da maneira pela qual a transferência pode ser desencadeada (nos neuróticos) pelos fatos mais simples e insig- nificantes: Uma paciente histérica, que recalcava e negava veementemente sua sexualidade, traiu pela primeira vez sua transferência sobre o mé- dico num sonho; eu efetuo (em minha condição de médico) uma ope- ração no nariz da paciente que tem um penteado "à Cléo de Méro- de".126 E Ferenczi acrescenta: Qualquer um que já tenha analisado sonhos admitirá sem outras provas que eu ocupava no sonho, como provavelmente também nas fantasias diurnas inconscientes da paciente, o lugar de um otorrinola- ringologista que lhe havia feito, em certa ocasião, investidas sexuais; o penteado da célebre prostituta é uma alusão bastante clara. Quando o médico que está cuidando aparece nos sonhos, o ana- lista distingue os sinais seguros da transferência...127 O comentário desse sonho é bastante claro: trata-se de uma contradição, de parar de mentir, de confessar uma falta. Do fato de que a própria paciente "pela primeira vez traiu sua transferên- cia" nos mostra que havia uma expectativa. O analista já esperava esse acontecimento, não podia acontecer de outra maneira. Havia então uma pressuposição; isto é, a contratransferência do analista que precedia a transferência da paciente. Quando a transferência da paciente aparece, há já uma longa expectativa na sessão. Quan- do a resposta à expectativa chega, a teoria do analista se confirma. E o alívio de ver que a teoria se confirmou.128 Neyraut distingue o que ele denomina o "plano analítico"129 de "o plano especificamente transferenciai".130 Sobre este último plano, segundo sua própria definição da transferência, há uma se- dução: "sonhar ser Cléo de Mérode traduz o desejo de uma mu- lher sedutora, e dizê-lo sobre o divã analítico é uma sedução".131 Da mesma forma que Ferenczi, Nicolas Abraham considera o sonho a prova de um "crime". É sobre o plano analítico, segundo a terminologia de Neyraut, que Nicolas Abraham vai desenvolver a argumentação de seu artigo de 1963: "Quanto mais longe se possa remontar na análise, de recordação em recordação, o 'crime' se verifica como já tendo sido cometido".132 Compreende-se que ele implica uma via que lembra a de Freud na "Traundeutung". O que se destaca desse artigo são os aspectos contratransferenciais, pelos quais Nicolas Abraham tenta encontrar as "boas" questões, a uma "boa" distância: Sem dúvida, o "crime" é imaginário, mas reduz-se ele por isso à pura e simples fantasia? Uma fantasia basta por si só para pesar sobre nossa vida, por vezes com um peso trágico? Ou, ao contrário, não deveríamos procurar por trás do que em suma é apenas linguagem, apenas uma maneira de dizer, alguma reali- dade mais profunda e que permita esclarecer o porquê disso que a fantasia apenas diz?133 Essas questões formuladas por Nicolas Abraham darão a esse artigo um caráter de introdução ao conceito de introjeção. Muitos artigos de Nicolas Abraham têm, por sua vez, esse caráter de intro- dução: "La présentation de Thalassa" ["Apresentação de Thalas- sa"]134 será uma introdução ao seu artigo "Le symbole ou l'au-delà du phénomène" ["O símbolo ou para além do fenômeno"];135 "Pour introduire L'instinct filial" ["Para introduzir O instinto fi- lial"]136 será uma introdução à suas considerações sobre a unidade dual e a fantasia; "Qui est Mélanie Klein?" ["Quem é Mélanie Kle- in?"]137 pode ser considerado uma tomada de posição política e ética.138 Jacques Derrida, por sua vez, consagrou duas introduções à obra de Nicolas Abraham: "Fors" ["Fora"]139 para Le verbier de l'homme aux loups e "Moi - la psychanalyse" ["Ego - a psicanáli- se"]140 para o artigo "L'écorce et le noyau" quando de sua publica- ção em inglês. Para Nicolas Abraham (como para Derrida, aliás), a "introdução" não é uma atividade secundária, mas uma ocasião em que se pode esboçar um novo campo de pesquisas e, sobretu- do, a ocasião em que se manifesta a especificidade da abordagem de Nicolas Abraham, quando ele trata de formular questões fun- damentais; como na primeira frase de seu artigo "Le symbole ou l'au-delà du phénomène": no limiar dessa investigação dita "fundamental", não saberíamos dis- simular uma certa angústia. Entre o ponto de partida, o símbolo como fato psicanalítico, e o ponto de chegada, o símbolo como estru- tura do universo, o caminho percorrido é repleto de ciladas. Teremos evitado todas? Acreditar nisso seria uma vã e louca pretensão.141 Fundamental é, então, aqui, um termo que deve ser considera- do com toda a sua espessura filosófica e sobretudo com o peso da fenomenologia husserliana, da qual Nicolas Abraham é um leitor meticuloso; como ele próprio afirma: nossa tarefa foi empreendida sob a inspiração de nossos mestres espi- rituais, Freud, Husserl, Ferenczi. Devemo-lhes tudo, incluindo a co- presa vê-lo fazer alusão ao pecado, e sobretudo ao pecado origi- nal. Se não, vejamos o que diz Nicolas Abraham na seqüência: "É, pois, a voluptuosidade que se enquista no crime imaginário. Será preciso responder à questão: por que sempre o crime, por que a culpabilidade?".147 Nesse artigo, que serve de introdução à elaboração do concei- to de introjeção, Nicolas Abraham toma uma posição oposta a toda tentativa de aproximar psicanálise e dogma religioso, mesmo disfarçado.148 Ele escreve: Existe pelo menos um - mesmo mais de um - mito do Paraíso perdido. Eles ensinam que antes do pecado original reinava um esta- do de felicidade. Existem psicanalistas, igualmente, para afirmar que antes dos traumatismos, das frustrações e dos sofrimentos inerentes ao nosso desconsolo, à nossa imaturidade, à rudeza de nossa condi- ção aqui embaixo, outrora, no Ventre, nós conhecemos a felicidade, a felicidade suprema, a perenidade orgástica. Então, a felicidade seria co-essencial à inocência, a ignorância à graça. Reconhece-se, aí, uma transposição apenas laicizada do mito bíblico.149 Se tomarmos o mito do pecado original, seja em sua versão bí- blica seja em sua versão "psicanalítica", ou qualquer outro mito, podemos dizer que seu papel é de esconder e de realizar um dese- jo. Nicolas Abraham dá a sua interpretação: O que ... é escamoteado é a alegria de viver fora dessa morna felici- dade paradisíaca, fora desse aquário climatizado, é a voluptuosidade de morder a maçã da ciência, é o prazer propriamente orgástico de acordar-se e de acordar o mundo, prazer que, como crianças, nós to- dos vivemos e que vivemos a propósito mesmo de experiências ditas ruins, contanto que elas tenham permitido encontrarmo-nos.150 Nessa passagem, aparentemente anódina, nada é gratuito. De- ve-se notar a oposição entre uma abordagem dessexualizada e uma abordagem psicanalítica, na qual a sexualidade ocupa um lugar central. A uma "felicidade paradisíaca" opõe-se um "prazer orgás- tico". Essa oposição tão simples, mas essencial, atravessará toda a obra de Nicolas Abraham e Maria Torok. Como exemplo, pode-se citar a abordagem que Maria Torok faz da "inveja do pênis" na mulher,151 ou do luto patológico,152 ou ainda o problema do gozo no Homem dos Lobos.153 Se considerarmos a interpretação que Ferenczí faz da mordida e dos dentes no "Le développement du sens de réalité et ses stades" e no capítulo "Le développement du sens de réalité érotique et ses stades", em Thalassa (onde os den- tes154 são vistos como os primeiros meios de penetração no corpo da mãe), simbolizados nas etapas posteriores do desenvolvimento pelo pênis, encontramo-nos num desenvolvimento psicanalítico em que a sexualidade e o orgasmo são de uma importância seme- lhante apenas à que aparece na obra de Wilhelm Reich, evidente- mente sem a normatização e a reificação que ali se encontra. Porém, a opção laica, por oposição à posição religiosa, implica uma declaração tão clara quanto surpreendente da parte de Nico- las Abraham; trata-se aí da implicação pessoal do autor, uma de- claração ética: "tendo chegado a esse ponto de franqueza, a pro- blemática da origem da culpabilidade toma um sentido preciso e poder-se-á tentar, a partir disso, algum esclarecimento".155 A essa altura, não se pode mais duvidar. Trata-se simplesmente de dizer que a posição e a atitude do analista determinarão a se- qüência da investigação. Elas poderão também esclarecer a origem da culpabilidade. Essa posição e essa atitude vão ser encontradas no último artigo de Ferenczi de 1933 - "La confusion de langue entre les adultes et 1'enfant".156 O termo franqueza empregado por Nicolas Abraham se encontra também nesse artigo bastante controvertido de Ferenczi. Nesse artigo, com base em considera- ções eminentemente clínicas, Ferenczi estuda as críticas que os pa- cientes não têm coragem de dirigir ao analista. Para ele, "uma grande parte da crítica recalcada diz respeito ao que se poderia chamar de hipocrisia profissional".157 É essa hipocrisia profissional que separa a pretendida boa vontade do analista em relação ao pa- ciente da "realidade [onde] pode ser que certos traços, externos ou internos do paciente, nos sejam dificilmente suportáveis".158 Nes- se tipo de situação, a solução ferencziana é a seguinte: "eu não vejo outro meio senão tomar consciência de nosso próprio incômodo e falar com o paciente, de admiti-lo não apenas como possibilidade, mas também como fato real".159 Esse procedimento não se apóia em nenhuma consideração de ordem moral. Ele está ancorado numa constatação analítica: "a hipocrisia profissional e a antipatia em relação ao paciente que se dissimula por trás dela, e que o paci- ente sente claramente, não diferem essencialmente do estado de coisas que outrora, ou seja, na infância, tornou-o doente".160 A franqueza, termo empregado por Nicolas Abraham, deve ser con- siderada a pedra angular, a referência, para continuar a investiga- ção à qual ele se propõe. É, pois, em torno da questão da franqueza, a partir dessa confi- dência terapêutica que postula Ferenczi e de sua própria impossi- bilidade, que Nicolas Abraham vai desenvolver sua argumentação sobre a culpabilidade: o que se opõe à culpabilidade é a inocência. É preciso tomar esse ter- mo em seu derradeiro sentido, como quando se fala do inocente da cidade. O inocente é aquele que é feito de uma só peça, que ignora a duplicidade e, no limite, a linguagem propriamente dita. Culpado se- ria então quem não escapou à duplicidade, quem se serve da lingua- gem.161 O inocente seria então aquele que realizaria o sonho impossí- vel de um sujeito não dividido; a duplicidade162 implicaria, como diz Descombes, os "dois sentidos dessa palavra: estado do que é duplo, e de outra parte, hipocrisia e mentira".163 Segundo Nicolas Abraham, se observarmos as coisas desse ângulo, estamos numa pesquisa psicanalítica propriamente dita. Procurando a origem da culpabilidade, do "crime" da introje- ção, formula-se a questão da própria origem da duplicidade e da linguagem. Nesse artigo de Nicolas Abraham (que, como vimos, é um esboço de pesquisa, uma introdução ao estudo do conceito de introjeção), encontram-se os instrumentos essenciais que serão utilizados por ele ao longo de toda a sua elaboração, que começa em 1963 e vai até 1976. Eis, então, uma nova tomada de posição psicanalítica por par- te de Nicolas Abraham: Ora, sabemos que o que torna a duplicidade inelutável é a ruptu- ra da simbiose que liga, no começo, a criança à mãe. Em oposição a toda outra teoria, tenho como adquirido que essa ruptura não é nem um fato de abandono, de frustração, de escansão ou de desmame, mas Na primeira parte desse artigo de 1963, Nicolas Abraham pro- cura esboçar as relações entre introjeção e culpabilidade. Para ele, interiorizar uma relação, instalar em si-mesmo um objeto que serve de referência para a apreensão do objeto externo, supõe efetivamente que tenhamos a faculdade inata de ser sujeito e objeto para nós-mesmos. Toco meu pálato com minha língua, escuto o som que emito, vejo o movimento de minhas mãos que movo - de imediato, eu sou dois em um. Para o bebê, um dos pólos dessas dualidades fundamentais se tor- nará o equivalente simbólico do objeto. São esses os seus instrumen- tos de introjeção.172 Nicolas Abraham recorre a uma faculdade inata, como ele já havia feito a um processo natural, para explicar a ruptura com a mãe. A faculdade inata se refere tanto à duplicidade inerente à dua- lidade sujeito-objeto quanto à capacidade de estabelecer relações simbólicas. Segundo Abraham, o processo de introjeção não deve em ne- nhum caso ser confundido com um adestramento. Introjeção e adestramento são radicalmente distintos.173 A educação esfincteria- na da criança não é o efeito de um adestramento, mas o resultado da interiorização, da "instalação em si do personagem que coman- dará a abertura e o fechamento esfincterianos. E é precisamente aí que se situa o momento erótico próprio ao estádio anal".174 A educação esfincteriana é, então, de uma só vez, o resultado de uma introjeção e um ato erótico. Abraham adianta que a partir do "Le développement du sens de réalité et ses stades" e da clínica pode-se "sustentar que o ato propriamente dito da introjeção é uma prefiguração analógica do coito; isso quer dizer o seguinte: o objeto interno foi instalado por um ato eminentemente erótico, e por um ato igualmente erótico se opera a verificação reiterada da conformidade do introjeto a seu homólogo externo".175 Explicando o processo de introjeção como uma prefiguração do coito, Nicolas Abraham radicaliza os avanços ferenczianos apresentados no "Le développement du sens de réalité et ses sta- des" e no capítulo de Thalassa, "Le développement du sens de réalité érotique et ses stades", pois o coito é inscrito na própria origem da constituição do ego arcaico, o que constitui uma conse- qüência do processo de introjeção, em relação ao apresentado por Ferenczi. É sobre a pulsão de regressão maternal ferencziana que se apóia a intuição de Nicolas Abraham. Como vimos no nosso co- mentário desses textos de Ferenczi (na seção I deste capítulo), essa pulsão é, para ele, universal. Ela desempenha um papel determi- nante no desenvolvimento, seja no desenvolvimento do sentido de realidade seja no de realidade erótica. Ela é, a um só tempo, o fa- tor regressivo de toda iniciativa pulsional e um testemunho cons- tante do princípio de prazer, segundo os termos do texto freudia- no "Formulations sur les deux principes du cours des événements psychiques".176 Seguindo o texto ferencziano, poder-se-ia cair em uma apa- rente sideração considerando a luta entre princípio de prazer e princípio de realidade que aparece nas relações simbólicas crian- ça-fezes, criança-pênis, dente-pênis; e é por intermédio da pulsão de regressão maternal e da onipresença do princípio de prazer que Nicolas Abraham realiza essa radicalização situando o coito logo no primeiro momento da constituição do ego. Nicolas Abraham insiste: "vê-se então o ponto de articulação próprio ao introjeto: ele provém de uma relação inocente, ele efetua o desdobramento do objeto e, após, na duplicidade, ele se torna o instrumento de antecipação de uma relação não-inocente".177 É o que estabelece a ligação entre erotismo e culpabilidade, entre voluptuosidade e cul- pabilidade essencial. A distinção entre a introjeção de pulsões e a incorporação de objeto no "La maladie du deuil et le fantasme du cadavre exquis" de Maria Torok Os autores de L'écorce et le noyau e do Verbier de 1'homme aux loups são particularmente econômicos em referências bibliográfi- cas; o que confere à sua obra um estilo particular. Sobressai uma acuidade clínica, e também uma radicalização, uma transformação dos conceitos dos textos aos quais eles se referem. Em seus escri- tos, vêem-se a atividade clínica, o interesse pelas preocupações que Ferenczi assinala em seu Journal clinique, suas constantes ten- tativas de inovação técnica. Eles consideram a clínica o fio condu- tor de todo procedimento psicanalítico. Seu estilo seduz pela sen- sação que nos proporciona de estarmos sempre diante de uma pesquisa em curso, uma situação inusitada, um problema a resol- ver, um enigma a decifrar. Contudo, o estilo dificilmente se adap- ta a um trabalho de análise acadêmico; e freqüentemente tem-se a impressão de que ele não se ajusta a uma exposição ordenada ou pedagógica. Essa segunda parte do trabalho de elaboração do conceito de introjeção, por Maria Torok, pode ser o exemplo da dificuldade que abarca sua obra. As considerações e as conclusões clínicas to- mam tal magnitude que somos obrigados, por vezes, a seguir um raciocínio que começa pela clínica e que termina por uma conside- ração metapsicológica. Seria trair o espírito de seu artigo tentar enquadrá-lo em limites teóricos rígidos. É um artigo como os clás- sicos (os casos clínicos de Freud, o pequeno homem-galo de Fe- renczi, ou a análise de uma criança por Klein). É preciso ainda mencionar dois textos, para que melhor se compreenda esse trabalho de Maria Torok: o de Karl Abraham, "L'esquisse d'une histoire du développement de la libido basée sur la psychanalyse des troubles mentaux" ["Esboço de uma história do desenvolvimento da libido baseada na psicanálise das perturba- ções mentais"]178 e o de Freud, "Deuil et mélancolie",179 além dos textos fundadores de Ferenczi que apresentamos na seção I deste capítulo. Somente tendo presentes os textos de Karl Abraham e de Freud, bem como os de Ferenczi sobre a introjeção (de 1909180 e de 1912181) é que se poderá apreender os dois eixos do artigo de Ma- ria Torok. O primeiro eixo refere-se a um problema aparentemente cir- cunscrito, o do luto patológico. A partir daí, descobre-se o segun- do eixo, o da distinção entre introjeção e incorporação. Essa distinção é feita pela primeira vez nesse artigo. Trata-se, portanto, de um texto inaugural. "Maria Torok afirma que a in- ta que: "reconhecemos aqui o mesmo desenrolar psicológico que na afecção melancólica. Voltaremos em seguida para o fato de que a melancolia é uma forma arcaica de luto. A observação preceden- te nos permite observar que o trabalho de luto do sujeito normal se efetua sob a forma arcaica nas camadas psíquicas profundas".188 Existe, contudo, uma diferença entre o luto do sujeito normal e o luto do sujeito melancólico. Segundo Karl Abraham, a cons- ciência do sujeito normal jamais será transbordada, como a do me- lancólico. Ele diz que "a introjeção melancólica ocorre sobre a base de uma perturbação fundamental da relação libidinal ao obje- to. Ela é a expressão de um conflito ambivalente no qual o ego só consegue se entrincheirar tomando para si a hostilidade que se re- fere ao objeto".189 Nessas considerações sobre a melancolia, Karl Abraham situa a introjeção e seus avatares no centro de suas cogitações. Apoiando-se no artigo de Freud: "Psychologie des masses et analyse du moi" ["Psicologia das massas e análise do ego"], Karl Abraham considera que a introjeção desempenha um papel muito mais importante do que "havíamos admitido até agora ... na psico- logia humana".190 Em certos casos de homossexualidade, haveria uma introjeção do progenitor de sexo oposto, como "um jovem que teria tomado sua mãe em si por um mecanismo psicológico de incorporação e reagia aos homens como ela, daí em diante".191 Observamos que os termos "introjeção" e "incorporação" são empregados indistintamente. Referindo outro caso clínico, Karl Abraham diz que se trata de alguma coisa que "merece o nome de introjeção".192 É importante lembrar aqui esse caso193 para seguir o raciocí- nio de Karl Abraham. O que ele nos diz desse caso é retomado por Maria Torok como um exemplo dessa confusão que se faz entre introjeção e in- corporação; termos, precisamente, que ela vai procurar distinguir. Em sua conclusão, Karl Abraham diz que existe uma distinção entre o homem normal e o melancólico, quando de uma perda ob- jetai. No homem normal, a perda objetai "afasta facilmente os sen- timentos hostis em favor da ternura"; no melancólico "o conflito de ambivalência da libido é tão grave que todo sentimento de amor é imediatamente ameaçado de seu contrário. Qualquer 'fa- lha', uma decepção em relação ao objeto de amor favorece, a qual- quer momento, uma onda de ódio que submerge os sentimentos de amor excessivamente lábeis. A perda do investimento positivo conduz aqui a uma conseqüência maior: à renúncia ao objeto".194 Nesse caso, não melancólico para Karl Abraham, a perda real foi a primeira e implicou uma modificação libidinal. Maria Torok, por sua vez, nota que Karl Abraham falou muito pouco do aspecto eco- nômico: o incremento libidinal195 relatado pelo paciente quando da morte de sua mãe. Essa observação é o ponto de partida da pesquisa de Maria To- rok sobre o luto patológico. Ela diz que "todos os que se confes- sam ter vivido tal 'incremento libidinal' por ocasião da perda de um objeto o fazem com vergonha, espanto e o contam com hesita- ção e em voz baixa".196 Essa abordagem de Maria Torok, bem como seu cuidado de tomar partido por uma psicanálise que Nicolas Abraham denomi- na "profana"197 constituem os pontos de referência, clínico e teó- rico, de "Maladie du deuil et fantasme du cadavre exquis". A argumentação de Maria Torok é fundada sobre os dados clínicos que ela desenvolve. Citamos a seguir um desses dados clínicos: 1) Minha mãe estava lá, morta. E eu, no momento em que deve- ria viver o máximo de dor, em que deveria estar mais abatido, toma- do de lassitude, em que os membros, braços e pernas deveriam cair, o corpo inteiro se prostrar - sinto-me mal em dizer - experimentei sen- sações, sim, sensações físicas. 2) Nunca me perdoei nada. No dia da morte de meu pai, tive uma re- lação com meu marido. Foi a primeira vez que conheci o desejo e a sa- tisfação. Pouco depois nos separamos porque... (e aqui ela dá algumas "boas razões").198 Maria Torok analisa esses dados de maneira bastante diferente de Karl Abraham. Com base no artigo de Nicolas Abraham, "Le 'crime' de l'introjection" e na idéia de uma culpabilidade primária, como vimos anteriormente, a aflição da perda do objeto não é, para Maria Torok, o núcleo ao redor do qual se constitui o luto patológico, mas o sentimento de um "pecado irreparável", o peca- do de se sentir invadido de desejo. Segundo o artigo de Nicolas Abraham, poder-se-ia dizer que se trata aí da voluptuosidade ine- rente à introjeção. Uma segunda observação de Maria Torok, de alcance tópico e econômico: "de ter sido surpreendido por um transbordamento da libido, no momento menos conveniente, no momento em que se suporia dever se afligir e de se abandonar ao desespero".199 É a partir daí que Maria Torok vai desenvolver suas considerações sobre o luto patológico e sobre a distinção entre in- trojeção e incorporação. Na seção I deste capítulo apresentamos dois artigos fundadores de Ferenczi concernentes à introjeção ("Transferi et introjection" e "Le concept d'introjection"). Maria Torok fez uma leitura rigoro- sa desses dois textos e sublinhou alguns pontos que lhe permitem distinguir certas características do processo de introjeção. Segundo Maria Torok: A introjeção, tal como Ferenczi concebeu essa noção, comporta três pontos: 1o) extensão dos interesses auto-eróticos; 2o) expansão do ego pela suspensão dos recalcamentos; 3o) inclusão do objeto no ego e, por isso, "objetalização do au- to-erotismo 'primitivo'".200 Esses três tópicos cardeais podem ser facilmente compreendi- dos a partir do que vimos na seção I deste capítulo. Contudo, a críti- ca de Maria Torok se dirige aos autores que se servem do conceito de introjeção insistindo simplesmente no sentido mais "superficial: a tomada do objeto por incorporação".201 Vimos que Ferenczi criou o conceito de introjeção a partir do conceito de transferência. Vimos também que, para Ferenczi, o papel do analista era o de um catalisador, e o que ele empregava então era uma metáfora clínica. A esse propósito Maria Torok diz: O texto de Ferenczi subentende igualmente que a introjeção não pode ter por motor a perda efetiva de um objeto de amor. Não se for- çará em nada seu pensamento, afirmando que ela funciona à maneira de um verdadeiro instinto. Parecida com a transferência (seu modo por uma razão ou outra, fracassa. Diante da impotência do processo de introjeção (progressivo, lento, laborioso, mediatizado, efetivo), a incorporação se impõe: fantasista, imediata, instantânea, mágica, por vezes alucinatória.214 A referência de Maria Torok à magia é essencial em seu racio- cínio. Ela nos coloca no contexto do artigo de Ferenczi, "Le dé- veloppement du sens de réalité et ses stades". Vimos que, nesse artigo, ele fala dos períodos de onipotência incondicional, da oni- potência alucinatória mágica, da onipotência com a ajuda de ges- tos mágicos; tudo isso fazendo parte do que ele denominou fase de introjeção. A magia é, portanto, alguma coisa de essencial. Seja qual for o motivo da interrupção do processo de introjeção, o pro- cedimento incorporativo se desencadeia imediatamente, obede- cendo às leis do princípio de prazer, que constituem as determi- nantes próprias a essa fase de introjeção, segundo a terminologia de Ferenczi. Esse aspecto é também sublinhado por Derrida: A magia ... já é reconhecida, no artigo de 1968 ["Maladie du deuil et fantasme du cadavre exquis"], como o elemento mesmo da incor- poração. Anasemia da leitura: o novo conceito de incorporação nos diz assim mais sobre a magia do que a noção corrente de magia, po- de-se assegurar, viria ... esclarecer uma característica da incorpora- ção.215 Mesmo sem abordar a leitura anasêmica, que examinaremos num capítulo específico, deve-se reconhecer aqui que à magia as- sim caracterizada está designado um papel dinâmico próprio na etapa de desenvolvimento em que ela reaparece. Com esse papel dinâmico, deve-se reconhecer também que existem importantes repercussões da tópica, do fato de que um elemento mágico difi- cilmente se adapta a um ego que atingiu um nível mais próximo da realidade, ou que, segundo Ferenczi, atingiu a etapa de projeção, entendida como o estádio de realidade.216 Tendo como núcleo a magia, a incorporação é também, essen- cialmente, um procedimento de ocultação, que só poderia se de- senvolver no segredo. Esse termo deve ser retido pela importância que ele terá no desenvolvimento das considerações de Nicolas Abraham e Maria Torok concernentes à incorporação. Ele estará na raiz de dois conceitos primordiais de sua obra, a cripta e o fan- tasma, introduzindo outra distinção efetuada pelos autores: a dis- tinção entre recalcamento conservador e recalcamento constituti- vo, que veremos adiante. Segundo um procedimento caro a Nicolas Abraham e Maria Torok, seria útil lembrar a etimologia da palavra segredo tal como a apresenta Arnaud Lévy.217 Existe um parentesco etimológico en- tre "segredo" e "excremento". As duas palavras têm a mesma raiz latina cerno, que significa crivo, passar pelo crivo; operação de pe- neirar o grão que consiste em separar, graças ao crivo, o bom grão do resíduo ou peneirado (em latim excrementum). Os sentidos fi- gurados conservam a noção de separação, difere apenas o meio. Quando este é um órgão do sentido - a visão essencialmente - cer- no significa discernir, no sentido de distinguir um objeto ao longe. Quando a separação se faz pela inteligência, cerno significa discer- nir, no sentido de distinguir o verdadeiro do falso, o bem do mal. Assim, cerno significa decidir, julgar. Ex-cerno significa peneirar, evacuar por peneiração. O termo francês "excrétion" deriva daí. Excrementum, que designa o peneirado, mas que significa tam- bém dejeto, excremento, originou em francês o termo "excré- ment". Se-cerno, que significa separar, pôr de lado, originou dois termos franceses: "sécrétion" e "secret". Assim, secret e excrément têm um parentesco etimológico por sua raiz comum que veicula a idéia de separação, de triagem: o prefixo "ex" acentua o rejeitado, o prefixo "se" acentua o colocar à parte, com uma noção de con- servação. Lévy nos faz notar que é a forma, ou mais exatamente a conformidade do objeto ao orifício que vai determinar a passagem através da peneira. Existe, no peneirar, uma ligação entre a noção de forma e a de bom ou mau. O buraco da peneira é, pois, ligado a certo número de noções: função de orifício de deixar passar ou de reter, problema de forma e de conformidade, ligação determinan- te da forma à qualidade, problemática da comestibilidade. Como o contexto etimológico sugere, as noções não podem deixar de evocar a analidade. Uma parte ainda mais interessante do artigo de Lévy diz respei- to à avaliação semântica do conceito de segredo. O autor nos diz que: "essa análise nos levará um pouco mais adiante na via da ana- lidade. E, aqui, ainda, a conclusão pode se enunciar imediatamen- te: o segredo é um saber tratado sobre o modo anal, vivido como objeto anal".218 O conceito de segredo pode ser definido como um saber- escondido-do-outro. O conceito se decompõe em três elementos semânticos, todos necessários e suficientes para constituir o con- ceito: o saber, a dissimulação desse saber, a relação com o outro que se organiza a partir da recusa de comunicação do saber. As funções do segredo na relação com o outro são múltiplas. A fun- ção do poder é a mais evidente: o segredo é o que confere um po- der sobre o outro. O segredo desempenha assim o papel de um bem precioso,219 de alguma coisa da ordem do privado, do pessoal. O segredo é "o que o indivíduo possui como próprio,220 o que ele tem de mais pessoal, de mais íntimo, o que ele não pretende com- partilhar com outro". A descoberta do segredo pelo outro ou a sua apropriação pelo outro são vividas como uma despossessão, uma "perda freqüentemente trágica, trágica quando não se trata da perda de um bem eventualmente recuperável, mas de uma perda irremediável, definitiva. Inversamente, confiar um segredo a um amigo é uma prova de amizade, de confiança, um depósito sagra- do".221 Mas o segredo é também uma coisa má, fonte de vergo- nha. "A doença secreta, o segredo de uma infâmia, os segredos vergonhosos estão aí para nos lembrar essa função de mau objeto que desempenha também o segredo. Quando esse segredo é reve- lado, a vergonha surge e aparece a ofensa à integridade narcísi- ca."222 Para concluir esse percurso sobre o termo segredo, as fun- ções do segredo, segundo Lévy, seriam as funções ambivalentes do objeto anal, "através de suas funções, o segredo aparece como um saber vivido sobre o modo anal, como um saber com um valor de objeto anal na relação com o outro".223 Se a magia e o segredo são as características essenciais pelas quais se opera a incorporação, deve-se assinalar que a introjeção ocorre em condições opostas. Ela se serve da nominação e se faz "à luz do dia", como diz Maria Torok. Se, como vimos, a introjeção ocorre obrigatoriamente em rela- ção e na presença de um objeto, a incorporação recusa o "veredito Considerar a fantasia de incorporação um gesto de linguagem leva a considerá-la rigorosamente como a primeira mentira: a boca vazia preenchida de alucinação da presença do objeto é o pri- meiro gesto que pede imperativamente para ser decifrado. A boca cheia de alucinação quer dizer fome de introjeção,229 e apenas isso e nada mais que isso. Concluímos esse raciocínio, citando Maria Torok: Como linguagem que só faz significar a introjeção (e não reali- zá-la), a fantasia de incorporação pode entrar nos contextos mais va- riados e mais contraditórios: tanto pode significar um desejo de in- trojeção impossível (como a inveja do pênis), ou para dizer que a introjeção já ocorreu (demonstrações fálicas), como para indicar um deslocamento da introjeção (designar, por exemplo, a zona oral, en- quanto, de fato, outra zona é visada etc). Reconhecer na fantasia de incorporação uma maneira de linguagem dizendo o desejo de introje- tar é realizar um grande passo no tratamento analítico.230 NOTAS 1 Este trabalho foi concebido originalmente em francês. Para a versão em por- tuguês, seguimos os termos técnicos da psicanálise de Laplanche & Pontalis, 1998. Todas as citações dos autores mencionados foram traduzidas por nós com base na versão francesa. 2 Barande, 1972, p.53. 3 Rand, 1993, p.147. 4 Ibidem, p.148. 5 Ferenczi, 1968b, p.93-125. 6 Freud, 1968a, p.11-43. 7 Nota 32 de Strachey in Freud, 1986, v.XIV, p.130. 8 A "mentira" é, para Ferenczi, um conceito-chave. A maior parte dos concei- tos de Ferenczi tem a ver com a mentira. Esse termo aparece constantemente na sua obra teórica e também em seus escritos clínicos. Pode-se encontrar a "mentira" nas suas considerações sobre o trauma, do qual se conhece a im- portância em sua obra, e nas diferentes etapas do seu percurso clínico, princi- palmente na "técnica ativa"; em seguida, encontra-se nas reflexões sobre a neo- catarse e, por fim, no seu último artigo "Confusion de langue entre les adultes et 1'enfant" ["Confusão de língua entre os adultos e a criança"] de 1933 (Fe- renczi, 1982). 9 Ferenczi, 1968a, p.56. 10 Ferenczi, 1982a, p.125-39. 11 Ferenczi, 1968b, p.94. 12 Ibidem. 13 Abraham & Torok, 1987b, p.28. 14 Abraham & Torok, 1976. 15 Freud, 1992a, p.1-91. 16 Ferenczi, 1968b, p.93. 17 Ibidem. 18 Abraham & Torok, 1987a, p.130. 19 Voltaremos a essa distinção várias vezes. Por ora, basta-nos avançar nessa in- dicação. É preciso assinalar os trabalhos sobre identificação efetuados por Lu- quet, 1962 e 1984, e por Florence, 1984. 20 Ferenczi, 1968b, p.95. 21 Na quinta lição de psicanálise, Freud adota a analogia química para os sinto- mas e para a transferência e qualifica de "excelente" a expressão catálise em- pregada por Ferenczi: "Os sintomas que, para emprestar uma comparação à química, são os precipitados de antigas experiências de amor (no sentido mais largo do termo), só podem se dissolver e se transformar em outros produtos psíquicos à temperatura elevada do acontecimento da 'transferência'. Nesta reação, o médico desempenha, segundo a excelente expressão de Ferenczi, o papel de um fermento catalítico que atrai temporariamente a si os afetos que acabam de ser liberados" (Freud, 1966, p.62). 22 Ferenczi, 1968b, p.96. 23 Neyraut, 1974, p.160. 24 Somos nós que sublinhamos. 25 Neyraut, 1974, p.160. 26 Ferenczi, 1968b, p.99. 27 Somos nós que sublinhamos. 28 Fédida, 1992, p.71. 29 Três outros conceitos poderiam ser acrescentados, a saber: a identificação, o símbolo e a transferência. É muito difícil estabelecer a diferença entre eles na literatura psicanalítica. Neste trabalho poderemos seguir os esforços de Nico- las Abraham e de Maria Torok para discernir uns dos outros. Neste capítulo, será possível observar sobretudo seus pontos de vista sobre a discriminação entre introjeção e incorporação que, de acordo com Maria Torok, são fre- qüentemente confundidas. No segundo capítulo, alguns avatares do conceito de símbolo compreendido como o objeto mesmo da psicanálise segundo Ni- colas Abraham poderão ser seguidos. A esta altura seria útil acompanhar Ney- raut: "Pode-se seguir ou não a teoria ferencziana da transferência, dar crédito ou não às conseqüências técnicas que ele infere, mas não se pode impedir de admirar a precisão com a qual ele lança uma pedra no pântano. Este pântano é onde todo mundo se afunda; onde se desenha o campo da introjeção, da projeção, da identificação, do símbolo e da transferência" (1974, p. 155). 30 Ferenczi, 1968b, p.100. 31 Ibidem, p.103. 32 Ibidem. 33 A assimilação entre os dois conceitos é fortemente discutível. A distinção en- tre os dois conceitos, transferência e introjeção, foi feita por Michel Neyraut no seu livro Le transferi (1974), onde, à p. l69, ele escreve: "Finalmente, para Ferenczi identificação, transferência, deslocamento são fenômenos compreen- didos na noção de introjeção. Ele acaba por dizer no capítulo sobre o conceito de introjeção que o deslocamento é tão-somente um caso particular do meca- nismo de introjeção. Nosso ponto de vista neste livro não é o de negar, muito pelo contrário, o valor do conceito de introjeção, nem de minimizar a sua im- portância no tratamento analítico, mas apenas de recusar admitir que a trans- ferência seja uma introjeção". 34 Ferenczi, 1968b, p.104, n.2. 35 Ibidem, p.101. 36 Ibidem. Somos nós que sublinhamos. 37 Ilse Barande (1972, p.54) assinala a concepção de um processo fundamental- mente defensivo, num primeiro momento, para a projeção e para a introje- ção. 38 Não é o momento, a esta altura da nossa exposição, de prolongar as conside- rações sobre a distinção entre primitivo e originário. Mas é necessário assina- lar a importância dessa distinção, por exemplo, na obra de Pierre Fedida, uma de nossas referências neste trabalho. 39 Para Freud, a repetição se refere à pulsão de morte; para Nicolas Abraham, seguindo Ferenczi, a repetição está de acordo com o princípio de prazer pela satisfação da repetição simbólica. 40 Ferenczi, 1968b, p.101. 41 Ibidem. 42 Barande, 1972, p.54. 43 Pode-se vislumbrar aqui, como, para Nicolas Abraham e Maria Torok, a in- trojeção se refere sempre à introjeção de pulsões; o objeto sendo tão-somente o mediador entre a pulsão e o ego. 44 Ferenczi, 1968b, p.100. 45 Ibidem, p.l04, n.2. 46 Ferenczi, 1968f, p.196-8. 47 Torok, 1987b, p.229-55. 48 Ferenczi, 1968b, p.100. 49 Ibidem. 50 Ferenczi, 1968f, p.196. 51 Veremos que Nicolas Abraham (1987e) sublinha esses fatos quando ele se colo- ca a questão da culpabilidade em seu artigo "Le crime de 1'introjection" (p.123-31). Nesse artigo, ele diz que é na voluptuosidade intrínseca ao proces- so de introjeção que se encontrará a origem do sentimento de culpabilidade. 52 Ferenczi, 1968f, p.196. dade, o continuador está mais à vontade para seguir adiante", Abraham, Pré- sentation à Thalassa in Ferenczi, 1974ff, p. 10. 90 Num momento em que o pensamento psicanalítico parece por vezes seduzido pela idéia de esquecer o papel da sexualidade ou de falar pouco dela, o conceito de introjeção na obra de Nicolas Abraham e Maria Torok contradiz a idéia do filósofo: "não esqueça que o o conceito de cachorro não morde". 91 Ferenczi, 1974ff, p.66. 92 Ibidem. 93 "Anfimixia: mistura de dois elementos constituintes. Em biologia: fusão de dois gametas de sexo oposto. Em psicanálise (termo introduzido por Ferenczi): fusão de duas tendências parciais" (in Ferenczi, 1974ff, p.159). 94 Ferenczi, 1974ff, p.66. 95 Ibidem. 96 Ibidem, p.67. 97 Maria Torok fará uma ampla utilização dessa indicação em sua análise do luto patológico em seu artigo "Maladie du deuil et fantasme du cadavre exquis" (1987b, p.229). 98 Ferenczi, 1974ff, p.68. 99 Ibidem. 100 Ibidem. 101 O conceito de identificação ao agressor foi indevidamente atribuído a Anna Freud, que o desenvolve em seu livro Le moi et les mécanismes de défense [O ego e os mecanismos de defesa]. Esse conceito é devido a Ferenczi, que o de- senvolveu bem antes de Anna Freud, como se pode observar nesse capítulo de Thalassa. 102 Ferenczi, 1974ff, p.69. 103 Uma analogia possível seriam as viagens descritas por Júlio Verne. Essas via- gens, segundo a análise de Michel Serres, comportariam três níveis: o primeiro seria o de uma viagem cartográfica; o segundo, o de uma viagem pelos saberes; e o terceiro, aquele no qual os personagens saem sempre profundamente meta- morfoseados, seria o nível iniciático. 104 Freud, 1992a, p.1-91. 105 Ferenczi, 1968b, p.93-125. 106 Ferenczi, 1968f, p.196-8. 107 Freud, 1995a, p.135-44. 108 Ferenczi, 1970a, p.51-65. 109 Ferenczi, 1974ff, p.65-74. 110 Neyraut escreve à p.169 de seu livro Le transferi (1974): "nosso ponto de vis- ta ... não é o de negar, bem pelo contrário, o valor do conceito de introjeção, nem o de desconhecer a importância no tratamento psicanalítico, mas apenas de recusar admitir que a transferência seja uma introjeção". 111 Neyraut, 1974, p.170. 112 Ibidem, p.172. 113 A questão do nome próprio se coloca para o conjunto da obra de Nicolas Abraham e Maria Torok; é uma obra que porta uma dupla assinatura e a questão do duplo desejo dos dois autores, assinalada por Jacques Derrida como um fato que aumenta a complexidade dessa obra, em "Fors" texto que serve de introdução a Abraham & Torok, Verbier de l'homme aux loups. É preciso citar os trabalhos de René Major e de Jacques Derrida, autores que trataram esta questão em várias ocasiões: Major, 1984a, 1986a e b, 1991a; Derrida, 1967b, 1993c e d, 1994. 114 Neyraut, 1974, p.172. 115 Ibidem. 116 A relação da negação ao trauma e deste à teoria será vista quando examinar- mos a dimensão do trauma na obra de Ferenczi; também o lugar e a signifi- cação que Ferenczi confere ao silêncio na situação analítica como o efeito do trauma propriamente dito. Aqui, essas considerações nos afastariam do nosso objetivo principal, que é o de seguir o raciocínio de Michel Neyraut e tentar configurar a distinção entre transferência e introjeção. Sobre esse as- pecto, referimos os trabalhos de: Monique Schneider (1988), principalmen- te o cap.III: "Le nourrison savant: 1'éclatement des voies"; e Pierre Fédida (1978f), cap. "Topiques de la théorie". 117 Neyraut, 1974, p.173. 118 Ibidem, p.174. 119 As imagens que Neyraut (1974, p.174) emprega são bastante claras: "a trans- ferência é como um pacote de envelopes fechados e que um cego distribui aos passantes. O analista não é um passante como qualquer outro, no qüinquagé- simo envelope, ele pede que se abra a carta e aposta que o conteúdo já era co- nhecido e não é por acaso que a carta lhe foi destinada". 120 Neyraut, a partir dessa constatação, estabelece uma distinção entre o pensa- mento psicótico e o pensamento neurótico. Para ele, o pensamento neurótico guardaria a capacidade de transferir os conteúdos e de conceber simbolica- mente essa transferência como uma realidade simbólica. De outro modo, no caso do pensamento psicótico, mesmo se há transferência, esta será concebida como realidade. 121 Abraham, N., 1987e. 122 Freud, 1968b, p.145. 123 Abraham & Torok, 1987e. 124 Abraham, N., 1987e, p.123. 125 Ibidem, p.124. 126 Ferenczi, 1968b, p.96. 127 Ibidem. 128 Nós nos afastaríamos muito de nosso objetivo neste momento se desenvolvês- semos aqui as considerações sobre a contratransferência. Sobre esse aspecto, não podemos deixar de citar os trabalhos de Pierre Fédida, sobretudo o artigo "D'une essentielle dissymétrie en psychanalyse" (1978a); "Topiques de la théorie" (1978e) e "Hypnose, transferi et suggestion" (1992). De certa manei- ra, o que desenvolvemos aqui supõe essas leituras e se apóia sobre o ensina- mento do autor em seus seminários. 129 "O plano analítico se apóia sobre a decifração do sonho, isto é, sobre uma téc- nica descoberta na Interpretação dos sonhos que atenta para os elementos des- locados, condensados, na verdade, simbólicos" (Neyraut, 1974, p.162). 130 "Este plano só é distinguível se se considera a destinação, ou seja, o que é en- dereçado a Ferenczi: o que é propriamente solicitado; o que responde e o que não responde (independentemente de toda resposta articulada) estando claro que a resposta pode preceder a questão. O que é especificamente o regime contratransferencial" (Neyraut, 1974, p.162). 131 Neyraut, 1974, p.162. 132 Abraham, N, 1987e, p.124. 133 Ibidem. 134 Abraham, N, 1987c. 135 Abraham, N, 1987b, p.25-76. 136 Abraham, N, 1987j, p.334-83. 137 Abraham & Torok, 1987b. 138 Em "Fors" in Abraham & Torok, 1976, p.31, Jacques Derrida nos diz de Nico- las Abraham e Maria Torok: "Nem na sua simplicidade mais exposta, mais se- rena (vejam: sabemos que procuramos alguma coisa da qual não nos desviare- mos), a mais sorridente (conheço o sorriso paciente dos autores, sua lucidez indulgente e impiedosa ao mesmo tempo efetivamente analítica, diante do dog- matismo ou da estereotipia, da fanfarronice ou da submissão teórica, da busca do efeito a qualquer preço: 'mas vejamos, do quê, de quem temos medo? O que procuramos? O que querem de nós ainda?'), nem no refinamento elíptico da sutileza mais arriscada, o 'estilo' não se parece com nada do que um leitor fran- cês espera reconhecer de um programa para se garantir. Um certo corpo estran- geiro trabalha aqui nosso espaço doméstico. E ele próprio terá o programa não guardando mais segredo, previsto todos os modos de rejeição (expulsão interna ou incorporação) que poderiam se precipitar para emparedá-lo. O sentimento de estranheza não está contido na língua maternal ou no poliglotismo dos auto- res [Nicolas Abraham e Maria Torok], nem tampouco nas 'referências' mais ativas e mais insistentes ... Deve-se à Coisa que os ocupa". 139 Derrida, 1976, p.9-73. 140 Derrida, 1987. 141 Abraham, N., 1987b, p.25. 142 Ibidem. 143 Derrida, 1976, p.40. 144 Seria útil lembrar aqui o artigo "Fundamento" em Lalande, 1991:" (A) O que dá a alguma coisa sua existência ou sua razão de ser ... (B) A proposição mais geral e mais simples (ou, mais exatamente, o sistema formado pelas idéias e proposições mais gerais e menos numerosas), de onde se pode deduzir todo um conjunto de conhecimentos ou de preceitos". 145 Derrida, 1976, p.20. havia retirado o seio, depois se excluiu por seu luto. A irmã e a governanta de- sapareceram e a casa mesma, o símbolo da mãe, não existia mais. Não surpre- ende ver o menino se voltar para seu pai. Após a entrada na nova casa, o meni- no se ligou a uma vizinha amável e a preferia de maneira ostensiva à sua mãe. Aqui aparecia a clivagem da libido que se dirigia, por um lado, ao pai, por ou- tro, a uma mulher tomada como substituto materno. No decorrer dos anos, o menino desenvolveu um interesse erótico acentuado em relação aos meninos mais velhos próximos do pai do ponto de vista físico. Um retorno de sua libido de seu pai à sua mãe se fez no fim de sua infân- cia, quando seu pai se entregava progressivamente à bebida. Ele era adoles- cente quando o pai morreu e viveu com sua mãe, à qual estava ternamente li- gado. Mas após um período curto de viuvez, a mãe se casou novamente e partiu para longas viagens com seu marido. Assim, ela repeliu de novo o amor do filho; quanto a seu padrasto, ele excitava seu ressentimento. Ocorreu então uma nova onda de erotismo homossexual, mas sua atra- ção concernia um outro tipo de homem, cujas características eram as de sua mãe. O tipo de homem eleito primeiramente e aquele que foi escolhido em se- guida contrastam da mesma maneira que o pai e a mãe do paciente quanto às suas características físicas. Em suas ligações, o paciente adotava a atitude de sua mãe em relação aos jovens de segundo tipo que se tornaram seus objetos preferidos: ele era, se- gundo sua própria descrição, cheio de ternura, de amor e de solicitude como uma mãe. Muitos anos depois, a mãe do paciente morreu. Ele permaneceu a seu lado durante sua última moléstia e a teve agonizante em seus braços. A perturbação emocional que se seguiu se explica, em profundidade, pelo fato de que essa situação representava a retirada efetuada do estado do paciente criança no seio e nos braços de sua mãe. Uma vez morta sua mãe, ele foi para uma cidade vizinha onde residia. Seu humor não era nada parecido ao de um luto, ao contrário, era de uma exaltação feliz. Ele me expôs seu sentimento primordial de ter sua mãe em si para sempre e sem limite. Só depois do enterro é que ele pôde se entregar ao seu sentimento de possessão ilimitada de sua mãe" (Abraham, K, 1966b, p.270). 194 Abraham, K., 1966b, p.270. 195 Em uma carta a Freud (13.3.1922, citada por Maria Torok, em L'écorce et le noyau, p.229), Karl Abraham escreve: "O senhor afirma, caro professor, que nada no luto normal corresponde ao salto efetuado pelo melancólico no esta- do maníaco. E, contudo, penso poder descrever um processo desse gênero sem que eu saiba se tal processo se encontra em cada caso. Tenho a impressão de que um grande número de pessoas apresenta, pouco após um período de luto, um incremento libidinal. Este se manifesta por uma necessidade sexual aumentada e parece conduzir - pouco depois de uma morte - à concepção de uma criança". 196 Torok, 1987b, p.231. 197 Comentando as cartas trocadas entre Freud e Karl Abraham, Maria Torok observa que Abraham tinha pedido uma cópia de Deuil et mélancolie e que Freud lhe havia respondido, recomendando a leitura de seu Psychologie des masses et analyse du moi (cartas de Abraham de 13.3.1922 e 2.5.1922 e de Freud de 30.3.1922 e 28.5.1922). Ela observa também que Karl Abraham ha- via notado esse incremento libidinal em seus pacientes nos primeiros momen- tos do luto. Maria Torok (1987b, p.231) toma o mal-entendido entre Freud e Karl Abraham como uma ilustração da "aversão que experimentamos, todos, a penetrar, de maneira sacrílega, a natureza íntima do luto". 198 Torok, 1987b, p.231. 199 Ibidem, p.232. 200 Ibidem, p.236. 201 Ibidem. 202 Ibidem. 203 Ferenczi, 1968b. 204 Torok, 1987b, p.236. 205 Ibidem. 206 Ferenczi, 1968f. 207 Torok, 1987b, p.236. 208 Mannoni, 1968, p.154: o autor assinala uma troca de cartas entre Freud e Karl Abraham a propósito do conceito de incorporação, onde, precisamente, Karl Abraham propunha a noção de "incorporação do objeto" em lugar da noção de identificação. Com efeito, pode-se ler na carta que Karl Abraham endereçou a Freud em 31.3.1915 (in Freud & Abraham, 1969, p.219): "Mas do que é afinal que o melancólico se tornou culpável sobre o objeto ao qual ele se identifica? A resposta a essa questão me foi sugerida por um dos seus derradeiros escritos, creio, quase com certeza, aquele sobre o narcisismo (?). Aí trata-se da questão da identificação, e o senhor remete ao fundamento in- fantil desse processo: a criança queria incorporar um objeto de amor, em uma palavra: devorá-lo. Porém, tenho todas as razões de pensar que uma tendên- cia canibal desse tipo é inerente à identificação melancólica". E um pouco além: "Meu primeiro argumento é o medo dos melancólicos de morrer de fome. Comer tomou aqui o lugar do amor. Eu presumiria que o papel desig- nado na neurose obsessional à zona anal é assumido na melancolia pela zona oral ... Um segundo sintoma essencial é o de uma recusa de alimento ... Acho também bastante interessante a forma, clássica nos séculos anteriores, da for- mação delirante depressiva que se designa pelo termo de licantropia. E a idéia delirante de ser um lobisomem e de ter comido seres humanos". Freud res- pondeu essa carta em 4.5.1915 (Ibidem, p.224): "Suas observações sobre a melancolia me são preciosas; utilizei sem escrúpulos tudo o que me pareceu útil transcrever em meu ensaio. Tirei proveito sobretudo das suas indicações sobre a fase oral da libido; mencionei igualmente o elo que o senhor estabele- ce com o luto". 209 Torok, 1987b, p.237. 210 Ibidem. 211 Ibidem. 212 Ferenczi, 1970a, p.51. 213 Freud, 1995a, p.135. 214 Derrida, 1976, p.17. 215 Ibidem. 216 Ferenczi, 1970a, p.58. 217 Lévy, 1976. 218 Ibidem. 219 O segredo como um bem precioso, como um bem natural, garantido a priori, é sublinhado por Piera Castoriadis-Aulagnier (1976) como uma característica da neurose, uma proteção que o psicótico não tem e sobretudo não tem o au- tista. 220 O termo "próprio" [prope, em francês] aparece freqüentemente nos trabalhos de J. Derrida, seja no sentido de "pessoal", seja no sentido de "limpo". 221 Lévy, 1976. 222 Ibidem. 223 Ibidem. 224 Derrida, 1976, p.17. 225 Torok, 1987b, p.238. 226 Ibidem. 227 Ibidem. 228 Langer, 1984, p.30. 229 Como o diz Maria Torok (1987b, p.238): "responder a tal demanda, oferecen- do comida, não aplaca a fome que permanece viva; esse gesto só faz enganá-la". 230 Torok, 1987b, p.239. que no "Préservation de Thalassa" Nicolas Abraham nomeia uma parte desse trabalho "Essence symbolique de la réalité" ["Essência simbólica da realidade"]). Se essa maneira de considerar a série de artigos citados não contém uma exageração inaceitável, somos obrigados a considerar esse artigo de Nicolas Abraham como pertencendo a uma linha- gem psicanalítica resolutamente ferencziana, que procura apro- fundar e expandir os pontos de vista de Ferenczi. Poder-se-ia apli- car a Nicolas Abraham, em relação a Ferenczi, o que ele mesmo escreveu: "o entusiasmo de Ferenczi pela doutrina da qual ele re- cebeu tudo não conhece limites. Onde o iniciador se assusta com sua própria temeridade, o continuador se encontra mais à vontade para seguir adiante".6 Dessa maneira, para compreender o aspecto psicanalítico (dado que não nos ocuparemos das raízes fenomeno- lógicas do artigo de Abraham sobre o símbolo), seria pouco útil pesquisar nos artigos clássicos da doutrina psicanalítica sobre o tema os trabalhos de Jung, de Rank e Sachs, de Jones, de Stekel. Esse artigo se insere decididamente no espírito e nas preocupações ferenczianas tal como se pode verificar no "L'ontogenèse des symboles" ["A ontogênese dos símbolos"]7 e sobretudo em Tha- lassa. O artigo de Dominique Geahchan, "A relire Nicolas Abra- ham" ["Reler Nicolas Abraham"],8 nos fornece outra referência, ou seja, a analogia entre "L'esquisse..." de Freud e "Le symbole..." de Nicolas Abraham: A leitura do seu texto ["Le symbole..."] a cada momento me fas- cinou e me desconcertou. Eu o deixava e retomava, implicado no seu movimento poético e detido pelo esforço que ele exigia de mim. E eu me lembrava de minha leitura, de minhas leituras, do "Esquis- se..." de Freud. Mesma invenção nos dois escritos, uma apoiada na neurologia, a outra na fenomenologia; mesma sistematização do pensamento numa iniciativa genética; mesma tentativa de investiga- ção exaustiva de um campo vasto como o universo ou como a psique que o pensa. Dois escritos acabados em alguns meses, como sob a pressão de uma necessidade interna, depois aparentemente abando- nados, mesmo renegados, e tendo sido publicados somente após a morte de seus autores. Como se um e outro tivessem sido movidos por uma mesma determinação: dar-se "o esboço" do trabalho a rea- lizar, e acabá-lo de alguma maneira antes de empreendê-lo, para po- der empreender.9 Essa observação de Geahchan nos mostra a via, para esse arti- go de Nicolas Abraham, de um trabalho que consiste em mergu- lhar no raciocínio de um autor, nas suas especulações, por vezes deixando de lado o território seguro dos saberes reconhecidos e estabelecidos. Mesmo reconhecendo a importância das considera- ções de ordem fenomenológica no "Symbole..." de Nicolas Abra- ham (conforme a opinião de Geahchan), parece-nos, todavia, e é o que pretendemos demonstrar, que o eixo sobre o qual foi construí- do esse trabalho é o de Thalassa de Ferenczi. Dessa maneira, po- de-se considerar o "Présentation de Thalassa" e o "Symbole..." como fazendo parte de uma mesma pesquisa, e é assim que os estu- daremos. Assim, o caminho que percorreremos neste capítulo será o que leva dos Trois esssais sur Ia théorie sexuelle e da décima con- ferência de introdução à psicanálise de Freud, a Thalassa de Fe- renczi, a "Présentation de Thalassa" e "Symbole..." de Nicolas Abraham. I "LA PRÉSENTATION DE THALASSA"10 DE NICOLAS ABRAHAM Nesse texto de Nicolas Abraham, dois desenvolvimentos po- dem ser distinguidos: o primeiro é o desfilar das idéias que se de- verá seguir na leitura de Thalassa; o segundo é aquele em que o au- tor de "Présentation de Thalassa" nos deixa o traço de seus afetos ao descobrir a obra à qual ele nos introduz. Segundo Maria Torok, "o encontro da alma-irmã Ferenczi em seu texto húngaro 'Katasz- trofak', que se tornou em seguida o Thalassa francês... foi uma tal estimulação que rapidamente foi continuado (e talvez atingido) o que o autor [Nicolas Abraham] queria denominar, daí em diante, a tentativa de realização do sonho ferencziano".11 Esses dois registros de "Préservation de Thalassa" dão conta de um espanto diante da subversão que constitui Thalassa. No Ca- pítulo 1 pudemos observar que alguns comentadores consideram Thalassa uma obra um pouco marginal no conjunto dos escritos ferenczianos. Nada é menos verdade. Thalassa, pelo seu método e por suas conclusões, não deixa indiferente; de fato, muitos tratam de catalogá-lo como um "mito" ou um "delírio" e, contudo, não estamos convencidos disso. Pode-se notar que o próprio Ferenczi hesitou muito em publicar esse trabalho. Em uma passagem, vê-se Ferenczi "confessar" que sua metodologia incomodava sua cons- ciência científica; ele escreve: "eu, atrevidamente, tomei o partido de aplicar aos animais, órgãos, partes de órgãos, elementos tissula- res, certos processos dos quais pude tomar consciência pela psica- nálise".12 Um método, como já vimos, que ele denominava utra- quístico. E Ferenczi prossegue: eu havia aprendido desde a escola a considerar como um princípio fundamental de todo trabalho científico a separação rigorosa entre os pontos de vista próprios das ciências naturais e aqueles pertencentes às ciências do espírito. A desobediência a essas regras no decurso de minhas especulações era uma das razões que me impediam de publi- car minha teoria da genitalidade.13 A objeção que Ferenczi opõe a ele mesmo toca uma modalidade de pensar fortemente enraizada em formas de educação e modali- dades de discurso próximas aos preconceitos. Deve-se reconhecer que, quando uma maneira de pensar é tão enraizada, verifica-se que é sempre muito difícil afastar-se dela sem experimentar certo incômodo persistente cada vez que se está num pensamento que parece, de uma maneira qualquer, não lhe obedecer. É possível compreender, então, as dúvidas de Ferenczi, e também a maneira ao mesmo tempo prudente e entusiasmada com a qual "Présentation de Thalassa" nos obriga a percorrer os caminhos de nossos próprios preconceitos.14 Nicolas Abraham escreve: Trata-se nada menos que de promover o procedimento psicanalí- tico em um método de investigação universal. A psicanálise se torna-
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