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Guias e Dicas
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Luciane Monteiro Oliveira-tese, Notas de estudo de Museologia

Tese de doutoramento

Tipologia: Notas de estudo

2012

Compartilhado em 19/11/2012

luciane-monteiro-oliveira-10
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Baixe Luciane Monteiro Oliveira-tese e outras Notas de estudo em PDF para Museologia, somente na Docsity! UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO RAZÃO E AFETIVIDADE: A ICONOGRAFIA MAXAKALI MARCANDO A VIDA E COLORINDO OS CANTOS LUCIANE MONTEIRO OLIVEIRA SÃO PAULO 2006 LUCIANE MONTEIRO OLIVEIRA RAZÃO E AFETIVIDADE: A ICONOGRAFIA MAXAKALI MARCANDO A VIDA E COLORINDO OS CANTOS Tese apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em Educação, na área temática de Cultura, Organização e Educação no Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos FERREIRA SANTOS. SÃO PAULO Janeiro de 2006 ii Dedicatória ... às minhas grandes mães ancestrais que me ensinaram as canções da vida... ..ao povo Maxakali que coloriram essas canções AGRADECIMENTOS Muitas são as pessoas que contribuíram para o meu trabalho, apoiando, estimulando e colaborando em várias etapas de minha formação. Agradeço à minha extensa família, que depositou confiança e credibilidade em meus projetos e possibilitou de diferentes formas a realização de meus sonhos. Em especial ao meu irmão Márcio, pela troca incessante de palavras e pela iniciação no universo dos símbolos. Ao meu orientador Marcos Ferreira Santos que me desvelou a possibilidade de exercer, na lógica objetiva da academia, relações de afetividade e sensibilidade, minha imensa gratidão. À Márcia Gamberini, minha “irmã” por afinidade, pela acolhida e pela dádiva, no sentido maussíano do termo, em todos os momentos de minha trajetória em São Paulo. Minha estima especial às amigas Carmem, Ana Paula, Lenice e Anna Lúcia que das montanhas mineiras me estimularam e apoiaram nesse processo. Aos que compartilharam comigo leituras, debates, calorosas discussões e trocas de experiências e vivências, fiéis companheiras, Edleuza, Isabelle e Nely, e companheiros, Julvan e Amilton, do grupo de estudos e leituras sobre o Imaginário. Carinhosamente aos amigos Carolina e Abílio pela intensa convivência no CRUSP e pela partilha de saberes e alimentos, com os quais cultivei uma postura de aprendizado contínuo e aberto a novos caminhos. Aos companheiros do Crusp, em especial à Wanderléia que miritibrincou a nossa convivência iluminando com o Círio de Nazaré, a Rosalina e Carlos pela experimentação de sabores trazidos de Cabo Verde, a Andréia pela convivência e a todos pelas trocas afetivas e acadêmicas com a diversidade cultural e de pontos de vista. Ao amigo e companheiro de campo Alencar pela partilha de saberes e cantos com os Maxakali Ao povo Maxakali pelo aprendizado e lições de filosofia possibilitando novas formas e modo de ser no mundo. Com grande carinho às grandes mães, mulheres potências vi cósmicas dos Tikmi'lWn, Maria Diva, Taciara, Alaíde, Carmem Silva, Noêmia, Isabel, Suely, Luisinha e Margarida. Aos guias Major, Bidé, João Bidé, Dival, outros que não nomeei aquí e a todas as crianças que me re-animaram nesses caminhos percorridos, Max xeka! Às professoras do CICE — Centro de Estudos sobre o Imaginário, Cultura e Educação, Maria Cecília e Maria do Rosário pela receptividade e incentivos oferecidos nesse processo. Agradeço também aos funcionários da FEUSP, especialmente à Solange Francisco, pelo apoio incondicional e pelo acolhimento e compreensão nos momentos mais difíceis. Por fim à CAPES — Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela concessão de uma Bolsa de Doutorado Sanduíche para estágio no Exterior, na Universidad Complutense de Madrid (Espanha), e uma Bolsa para finalização de minha pesquisa de doutoramento. E ao Fundo de Cultura e Extensão — FCEx/USP pelo auxílio concedido para a compra de material, o que possibilitou a realização de minha pesquisa de campo. vii ABSTRACT Reason and affectivity: the Maxakali iconography recording life and brighten with colours the lay This present thesis aims to introduce the Maxakali iconography as life's expression and of the universe cosmological conception. The signs of this expression are especially the paper drawings made by the individuals pertained to the group without any discrimination of age, sex or sociocosmical status. The purpose is to demonstrate through iconography how the Maxakali people perceive the world through the sensorial perception of their own bodies and how they build up alterative relations in the intercession of distinct cosmological conceptions. This movement of ideas is very important to dialogize when differences are shown and tension is amplified chiefly when we come up to discussions and practices of public policies. The methodology used in the research is the symbolical mitohermeneutics of antropological characteristics, wich is originally based in a carefully reflection and in the practice of knowledge wich propriciates to record the ways through which the researcher in the insertion of the context of his investigation. Keywords: Maxakali iconography; Affective Reason; Body Building; Cosmology and Esthetics Knowledge area: 7.08.01.04-5 — Educational Antropology RESUMÉ Raisonnement et Affectivité: 'iconografie Maxakali qui marque la vie et colorié les chantes La présente thése a pour but de présenter liconographie en tant qu'expression de la vie et de la conception de I'univers cosmologique. Les signes de cette expression sont particuligrement les dessins sur papier eelaborés par les individus du groupe, sans distinction d'âge, sexe ou satut social cosmique. Le but est de démontrer à travers I'iconographie comment les Maxakali perçoivent le monde au moyen de la perception sensorielle du propre corps et comment ils construisent des relations d'altérité dans Iintersection de conceptions cosmologiques distinctes. Le mouvement est important pour I'établissement d'un dialogue dans leguel les différences sont ponctués et les tensions sont amplifiés surtout quand on met en scéne des discussions et pratiques de politiques publiques. La méthodologie employée dans la recherche est la mythoherméneutique symbolique de caractére anthopologique don't le principe est un soin investi dans la reflexion et dans la pratique de la connaissance qui permet d'indiquer les chemins parcourus par le chercheur dans Iinserction du contexte de sa investigation. Mots-clés: |" iconografie Maxakali; Raisonnement affectif, Corporalité, Cosmologie et Esthétique Área de Connaissance: 7.08.01.04-5 - Anthropologie Educational APRESENTAÇÃO Ser criança é bom demais despreocupar com tudo que se faz dar um pulo, um grito e uma risada levar a vida bem vivida e bem amada... Rubinho do Vale, “Ser Criança” Desenho do tema O meu desejo em estudar a iconografia Maxakali está relacionado a dois aspectos vitais na minha experiência imaginal. O primeiro aspecto se refere à criança “Ego” que sempre existiu em meu Ser e que estava escondida nos recônditos de minha pessoa. Uma criança que ficava a criar imagens a partir dos fenômenos da natureza e a materializar essas imagens no desenho em papel. Por outra parte às crianças Maxakali que me revelaram a descoberta do “OUTRO”, da diversidade de mundos e de formas de perceber esses mundos, também por meio das imagens gráficas. Esses dois modos de SER CRIANÇA estão entrelaçados na interpretação do trabalho que apresento nesta tese, possibilitando uma terceira ou múltiplas existências, de acordo com a leitura do texto. Faço esta afirmação ao perceber que as imagens que povoam os desenhos Maxakali, de certo modo, se aproximam das imagens que povoam a minha existência. Para compreender a composição desse Ser, apresento a primeira “criança” latente em toda a minha trajetória para mostrar como cheguei ou me re-descobri nas crianças Maxakali. Posso dizer que nasci sob o signo da Lua, 13 de dezembro, dia de Santa Luzia. Daí o meu nome, Luciane, cuja raiz latina, /ux, significa luz. Mesma data de aniversário de Luiz Gonzaga, o “Mestre Lua”. O ano, 1969, foi quando o homem pisou na lua. Seguindo a tradição do interior mineiro, de plantar uma árvore em homenagem ao nascimento de uma criança, minha mãe plantou um pessegueiro. Árvore que, na tradição cultural chinesa, simboliza o ressurgimento, a pureza e a correlacionada ao modo de ser Maxakali para a elaboração de minha dissertação de mestrado? A minha primeira experiência etnográfica, em junho de 1997, foi carregada de muita expectativa e também de apreensão sobre um universo conhecido apenas pela leitura de monografias e dissertações etnográficas. Era uma tarde quente e seca, a paisagem amarelada, a vegetação crestada do sol e pelo pó da terra que cobria tudo quando cheguei nas terras Maxakali. Após uma longa viagem vislumbrei, ainda dentro do ônibus que passava na estrada que corta as terras indígenas, os morros e as casas cobertas de capim. Quadro totalmente novo para meus olhos curiosos e ansiosos. O cansaço da viagem e o peso da mochila nas costas já se faziam sentir no caminho que conduz a passante até a sede do Posto Indígena do Pradinho. Foi nesse percurso que Guigui Maxakali se aproximou de mim, perguntando onde eu iria. Estava ele montando em um cavalo, sem sela, pequenino e com um ar de dignidade impressionante, em contraste com o animal, aparentando um ar tão fatigado e resignado e puxando feixes de bambus amarrados na cauda. A cena, para mim pitoresca, antecipava as diferenças de percepção de mundo e as experiências vivenciadas. Ao avistar o pátio vejo muitas crianças brincando em um monte de areia bem em frente da sede do Posto Indigena. A chegada de uma ãynhex?, com uma fisionomia bem diferente das pessoas da região, despertou a atenção dessas crianças que dirigiram olhares gulosos de curiosidade sobre minha pessoa. Isso provocou um burburinho bem próprio, chamando a atenção de um funcionário da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA que se aproximou para me recepcionar. Ao encaminharmos para o alojamento ali localizado fomos acompanhados por essas crianças até adentrar a porta da casa. Os sons de suas brincadeiras e das palavras emitidos nesse primeiro contato eram totalmente novos e desconhecidos. 2 Dissertação defendida em novembro de 1999 pelo Programa Interdepartamental de Pós-graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo. 3 Mulheres estrangeiras. Ayn/uk estrangeiro ou diferente e hex — mulher. Logo percebi que a língua consistia em um dos elementos que dificultaria a minha inserção em campo. Como dito anteriormente, era a minha primeira experiência em pesquisas de campo etnográfico e eu não conhecia a língua Maxakali. Somado a isso, o meu estudo estava voltado para o trabalho executado por mulheres, sendo estas extremamente arredias e desconfiadas na relação com estranhos. E na área do Pradinho, onde iniciei as minhas atividades, pude notar que quase a totalidade das mulheres não fala o português. Frente a essas dificuldades algumas estratégias de aproximação foram empregadas e a mais eficaz delas foi a minha relação com as crianças que intermediaram a minha relação com a seção feminina das diferentes aldeias, em especial às localizadas no Pradinho. As crianças ficavam durante quase todo o período do dia no pátio central. Em torno desse pátio, topograficamente situado em um platô, estavam distribuídas as aldeias nas colinas, encerradas pelo Mikax-xap”, um grande afloramento rochoso, considerado um monumento natural pelos Maxakali da área do Pradinho, pela sua morfologia no contexto paisagístico e pela sua visibilidade espacial a longas distâncias. Mikax xap — Pradinho Foto 01 É nesse pátio que, arquitetonicamente, o Estado se faz presente, com as sedes do Posto Indígena da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, do Posto de 4 Mikax- pedra; xap — núcleo ou semente. Núcleo de pedra Saúde da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA e seus respectivos alojamentos e a sede da antiga Escola. Nesse /ocus a comunidade estabelecia suas negociações e suas relações com as representações do poder instituído pelos órgãos governamentais e em boa medida com os pesquisadores. Além dos acordos de trocas de bens pré-estabelecidos na relação com os membros do grupo para a realização da pesquisa, havia também uma troca intensa de presentes e alimentos. Todas as ações feitas na área, visitas às aldeias eram acompanhadas pelas crianças que estavam sempre nos pedindo “caramelos” e “bolachas”. Foi numa dessas - > = = — incursões, quando estava confeccionando o croqui da área juntamente com a criançada, que de posse de lápis e papel levados por mim, recebi de uma | das crianças um croqui do Desenho 01 Luciane Monteiro Oliveira, 1999 mesmo espaço elaborado a partir de sua visão de mundo e percepção espacial, nomeando-o em sua própria língua — Mikax xap. No desenho (à BeJimim MEXARA| esquerda) está expresso toda Ee RI R ' x a vida do grupo e seu modo | de ver e conceber o mundo. As cores sempre vivas ana q No a nã e ' t tai Tp" doly | faziam parte de seu mundo, " Inn e E * ta Hi onde o sol ilumina os verdes villa fio . À RR tt = as é 817 et do capim e da mata, as águas dos rios e ribeirões, as perna Mia tatoo flores e sementes e a vida na aldeia, com as habitações dispostas em semicirculo encerrando o pátio ritual e o Kuxex* voltado para a mata. Na aldeia Mikax kakaxº as casas estão voltadas não 5 Kuxex - Casa dos cantos, local principal na realização dos rituais. xvii Questões que me instigaram durante as observações em campo e que fizeram despertar para o escopo da pesquisa. O meu olhar estava muito restrito a uma só faceta da realidade da comunidade Maxakali. Sem perder de vista o foco de minha pesquisa, o desenho, constatei que a satisfação e gozo estético que o ato de desenhar acende é uma atividade que envolve a todos do grupo, não sendo, pois, exclusividade das crianças. E que a espontaneidade e liberdade de expressão são fatores permanentes na vida dos Maxakali, o que distingue em muito da sociedade ocidental. Neste momento, estarei apresentando as imagens de pessoas do grupo de todas as idades, pois ser CRIANÇA independe das circunstâncias temporais e do ambiente das ações. va INTRODUÇÃO Arco-fris risca o céu e desperta o meu olhar colorindo o horizonte feito mensageiro astral... Paulinho Pedra Azul, Papagaio de Papel A presente tese AT apresenta a pesquisa desenvolvida na comunidade Maxakali que aborda a iconografia como um fenômeno estético, logo, filosófico por expressar a vida tanto em seu plano de experimentação das ações . Desenho 03 praticadas no cotidiano, quanto em seu plano mais abstrato de especulação sobre os fenômenos vivenciados. Este fenômeno está situado no contexto das relações de alteridade, assinalando como resultado da urdidura, as diferenças de perspectivas de mundo. O objetivo consiste em uma interpretação das imagens contidas nos desenhos, a partir de categorias estabelecidas pelos membros do grupo. Categorias essas fundadas em sua cosmovisão, distintas das categorias analíticas pautadas nos pressupostos da razão moderna ocidental. A finalidade é enfatizar as diferenças de concepção de mundo no que se refere ao fenômeno da arte e da noção de belo. O material da investigação é a iconografia, definida aqui como texto, cuja leitura das imagens é realizada em conjunto com as narrativas executadas pelos autores do texto. Esta ação e produção são contempladas como efetivação de um pensamento ou razão Maxakali;, desenvolvendo uma interpretação do perspectivismo ameríndio preconizado por Viveiros de Castro (1996a e 20024). O escopo do estudo foi acompanhar todo o processo de produção dos desenhos de modo a apreender o contexto temporal, concebido a partir das relações sociocósmicas e a cena espacial onde essa atividade é exercida. Do mesmo modo, verificar a presença de estímulos externos, tais como recursos visuais imaginativos que contribuíssem para a manifestação criativa. A coleta dos desenhos teve como princípio constatar a ocorrência de assuntos, temas e conteúdos que expressem a singularidade do fazer artístico de cada indivíduo que reflete na coletividade. A potência estética é condição básica para interpretar as experiências de vida dos indivíduos do grupo e, ao mesmo tempo, as especulações de cunho ontológico que esse fenômeno provoca no seio da coletividade Maxakali, dinamizando e incrementando o seu Desenho 04 corpus mitológico. Doi raras sea O tema da pesquisa surgiu no âmbito de minha pesquisa de mestrado que tratava da cultura material com a cerâmica produzida pelas mulheres Maxakali. Naquele momento, a abordagem etnográfica possuía uma preocupação de cunho arqueológico, voltada para o estudo da cultura material em sua relação com o comportamento humano. Concomitante às observações e registros da pesquisa, os desenhos foram despontando e constituindo uma coleção assaz instigadora. A leitura das imagens era plenamente intuitiva o que provocou uma certa necessidade de buscar referencial teórico para fundamentar as minhas interpretações. Daí nasceu o tema do projeto de doutorado, a iconografia, cuja problemática consiste em atestar que a arte é um dos aportes filosóficos da cultura Maxakali e, de modo geral, ameríndia, calcadas em uma razão afetiva. cultura e suas criações poéticas, por meio dos símbolos e imagens arranjados em suas múltiplas formas de narrativas, seja pessoal, social ou intersubjetiva. Jornada que permite percorrer a alma humana, tanto no movimento de internalização, uma volta para si mesmo no sentido de compreender a si próprio, quanto no movimento de externalização, encontrar no outro a sua alma. Esse trânsito, quando aberta a porteira e liberada as guardas, ocorre em todas as etapas da pesquisa. É na relação com o Outro que o Eu se reconhece. Tal metodologia alarga as perspectivas para uma afinidade dialógica entre ciências múltiplas seja no seio da própria cultura ou com outras culturas. O principio dessas relações não pretende uma aceitação e compreensão do outro em sua “Outridade”; e sim de reconhecer que o outro não é compreensível numa mesma lógica. O ato de “aceitar” a presença do outro com toda a sua carga de diferenças no seio de uma sociedade hegemônica, constitui frequentemente, um processo de dominar ou subjugar o outro (Wulf, 2003:201). Considerando esses aspectos é que a noção de pessoa, como afrontamento de presença, se constitui num pressuposto que auxilia a abrangência de uma unidade da essência da existência humana. Existência complexa de relações que se entrelaçam na rede sociocósmica. Assim como os Maxakali conhecem o mundo a partir de sua experiência sensorial perceptiva, a proposta ao empregar a mitohermenêutica é tentar apropriar o conhecimento do outro por meio da percepção de seu modo de vida, de sua fala, de seus cantos e de seus jogos. É experimentar a lógica do outro, tecer os fios de cores e fibras distintas e, posteriormente, interpretar essa vivência subjetivamente, formando o tecido encantador. A leitura do mundo é realizada pela corporeidade e, por meio desta, poder descrever a diversidade de formas de percepção, variáveis conforme a construção da pessoa que habita o corpo, como, por exemplo, a percepção de uma criança em relação a um adulto e das mulheres em relação aos homens. 7 “Presuio Uma. meados Desenho 05 Faço essas considerações por dois aspectos que penso ser importante ressaltar. O primeiro deles é justamente aquilo que para alguns seria compartimentado numa discussão de gênero. Embora essa fragmentação não ocorra Se por meio do corpo se conhece o mundo, o corpo de uma mulher vai ser diferente do corpo masculino, assim como o de uma mulher estrangeira aos preceitos filosóficos de um grupo humano. Assim, a leitura do mundo em que se percebe os saberes e conhecimentos advindos dessa relação com o mundo e com outro, também são realizadas de modo distinto. Foto 05 na realidade Maxakali, pois a idéia de complementaridade perpassa toda a sua lógica, a estrutura de organização social proporciona essa divisão sexual. O mundo do trabalho tem marcado as ações das mulheres e dos homens no espaço sócio-cósmico. Assim, por ser eu mulher, os espaços por onde percorri eram os espaços permitidos às mulheres da aldeia. Essa condição do feminino influenciou as minhas ações, o meu olhar, a minha postura corporal e minha relação com o mundo durante todo o percurso realizado até então. O ser feminino, lunar, está sempre em oposição à lógica apolínea solar, masculina e dominante, representada pela razão ocidental e seus padrões normativos e de valores morais. Não só o olhar é diferente, mas a sensibilidade também é diferente aqui. Definidos os parâmetros que me guiariam nessa jornada, apresento os procedimentos adotados para a execução do estudo proposto. Como dito anteriormente, a metodologia é de cunho antropológico, cuja coleta dos dados em campo obedeceu ao curso dos acontecimentos vivenciados. va A tese está estruturada em quatro capítulos na tentativa de apresentar os apontamentos realizados na interpretação dos dados com a intenção de demonstrar a estética Maxakali expressa na iconografia que, por sua vez, envolve a filosofia do grupo assentada em uma razão afetiva. Razão esta centrada na apreensão do mundo por meio da experiência vivida e da concepção abstrata do cosmos. Dado o seu caráter de infinitude, o conhecimento está em permanente aprimoramento, almejando alcançar o estágio de equilíbrio entre as dimensões do visível e do inteligível. Esse equilíbrio está entre o movimento de pólos opostos que se encontram formando uma unidade complexa. Esse movimento de relações entre os contrários ocorre pela ação intencional cujo desenho é a transformação efetuada pela arte de ser no mundo e pelo entendimento absorvido no mundo. Agir é existir, é renovar continuamente a essência do Ser na relação com outros seres e com o universo que os acolhe. Para a explanação da interpretação sobre a filosofia Maxakali, elenco algumas noções e definições sobre alguns temas fundamentais. Por isso, no primeiro capítulo pretendo apresentar as referências que motivaram as minhas interpretações. O ponto de partida foi o meu envolvimento com o grupo e as implicações geradas nas relações entre culturas, assim como as motivações que me conduziram ao caminho percorrido nessa pesquisa e as questões que justificam a escolha por esse percurso e pelos meios que utilizei para efetuá-la. O ponto de de Minas Gerais - UFMG foram projetadas no grupo como uma inovação e variação de sua dinâmica cultural, atendimento de uma reivindicação coletiva e muitas vezes foi palco de conflitos, distúrbios e insatisfações. O processo de escolarização e a instituição escolar são compreendidos aqui como cenário de uma representação social imaginária que contamina não apenas aos Maxakali, mas, sobretudo, aos órgãos que gerenciam as ações e recursos das políticas públicas de educação. Essa peculiaridade é fundamental para delinear as questões cotejadas para o alcance de um diálogo polifônico, seja por meio de palavras, de gestos, ou criações da matéria, fundado na razão afetiva, na emoção subjetiva ou no conhecimento vivenciado. Como assevera Merleau-Ponty (1999:19) a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, sentir e ser afetado por esse mundo, habitá-lo e ser habitado por ele. Nessa fusão, o diálogo atinge a dimensão dos corpos por meio dessa comunicação com o mundo e a dimensão espiritual por meio da comunicação com a alma. Entre uma língua e outra se cria uma terceira língua compreendida por todos. aee 10 CAPÍTULO 1 ABRINDO CAMINHOS... ABRINDO CAMINHOS PARA DIFERENTES RAZÕES Ando a procura de espaço para o desenho da vida Cecíha Meireles No presente capítulo pretendo demonstrar o itinerário teórico percorrido por mim que pretendia a busca de novos caminhos que + dessem conta de compreender as inúmeras faces da natureza humana, no caso específico compreender a própria cultura onde estou inserida e tentar um diálogo com os Maxakali. Desenho 06 Esse percurso foi motivado pela necessidade de deitar um novo olhar e uma nova atitude ante o conhecimento científico, estabelecendo uma relação mais solidária entre o saber e a vida. Necessidade irrompida por uma insatisfação pessoal no que toca ao distanciamento do conhecimento produzido nos centros acadêmicos e o conhecimento obtido na arte de viver em sociedade. Os valores atribuídos a ambos saberes são desiguais, concedendo ao primeiro o grau de portador da verdade acima de qualquer suspeita, e ao segundo o estado ridículo de crendices, fantasias e imaginações. Desigualdade de tratamento regulada pelas origens ancestrais e corroborada pelo perfil sócio-econômico e de participação nas decisões de cunho sócio-político. Desde o meu ingresso na escola é que me vejo dividida. A escola, antes de eu a conhecer, constituía um sonho, um desejo de aprender a decifrar as letras e os desenhos, fonte de liberdade e autonomia. Aos poucos fui percebendo perda da espontaneidade e o cerceamento do conhecimento e dos saberes. Contraponto aos saberes e experiências das pessoas simples, dos camponeses e 12 A escolha pela Educação pode parecer contraditória tendo em vista meu desapontamento na trajetória educacional escolar. Mas pensando justamente nessa restituição do encantamento da infância e das expectativas de aprender e re-aprender continuamente que me predispus a percorrer essa via. Um outro fator que pesou na minha decisão foi o modo pelo qual eram transmitidos saberes e sabores ancestrais, aguçando os meus sentidos. Para deixar a semente (aquela que todos engolimos na infância) germinar e brotar a árvore, árvore cósmica que existe em nosso interior, era vital uma volta para manar a árvore, exteriorizando-a. O seu tronco firmando a essência existencial, os galhos ao gosto do vento que os toca e os deixa tocar, as folhas nascendo e morrendo num ritmo cíclico, adubando o solo e dando mais vigor à alma, as flores e frutos perfumando e colorindo o ar, desprendendo as sementes que iniciam o ciclo novamente. Longevidade e continuidade. Sabedoria da natureza, dos ancestrais que ainda vivem no âmago de cada ser e das comunidades que se encontram a margem da objetividade e das luzes da razão científica, que vez ou outra se manifestam, assustando e deixando o mundo perplexo com sua potência. Foto 07 va 15 1.1 - Ponto de partida: semear o solo O movimento realizado durante o período de doutoramento foi de intensa aprendizagem em cenários e contextos diferentes daqueles conhecidos por mim. Aprendizado que pretendo expor na presente tese. Nesse curso pude perceber pelas mãos de mestres generosos, as possibilidades de existência de múltiplas razões, ou seja, múltiplos conhecimentos sobre o universo. Foto 08 Toda a minha formação até então aceitava como única e indiscutível os preceitos do conhecimento calcados na razão iluminista. Em momento algum se questionava a validade de seus procedimentos para o alcance de resultados. O que possuía valor era apenas o conhecimento racional científico. Por outro lado, havia uma angústia que ultrapassava as explicações científicas e que apontava a insuficiência dessas para a explicação de uma série de fenômenos que não se encaixavam nesse paradigma”. Iniciei minhas reflexões sobre as in-certezas e validades do conhecimento por meio de leituras e discussões provocativas e questionadoras de autores como, por exemplo, Bachelard, Durand, Morin, entre outros, que chamavam a atenção para o princípio da objetivação da razão iluminista. O recuo histórico foi muito importante nesse processo para compreender a conjuntura da emergência do iluminismo no ocidente. O iluminismo surge em um contexto em que a necessidade de se afastar do intencional e subjetivo se fazia premente. Subjetivo povoado pelas sombras da escuridão, do desconhecido, do misterioso, do inconsciente, do corpo e da alma? 1 Khun (1975) que trabalha com a noção de paradigma como uma estrutura absoluta de pressuposições que fundamentam uma comunidade científica. Segundo Cardoso de Oliveira (1988), o paradigma é a essência de tradições cultivadas e muitas vezes cultuadas. Veja também Scholt (1966) e Masterman (1974). 16 A razão sob o signo das luzes e do uso pleno do intelecto resulta em uma categorização do mundo que será dividido conforme o grau de objetividade e inteligibilidade. O termo razão foi apropriado por esse método, que se colocava como único possível para atingir o conhecimento. Assim, a relação com o conhecimento tornou-se unilateral, as formas e concepções tradicionais de se relacionar com o mundo foram ignoradas. As relações passaram a ser objetificadas e a reciprocidade se deteriorou com a emergência do capital. A ligação com o cosmos passou a ser uma atividade de experiência prática, dessubjetivada”, voltada para a explicação objetiva do que foi observada dentro dos princípios do empirismo. A nova mentalidade também está fundada numa nova relação com o tempo, concebido como valor mercantil. O mesmo ocorreu com o trabalho, entendido como meio de dominação da natureza e dos homens, bem como com a arte técnica, como expressão de uma sociedade hierarquizada assentada nos meios urbanos e do poder do Estado. Em oposição a essa perspectiva estava a Desenho 08 sociedade tradicional, cujo tempo era regido pelos valores da natureza, o trabalho uma extensão desta e exercido nas corporações e no ambiente familiar, a arte como manifestação do devir e do sobrenatural e a sociedade assentada no meio rural. A cisão entre natureza e cultura ocidental atuava também na organização da estrutura social ao separar as classes que detinham as riquezas materiais, exercendo seu domínio pela força do capital ao lado dos intelectuais que se 2 Bachelard (1999) e Freitas (2003). 3 Overing (1995); Descola (1998) e Bachelard (apud Freitas, 2003). 17 em uma compreensão do mundo vivido, no espaço e no tempo, por meio de uma percepção apreendida de si próprio, como ser existente e das coisas do mundo. É essa epistemologia que coloca o homem no centro do conhecimento e que vai constituir o novo espírito científico, na medida em que a compreensão se dá a partir do ponto de vista do sujeito, superando a si próprio. O cerne desse novo espírito científico é uma proposta de “re- encantamento” do mundo. Proposta centrada na perspectiva de um retorno do pensamento simbólico e ou tradicional, no sentido da ciência holonômica”. O ponto de partida é a ratio hermética”, um pensamento de mediação simbólica”, voltada para a unidade do ser humano, como assevera Paula Carvalho: Um pensamento simbólico é uma sutura onto-epistemológica cujos projetos holonômicos da unidade do homem e de uma Ciência do Homem que religa (religare) e relê (relegere) reparadigmatiza e anuncia uma nova ética e uma educação da religação (Paula Carvalho, 1999:34). Re-encantamento em oposição ao racionalismo de base aristotélica e cartesiana que intenta almejar a universalidade por meio da divisão do senso comum ou bom senso. No entanto, o pensamento simbólico mediado por imagens, não está subordinado a um evento ou a uma situação histórica especifica ou existencial. A sociedade contemporânea desde os tempos da modernidade vem sentindo uma sensação de mal estar e de desencantamento provocados pelo desenraizamento da relação entre o racional e o espiritual, entre o corpo e a mente. Esta sensação se intensifica com o pós-guerra e mais tarde com os efeitos perversos do capitalismo tardio e ampliado. Alguns movimentos de busca de um novo re-encantamento do mundo foram e vêm sendo realizados principalmente com um olhar voltado para as tradições das sociedades orientais, pois estas ainda preservam um imaginário 7 Holonômico da raiz grega holon que significa o todo integrado. Ferreira Santos (2004). SA Ratio Hermética, razão hermesiana, consiste na conciliação dos contrários, a trajetividade, a mediação e a estruturação narrativa. Badia (1999). 9 Símbolo do grego symbolon que significa reunião das partes, juntar, reunir, combinações de duas partes, unificador de pares opostos. É um sinal visível de uma realidade invisível. Sanchez Teixeira (2001). 20 que intermedia o mundo sensível do mundo inteligível. Ocorre que essa busca, que a princípio era carregada de muita euforia, logo caía em um esvaziamento, pois o movimento era de fora para dentro e não o inverso. Hillman sabiamente sintetiza esse aspecto de busca da espiritualidade, a partir dos preceitos da filosofia oriental, com as seguintes palavras: (...) uma vez arrancado e importado para o Ocidente, (o oriente) ali chega privado de seu solo imaginal, esterelizado e cheirando a sândalo (Hillman apud Avens, 1993:13). Do mesmo modo como a busca pelo conhecimento de povos nativos resultou em um exotismo que no lugar de valorizar o pensamento destes apenas o ridicularizou. Conhecimento que muitas vezes foi expropriado de modo perverso, justificado pela sua condição existencial e pela superioridade da razão objetiva, divulgando-o de maneira banal e destituída de sentidos e afetividades. O re-encantamento não se encontra no outro, em paisagens desconhecidas e exóticas, e sim no cerne da própria reflexão filosófica e na interpretação que o filósofo realiza. Jung (1987) adverte que os valores das sociedades tradicionais devem ser descobertos em nossas próprias raízes psíquicas, no inconsciente, ou seja, na própria alma que se encontra entre o corpo e a mente. Nabo. Agp Mamokals AAA Desenho 09 21 Com essas reflexões decidi trilhar um caminho que me conduzisse à essência desse pensamento simbólico na tentativa de compreender não só as múltiplas formas de apreender o mundo, mas principalmente escavar em meu |º. Penso que somente após essa arqueologia da alma interior esse solo imagina evidenciando os vestígios preservados pelo imaginário é que poderei escavar outros solos em outras paisagens. Foto 09 É neste sentido que a fenomenologia de Bachelard (1999) descerra uma perspectiva para uma ontologia simbólica voltada para uma cosmologia das matérias: água, terra, fogo e ar e seus derivados poéticos. O cosmos nada mais é que uma revelação do ser humano no mundo vivente. Visando o re-encantamento é que tive que realizar uma arqueologia na paisagem conformada pela ação do racionalismo cartesiano. Seguindo o manual metodológico de uma escavação arqueológica iniciei com uma limpeza superficial do terreno para aprofundar no núcleo da terra evidenciando o seu perfil estratigráfico e assim poder conhecer melhor a geomorfologia e a palinologia da terra imaginal. Dali semear a semente e ir fertilizando o solo para poder brotar a 10 Termo proposto por Henri Corbin como alternativa possível que abarcasse o imaginário então muito depreciado e desvalorizado. Em sua acepção o imaginal atuaria como mediador entre a dimensão do sensível e do inteligível. Avens (1993). 22 árvores. Após um tempo de luta intensa e arranhões que marcaram o meu corpo parei e devaneei. Somente neste momento pude perceber a força da matéria e sua dinamogenia. Foi pela corporeidade que se deu a conexão com a alma. De fato, as imagens e o imaginário estão ancorados no corpo. É nessa dinâmica e mobilidade presentes tanto no materialismo científico, quanto no materialismo das imagens é que compreendemos as formas pelas quais é possível a transformação do mundo!2. Para Bachelard, a imaginação material se distingue da imaginação formal pelo seu potencial criador. A imaginação possui papel fundamental na criação científica, no cultivo das idéias claras, no reino dos conceitos"? É esse racionalismo poético que o autor supracitado vai propor como ruptura epistemológica, uma dinamogenia da imaginação material no discurso científico. A fenomenologia das imagens é uma tomada de consciência, uma vez que as imagens criadoras pertencem ao devaneio cósmico, realizado na quietude da alma e na solidão. A solidão é um mundo, um cenário de todo o nosso passado (Bachelard, 1988:14). Essa tomada de consciência é uma ontologia das imagens, pois o seré a própria imagem criada, cuja dinâmica é esse deslumbramento com o mundo e comigo mesma. Por isso ocorre uma mudança no ser. Mudança inclusive na forma de perceber a matéria e conceber as imagens. Senti depois dessa breve experiência, que a árvore não estava me prendendo, e sim eu a estava obrigando a se defender frente a minha luta interna. Era um abraço, um afago não compreendido na fricção entre os corpos. A natureza existente em mim sobrepujando a toda forma de objetivar o mundo. A construção desse mundo só é possível quando deixamos fluir a criação com uma intenção de interagir nesse mundo. Compreendi, pois que a fenomenologia do imaginário bachelardiana!! é definida como ciência da experiência da consciência que estabelece a plenitude 1? Durand (1988) quando se refere a fenomenologia das imagens de Bachelard. 1 Bachelard (1994) Introdução de José Américo Motta Pessanha. 14 Durand (1988). 25 das imagens, ou seja, o imaginário se confunde com a dinâmica da criação pelo criador. A partir dessa fenomenologia, Durand (2002), vai fundamentar sua tese sobre a Antropologia do Imaginário, baseando-se também nas reflexões de Eliade, Jung, Betcherev, entre outros. Reflexões e questionamentos no âmbito da filosofia da cultura e da hermenêutica simbólica, suscitados no Círculo de Eranos!*, que faz uma crítica ao pensamento ocidental e propõe uma ruptura epistemológica e não ontológica. A questão central discutida por esse grupo de pensadores é o homem e suas relações com o mundo. O ponto de convergência é o imaginário, que constitui as representações sociais e suas articulações simbólicas, reveladores do pensamento humano, ou seja, o conjunto de imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado pelo homo sapiens. (Durand, 2002:18). A via de seu pensamento filosófico sobre o simbolismo do imaginário é a antropologia. Esse novo paradigma de viés antropológico se funda no saber tradicional, em oposição à objetivação, a causalidade lógica e a generalização em favor da subjetivação, da singularidade e da similitude. Para tanto, o referido autor define a noção de trajeto antropológico para compreender como o imaginário é produzido, a partir de sucessivas trocas entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social (Durand, 2002:41). O aspecto antropológico do imaginário está em seu dinamismo equilibrador na organização das imagens, apresenta-se como a tensão entre duas “forças de coesão”, dois “regimes”, cada um relacionando as imagens em dois universos antagonistas, mediando a relação do homem com o mundo em que vive, com o outro e consigo mesmo. Noção que implica uma metodologia de convergência que apresenta a constelação de imagens, constantes e estruturadas por um certo isomorfismo dos símbolos convergentes. Os símbolos se constelam porque são variações !5 Paula Carvalho (1999) e Badia (1999) fazem uma descrição histórica, tanto da organização quanto do pensamento emergido nas reuniões do Círculo de Eranos, em Ascona, Suíça, realizado no período de 1933 a 1988 tendo a frente Jung e Otto. Toda a produção intelectual do grupo pode ser conferida nos volumes da publicação Eranos Jahrbuch. 26 arquetipais!, ou seja, variações de um conjunto definido de imagens que encerram uma narrativa mítica. Frente a isso, Durand (2002: 47) vai propor uma classificação desses conjuntos de símbolos se baseando no movimento, proposto nos estudos de reflexologia de Betcherev. Essas motivações vão encontrar no solo do ambiente cultural!” — as intimações objetivas -, por meio das classificações tecnológicas de Leroi-Gourhan, as orientações para o seu movimento (Durand, 2002:52). O rompimento epistemológico de Durand subentende uma nova forma de observar o homem e suas relações, levando em conta a intencionalidade e a subjetividade. Essa proposta vai propiciar uma abertura para a existência de visões de mundo e racionalidades incomensuráveis. Não obstante, para as culturas calcadas no pensamento ocidental a imaginação é desqualificada, considerada de ordem inferior, abaixo das faculdades mentais, situadas no nível das sensações e destituída de qualquer valor qualificativo, é a “louca da casa". Os casos em que a imaginação é tolerável é por meio das artes e da criação. Todavia, a arte é uma reflexão sobre a experiência humana, isto é, possui um caráter especulativo e concreto de problemas que são pensados tanto na via ascendente, ou seja, Desenho 11 parte do particular para se chegar a resultados universais quanto na via descendente, parte do universal para resolver questões da ordem do singular. Por 16 Para Jung (apud Durand, 1988) o arquétipo é a forma dinâmica, estrutura que organiza as imagens, mas sempre ultrapassa as concretudes individuais, biográficas, regionais e sociais da formação das imagens. A própria libido, não restrita a uma libido sexual e biológica, se torna a Energia psíquica em geral, espécie de motor imóvel do arquétipo. O arquétipo-símbolo possui um papel mediador. 1” Durand pretende uma sutura entre a natureza e cultura, que a razão moderna separou. Vale salientar que a cultura é compreendida, pelo autor, como pertencente a ordem do particular e a natureza à ordem do universal. No pensamento modemno a natureza só tem sentido em oposição às obras humanas, como a cultura, a sociedade e a História. 18 Avens (1993) e Durand (2002). 27 1.3.- A terceira via (-..) nada é mais perigoso para a razão que os vôos da imaginação. David Hume, Tratado de La naturaleza humana É neste sentido de busca de uma sutura entre a realidade palpável e os estados da mente, ou seja, o corpo e a mente, que se encontra um terceiro nível intermediário, que é a alma. A alma é compreendida como um mundo da imaginação, pois não é físico, material e muito menos espiritual e abstrato. A imaginação como intermediadora visa transcender a polaridade, equilibrando a existência dos seres. Alma presente na construção da pessoa Foto Maxakali, e que confere o caráter de incompletude do ser. O corpo (não importa que forma possua) é o envoltório desse núcleo do ser, e a palavra é a presentificação da alma. Intentando apreender melhor os sentidos da alma que adentro nos mistérios do terceiro, tertium datum?, esquecido nos abismos da existência como via para o diálogo entre as dimensões polarizadas, como o corpo e a mente, o céu e a terra, o sensível e o inteligível. O papel do terceiro é fundamental aqui, pois mp deflagra o aspecto da diferença. Diferença que assusta e “desequilibra” o pensamento ocidental calcado na “ dicotomia e na separação em esferas bem definidas Desenho 12 como pode-se perceber com a natureza e a cultura, o corpo e o espírito. 21 Sanchez Teixeira (1988). 30 Para reativar esse diálogo e revigorar a dimensão do terceiro é vital o avanço no sentido de re-estabelecer o pensamento do homem tradicional recomendado pela ratio hermética ao valorizar o pensamento simbólico. Segundo Ferreira Santos (2003b), a racionalidade hermesiana?, consiste em uma comunicação, condução e mediação entre mundos distintos com a incumbência de religar, re-ligare. Reconduzir o ser humano ao centro de si-mesmo, para tornar-se o que ele é. Recondução imprescindível em um contexto de incertezas e de crise da representação, entendida como o próprio elemento da religião. Representação conforme as assertivas de Bindé (2003) baseado na filosofia hegeliana, é concomitantemente da ordem da imagem quanto da ordem do mundo moral. Dentro da mesma disposição, o pensamento que lida com a incerteza e pretende uma organização a partir da desordem é o da complexidade, que de acordo com Prigogine (2003), está atrelada a multiplicidades de comportamento, a sistemas cujo futuro não se pode prever. A complexidade transporta para uma nova forma de racionalidade, no sentido de ultrapassar a racionalidade do determinismo e de um futuro já definido (Prigogine, 2003: 65). O cerne do paradigma da complexidade assinalado por Morin é o unitas multiplex, unidade complexa. Complexus é o que foi tecido junto, visa distinguir e não separar no momento da união. Rompe com a causalidade linear, acompanha a indicação das partes para ir em direção ao todo ou do todo em direção às partes. Nesta perspectiva, a cultura é entendida como um sistema que faz comunicar-se, contrapondo uma experiência existencial e um saber constituído. Essa unidade complexa pode ser verificada na cosmologia Maxakali. Apoiada nas considerações sobre o perspectivismo, noção preconizada por Viveiros de Castro (1996a e 2002a) essa forma de conceber a existência e de relacionar com o mundo e as coisas é uma ontologia engendrada nas cosmologias amazônicas. O corpo ao qual se refere não é o corpo físico, mas uma subjetividade inscrita nos pronomes cosmológicos. A identidade e o sentimento de pertença é 2 Hermesiano refere-se a personagem mitológica Hermes, condutor de almas. (Ferreira Santos, 2003b). 31 relacional. Cada ser possui um corpo e esse é apreendido na relação com o outrem. Essa diversidade de corpos se distingue pelas relações de afetos, afecções ou capacidades específicas a cada espécie de corpo (Viveiros de Castro, 2002a:391). Apesar de habitarem um corpo, nem todos os seres possuem o mesmo estatuto cosmológico, apenas aqueles que desempenham uma ação, subjetiva, e prática no continuum social. De acordo com Descola (1998) a intencionalidade e subjetividade está intrinsecamente ligada à relação de reciprocidade e partilha. Por isso são sujeitos, pois possuem uma alma. Trata-se de uma diversidade de pontos de vista, coexistindo sem se contradizer”. Para Viveiros de Castro, essa concepção ameríndia possui desdobramentos fenomenológicos, no que diz respeito à ontologia: Tomar as idéias indígenas como conceitos significa tomá-las como dotadas de uma significação propriamente filosófica, ou como potencialmente capazes de um uso filosófico (Viveiros de Castro, 20024: 125). Os seres que constituem o cosmos possuem uma substância material que é o corpo e uma substância imaterial que é o espírito. Logo, todos podem ser considerados pessoa, seres humanos, pois se trata de uma condição. A referência compartilhada entre os seres não é o homem como espécie mas a humanidade como condição. Logo, o ponto de vista humano é sempre o ponto de vista de referência. Todo animal, Desenho 13 2 Descola (1998). 32 CAPÍTULO II A CASCA ENVOLVENDO A SEMENTE: PESSOA E CORPOREIDADE NO UNIVERSO MAXAKALI A CASCA ENVOLVENDO A SEMENTE: PESSOA E CORPOREIDADE NO UNIVERSO MAXAKALI As árvores são fáceis de achar Ficam plantadas no chão Mamam do céu pelas folhas E pela terra Também bebem água Cantam no vento E recebem a chuva de galhos abertos Há as que dão frutas E as que dão frutos (..) crescem pra cima como as pessoas Mas nunca se deitam O céu aceitam (...) Arnaldo Antunes, As Árvores Na animação de conhecer o outro e apreender seu modo de conceber, viver e conhecer o ser e as coisas do mundo apresento, no presente capítulo, a maneira pela qual os Maxakali percebem o seu universo que perpassa pela noção de pessoa e construção do corpo. Utilizo a metáfora! da casca e semente por dois motivos: o valor semântico e o valor simbólico. Na língua Maxakali casca e semente possuem o mesmo valor semântico de uma essência interna e uma aparência externa. A palavra semente — xap é a mesma para indicar núcleo e no caso da palavra casca — xax é o mesmo que pele ou couro, que reveste o corpo — yia. O valor simbólico, que não está dissociado de sua semântica de envoltório e cerne, corpo- continente, germinou na relação com os Sena Maxakali, em especial com o potencial 1 De acordo com Cassirer (1996) a metáfora é o vínculo intelectual entre o mítico e o lingiúístico. 36 criativo das mulheres que manipulam as sementes para a confecção artística de colares, brincos, pulseiras e bolsas. As sementes estão sempre envoltas por uma casca ou pele natural, quando não são revestidas por bolsinhas tecidas com os fios de embaúba. O universo Maxakali é composto por coisas e | 73. seres que possuem um núcleo e um invólucro que os reveste, cobre ou envolve como uma capa de proteção e revigoramento. A partir de seu mito fundador alinhavei as interpretações sobre as imagens constitutivas de sua ontologia. Para ilustrar a noção de pessoa Maxakali é necessário desdobrar-se entre a casca e a semente, ou seja, em corpo e alma. A noção embrionária de Desenho 16 pessoa implica em ser um corpo que se apresenta ao mundo, frequenta o mundo e é mundo. É por meio desses dois pilares, corpo e alma, que vai se forjando a pessoa. O ser ainda está inacabado, vai ganhando formas e firmezas ao longo do tempo em constante transformação. A construção da pessoa decorre da identidade relacional, daí o seu caráter de incompletude ontológica. Durante esse processo de formação da pessoa é que ocorre a apreensão do mundo e do conhecimento do mundo e das coisas que o cercam. Nesse fluxo interpretativo sobre a pessoa e a concepção de corpo dos Maxakali valho-me de alguns aportes de cunho filosófico e antropológico, em especial das obras de Mounier (1963), Merleau-Ponty (1999), Mauss (1974) e Viveiros de Castro (1996a) que oferecem algumas reflexões sobre as implicações constituintes do ser na relação com o outro. Quando se trata da existência do ser é inevitável o auto-referencial? possível na relação com o outro. Neste sentido, Mounier (1963) um dos representantes da corrente personalista do existencialismo atesta, em sua 2 Auto-referência pessoal, EU ou coletiva, NÓS, variando conforme a estrutura de organização social. No caso dos Maxakali, o auto-referencial é pertencente a coletividade. 37 o lugar mesmo desta pertença, em que a ação ocorre em função do acontecimento do mundo. Nesse caso, a referência de pessoa é revelada por critérios corporais e da alma, forjando uma identidade que, em boa medida, é uma continuidade do desenvolvimento dos seres que encontram sua ancoragem num corpo próprio. O corpo é o que vai diferenciar, na medida em que é compreendido como um envoltório, uma roupaº, que permite as ações dos seres no mundo”. As formas corporais são contingentes, pois é aparência da alma que é essência. O caráter de transitoriedade, metamorfose e descontinuidade física são próprios do corpo, uma vez que a alma possui um caráter integrador, de continuidade metafísica. A união entre alma e corpo se realiza continuamente no movimento da existência. O corpo é um meio de ter um mundo. Por meio do corpo o Foto 14 indivíduo conhece o mundo e ao mesmo tempo se integra nesse mundo. Ter um corpo é possuir um mundo ao qual as percepções se remetem continuamente (Merleau-Ponty, 1999:122). Nesta perspectiva, o corpo e o mundo constituem uma única realidade. Realidade tratada como sensível e dimensional, na medida em que o corpo é a própria cane do mundo (Merleau-Ponty,1971). É nesse sentido que o autor vai asseverar que a união entre alma e corpo se realiza continuamente no movimento da existência, pela corporeidade. Em outras palavras, a relação com o “outro” se dá em virtude de que o corpo próprio, portador de uma existência, abre e ensina algo, ativando a consciência, sobre a existência do outro, por meio de seu corpo próprio. O “outro” 6 4 forma manifesta de cada espécie humana é um mero envelope, uma “roupa” a esconder uma forma interna humana. Viveiros de Castro (1996:117). 70 agir é sair de si mesmo para dar-se consistência e ao mundo. (Severino, 1983: 46). 40 é revelado a partir da própria existência, numa consciência de si mesmo. Essa consciência está carregada de intenções significativas. Intenções traduzidas nas atividades que é uma das maneiras pelas quais os seres objetivam alcançar as expectativas da realidade coletiva e por meio delas desvendar e descobrir capacidades e habilidades criativas e simbólicas que dão conta das dimensões da existência, pois conhecer é personificar. Sintetizando essa perspectiva fenomenológica do corpo e sua possibilidade de transformação e reversibilidade, Merleau-Ponty enuncia: Há ser, há mundo, há algo. (1999:203). Feitas as considerações de cunho mais teórico que contribuem sobremaneira para a apreensão da pessoa Maxakali e o seu constructo corporal abro para a leitura de seu universo sociocósmico. sea 41 2.1 - A construção cósmica de pessoa Assim como os estudos sobre a noção de pessoa, realizados pela equipe de Seeger (1987) no Projeto Brasil Central com os grupos Jê?, Alvares (1992) constatou que a fabricação do corpo dos Maxakali, sua condição de pessoa, depende da fluidez do sangue e da palavra. O corpo aparente dos Maxakali possui uma formação interna e externa. A interna é composta pelo sangue, hepº e pelo sêmen, yhão junção do universo feminino e masculino responsáveis pela reprodução física e cultural do grupo, representado espacialmente pela esfera doméstica. Já o externo manifestado na pele, pelas características das feições físicas são os papéis públicos, os rituais cerimoniais, o ritmo dos cantos e a ornamentação corporal, espacialmente abarcados pelo pátio central da aldeia e estão relacionados à encenação ritual de modo a executar a reprodução espiritual, movimento dos Yâmiy”º. No cosmos Maxakali cada ser possui um corpo, yia, um envoltório de sua essência, com o qual se apresenta ao mundo, apreende as coisas do mundo e o outro. Essa variedade de corpos existe em função de suas habilidades de ser e existir no mundo e pelas relações afetivas"! com o outro. Distinção baseada no processo de fabricação do corpo. No universo Maxakali o corpo é fabricado por sêmen, yhão e sangue, hep nos primeiros meses, sendo $ Esse estudo resultou na formulação teórica para os estudos de Etnologia Sulamericana. (Seeger; Da Matta & Viveiros de Castro, 1987). * Palavra cujo sentido também equivale a “sumo”, “seiva”, “essência líquida” de algo ou ser. Por exemplo o leite — xokhep , xok — animal e hep — sumo. 19 Yamiy, significam tanto canto quanto espírito. H Afetivo no sentido de afetar e ser afetado pela presença do outro. E») para preservar a condição existencial do ser, conforme o ponto de vista cosmológico Maxakali. Em sua percepção, os âynhuk transformam-se em inmõxáã!? por não obedecerem ao resguardo do sangue, por isso se transformam em bichos: transformação post-mortem do Koxuk, alma dos ã&ynhuk anda na noite e tem face oculta pelos cabelos, xe”. Esses seres são visíveis apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres trans-específicos, os xamãs. Essa forma interna, definida pela corporeidade organiza a essência antropomorfa de tipo espiritual e uma aparência corporal variável, na medida em que pode ser transmutável. Mode atacado E Ee Desenho 16 Desenho 17 É o simbolismo temporal das trevas, estruturado por Durand (2002) como símbolos nictomorfos, que suscita o caos e o ranger dos dentes, representados muitas vezes por pêlos negros, como a própria cabeleira e pela cegueira, símbolos da obscuridade, da noite e da feitiçaria em oposição à luz. Por isso o inmõxã é representado pela figura da onça, pois simboliza a ferocidade, o ranger dos dentes. Do mesmo modo estabelece a própria relação contrastiva entre os Tikmii'ún eos âynhuk que possibilitam a perpetuação do inmôxã. Em contraposição, os Yâmiy embora se relacionem aos animais, principalmente pássaros, não possuem qualquer manifestação bestial, suas aparições são antropomorfas, não são bestas, estão relacionados aos “seres 16 Em oposição ao Yâmiy está o Inmôxã que encarna o selvagem e canibal, representada pela figura da onça héingêiy (hãn — coisa, tngay - feroz) significa também todos os bichos. Um dos aspectos que se atribuem como a alma dos mortos dos diynAuk, é que estes possuem muitos pêlos no corpo, como os bichos ferozes. 1” Os Maxakali tem como padrão estético o corte de cabelo em franja, mostrando a face do rosto. É uma condição de como se apresentar ao mundo e aos outros. 45 humanos” e à aldeia, eixo central da vida social. O destino post-mortem dos tihik é tornarem-se palavra/canto, afirmação de sua própria condição de ser. Com relação à doença, esta é atribuída a dois fatores. O primeiro à feitiçaria dos inimigos e o segundo ao rapto do Koxuk vivente efetuado pelo Koxuk de um parente morto recentemente. Esse segundo fator é considerado em casos de agressão física, acidentes, doenças trazidas pelo “outro” e pela morte. A doença implica em desequilíbrio, desordem no trânsito das almas nas dimensões que compõem o indivíduo. A cura ocorre com a expulsão do ser causador da doença, através da realização de um ritual. A exceção fica por conta das pessoas muito idosas e dos recém-nascidos, pois os idosos já cumpriram sua trajetória aqui na terra e os recém-nascidos ainda não possuem Koxuk. Todas as atividades rituais são realizadas em grupo e normalmente são acompanhados de instrumentos sonoros como o chocalho, a manivela, o assobio (feito de taquara) e os instrumentos de caça como arcos e flechas usadas para sacrificar animais. Com a morte o corpo torna-se apenas uma casca morta, xukxax', cadáver. Daí o caráter transitório do corpo como finitude. A essência do ser é o koxuk, que após a morte se torna Yâmiy, espíritos cantores. A alma do falecido, o Koxuk é transformado em donos do canto, que são as palavras, kax. Para que esse trânsito ocorra é necessário obedecer às prescrições rituais e algumas precauções como a queima da casa do morto, de seus pertences, da roça e da casa de religião, no sentido de purificar e renovar. A casca morta está associada não só ao corpo que contém o espírito, mas a tudo que envolve a essência do ser, a alma, como a casa, miptut'*, as roupas, áynhukxax?e sapatos, pataxax?!. Esse fluxo entre os mundos visível e invisível determina também a mobilidade social do grupo, acarretando na mudança de toda aldeia ou abandono das casas na busca de renovação, aconchegando-se em novas “cascas de proteção”. 18 Xuk — morte, xax — casca. Casca morta. 1º Mip — árvore, tut — mãe. Árvore mãe que protege com o seu tronco, que alimenta com a seiva da vida. 20 Aynhuk- estranho, xax — casca ou pele. Casca do estranho. 21 Pata — pé, xax — casca. Casca do pé. 46 Por isso as formas de enterramento estabelecidas pelo grupo são vitais para a manutenção do equilíbrio em aldeia. Os parentes da pessoa falecida devem obedecer às instruções do velório, caso contrário pode favorecer o roubo de cadáveres. Nesse momento a relação de reciprocidade é fundamental. O ritual do Komãy?2 deve ser realizado com o intuito de estabelecer as trocas concretizadas não só Ri com os alimentos do corpo, mas também da alma, traduzidas pelos enterramentos. Cada pessoa possui um Komãy, cuja relação está assentada em uma afinidade | ritual entre pares do sexo oposto e não parentes que se sobrepõe ao sistema de parentesco. Foto 16 O cemitério, xukpo?? está situado na configuração espacial da aldeia em uma área de pouca circulação e visibilidade precária. Os enterramentos são feitos em cova rasa, atualmente com a presença de caixões fornecidos pela FUNAI, portanto, em posição estendida e não mais fetal como atestam alguns relatos de membros do grupo quando se referem aos seus antepassados. Como garantia de o indivíduo estar de fato morto os responsáveis pelo enterramento cravam uma estaca na região do coração, impedindo o seu retorno à vida como besta fera perturbando a ordem da aldeia. Em alguns casos, além da estaca encravada no coração, é necessária a queima do cadáver. Por isso, após o enterro, há uma vigilância constante de modo a verificar se a terra fendeu. Quando isso ocorre, é imprescindível a queima de modo a evitar a transformação do corpo em hângãy, onças. Essa regra, associada ao processo de construção da pessoa é fundamental para compreender a sociedade Maxakali, sua lógica interna e seu 2 Termo que é traduzido como compadre, pois institui as relações de reciprocidade. 2 Xuk —morto, pot — dividido. Morte dividida, distribuída ou despedaçada. 47 que é a manifestação concreta do espírito, yiã xe'e, que significa palavra verdadeira. Neste sentido, Cassirer (1994) vai afirmar que o mito, assim como a linguagem e a arte são uma unidade sensível simbólica. A narrativa gera um encantamento verbal tanto em quem narra quanto nos ouvintes que assistem e esse encantamento evoca imagens que subsistem no espírito de cada ser, possibilitando o revigoramento da alma, palavra. Segundo Overing (1995) a narrativa mítica desvela a totalidade cósmica de uma coletividade, no caso específico, de povos indígenas. Os mitos atuam como intermediadores entre o cosmos e os seres, por seu caráter descritivo e explicativo dos fenômenos. O mito é filosofia, pois aborda questões metafísicas básicas a respeito da história e do desenvolvimento do tipo de coisas ou seres que há no mundo, e também suas modalidades de existência no exercício de ser e de se relacionar. O que ocorre à noite no ritual está inteiramente relacionado ao que é feito durante o dia na aldeia. A palavra, alma, restitui o equilíbrio da vida em aldeia, é um retorno ao universo, à ordem primordial dos seres. Neste sentido, Gusdorf (1960:15) trata a consciência mítica como um complexo de sentimentos que corresponde à busca de satisfações exigidas pelas necessidades humanas fundamentais, pois é estrutura do ser no mundo. O mito está ligado ao primeiro conhecimento que o homem tem de si mesmo e de seu entorno. Por isso, a palavra é considerada como um potencial mágico, transformador. Está prenhe de sentidos e significações conforme a sua evocação e pronunciação. Na cosmologia Maxakali as palavras possuem, além de seus atributos semânticos, uma vida própria que é continua e aberta a novas possibilidades de existência, como a alma. Para compreender melhor a metafísica do grupo, descrevo algumas narrativas míticas e posteriormente teço algumas interpretações, lembrando que a orientação está norteada pelos objetivos do presente trabalho. 50 A origem da mulher? Naquele tempo, só existiam homens não tinham mulheres. Um homem, chamado Kokex úútak? estava na roça trabalhando, quando apareceu uma mulher no barro e começou a gritar: - Oh pai! Oh pai! O homem “assuntou” e perguntou: - Onde estão me chamando? Quem está me chamando de pai, se eu não tenho filho! Foi procurar em direção à voz e viu uma mulher bonita, com longos cabelos, adormadas de cordões e pulseira nos pulsos e nas pernas. Curioso o homem perguntou: - De onde você apareceu? - Apareci no barro, foi de lá que saí, pois minha mãe é o barro. O homem pegou a mulher e ia levando consigo quando já no meio do caminho ele explicou: - Minha filha, você não pode casar com tiktak (primo) por que não presta. Ela então casou com Kokex iitak. Ao chegar a aldeia, seu barraco que sempre fora construído no meio das outras foi desmanchado e construído na extremidade, bem distante. Os outros começaram a desconfiar dessa mudança. - O que foi que houve que Kokex útak que agora só faz barraco na beirada? Ele gostava de ficar no meio! 7 Havia dois rapazinhos, chamados Kuniõg”, sobrinhos de Kokex iútak, que resolveram descobrir o que estava acontecendo: - Oh Kuniôg, nós vamos lá tirar mel para chupar e ficamos para dormir. Mas nós vamos dormir de mentira para ver o que ele está fazendo. Foram lá, tiraram o mel, chuparam. Mais tarde começaram a dizer que estavam doentes e gemiam: - Hã, hã, hum....!!! Os outros se afastavam deles e diziam: - Vão para lá! Começaram então a chamar por Kokex úitak, que os atendeu e disse: 25 Mito narrado e cantando por Isabel e Noêmia Maxakali em março de 1999. 26 Kokex — cão, átak, pai. *” Kuniõg — coelho. 51 - Durmam aqui, meus filhos! Ficaram então para dormir na casa de Kokex úitak. À noite, se deitaram e fingiram que estavam dormindo, de modo a descobrir alguma coisa. Kokex úitak tinha uma sacola feita de couro de bicho do mato onde ele guarda a mulher. Essa mulher na verdade é um “deus” e não uma mulher "assim", comum! Todos os dias pela manhã cedo ele guarda a mulher dentro da sacola e carrega consigo durante o dia. À noite ele tira a mulher para dormir com ele. Vendo que os sobrinhos dormiam (de mentira), o tio se levantou e chamou os dois. - Oh Kuniôg, vocês estão dormindo? Ele pegou um pedaço de lenha e cutucou os dois no pescoço para verificar se estavam dormindo de fato. Deixou a lenha junto ao pescoço dos dois e se deitou. Depois tirou a mulher da sacola e dormiu com ela. Os sobrinhos viram o que aconteceu e no dia seguinte contaram para os outros: -Yaya? (tio) estã dormindo com mulher bonita! Os outros então correram para ver. Todos foram até a casa de Kokex iitak. - Você está dormindo com mulher! Kokex úitak respondeu: - É mentira! Eu estava dormindo era com um pedaço de lenha! Os sobrinhos disseram: - É mentira! Você está dormindo com mulher, com “cabelão”, com cordão, com pulseiras nos braços e nas penas. É bonita! Mulher bem bonita! Kokex iúitak pegou sua sacola e jogou a mulher para cima de uma árvore onde ela ficou enganchada entre os galhos. (Acho que era “deus” mesmo porque ela voou e enganchou na árvore). Ficou lá durante um bom tempo. Enquanto isso os outros estavam procurando por ela. Kokex iitak então falou: - Não é mulher não! Os dois Kuniõg: - É mulher sim, nós vimos! É mulher mesmo! À noite, na aldeia eles fizeram ritual e começaram a cantar no terreiro. Nisso a mulher começou a cantar também. 28 Yáyã — pode ser avó ou tio. 52 A origem do ser é do interior da terra, do barro úmido e tenro que envolve como o útero. A terra, tellus, como a grande mãe. Apareci no barro, foi de lá que saí, pois minha mãe é o barro. O envoltório está sempre presente na vida dos seres e dos antepassados dos Maxakali. Isso é evidenciando quando a narrativa faz referência ao couro, xax como proteção e ocultação no caso específico. Kokex iitak tinha uma sacola feita de couro de bicho do mato onde ele guarda a mulher. Essa mulher na verdade é um “deus” e não uma mulher "assim", comum! Um outro aspecto é a temporalidade marcando as ações dos indivíduos e sua apresentação perante os outros. Todos os dias pela manhã cedo ele guarda a mulher dentro da sacola e carrega consigo durante o dia. À noite ele tira a mulher para dormir com ele. O caráter divino de um ser que difere dos demais por possuir uma aparência e uma essência que re-liga os homens, é a anima?” que vai proporcionar um novo modo de vida na coletividade do grupo. Essa mulher na verdade é um “deus” e não uma mulher "assim", comum! Caráter reforçado pelo seu movimento de vôo, ascensão a uma dimensão espiritual, mas ao mesmo tempo finca sua presença nos galhos da árvore, o axis mundi, que re-liga as duas esferas. O simbolismo da árvore é um caminho rumo à realidade absoluta, conforme Eliade (1991:47), em que o ser passa do “irreal para a realidade”. Kokex úitak pegou sua sacola e jogou a mulher para cima de uma árvore onde ela ficou enganchada entre os galhos. A própria narradora tece um FEL comentário durante a narrativa. (Acho que Desenho 20 era “deus” mesmo porque ela voou e enganchou na árvore). A árvore é uma reserva de vôo, como diz Bachelard (1990), comunhão do espírito e da matéria. * Segundo Jung (1987) anima se refere à interioridade feminina do homem. Para Hillman (1995) anima refere-se a uma só palavra, interioridade, seja para os homens ou mulheres. 55 A mulher estava oculta pelas folhagens dos galhos da árvore, cujo simbolismo de intimidade e de grandeza de mundo?, incita nos homens o desejo de penetrar nesse universo. Para isso os homens se reúnem para a execução de um ritual no sentido de evocar os espíritos e os conduzirem até a mulher, também alma, anima, À noite, na aldeia eles fizeram ritual e começaram a cantar no terreiro. Nisso a mulher começou a cantar também. A comunicação entre os dois mundos é viabilizada e correspondida pela anima, universo do feminino. Os homens Maxakali atuam no mundo exterior, exercendo o papel na vida social em contraposição a vida interior. É essa interioridade contida nos invólucros da casa, miptut, do mundo doméstico das panelas, nax que contêm os alimentos que possibilitam a vida. É a interioridade que guarda a alma. A dimensão da metamorfose corporal atestando a transitoriedade do corpo está associada às atividades e intenções dos seres. Viraram passarinho que fura pau (..) Viraram um outro passarinho que voou até lá(...). Coincidente com as simbologias míticas de pássaros com a anima ou psiché (pombos, gaivotas, andorinhas, etc.)*. MiMá Dessaho de GiUMIR Mestahedo Desenho 21 * Bachelard (1996) ao se referir as imagens da imensidão. “3 Na cosmologia Maxakali, os espíritos são femininos, anima. “( aalma, esta coisa vislumbrante, eólica, ilusória como uma borboleta (Jung apud Hillman, 1995:38). No livro de cantos rituais Maxakali(FUNAI/SEE-MG, 2004) , os pássaros são evocados em seu movimento 56 Por outro lado, a continuidade metafísica, espiritual do ser Maxakali está bem explicita na possibilidade de regeneração quando da morte da mulher que esquartejada suas partes físicas ou os adornos que o complementa, como as pulseiras e colares, são coletadas pelos homens e guardadas no canto da casa, para a emergência de múltiplos outros seres a partir de seus fragmentos por meio de um outro envoltório corporal. Todos foram para cima dela tentando pegá-la e acabaram matando-a. Assim, cada um ficou com um pedacinho da mulher, braços, pernas, colares, cordões. O Sons mis canto da casa, como demonstra Bachelard (1996) é um refúgio que assegura o valor primevo do ser. A imobilidade permite a regeneração desse ser. Levaram esse pedacinho e colocaram no canto de sua barraca. Depois desse pedacinho foram saindo as mulheres. O movimento ascensional de Kokex útak em direção à outra dimensão como prenúncio de sua morte e longevidade em outra dimensão. O canto embalando o movimento e a terra o convidando para habitá-la, retornando ao seu útero, permitindo a existência metafísica do ser Maxakali. Mas o Kokex fitak ficou com raiva e todo dia pela manhã cedo ia para o Kuxex e ficava cantando, pulando para cima e cantando. Todos os dias de manhã cedo. Até que miptut nax apareceu e conversou com ele. Chegou e abriu um buraco para ele morar. Todos os dias saía, cantava e entrava dentro do buraco. . Foto 18 O canto, evocação da palavra restaura a unidade cósmica na vida terrena e a reprodução dos seres. Porém, ao ser retirado do buraco, do mundo subterrâneo no ar, como sopro da alma. 57 2.3. O corpo que sabe É por meio do corpo que os Maxakali conhecem o mundo e são partes desse mundo. Mundo concebido na relação com o eu, o outro e as coisas que o cercam mediado pela corporeidade. É pela corporeidade que se chega ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne, ou seja, tornando-se os outros com os quais se relacionam e tornando-se mundo. Assim, o corpo e o mundo constituem uma única realidade. Realidade tratada como sensível e dimensional, na medida em que o corpo é a própria carne do mundo (Merleau- Ponty, 1971 e 1999). De acordo com Merleau-Ponty (1999), o corpo é o ponto de vista, os olhos são fragmentos de matéria, são movimentos, uma abertura para o mundo funcionamento do corpo, mas sim a janela da alma, por onde adentram os cantos do mundo cósmico. Os sentidos como a visão, o olfato, o paladar, o tato e a audição apreendem as coisas não como mero receptáculo e sim Foto19 interagindo e criando, re-inventando o mundo. Daí que o conhecimento não se dá por meio de conceitos e idéias e sim da vivência e da experiência, no contato com o mundo material e espiritual. O corpo é um dos componentes do mundo material e alma do mundo espiritual que juntos formam uma unidade cósmica. Ter um corpo é juntar-se a um meio definido. O mundo e o corpo ontológicos que reconhecemos no coração do sujeito não são o mundo e idéia, ou o corpo e idéia, são o próprio mundo contraído em uma apreensão global, são o próprio corpo como corpo-cognoscente (Merleau-Ponty, 1999:547). 60 O conhecimento é incorporado, na medida em que a pessoa é uma subjetividade e ou uma intencionalidade em oposição à objetividade do mundo ocidental. Todas as ações são carregadas de intenções, no sentido de habitar o mundo como ser atuante e criante e ser habitado pelos outros e pelo mundo, numa recursividade de ações criativas e inventivas que contribuem para a formação da pessoa Maxakali, esse ser incompleto e inacabado. Nesse movimento do corpo com o mundo os Maxakali estabelecem suas relações afetivas com o outro. E é dessas relações que o conhecimento é gerado, por meio da percepção. O eu, sujeito da percepção, viabiliza a comunicação e a inter-relação. A percepção do outro ocorre com essa comunicação e inter-relação de movimentos variados que afetam o ser-no-mundo. O mundo é vivido e experimetado pelos seres que o habitam. O mundo não é um conceito ou abstração, ele existe porque existem seres. Assim como os seres o percebem pela corporeidade, o J mundo os percebe em suas diferenças de & perspectiva de aparência e de modalidades de relacionamentos. A existência está entre ua as dimensões de modo sensível e inteligível e não na concretude material. Em outras palavras, a relação com o outro se dá em virtude de que o corpo próprio, portador de uma existência, abre e ensina algo, ativando a consciência, sobre a q existência do outro, por meio de seu corpo próprio. O outro é revelado a partir de sua própria existência. Essa consciência está . =. Desenho27 À x : carregada de intenções significativas. Nessa concepção, ver é entrar em um universo de seres que se mostram (Merleau-Ponty, 1999:105). A consciência é o exercício da alma como mediador entre o sujeito e o objeto configurando a essência mesma do ser. Daí seu arranjo uno e universal 61 que ativa a transcendência almejada pelos indivíduos na possibilidade de ser no mundo e ser com o mundo. Não há separação entre a natureza e cultura, pois ambas fazem parte de uma mesma esfera. A partir disso, Viveiros de Castro (1996a e 2002a) afirma que a epistemologia indígena parte do princípio de que conhecer bem algo é ser capaz de conferir o máximo de disposição — subjetividade -, ao que se está conhecendo. A relação não é objetificada e compartimentada em distintos graus e valores do conhecimento. A relação é una e integralizadora, a distinção é meramente corporal, pois a perspectiva está nos olhos e na sensibilidade de quem vê e sente. Esse conhecimento se manifesta na exibição estética corporal, veiculados na pintura, na ornamentação ou nos padrões estilísticos de corte de cabelo e da indumentária utilizada. A pele, xax, casca que reveste o núcleo da essência do ser, xap, superfície humana é o continente de um conteúdo. Conteúdo, que apesar de sua característica de constância é ativada continuamente entre o novo e o tradicional. Cada ser se apresenta ao mundo de acordo com a relação estabelecida nesse movimento entre o eu, o outro e o mundo. Cada um Foto 20 possui uma singularidade que se expressa na superfície visível, tornando uma referência de uma particularidade na totalidade cósmica. O contato com as coisas do mundo provoca, no indivíduo Maxakali, uma reação no corpo que ativa a imaginação e a estética. Ao manipular a madeira as pessoas não estão trabalhando uma simples matéria objeto da natureza, mas a um ente ancestral que lhes dá vida, seja por meio da possibilidade de transformarem-se em instrumentos ou na própria condição de proteção e doador de vida. 62 Essa capacidade de ver o mundo diferente, segundo Lagrou (2002) ocorre em pessoas que possuem um mesmo corpo e compartilham pensamentos e modos de vida. O conhecimento é constituição do mundo e da pessoa. Há uma fusão que gera uma outra pessoa e um outro mundo desse casamento. A alma como intermediário da mente e do corpo possui um princípio unificador de estar no mundo e experimentar o mundo, personificando-se nele. Essa partilha de pensamentos e forma de perceber o cosmos é que define Ê Desenho 29 uma pessoa Maxakali. A identidade do grupo expressa no exercício de suas ações é regulada por decisões nas relações sociocósmicas, na medida em que há diferentes formas de ver o mundo. Diferença que não significa desigualdade, mas uma diversidade de possibilidades de existir no mundo atuando e criando continuamente. Movimento que pressupõe uma resposta às motivações do mundo e das coisas que o integram e que resulta na re-ligação dos seres da unidade sociocósmica. aee 65 CAPÍTULO III DESENHANDO O SOM E CANTANDO AS CORES DESENHANDO O SOM E CANTANDO AS CORES Yse estaba pensando en su corazón cómo hacer cuando la vieron a la guacamaya y entonces la agarraran y le empezaron a poner encima todos los colores y Le alargaron Las plumas para que cupieran todos. Yast fue como La guacamaya se agarró color 3 ahí Lo anda paseando, por si a los hombres y mugeres se Les olvida que muchos son los colores y los pensamientos, y que el mundo será alegre si todos los colores y todos los pensamientos tienen su lugar. Subcomandante Marcos, A História das cores Ao debruçar-me sobre a arte Maxakali, especificamente a iconografia, algumas reflexões foram importantes para a execução da pesquisa e elaboração do trabalho aqui apresentado. Uma das preocupações que me guiaram até o presente momento foi de mostrar que a arte não precisa de uma validação dos preceitos estéticos filosóficos calcados no racionalismo moderno. A pesquisa bibliográfica sobre o assunto foi bastante ampla, o que proporcionou cogitar a respeito de uma divisão bem clara e concisa sobre a arte dos nativos. Divisão que coloca de um lado uma perspectiva fundada nas categorias do entendimento pautadas na razão cartesiana e de outro a perspectiva de categorias nativas pautadas nos saberes tradicionais. Vale lembrar que boa parte dos trabalhos consultados é composta de autores europeus cuja formação ainda refletem o contexto histórico de dominação e hegemonização de um padrão estético baseado na razão objetiva, em que a arte ocupa um lugar específico na organização da ciência e dos conhecimentos de ordem mais subjetiva. A arte dos povos não-ocidentais ganhou a atenção no universo europeu com as grandes navegações ao proporcionar a descoberta de novas realidades. A princípio, o interesse estava voltado para a beleza plástica da cultura material e 67 distinção entre a estética, compreendida como as formas e os efeitos na percepção humana, e o artístico, criações de atividades próprias de uma sociedade observada em seu contexto natural. Não obstante essa distinção, entre as percepções estética e artística, ou melhor, entre a apreciação em contraponto com a atividade criativa resulta em uma interpretação reducionista, mesmo considerando a arte como parte integrante da estrutura de ações sociais, em relação dinâmica com outros sistemas da sociedade, enfim como representativo de múltiplas formas de expressão, em que as emoções estão expressas na forma e na associação existente entre elas e as idéias. Numa perspectiva similar à boasiana, Maquet (1986) considera como necessária a diferenciação entre a arte e a estética. Para o autor, os objetos de arte e os estéticos são duas classes de objetos ligados entre si. Em um mundo ideal, os objetos de arte seriam uma subclasse dos objetos estéticos. São duas classes que se recobrem parcialmente. Por outro lado, os povos sujeitos e autores da arte sobre a qual o ocidente estabeleceu os critérios e categorias sobre o seu universo se irompem + apresentando os seus critérios e categorias, ampliando a discussão da univocidade de concepção da arte. No seio de cada uma dessas sociedades, Desenho 31 a arte é vista dentro de um mesmo contexto de outras expressões e ações dos indivíduos humanos*. 4 Gow (1998); Mendez (1995) e Price (2000) 5 Para Hart (apud Mendez, 1995), cada forma de arte possui sua própria estética interna, não havendo, pois uma estética universal aplicável a todas as formas de arte. Veja também Barcelos Neto (2002). 70 Considerando esse aspecto, Mendez (1995) trabalha com a perspectiva de que a arte nativa é uma forma de expressão, de um indivíduo ou grupo de indivíduos no contexto de sua sociedade, da satisfação alcançada na relação com a materialidade. Essa satisfação pode ser traduzida como uma manifestação de sua percepção e seus ideais no processo criativo. Logo, é todo trabalho, produção, elaboração, feitura e substância. É a simbolização da essência da vida do homem em sociedade. Simbolização percebida por Merrian (1971) ao definir a arte como expressão da emoção e do significado das ações humanas, além de refletir certos comportamentos sociais de instituições políticas e de organização social. Os símbolos, como preconiza Cassirer (1994:48) são formas vitais de atividade do pensamento, ou seja, é a maneira pela qual o homem interage no mundo real em que vive. Nessa interação, o homem acaba por recriar a realidade, dando novos significados para o entendimento do cosmos e apresentando novos produtos simbólicos. Como atesta Bachelard (1989) a faculdade de simbolizar está articulada com . . n o Desenho 32 ROLA tapa a imaginação e com a criatividade humana. Imaginação que segundo Vigotsky (1988) é base de toda atividade criadora. Tudo aquilo que está no entorno e que tem sido criado pela mão humana, todo o mundo da cultura, é produto da imaginação. Nesta perspectiva fenomenológica a própria concepção de ser e estar no mundo numa relação com outros seres já constitui uma simbólica. Nesse contexto, a arte se desconceitualiza e passa a ser compreendida como um fenômeno, na medida em que revela uma função universal, essencial ao gênero humano. A sua avaliação e julgamento perpassam ao sentimento que a anima e ao conhecimento inerente na sua relação com o mundo. A De acordo com Mauss (1968) os fenômenos estéticos compõem a maior parte das atividades humanas em seu aspecto social e individual. A coletividade reconhece a beleza no momento da apreciação de algo que foi criado e elaborado por um indivíduo ou grupos de indivíduos. Assim, todos os fenômenos estéticos são fenômenos sociais. Fenômenos que atribuem beleza e satisfação estética nas coisas do mundo, nas ações dos seres, nas criações e nos próprios seres que constituem o universo, que tem seu movimento gerado na concepção de espaço e tempo. Espaço e tempo que irão determinar a atividade, a criação, a concepção de indivíduo e sociedade a partir de uma visão holística, conforme afirma Maffesoli (2002). A estética é um meio de reconhecer-se, não se resume numa questão de gosto ou conteúdo, mais voltado para o objeto estético, e sim para as formas de existência e o modo pelo qual essas são expressas no âmbito da coletividade. Portanto, a arte humana se confunde com o próprio ser da arte. O que é elaborado pela potencialidade criativa e inventiva dos indivíduos e de sua coletividade refletem em boa medida a concepção de mundo e o modo como o ser se integra nesse mundo. A arte é compreendida aqui como a expressão de satisfação de uma necessidade material associada com a necessidade de descerramento das visões e dos desejos da pessoa. É uma revelação de atividade criativa que preenche e cultiva a vida cotidiana dos seres, como diz Rubin de la Borbolla (1974). É uma ação vital. Vitalidade compreendida como estética. Os processos que engendram a criatividade devem ser levados em consideração, pois dizem respeito aos estímulos que orientam a sensibilidade. Criatividade que perpassa a inspiração e a intencionalidade de agir e reagir às provocações suscitadas na alma do artista em sua relação com o mundo e os seres que o habitam. Observando os Maxakali pude perceber que as crianças e os adultos fazem o desenho como um divertimento e experimenta, por meio dessa linguagem, seu modo de ver e viver o mundo, conforme as explicações dadas após a realização desse fazer. n 3.1 - Socialidade e pessoalidade na criação estética A criação é um profuso desdobramento, uma reestruturação, portanto, uma intensificação da vida. O ato de criar para compreender o mundo é vital para a existência humana. Todo ato é uma intenção, o que pressupõe uma mobilização interior, uma imaginação do que vai ser realizado. Criar é um processo existencial, interiorizado, uma ativação da alma. Os processos criativos são considerados nos níveis pessoal e social da existência. O potencial sensível e consciente das pessoas emerge no interior de uma coletividade. Nesse âmbito, o homem desenvolve a sua pessoalidade”, seu corpo, seus sonhos, suas aspirações e suas realizações. A pessoalidade subjetiva de cada um está interligada a socialidade”. A criação estética Maxakali é regida pelas ações e reações do ser no mundo mediadas pela percepção sensorial do corpo próprio sobre a qual se dá o conhecimento. O ato em si é uma busca pelo prazer sensorial e pela alegria o que implica o entusiasmo e a catarse. As noções de pessoalidade e socialidade são importantes para a compreensão da estética, na medida em que o substrato do reconhecimento reside na experiência do outro, ou seja, a pessoa está entrelaçada a um grupo por meio das relações de reciprocidade. Relações que permitem o entrecruzamento de ações, eventos e afetos que formam uma totalidade. É uma lógica de fusão da dimensão do sensível e do afetivo das relações sociais. Em uma perspectiva afim, Vygotsky (1998) ao tratar da arte e imaginação, estabelece que a criatividade das pessoas é constantemente re-elaborada e entremeada pela vivência na coletividade e dinamizada com seu repertório de imagens individuais, erigindo novas realidades em conformidade com suas preferências e necessidades referendadas pelo grupo. 6A noção de pessoa é fundamental para a compreensão de pessoalidade, que se dá no movimento entre o EU e o OUTRO. É na relação com o Outro que o Eu existe. A pessoalidade subtende possuir um corpo próprio cuja consciência de si mesmo é desperta na relação com o outro, inerente à relação de intersubjetividade. Mounier (1964); Mauss (1968); Ricouer (1992 e 1996); Merleau-Ponty (1999) e Maffesoli (2002 e 2003). 7 Cf. Maffesoli (2002 e 2003) que define o termo socialidade como o compartilhar o mesmo universo regido por meio das relações de reciprocidade e de afetividade, logo relações intersubjetivas geradas nas variáveis de interação no mundo e com os demais seres que o habitam. 75 A pessoalidade é referendada pela socialidade numa interação da materialidade e da subjetividade inscritas no universo. Nesse fluxo intermediário entre as partes desponta a beleza por meio de estímulos à sensibilidade. Em outras palavras, a pessoa na dinâmica da vida social apresenta aos seus pares o que apreendeu, criou e recriou do mundo vivente. Toda produção é uma criação individual. Nessa apresentação, que pode ser expressa de diferentes modos, como objetos, gestos, canções e grafismos manifestam-se as relações afetivas, as habilidades técnicas de elaboração, a experiência de vida e a capacidade criadora, que pode ser imaginativa e perceptiva?. As imagens reveladas nos desenhos são bem ilustrativas dessa manifestação em que é possível compreender as nuances da imaginação perceptiva em conjunção com a percepção imaginativa presentes em suas narrativas míticas. No processo de elaboração do desenho dos Maxakali, imagens são formadas e idéias construídas a respeito dessas, resultando em um conteúdo determinado. A expressão desse conteúdo revela o seu conhecimento perceptivo e imaginativo. A imagem é portadora de Desenho 34 sentidos. É o ponto de partida na produção de uma poética visual própria. A escrita, kax'âmix” e o desenho, koxux!º são parte de uma projeção corporal. Pois escrever é desenhar o som e o desenho é a materialização da alma. A palavra imbuída de sentido torna-se canto e a concretude desse canto é a alma. Portanto, o desenho é o canto corporificado nas 8 Lagrou (2002). 9 Kax — palavra, canto, âmix — desenho. Desenho da palavra ou do canto. 10 Koxux — alma, imagem. 76 imagens registradas em uma superfície. É o cerne do ser, núcleo, semente, exteriorizado na superfície que o envolve, pele, casca. Corporal porque o mundo é apreendido na relação consigo próprio, com os outros e com a materialidade que integra a totalidade. O olho, janela da alma, guia as mãos, princípio da sabedoria, primeiro cérebro do sapiens”. Com os sentidos os seres conhecem o mundo e sua capacidade criadora se dá por meio dessas sensações"? Sensações que alimentam o corpo e a alma. A sensação é estética, pois ela encerra um equilíbrio e um ritmo, tanto na gestualidade quanto na apresentação das imagens. Nesse momento há uma interação com o mundo, de interiorização e apropriação, favorecendo a realização e a possibilidade de construção do fazer artístico. A noção de sensação empregada é a maneira pela qual as pessoas são afetadas e a experiência de um estado do Foto 22 próprio ser dessas pessoas??, O fenômeno estético é definido pela presença da noção de belo, do prazer sensorial, da alegria, do entusiasmo e da transformação. A maior parte das atividades humanas sociais e individuais é uma experiência estética. Logo, a experiência estética, conforme Ferreira Santos (1999) é um processo de conceituação, internalização e exteriorização em que as imagens são vivenciadas e transformadas no seio de seu universo percebido e construído. 11 Leroi-Gourhan (1984). 12 Ferreira Santos (1997). 13 Merleau-Ponty (1999). 7
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