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A Herança - Machado de Assis, Notas de estudo de Literatura

A Herança - Machado de Assis

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 13/09/2010

izabele-caroline-rodrigues-gomes-4
izabele-caroline-rodrigues-gomes-4 🇧🇷

4.3

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Baixe A Herança - Machado de Assis e outras Notas de estudo em PDF para Literatura, somente na Docsity! LITERATURA BRASILEIRA Textos literários em meio eletrônico A Herança, de Machado de Assis Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1878 Venância tinha dois sobrinhos, Emílio e Marcos; o primeiro de vinte e oito, o segundo de trinta e quatro anos. Marcos era o seu mordomo, esposo, pai, filho, médico e capelão. Ele cuidava-lhe da casa e das contas, aturava os seus reumatismos e arrufos, ralhava-lhe às vezes, brandamente, obedecia-lhe sem murmúrio, cuidava-lhe da saúde e dava-lhe bons conselhos. Era um rapaz tranqüilo, medido, geralmente silencioso, pacato, avesso a mulheres, indiferente a teatros, a saraus. Não se irritava nunca, não teimava, parecia não ter opiniões nem simpatias. O único sentimento manifesto era a dedicação a D. Venância. Emílio era em muitos pontos o contraste de Marcos, seu irmão. Primeiramente, era um dândi, turbulento, frívolo, sedento de diversões, vivendo na rua e na casa dos outros, dans le monde. Tinha cóleras, que duravam o tempo das opiniões; minutos apenas. Era alegre, falador, expansivo, como um namorado de primeira mão. Gastava às mãos largas. Vivia duas horas por dia em casa do alfaiate, uma hora em casa do cabeleireiro, o resto do tempo na Rua do Ouvidor; salvo o tempo em que dormia em casa, que não era a mesma casa de D. Venância, e o pouco em que ia visitar a tia. Exteriormente era um elegante; interiormente era um bom rapaz, mas um verdadeiro bom rapaz. Não tinham pai nem mãe; Marcos era advogado; Emílio formara-se em medicina. Por um alto sentimento de humanidade, Emílio não exercia a profissão; o obituário conservava o termo médio usual. Mas, tendo um e outro herdado alguma coisa dos pais, Emílio mordia razoavelmente a parte da herança, que aliás o irmão administrava com muito zelo. Moravam juntos, mas tinham a casa dividida de maneira que não podiam tolher a liberdade um do outro. Às vezes passavam-se três ou quatro dias sem se verem; e é justo dizer que as saudades primeiro feriam Emílio do que ao irmão. Ao menos era ele quem, depois de larga ausência, se assim podemos chamar-lhe, entrava mais cedo para casa a esperar que Marcos viesse da casa de D. Venância. — Por que não foste à casa de titia? perguntava Marcos, logo que ele dizia estar a esperá-lo durante muito tempo. Emílio erguia os ombros, como rejeitando a idéia desse sacrifício voluntário. Depois, conversavam, riam um pouco; Emílio referia anedotas, fumava dois charutos, e só se levantava quando o outro confessava estar a cair de sono. Emílio, que não dormia antes das três ou quatro, nunca tinha sono; lançava mão de um romance francês e ia devorá-lo na cama até a hora habitual. Mas esse frívolo tinha ocasiões de seriedade; numa doença do irmão, velou-lhe longos dias à cabeceira, com uma dedicação verdadeiramente materna. Marcos sabia que ele o amava. Não amava, entretanto, a tia; se fosse mau, podia detestá-la; mas se não a detestava, confessava intimamente que ela o aborrecia. Marcos, quando o irmão repetia isso, tratava de o reduzir a melhor sentimento; e com tão boas razões que Emílio, não se atrevendo a contestá-lo e não querendo sair de sua opinião, recolhia-se a um eloqüente silêncio. Ora, D. Venância encontrava essa repulsa, talvez pelo excesso mesmo de seu afeto. Emílio era o predileto de seus sobrinhos; ela adorava-o. A melhor hora do dia era a que ele lhe destinava a ela. Na ausência falava de Emílio a propósito de qualquer coisa. Geralmente o rapaz ia à casa da tia, entre as duas e três horas; raras vezes à noite. Que alegria quando ele entrava! que afagos! que intermináveis carinhos! — Vem cá, ingrato, senta-te aqui ao pé da velha. Como passaste de ontem? — Bem, respondia Emílio sorrindo contrafeito. — Bem, arremedava a tia; diz aquilo como se não fosse verdade. E quem sabe mesmo? Tiveste alguma coisa? — Nada, não tive nada. — Pensei. D. Venância tranqüilizava-se; depois vinha um rosário de perguntas e outro de anedotas. No meio de umas e outras, se via algum gesto de incômodo no sobrinho, interrompia-se para perguntar se estava incomodado, se queria tomar alguma coisa. Mandava fechar as janelas de onde supunha que vinha ar; fazia-o trocar de cadeira, se lhe parecia que a que ele ocupava era menos cômoda. Esse excesso de cautelas e cuidados fatigavam o moço. Ele obedecia passivamente, falava pouco, ou o menos que lhe era possível. Quando resolvia sair, tornava-se perfidamente mais alegre e carinhoso, açucarava um cumprimento, punha-lhe mesmo alguma coisa do coração, e despedia-se. D. Venância, que ficava com essa impressão última, confirmava-se nos seus sentimentos a respeito de Emílio, a quem proclamava o primeiro sobrinho deste mundo. Pela sua parte, Emílio descia as escadas mais aliviado; e no coração, lá no mais fundo do coração, uma voz secreta sussurrava estas palavras cruéis: — Quer-me muito bem, mas é muito amoladora. A presença de Marcos era uma troca de papéis. A acariciada era ela. D. Venância tinha seus momentos de enfado e de zanga, gostava de ralhar, de bater no próximo. Sua alma era uma fonte de duas bicas, vertia mel por uma e vinagre pela outra. Sabia que o melhor meio de aturar menos, era não imitá-la. Calava-se, sorria, aprovava tudo, com uma docilidade exemplar. Outra vezes, conforme o assunto e a ocasião, reforçava os sentimentos pessimistas da tia, e ralhava, não com igual veemência, porque ele estava incapaz de a fingir, mas na conformidade das idéias dela. Presente a tudo, não esquecia, no meio de um discurso de D. Venância, de lhe acomodar melhor o banquinho dos pés. Sabia-lhe os hábitos, e ordenava as coisas de maneira que lhe não faltasse nada. Ele era a Providência de D. Venância e o seu pára-raios. De mês em mês prestava-lhe contas; e nessas ocasiões só uma alma forte podia resistir ao suplício. Cada aluguel trazia um discurso; cada obra nova ou conserto produzia objurgatória. Ao cabo, D. Venância não ficava com a menor idéia das contas, tão ocupada estava em desabafar o seu reumatismo; e Marcos, se quisesse afrouxar um pouco a consciência, podia dar às contas certa elasticidade. Não o fazia; era incapaz de o fazer. Quem dissesse que na dedicação de Marcos entrava um pouco de interesse, podia dormir com a consciência tranqüila, pois não caluniava ninguém. Havia afeto, mas não havia só isso. D. Venância possuía bons prédios, e tinha só três parentes. O terceiro parente era uma sobrinha, que morava com ela, moça de vinte anos, graciosa, doida por música e confeitos. D. Venância também a estimava muito, quase tanto como a Emílio. Meditava até casá-la antes de morrer; e só tinha dificuldade em achar um noivo digno da noiva. Um dia, no meio de uma conversa com Emílio, aconteceu-lhe dizer: — Quando te casares, adeus tia Venância! Esta palavra foi um raio de luz. — Casar! pensou ela, mas por que não com a Eugênia? Nessa noite não cuidou mentalmente de outras coisas. Marcos nunca a vira tão taciturna; chegou a supor que ela estivesse zangada com ele. D. Venância não disse, durante essa noite, mais de quarenta palavras. Olhava para Eugênia, lembrava-se de Emílio, e dizia consigo: — Mas como é que não lembrei disso há mais tempo? Nasceram um para o outro. São bonitos, bons, jovens. — Só se ela tiver algum namoro; mas quem seria? No dia seguinte sondou a moça; Eugênia, que não pensava em ninguém, disse francamente que trazia o coração como lho haviam dado. D. Venância exultou; riu-se muito; jantou mais do que de costume. Restava sondar Emílio no dia seguinte. Emílio respondeu a mesma coisa. — Deveras! exclamou a tia. — Pois então!
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