Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

A formação do Engenheiro Inovador, Notas de estudo de Engenharia de Materiais

- - - - - - -

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 26/02/2009

julio-linhares-9
julio-linhares-9 🇧🇷

1 documento

1 / 147

Documentos relacionados


Pré-visualização parcial do texto

Baixe A formação do Engenheiro Inovador e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia de Materiais, somente na Docsity! Marcos Azevedo da Silveira A Formação do Engenheiro Inovador Uma Visão Internacional 0 , N i A FORMAÇÃO DO ENGENHEIRO INOVADOR uma visão internacional Marcos Azevedo da Silveira 2005 iv QUAL A MELHOR FORMAÇÃO PARA NOSSOS ENGENHEIROS? Todos nós, engenheiros professores, já fizemos essa pergunta em algum momento de nossa vida acadêmica. Mais ainda: se indagarmos a cada docente de nossa instituição quais competências e habilidades devem ser conferidas aos nossos alunos para que, quando formados, atendam adequadamente à sociedade, quais fatores mais afetam seu processo de aprendizagem, nos tantos anos que passam por nossas escolas, ou qual perfil deve ser buscado na formação do engenheiro, ficaremos surpresos com a diversidade de respostas, até dentro de um mesmo departamento. Em certas ocasiões, notamos, inclusive, que alguns destes perfis são distintos daqueles preconizados no projeto pedagógico dos cursos, como se este já não atendesse à sua função de servir como pano de fundo para as decisões acadêmicas e pedagógicas do corpo docente, suplantado por outros fatores que, eventualmente, se tornam predominantes. Respostas a estes e a tantos outros questionamentos é que fazem do livro do professor Marcos da Silveira uma importante contribuição ao cenário atual da Educação em Engenharia. Para entendermos este cenário, é preciso recuar 40 anos, quando teve início um apoio sistemático à pós-graduação e à pesquisa no país, com claros reflexos nos cursos de graduação das engenharias. Hoje, a grande maioria dos professores de Engenharia é qualificada com o grau de mestre ou doutor. Sua atuação, do vestibular à pós-graduação, trouxe, mais do qualquer outro fator, uma contribuição positiva e inegável à qualidade da Engenharia Nacional. Por outro lado, os massivos investimentos realizados na área de pós-graduação e pesquisa – a partir, principalmente, de recursos públicos - jamais foram acompanhados de igual esforço na Graduação. Algumas exceções podem ser destacadas: a fase do programa REENGE, nos anos 90, ainda que efêmera, imprimiu uma vitalidade inédita ao Ensino de Engenharia, disseminando a discussão do tema; um esforço ainda mais notável na medida em que ocorreu, em grande parte, no âmbito de redes regionais e nacionais. Provão e Avaliação das Condições de Ensino, posteriormente substituídos pelo SINAES, também contribuíram para o estabelecimento de uma cultura de diagnóstico e planejamento na Graduação da Engenharia. Estimulados por estas medidas de âmbito nacional, muitos de nós, professores, aprofundamo-nos no tema de Educação em Engenharia. No entanto, ao contrário de nossa formação como pesquisadores (tipicamente doutores, 2+4 anos, incluindo cursos completos ou estágios no exterior), nosso aprimoramento como mestres formadores de engenheiros limitou-se, em grande parte, a algumas poucas horas de palestras ou seminários sobre o assunto. Igualmente, arrisco-me a afirmar que, baseado em minha própria experiência, grande parte dos que se sentiram atraídos pelo estudo na área de Educação em Engenharia, o foram por contingência de suas atribuições acadêmico-administrativas. O professor Marcos da Silveira, ativo participante do REENGE desde seus primórdios, e com eclética formação em Matemática, Física e Engenharia, foge a este padrão. Por este motivo, suas reflexões sobre a formação do engenheiro, encontradas em expressiva produção acadêmica na área de Ensino de Engenharia, deveriam, necessariamente, estar contidas, de alguma forma, em poucos compêndios: desta necessidade de compartilhamento de conhecimento, tão relevante e enriquecedor, resultou o presente livro. A literatura sobre o Ensino de Engenharia ainda é insuficiente no Brasil. Neste sentido, com “A Formação do Engenheiro Inovador”, estudo meticuloso com visão histórica e geográfica do processo de formação do engenheiro - v seguido de proposta voltada à Inovação - o professor Marcos da Silveira contribui decisivamente para a discussão sobre o tema. Resta a todos nós, após a leitura, a responsabilidade de refletir acerca de uma nova questão, ainda mais desafiadora que aquela que inaugura este prefácio: “Qual a melhor formação para nossos professores de Engenharia?” . José Alberto dos Reis Parise Decano do Centro Técnico Científico PUC-Rio vi SUMÁRIO Contra Capa i Prefácio do Autor iii Prefácio do Parise iv Sumário vi Lista de siglas utilizadas viii I. O PAPEL DO ENGENHEIRO E SUA FORMAÇÃO 1 I.1. Mudanças no campo de atuação do engenheiro 3 I.2. Funções, perfis de formação e papéis do engenheiro 6 O modelo francês 9 O modelo alemão 10 O modelo anglo-saxão 11 O caso brasileiro 16 Uma mudança estratégica nas Américas 19 I.3. Acordos internacionais e o problema da certificação 22 I.4. A construção do currículo de engenharia 26 II. UM QUADRO CONCEITAL PARA A FORMAÇÃO DO ENGENHEIRO 28 II.1. Alguns conceitos fundamentais 29 Competências 29 Saberes, conhecimentos, savoir-faire 31 Habilidade 33 Aptidão, atitude, etc. 33 Voltando às competências 34 Currículo 35 II.2. Um quadro teórico descrevendo as atividades de engenharia 38 II.3. O perfil de formação 44 II.4. A estrutura curricular de um curso de engenharia 48 II.5. Exemplos 52 III. A ESCOLHA DOS PERFIS DE FORMAÇÃO 57 III.1. Ponto de vista do mercado de trabalho 58 Uma observação final 66 III.2. Ponto de vista da sociedade 68 III.3. Ponto de vista da academia 71 III.4. Ponto de vista do aluno 75 Apêndice III. Diretrizes curriculares e perfis de formação citados 79 Lista de competências (skills) da ABET 79 Listas de competências industriais e alguns comentários 79 ix INPI - Instituto Nacional de Propriedade Industrial INT - Instituto Nacional de Tecnologia IRCCyN - Institut de Recherche en Communication et Cybernétique de Nantes IASEE - Ibero-American Seminar on Engineering Education ITA - Instituto Tecnológico da Aeronáutica IUT - Institut Universitaire Technologique LATTES - Currículo informatizado para pesquisadores organizado pelo CNPq MBA - Master in Business and Administration MCT - Ministéruio da Ciência e Tecnologia MEC - Ministério da Educação MIT - Massachussets Institut of Technology MSc - Master of Science NSF - National Science Foundaton (EEUU) OGM - organismo genéticamente modificado OMC - Organização Mundial do Comércio ONU - Organização das Nações Unidas PADCT - Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (MCT) PhD - Doctor in Philosophy PID - controlador Proporcional + Integral + Derivativo PISA - Program for International Student Assessment (OECD - Organization for Economic Co- operation and Development) PPP - projeto político-pedagógico PRODENGE - Programa de Desenvolvimento da Engenharia (FINEP) PUCMG - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC-Rio - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul RECOPE - Redes Cooperativas de Engenharia (sub-programa do PRODENGE) REENGE - Rengenharia da Engenharia (sub-programa do PRODENGE) SAE - Society of Automotive Engineers SEBRAE - Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SEFI - Service de l'Emploi, de la Formation et de l'Insertion Professionelles (França) SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial SESU - Secretaria de Ensino Superior (MEC) SUCCED - Southearsten University and College Coalition for Engineering Education TecGraf - Laboratório do Departamento de Informática da PUC-Rio TFC - trabalho de fim de curso TIMSS - Trends in Mathematical and Sciences Study UEALC - Espaço comum de endino superior para a União Européia e a América Latina UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais UFRGS - Universidade Federal do do Rio Grande do Sul UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina UMIST - University of Manchester (RU) UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas UNIFEI Universidade Federal de Itajubá (antiga EFEI) UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba UNIP - Universidade Paulista UNISINOS - Universidade do Vale dos Sinos UNIVAP - Universidade do Vale do Paraíba USP - Universidade de São Paulo VBA - Verbund behinderter ArbeitgeberInnen (Associação Alemã de Trabalhadores). Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 1 Capítulo I O PAPEL DO ENGENHEIRO E SUA FORMAÇÃO O contexto social e econômico onde os engenheiros atuam mudou radicalmente desde a criação dos cursos destinados à sua formação, no final do século XVIII, mudança que se acelerou nos últimos decênios do século XX. Novas tecnologias, como a pesquisa operacional, a informática, as telecomunicações e as biotecnologias, não só deram origem a novas ferramentas, exigindo uma formação complementar, mas alteraram profundamente os processos de trabalho e suas representações. Novas questões passaram a afetar esta atuação, como as relacionadas aos impactos ambientais e sociais das atividades produtivas, criando novos problemas e novas áreas de trabalho – e novas regulamentações a serem consideradas (ou construídas). O mercado de trabalho estendeu-se para o setor de serviços – seja porque este foi trazido para dentro do planejamento da produção pela busca da "qualidade total", pelo uso intensivo das redes de telecomunicação e da informática e pela modularização e terceirização de parte dos sistemas de gerenciamento e produção, seja porque os serviços em geral estão cada vez mais dependentes da capacidade de formalização e organização próprias à engenharia. Estas mudanças tem levado ao aparecimento de novos cursos, habilitações, modalidades e especializações, além da necessidade de contínua adaptação dos cursos já existentes – e que não pode ser atendida apenas pela criação de cursos de pós-graduação. As questões que devem ser colocadas – e respondidas - diante da criação ou mudança de cursos de engenharia, passaram a ser repetidas ou recolocadas com enorme freqüência, exigindo o desenvolvimento de uma metodologia mais sistemática para sua abordagem. Quais os perfis de formação melhor indicados para a situação atual? Como escolhê-los, diante das diferentes visões de futuro encontradas na academia e na sociedade, representando os mais diversos interesses? Como considerar a situação local de cada escola e as mutações do mercado de trabalho? Como desenvolver currículos e estratégias didáticas frente às novas necessidades e aos novos e variados perfis de formação? Dado que a capacidade de produzir inovações tecnológicas e transformá-las em produtos tornou-se um dos principais ativos econômicos, como preparar os engenheiros para esta nova missão, levando em consideração – inclusive – o projeto de país e a situação nacional? Como avaliar os resultados obtidos e informar à sociedade o que está, de fato, lhe sendo oferecido? A relevância atual destas questões gerou o aumento de sua discussão nacional e internacional. Várias sociedades e organizações foram criadas em torno destes temas (ABENGE, ASIBEI, SEFI, ASEE, INEER, ABET, etc.), promovendo um grande número de conferências (Congressos Brasileiros de Ensino de Engenharia – COBENGE, os enormes congressos da ASEE, e as International Conferences on Engineering Education - ICEE, e.g.), além de programas governamentais especialmente dedicados (Engineering Education Coalizations/ NSF/EEUU e PRODENGE/REENGE, e.g.). Diversos acordos internacionais têm sido firmados buscando a criação de áreas comuns de formação (mobilidade de estudantes), ou visando o reconhecimento ou credenciamento de títulos, como as Declarações do Rio de Janeiro (1999) e de Paris (2000) criando a UEALC (espaço comum de ensino superior para a União Européia, América Latina e Caribe), a Declaração de Bologna (1999) criando o espaço comum europeu para a educação em engenharia, e os Acordos de Washington (1989) e de Sidney (2001) criando o espaço comum em educação em engenharia para os países de língua inglesa. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 2 Estas questões tornam-se especialmente incômodas quando percebemos a distância entre os diferentes perfis de formação propostos pela academia, pelos organismos encarregados do registro de profissionais, e pelos órgãos que credenciam e avaliam as escolas de engenharia, sem deixar de mencionar as expectativas no mercado de trabalho1. Pensamos tanto nos perfis explicitamente propostos como nos definidos implicitamente a partir das sistemáticas de avaliação, como ocorreu com o Exame Nacional de Cursos brasileiro, vulgo "Provão"2. Estas questões são essenciais para nosso país devido à sua dependência tecnológica, em uma sociedade internacional onde a inovação tecnológica é um dos principais trunfos econômicos e políticos – questão ainda pouco considerada na formação dos engenheiros brasileiros e em discussão ainda inconclusa no Congresso Nacional. Estas questões tornam-se prementes se considerarmos a atual pressão da Organização Mundial do Comércio (OMC) no sentido de tornar mais flexível a regulamentação de acesso aos mercados nacionais de educação, com propostas explícitas por parte do Banco Mundial, dos EEUU, da Austrália e do Japão. Estas questões possuem relevância técnica, como os especialistas na área de educação não cansam de assinalar3, porque entre um perfil de formação desejado (com suas listas de competências), o currículo planejado e o currículo real, há distâncias tanto maiores quanto maior a esperança de que elas ocorram por mudanças espontâneas de atitude das escolas e de seus professores. Em uma conhecida boutade4, um aluno pergunta a seu professor como pode ser mudado o currículo do curso de engenharia. Este responde que há duas formas, a normal e a milagrosa. O aluno pergunta pela forma normal. O professor lhe responde que é aquela em que um anjo desce ao Conselho Universitário e entrega um currículo novo. Naturalmente espantado, o aluno pergunta qual é, então, a forma milagrosa. Resposta: o Conselho Universitário encomendar pesquisas, discutir com os professores os seus resultados, os objetivos da universidade, os meios e as possibilidades, e então organizar e promulgar o novo currículo. Adiantando uma das críticas a esta boutade, cabe lembrar que mudanças em currículos não são realizadas de forma completa em um instante determinado. São realizadas ao longo de todo um demorado processo, começando pela escolha de uma visão de futuro, de um perfil de formação, passando pela elaboração, experimentação e avaliação de novos currículos, novas estratégias e novas metodologias, até a implantação incremental (e sempre experimental, isto é, sujeita a revisões) dos novos objetivos e métodos assim delineados. Neste trabalho pretendemos fornecer subsídios para enfrentar algumas das questões colocadas acima. Começaremos comentando as mudanças sócio- econômicas que afetam atualmente a atividade do engenheiro. Depois investigaremos rapidamente os diferentes perfis de formação e os papéis exercidos ou propostos para engenheiros, em especial no Brasil. O que permitirá criticar as diferentes definições de engenharia encontradas na literatura e os perfis de formação para engenheiros propostos para o início deste século. 1 Temas desenvolvidos em trabalhos recentes, como Sinval Z. Gama, O perfil de formação do engenheiro elétrico para o século XXI, Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Elétrica, PUC-Rio, 2002. 2 O perfil exigido pelo "Provão" pode ser descrito como a capacidade de resolver problemas típicos do conteúdo acadêmico de uma determinada habilitação da engenharia em provas escritas de 4 horas, o que limita os problemas a um conjunto básico ou paradigmático, pré-estabelecido, sem que seja possível o exercício da criatividade e das atitudes próprias a um engenheiro. 3 Ver Ph. Perrenoud, La transposition didactique à partir de pratiques: des savoirs aux compétences, in Revue des sciences de l'éducation (Montréal), Vol XXIV, n. 3, 1998, pp. 487-514 (acessível no site do autor), ou Ph. Perrenoud, Paquay, Altet e Charlier, Formando professores profissionais. Quais estratégias? Quais competências? Porto Alegre, RS: ARTMED Ed. 4 Citada na Conferência Anual da ASEE de 1993 (1993 ASEE Annual Conference Proceedings). Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 5 organizar uma lista de mudanças um pouco mais abrangente, prenhe de contradições e conflitos. 1. O fim da "guerra fria", com a queda do muro de Berlin, diminuindo o incentivo à invenção científica geradora de prestígio ou associada ao poderio militar (donde à ciência básica, à física nuclear e aos programas espaciais), privilegiando a busca de inovações e de novos produtos comercializáveis, e alterando a distribuição de poder – o que levou à tentativa de impor a hegemonia da "lógica de mercado", apresentada como pensamento único (o modelo neo-liberal), de forma a ampliar e fixar o poder econômico das potências dominantes. Conseqüências: desregulamentação, onda de privatizações, abertura de mercados segundo a lógica da OMC, crescente importância do mercado financeiro, maior competição nacional e internacional, maior insegurança (própria à alta volatilidade dos mercados financeiros) – donde maior necessidade de considerar o risco e de trabalhar com e sob suas conseqüências, etc. 2. Nova divisão internacional do trabalho com empresas multi-nacionais passando a supra-nacionais e mudando de lugar seus centros de produção de acordo com as vicissitudes políticas. 3. Novas tecnologias: aumento da rapidez das telecomunicações e da capacidade de transmitir massas de dados em pouco tempo, informática, redes de comunicações (inclusive a Internet), nanotecnologias (com a conseqüente miniaturização e barateamento de equipamentos), biotecnologias (cujo impacto só começa a se fazer sentir), bio-nanotecnologias, etc. Conseqüências: alteração dos processos de trabalho – entra aí toda a “engenharia de sistemas”, centro das atividades do engenheiro moderno - e das pautas comerciais, alteração das técnicas mais viáveis, novos produtos baseados em inovações, compressão dos preços das matérias primas e dos insumos industrializados básicos contra maior valor adicionado associado às novas tecnologias, etc. 4. Exacerbação da busca do aumento de produtividade – uma das preocupações tradicionais dos engenheiros. Conseqüências: aumento da padronização e modularização dos produtos e dos processos de trabalho, levando à terceirização e à alteração da organização industrial, concomitantes com maiores esforços na compactação dos processos de trabalho8; automação de processos de fabricação e projeto, diminuição da necessidade de engenheiros (e operários) operando junto às máquinas e ao "chão de fábrica". Necessidade de uma maior quantidade de cabeças trabalhando em torno da integração das operações e dos sistemas que as controlam e regulam. Divisão dos trabalhadores entre os empregados permanentes e os temporários ou "terceirizados" em função das novas atividades exigindo alta formação, mas secundárias em relação aos objetivos da empresa. 5. Surgimento da "sociedade de serviços" ou "sociedade pós-industrial", onde a maior parte das atividades e dos postos de trabalho encontra-se junto ao cliente e voltada para satisfazer seus interesses9. 8 Heitor M. Caulliraux, Estratégias de produção e automação: Formulação e análise, Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em de Engenharia Elétrica, PUC-Rio, 1990; e Luiz A. Meirelles, Miniaturização e Redução da Necessidade de Trabalho, Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em de Engenharia Elétrica, PUC-Rio, 1991. 9 Marcos A. da Silveira, Luiz A. Meirelles e Maria I. Paes e Silva, Notas sobre o curso de engenharia, in Nova Visão dos Cursos de Engenharia e suas Implicações na Universidade Moderna: uma Proposta da PUC-Rio, Relatório Interno do Decanato do CTC, PUC-Rio, 1995; e Luiz C. Scavarda do Carmo, J. A. Pimenta-Bueno, J. A. Aranha, Therezinha S. Costa, José A. dos R. Parise, Maria A. M. Davidovich, Marcos A. da Silveira, The Entrepreneurial Engineer - A New Paradigm for the Reform of Engineering Education, Proceedings of the ICEE97, vol. I, 398-408, Southern Illinois Un. at Carbondale, USA, 1997, e suas listas de referências. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 6 6. Consciência pública das limitações energéticas e dos problemas ecológicos, que pode ser datada da crise do petróleo, em 1973, e das primeiras catástrofes ecológicas com grandes navios petroleiros (Exxon-Valdez e Amoco-Cadiz), dos acidentes de Chernobil e de Three Mile Islands, e das questões ligadas à destruição da camada de ozônio e ao efeito estufa. Conseqüências: busca de novas formas de energia, aparecimento da questão da reciclagem de materiais, regulamentações ecológicas, exigência de estudos de impacto ambiental, movimentos ecológicos não- governamentais ativos e influentes, nascimento da indústria de remediação ambiental, etc. 7. Maior exigência quanto aos direitos do consumidor. Conseqüências: princípios de qualidade total, maior controle por parte de órgãos e agências reguladoras, popularidade dos sistemas de certificação, códigos de defesa do consumidor gerando grande movimentação jurídica, novas exigências em torno da "political correcteness". Esta mudanças, levando à ampliação do escopo da atuação do engenheiro e à alteração da sua forma de atuação, aparecem nas definições utilizadas para "engenharia". Do texto comum em torno de 1970, "profissional competente para projetar, implementar e gerenciar processos de transformação de materiais", o que exclui serviços que não tenham como objeto imediato materiais e máquinas, passou-se pelos conceitos de "problem solver" e de "designer" (de base tecnológica, bem entendido), chegando a um "profissional competente para projetar, implementar e gerenciar intervenções em práticas sociais de base tecnológica, considerando seus impactos ambientais, econômicos e sociais". Esta última definição, mais abrangente e referida à sociedade e à cultura onde o engenheiro está imerso, aparece em um dos textos que serviu de base ao Programa REENGE10. Voltaremos a este assunto mais adiante, depois de revisar funções, perfis de formação e papéis sociais propostos para engenheiros, e observar a multiplicidade de propostas existentes (internacionalmente) para a formação de engenheiros. I.2. Funções, perfis de formação e papéis do engenheiro Primeiro, revisaremos rapidamente as funções a serem exercidas por engenheiros dentro da representação tradicional da profissão, organizando a terminologia para a apresentação dos seus perfis de formação e papéis sociais. Fugiremos às nomenclaturas tradicionais (encontrada nas publicações das corporações de engenheiros) para evitar confundir "função", "cargo" e "papel social". Tradicionalmente, espera-se que o engenheiro recém-formado exerça uma função técnica de execução na empresa sob o controle de um engenheiro experiente, como formação complementar. Tendo sucesso, passa a "chefe de equipe técnica" encarregada de tarefas de produção ou de manutenção, ou a de "gerente de estoque", estas duas funções também citadas como "engenheiro de obra" ou "engenheiro de chão-de-fábrica". Outra possibilidade, mais rara, é passar a "projetista" dentro de uma equipe especializada. Em ambos os casos o engenheiro utiliza a linguagem das plantas, diagramas técnicos, planilhas e tabelas de especificação (de produtos, de processos, de operações)11. Muito poucos ocupam a função de "projetista" em níveis mais altos, até chegar a dirigir equipes ou empresas especialmente dedicadas. A maioria dos engenheiros passa a "gerente técnico", encarregado de comandar as equipes técnicas, traçar as grandes linhas de projetos, tomar decisões sobre compras ou vendas. Nesta 10 da Silveira et al., 1995, op. cit. 11 Em contraste com a linguagem de fórmulas usadas pelos matemáticos, físicos e químicos, ou dos mapas, relatórios e monografias comuns em outras áreas tecnológicas (geologia, psicologia, direito, por exemplo), e mais ainda com os produtos finais de designers e comunicadores sociais. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 7 função o engenheiro ainda usa a linguagem das plantas, embora ocupe o seu tempo com estudos, relatórios e contratos. Finalmente, o engenheiro, tendo sucesso, passa à função de "administrador técnico" (e, depois, à de "administrador", simplesmente), tendo que tomar decisões políticas técnicas e financeiras, administrar recursos humanos e relacionar-se com o público. A atividade, neste caso, passa pela direção de reuniões de técnicos e assessores, pela preparação de memorandos e contratos e pelas negociações empresariais (dentro da empresa ou com seus clientes). No entanto, sob o denominação de “função técnica” aparecem ocupações não contempladas nas escolas de engenharia. Depois de um período circulando pela empresa (trainees) ou participando de cursos internos de formação12, grande parte dos engenheiros passam a trabalhar em vendas, atendimento aos clientes ou a analisar, desenvolver e integrar sistemas. Nestas atividades utilizam seriamente o conhecimento técnico próprio à profissão, e também toda uma gama de conhecimentos e capacidades associados atualmente à função “engenheiro”, porém desconsiderados pelas escolas. Dodridge13, por exemplo, afirma que 70% dos engenheiros britânicos trabalham fora de sua especialidade técnica, o que explica o "desemprego" dos engenheiros alardeado pelas corporações profissionais. Uma pesquisa do SENAI realizada no Brasil na década de 70 já mostrava um percentual semelhante para os engenheiros trabalhando na rede ferroviária: 67% não ocupavam as funções técnicas associadas ao papel social esperado na sociedade brasileira na época, necessitando de uma formação diferente daquela ministrada então nas escolas de engenharia, embora ainda vinculada à engenharia. Completando este quadro, cabe citar a minoria dos profissionais que são contratados como "pesquisadores" em centros de pesquisa, empresas de consultoria, escolas de engenharia e universidades, dedicados ao desenvolvimento de estudos e produtos ou à ciência da engenharia. Mas não esquecer que engenheiros exercem a função de "professor" ou de “treinador” também nas empresas – são responsáveis pelos cursos internos e pelo treinamento de suas equipes. Novas funções apareceram como conseqüência das mudanças apontadas acima. Elas giram em torno da capacidade que tem o engenheiro bem formado de enfrentar problemas pensando com clareza e considerando as possibilidades e os limites técnicos. Uma ilustração interessante e mordaz é o personagem Dilbert, da história em quadrinhos de mesmo nome que é publicada nos jornais14. Ali, o engenheiro é o único personagem cuja inteligência está voltada ao sucesso da operação da empresa, e que consegue fazer análises fundamentadas de possibilidades - ou impossibilidades, situação preferida pelo autor da tira. É como se, ao perguntarmos onde está a inteligência de um processo produtivo, fossemos sempre encontrá-la em uma função exercida por um engenheiro (quando são necessários formalização ou modelagem matemática e conhecimentos tecnológicos, articulados de forma inteligente) ou por um advogado (no caso de atuação jurídica ou política, atividades voltadas à representação de interesses e às escolhas estratégicas)15. 12 Na EMBRAER este período inicial é de dois anos, onde os “trainees” realizam projetos em equipe, considerando custos, interesses dos clientes, problemas de especificação e de integração dos diferentes sistemas que formam um avião e recolhem/agregam as informações para que o piloto, a equipe técnica e a administração da empresa de aviação tomem suas decisões – assuntos sequer mencionados nos curso de engenharia. 13 M. Dodridge, Convergence on engineering higher education – Bologna and beyond, Proceedings of the Ibero-American Summit on Enginnering Education; São José dos Campos, SP: UNIVAP, 2003. 14 De autoria de Scott Adams, United Featured Syndicate, Inc. Notar que o personagem do engenheiro é incompetente para fazer política dentro da empresa, por formação e por escolha ética (seu compromisso é com a qualidade dos produtos). 15 Talvez devêssemos considerar outras categorias, como economistas ou administradores de empresa. Os primeiros possuem formação científica, fazem análises inteligentes, mas não são voltados para resolver problemas relativos ao processo produtivo. A atual prevalência das finanças sobre a capacidade de produção do país, resultado do domínio ideológico dos economistas Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 10 escondida do sistema francês: há mais de oito outras maneiras de chegar à função de engenheiro sem passar por uma École de Génie, nem todas concedendo um diploma de ingénieur reconhecido pela Comission des Titres d’Ingénieur francesa22. Para ilustrar estas possibilidades será descrita a formação mais técnica: depois do Baccalauréat, o aluno cursa dois anos em uma escola técnica de nível superior (Institut Universitaire Technologique - I.U.T.), obtendo um Diplôme Universitaire Technologique (DUT) e, depois de três anos de experiência na indústria, pode realizar mais dois anos de estudos universitários complementares (em meio tempo, enquanto trabalha), obtendo assim o diploma de engenheiro. Este perfil de formação pode ser denominado o de um "engenheiro tecnicista de formação longa". Cabe dizer que esta formação tem um caráter essencialmente especializado, e atende essencialmente às funções de engenheiro de obra ou de chão-de-fábrica23. Os dois caminhos aqui apresentados para a formação de engenheiros na França (École d´Ingénieurs e I.U.T.) são os mais formalizados. O custo por aluno (para o estado, que o financia integralmente) é muito alto, especialmente no primeiro caso. Quase todos os outros caminhos passam pelas Facultés de Philosophie, Sciences et Lettres, originalmente destinadas a formar professores e "homens de cultura", e correspondem a um investimento muito menor por parte do estado - o custo por aluno nas "Fac" é muito menor que nos institutos e escolas especializados. Desta forma, apesar de uma contínua reclamação sobre o "baixo" nível das "Fac", e sem assumí-lo explicitamente, o governo francês equaciona o problema de financiamento do ensino superior, e promove uma forte seleção para o acesso às principais escolas de formação de engenheiros. Os papéis sociais (representados inclusive na literatura e no cinema) foram apresentados: o "engenheiro gerencial" das Grandes Écoles, dominando um discurso e uma forma de apresentação "ministerial", destinado aos grandes jogos de poder (e extraído de uma reduzida camada social); o "engenheiro de projeto" ou "assessor técnico", detentor de um discurso técnico-científico e cada vez mais orientado para desenvolver sua própria empresa, formado pelas demais Écoles de Génie; e o "engenheiro operacional", que não porta o título de ingénieur, oriundo de outro extrato social e destinado a trabalhar no chão de fábrica ou na área de vendas. Não há, na França, leis limitando o exercício da função “engenheiro” aos portadores de diplomas específicos, ou Ordens ou Conselhos com poder de certificação oficial. O modelo alemão No final do século XIX, contrapondo-se ao sistema francês, a Alemanha organizou um sistema de formação de engenheiros integrado com a indústria, de enorme sucesso. O sistema encontra-se repetido na Suíça, no Japão, na Rússia, na Itália, e em muitos outros países desenvolvidos. Prevê duas formações radicalmente diferentes. Em ambas, o grande orgulho alemão – destacado por todos os informantes com quem o autor conversou e confirmado pelos alunos que lá se doutoraram – é o sistema de estágios e a participação das indústrias junto às escolas e aos cursos. Nas Fachhochschüles o engenheiro recebe uma formação essencialmente técnica, entremeada de estágios na indústria, ao longo de três anos, sem maiores preocupações com embasamento científico. Podemos denominar este perfil de formação de "engenheiro tecnicista de formação curta", naturalmente muito especializado. A sociedade alemã vê este caminho como o mais curto acesso a 22 Ibd., p. 115-116, onde aparece um diagrama explicando os nove caminhos de formação. Dois dos caminhos passam por um doutorado, sem acesso direto ao diploma d’ingénieur. Hoje em dia deve ser adicionado o caminho que termina por um Master francês, formalmente equivalente ao diploma de Ingénieur. 23 Para uma visão histórica da criação destes caminhos, ver C. R. Day, The making of mechanical engineers in France: the Écoles d'Arts et Métiers, 1803-1914, French Historical Studies, v. 10, p. 4389-460, 1978. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 11 um emprego industrial, sem despender esforços excessivos na obtenção de uma cultura que não vê diretamente relacionada a seus objetivos. Embora na Alemanha não pareça existir alguma restrição a que estes engenheiros ocupem cargos de direção nas empresas, a expectativa social não dirige este técnico à pós-graduação (o que era uma impossibilidade até há pouco tempo) ou a cargos de gerência. O outro diploma é obtido em uma Technische Universität (anteriormente Hochschulen), ao longo de cinco anos, seguindo até 2004 o esquema 2+3: dois anos de estudos científicos básicos e três anos em estudos muito especializados, culminando com o projeto de fim de curso e a tese de diploma24. Não há formação gerencial ou humanística. O autor foi informado que é comum o aluno dispender seis anos para obter o grau de ingenieur, por atrasos na entrega da tese de diploma, conseqüência dos estágios na indústria. Podemos denominar este perfil de formação de "engenheiro especializado de base científica". A nova disposição 3+2 será comentada adiante. O diploma das Fachochschüles, até 2002, não dava acesso legal a uma complementação acadêmica, a formação associada sendo vista como terminal. O diploma das Universität confere maior prestígio social e permite à passagem ao Doktorat – por este caminho se formam os grandes especialistas, pesquisadores, projetistas, consultores e professores alemães. O diploma de Universität exige grande investimento intelectual e financeiro por parte dos alunos sem um retorno suficientemente garantido (para o gosto alemão). Os papéis sociais relacionados aos dois diplomas são diferentes, porém a sociedade alemã não parece discriminar socialmente o engenheiro de formação curta. Respeita o grande especialista, com formação na Universität – e parece esperar que seu número seja menor que o dos formados nas Fahohschüles. Diplomas e papéis sociais pareciam se integrar perfeitamente às funções do mercado de trabalho até há pouco tempo, e assim ainda aparecem no discurso oficial. As críticas atuais revelam um descompasso cada vez maior entre a formação oferecida (de altíssimo nível em relação a seus objetivos) e as necessidades da sociedade atual – por excesso de especialização e a falta de formação gerencial e sistêmica. Devemos observar que o engenheiro das Universität é voltado para a inovação tecnológica, mas restrito à sua extrema especialização e à visão técnica. Problema assinalado ao autor pelas autoridades da T. U. Braunschweig como de difícil resolução: como mudar a estrutura formal da escola e de seus cursos (baseada em hierarquias funcionais culturalmente ancoradas) para formar este engenheiro que eles sentem como um "híbrido"? O modelo anglo-saxão A formação de engenheiros nos países anglo-saxônicos é aparentemente mais simples, mas esconde sua realidade por trás da liberdade curricular das diferentes escolas e universidades. Historicamente, como observa Alastair Paterson25: "Os engenheiros franceses saíram de uma certa aristocracia, as grandes escolas. São gentlemen. Na Inglaterra, os engenheiros vêm de uma tradição manual e de manutenção de máquinas. No meio do século XIX eles evoluíram para estudos universitários. Isto deixa traços vivos, que diferenciam os engenheiros dos médicos e dos juristas". Apesar deste comentário expressando uma visão social comum aos países anglo-saxônicos, sempre houve uma sutil separação em dois perfis diferentes, só recentemente formalizada ou estendida em quadros nacionais cheios de nuances. 24 Studien Arbeit e Diplom Arbeit, respectivamente. 25 C. Lange, op. cit., p. 155. Ver também R. A. Buchanan, The rise of scientific engineering in Britain, British Journal for the History of Science, v. 18, 1985, p. 218-233, comentado em E. C. Campos, op. cit. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 12 Olhando o currículo das escolas classificadas como "universidades de pesquisa" pela Carnegie Mellon Foundation26, EEUU (escolas organizadas segundo o conceito Humboldtiano de universidade de pesquisa), encontramos a exigência de uma boa formação científica, de uma razoável formação humanística, de alguma formação técnica especializada (organizada em dois temas, o major e o minor), e uma grande liberdade de escolha de disciplinas eletivas. O MIT (Massachussets Institute of Technology) diz em seu informe geral que seu compromisso é prover os estudantes com uma formação fortemente científica, técnica e humanística, e encorajá-los a desenvolver sua criatividade para definir problemas e buscar soluções. Para o "bachelor of science degree", os estudantes devem completar um núcleo de exigências igualmente divididas entre ciências e matemática e humanidades, artes e ciências sociais (sic.). As exigências em ciências/matemáticas incluem química, biologia, física, e cálculo, assim como laboratórios e eletivas científicas. As exigências em humanidades, artes, e ciências sociais devem ser preenchidas com três entre cinco categorias: estudos literários; linguagem, pensamento e valores; artes; culturas e sociedades; e estudos históricos. Os estudantes também devem completar uma exigência escrita multidisciplinar. O espírito da formação aparece no texto de apresentação do MIT e está representado em seu brasão, ladeado por um técnico (um homem portando um martelo) e um professor (de beca, simbolizando o compromisso com as humanidades, termo muito bem definido na cultura anglo-saxônica)27. A notar que o curso dura 4 anos e não pressupõe 2 anos de estudos prévios da base científica, o que o torna muito diferente dos cursos franceses. Situações semelhantes ocorrem em Oxford e Cambridge (RU), que formaram os administradores do Império Britânico (inclusive em engenharia) a partir das letras clássicas. Poderíamos citar este perfil como o de "engenheiro de formação humanística e base científica". Fugimos da expressão sintética "ampla base cultural" porque o termo "cultural" costuma ser entendido como isolado da cultura científica. Os egressos destas escolas atingem cargos de prestígio (basta consultar suas bem organizadas listas de ex-alunos), mas são orientados para, após os 3 ou 4 anos dispendidos na obtenção do grau, preparar um PhD28, eventualmente suavizado por um MSc ou um MBA. De fato, a maior parte dos norte-americanos preparando um PhD na área de engenharia são oriundos das universidades de pesquisa, fato que já foi – ingenuamente - usado para inferir sua qualidade. Isto indica apenas que os cursos não são pensados como terminais, mas como etapas em uma formação mais profunda, levando à gerência ou à pesquisa científica ou tecnológica. Ao contrário da formação oferecida pelas demais escolas de engenharia, são orientados para preparar uma classe dirigente com embasamento técnico. A formação técnica profunda poderá vir na pós-graduação, se este for o interesse do aluno. Neste caso, o aluno estaria recuperando a formação francesa, na forma 3+2 (três anos de formação geral e 2 anos de formação mais especializada). Olhando o currículo das escolas de engenharia (não universitárias) britânicas e de boa parte das escolas norte-americanas não classificadas como universidades de pesquisa, vemos uma orientação muito técnica, sem formação 26 Ver http://www.carnegiefoundation.org/Classification. Na lista de 2004 para cursos de doutorado (extensivos), há 103 universidades (contadas por campuses) públicas e 49 universidades privadas não lucrativas, entre as quais os campus da Un. of California, a Colorate State Un., a Un. of Florida, a Pennsylvanis State Un., a Texas A&M Un., o California Institute of Technology, a Stanford Un., a Yale Un., a Un.of Chicago, a Loyola Un. of Chicago, a Harvard Un., o MIT, a Princeton Un. (a escolha feita na lista completa é arbitrária, apenas mostra exemplos). Na classificação há também colégios especializados, inclusive de engenharia. 27 No brasão atual foi adicionado um personagem feminino, por questões de political correctness. 28 No texto de apresentação do MIT (ver seu site), já citado, comenta-se que 38% dos egressos de 2001 do MIT passaram à pós-graduação. Na mesma página é comentado que "management and technical consulting firms and investment banking firms are among the top employers recruiting Institute graduates", o que explica a formação fornecida e o desinteresse pela especialização técnica. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 15 Tabela 1 - Engenheiros britânicos. Repete a Tabela 6 de Dodridge, op. cit., traduzida mantendo as idiossincrasias britânicas, incluindo o uso de maiúsculas e de títulos formais. Dois Tipos de Engenheiro Profissional Diferentes mas com igual valor Todos os Engenheiros profissionais devem: • Estar pessoalmente comprometido em agir conforme o código de conduta professional apropriado, reconhecendo obrigações para a sociedade, a profissão e o ambiente. • Comunicar-se eficazmente - por meios orais, escritos e eletrônicos. • Viver sob Desenvolvimento Profissional Continuado Chartered Engineer Conhecimento & compreensão direcionados, mas necessitando apropriado know-how • Engenharia inovadora de nível máximo - liderança técnica e gerencial • Modelagem matemática - compreensão da teoria e da tecnologia informática • Orientação sistêmica (e.g. síntese de opções para projrto e desenvolvimento contínuo) • Pesquisa pura e aplicada e desenvolvimento • Projetar para além dos limites da prática atual • Cultivar perspectivas de médio e de longo termo • Gerenciamento de equipes e de recursos - perspectiva de promoção para gerência de nível médio/máximo Incorporated Engineer Know-how direcionados, mas necessitando apropriados conhecimento & compreensão • Engenharia aplicada de nívelalto - julgamento independente dentro do campo • Aplicação de apropriaas matemática, ciência e tecnologia informática • Implementação detalhada do conhecimento atual (e.g. projeto, marketing, gerência de manutenção) • Controle de qualidade de produtos e serviços extensivo • Desenvolvimento de sistemas cost- effective e de procedimentos seguros • Cultivar perspectivas de curto e de médio termo • Gerenciamento de equipes e de recursos - possível promoção para gerência de nível médio/máximo Mas atenção à sutileza envolvida nas denominações e títulos britânicos, habitualmente incompreensíveis para quem não é um british citizen! Incorporated engineer e chartered engineer são graus credenciados ( accredited degrees), o primeiro obtido após 3 anos de estudo e o segundo após 4 anos de estudo. Depois desta base espera-se que o profissional adquira ao menos 4 anos de experiência profissional (inicial), para então ser entrevistado e ter seu currículo analisado (Final Test of Competence & Commitment), e então passar ao estágio final de seu "registro" (Registration). De fato, será entrevistado a cada 5 anos, para renovação de seu registro, quando será verificado seu desenvolvimentoprofissional continuado. O "registro", que lhe permite adicionar o título (incorporated ou chartered engineer) a seu cartão de visitas (conforme a tradição britânica), é concedido - atualmente - pelo Engineering Council. No esquema atual, o registro do chartered engineer exige a experiência profissional citada, mais estudos universitários – um PhD é muito bem visto – e projetos & publicações, além da entrevista com a comissão de credenciamento33. Neste caso é automaticamente credenciado como european engineer, uma situação criada 33 Para os que duvidam do "register" vindo após a "accreditation" do "degree", ver a as figuras de Dodridge, op. cit., muito didáticas, em especial a figura 4: "formation of an engineer in the UK", onde a estrutura aqui apresentada é exposta com mais clareza que nos textos legais cheios de subentendidos. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 16 pela Federation Européenne d'Associations Nationales d'Ingénieurs (FEANI), associação fundada em 1951 e bem conceituada no ambiente europeu. Esta última situação mostra que a formação do chartered engineer e a do ingenieur alemão com formação longa apontam na mesma direção, mas esta convergência só fica clara quando ambos chegam ao doutorado. Dodridge, op. cit., comenta que deveriam ser formados três vezes mais incorporated engineers que chartered engineers, considerando as necessidades industriais. No entanto, as estatísticas britânicas apontam consistentemente o contrário34. Essa tendência contrária ao mercado de trabalho como visto pela academia e pelos órgãos governamentais pode ser explicada pelo prestígio diferente dos papéis sociais associados aos dois tipos de engenheiro, e ao fato de que os que optam pelo caminho que leva ao chartered engineer tem acesso facilitado a um mercado de trabalho estendido e em contínua mutação, assim como o ingénieur francês. A consciência deste fenômeno para a situação particular de seu país aparece na resposta madura do representante lituano a uma das questões colocadas pelo SEFI (Société Européenne pour la Formation des Ingénieurs)35: "não é seguro preparar um especialista para um posto de trabalho determinado/muito concreto, porque o mercado de trabalho do país não está estável no momento, e as prioridades para o desenvolvimento industrial não são claras na Lituânia ... devido a mudanças das condições de trabalho ou no caso de demissão, os graduados devem ser muito flexíveis para adaptar-se a suas novas condições." E assim condena a formação especializada curta, pondo-se a favor de uma formação longa e mais generalista, voltada para o mercado de trabalho estendido, como a do chartered engineer ou a do ingénieur. Os papéis sociais no mundo anglo-saxão dependem não apenas dos tipos de engenheiros formados, mas também do prestígio das escolas. As universidades de pesquisa (nos EEUU) e Cambridge e Oxford (no RU) formam os diretores e os dirigentes nacionais, além dos pesquisadores de alto nível. Na outra ponta temos escolas dedicadas a formar engenheiros de chão de fábrica, orientados a postos de trabalho específicos. Na cultura norte-americana a educação superior é vista como privilégio e como investimento pessoal (e não como um direito), donde o aluno discute antes de tudo a sua relação custo/benefício. O que explica a dificuldade atual em obter alunos norte-americanos nos doutorados em engenharia. O diploma de advogado parece ser mais compensador do ponto de vista financeiro... Já no Reino Unido, a educação essencialmente pública e uma tradição dando maior visibilidade social à formação mais acadêmica (e cientificamente profunda) leva à preferência pelo caminho que leva ao chartered engineer – além da possibilidade de acesso ao mercado de trabalho estendido – o que é mais importante no Reino Unido ou na Lituânia (por exemplo) que nos EEUU, considerando ser tanto maior o risco de desemprego quanto menor é o mercado de trabalho. O caso brasileiro Na América Latina, os papéis do engenheiro resumiam-se, na sua maioria e há até 30 anos, ao de gerente de compras de equipamentos ou de execução de projetos adquiridos no exterior36. Como o autor ouviu de um antigo professor do IME e da PUC-Rio, os engenheiros brasileiros: 34 40% a mais de Chartered Engineers em 1987 e 30% a mais em 2000. 35 Resposta do representante lituano à décima pergunta em The impact of the Bologna Declaration on engineering education in Europe – the result of a survey (as of November 18, 2002), SEFI, in www.ntb.ch/SEFI. 36 Ver Edmundo C. Coelho, As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930, Rio de Janeiro, RJ: Editora Record, 1999. Nesta obra é relatada - partir de extensa pesquisa documental - em profundidade a realidade tecnológica e empresarial do país neste período, mostrando onde podiam se inserir os engenheiros,como se formavam e como atuavam. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 17 • ou controlavam obras civis (o projeto, se mais complexo, vinha do exterior37), • ou gerenciavam máquinas e operários - o chamado "engenheiro ferroviário" (com projetos e manuais vindos do exterior), • ou controlavam estoques e operações simples, • ou eram diretores de uma divisão da empresa composta por ele e por uma secretária (encarregados de compras e/ou representações, ou da análise de documentos). As competências reais exigidas passavam mais pelo domínio de uma determinada linguagem técnica (mas não de sua aplicação) e pela capacidade de adaptação à empresa, do que pelo domínio técnico-instrumental da área de formação. Isso fazia com que o incipiente setor industrial da época não distinguisse uma formação técnica especializada de uma formação livresca e superficial, sendo mais sensível à origem social dos candidatos a emprego (em geral refletida na escola de origem, é preciso dizer)38. Outro papel social anômalo, próprio a sociedades autoritárias onde as profissões são concedidas pelo estado a partir de imposições legais, é o de responsável legal por projetos ou operações. Para este papel é irrelevante a capacitação técnica, sendo importante apenas o diploma obtido em um curso credenciado conforme a lei e o registro do diploma na corporação legalmente compulsória (no Brasil, o sistema CONFEA/CREAs). Os professores das escolas de engenharia costumavam ser estes mesmos engenheiros, ministrando aulas durante intervalos no seu trabalho. Apesar de todo o progresso do ensino da engenharia no país ocorrido a partir daí – na análise dos projetos REENGE não encontramos um único programa de estágio supervisionado academicamente pela escola, embora houvesse exigência formal de estágios supervisionados desde a década de 70. Só encontramos estágios com supervisão acadêmica nos laboratórios de pesquisa, associado a bolsas de iniciação científica (o que permite medir sua pequena extensão). Somadas à freqüente utilização de livros texto tradicionais norte-americanos centrados na "instrução programada" (como os da Coleção Schaum, sem utilização efetiva da da física e matemática ensinadas no início dos cursos), estas características indicavam a formação, de fato, de um "engenheiro bacharel", termo muito usado em críticas à formação clássica dos engenheiros brasileiros39. Do que foi observado acima, o ambiente industrial brasileiro não diferenciava o "engenheiro bacharel", apenas preparado para declinar um discurso técnico, do "engenheiro politécnico" ou do "engenheiro especialista" definidos nos textos legais vigentes (por listas de habilitações legais e/ou currículos mínimos). A ignorância do fato e a inexistência de parâmetros de comparação com escolas no exterior, salvo listas de conteúdos curriculares, garantia a consciência tranqüila das escolas de engenharia e de seus professores. Em 1966 houve uma breve tentativa de formar "engenheiros operacionais", em cursos com 3 anos de duração, havendo a possibilidade de completar a formação longa cursando mais 2 anos complementares. Não vale a pena discutir o perfil de formação, pretendido ou real, pois a iniciativa foi rapidamente abortada. O sistema CONFEA/CREAs recusou-se a registrar este profissional tratado como um engenheiro incompleto, sendo a categoria extinta na década de 70. Quase todos os engenheiros operacionais passaram direto aos cursos 37 Com a possível exceção do engenheiro André Rebouças, cujo elogio onipresente afirma seu caráter excepcional, confirmando a regra. 38 Este testemunho é completamente corroborado pela extensa documentação que fundamenta E. C. Coelho, op. cit. Em especial, ver seus comentários nas páginas 194-197, onde cita a influência inglesa através dos contratos para construção de ferrovias, projetadas e executadas por engenheiros ingleses com formação tecnicista. 39 E. C. Coelho, op. cit., p. 196. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 20 de novas tecnologias. O empuxo foi dado por um aumento espetacular do número de bolsas de estudo em ciências básicas e do investimento estatal em atividades de pesquisa (no Brasil correspondeu à criação do CNPq e do sistema de pós- graduação). A "engenharia científica" foi uma política de governos. A ciência era tratada como um valor em si, embora nos pareça que esta valorização tenha sido decorrente da concorrência tecnológica gerada pela guerra fria e pela crença no contínuo e automático aumento do bem-estar social a partir das novas tecnologias. No Brasil ainda houve o impulso dado por uma política de substituição das importações, que buscou criar uma abrangente indústria nacional. Com a evolução industrial e tecnológica brasileira promovida a partir dos anos 50, mas realmente ativada a partir da década de 70, houve um aumento gradativo da demanda por engenheiros com formação mais científica e maior conhecimento técnco, que pode ser observada, principalmente (e, no início, quase exclusivamente), nos corpos de engenheiros e pesquisadores das grandes empresas estatais, como a ELETROBRÁs (em especial o CEPEL), a TELEBRÁS (e seus centros de pesquisa), a PETROBRÁS, e a EMBRAPA. Concomitantemente, a legislação foi mudada, aparecendo enormes e ultra-especificados "currículos mínimos"48, definindo, em tese, um "engenheiro especialista de base científica", situado entre o engenheiro de formação longa alemão e o engenheiro generalista de base científica francês. De fato, o debate entre os partidários da formação generalista (pensada como a antiga formação do engenheiro civil) e os de formações especializadas, que se multiplicariam com o avanço da tecnologia, dominou a discussão sobre a formação de engenheiros, como pode ser verificado nas resoluções do CFE (Conselho Federal de Educação), nos artigos das revistas editadas pelo sistema CONFEA/CREAs e pelo Clube de Engenharia, da década de 60 até a década de 90, com um repique nas discussões em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Engenharia49. As modificações nos perfis de formação (os idealizados e os, de fato, obtidos) podem ser imputadas à qualificação das escolas de engenharia geradas a partir das políticas governamentais de desenvolvimento industrial e das novas necessidades das empresas estatais já citadas. Data deste período a criação dos cursos de pós-graduação, essencialmente voltados para a qualificação dos professores universitários nas áreas científicas e tecnológicas – sob a esperança governamental (expressa nos documentos emanados da FINEP, do CNPq e dos vários avatares do Ministério da Ciência e Tecnologia ao longo das décadas citadas) de que bastaria um bom grupo de doutores (em regime de dedicação exclusiva, defendiam alguns) para que o desenvolvimento tecnológico e a conseqüente geração de inovações tecnológicas se produzisse50. Verificamos, analisando os projetos apresentados para o REENGE, que apenas parte do conjunto das escolas de graduação em engenharia havia sido afetada, de fato, pelo novo sistema de qualificação. À parte poucas escolas (como a PUC-Rio, as escolas do Estado de São Paulo, e as principais escolas federais), a nova formação se exercia essencialmente por via da pós-graduação. Nos EEUU, o correspondente ao engenheiro especialista de base científica, considerando a formação curta (3 anos), foi definido como: "Foco nas ciências da engenharia; entendimento dos fenômenos fundamentais; análise; maioria dos professores treinados para pesquisa acadêmica"51. Este perfil já era existente nas universidades de pesquisa, que apenas tiveram legimitada sua formação. Nas demais escolas de engenharia houve um inegável aumento dos resultados de pesquisa, que nem sempre se traduziu em inovações e produtos industriais. No 48 Resolução 48/76 do MEC. 49 Ver a proposta do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA): Diretrizes curriculares - uma proposta do sistema CONFEA/CREAs, Brasília, 1998. 50 Tema fatalmente repetido em cada reunião acadêmica em que o autor está presente. 51 Wayne Johnson, HP, op. cit. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 21 dizer de John Prados, diretor do Directorate for Engineering da National Science Foundation (NSF/EEUU)52, os currículos de engenharia se encheram de disciplinas de ciências básicas, sem que estas estivessem relacionadas com as técnicas ensinadas nas disciplinas propriamente profissionais. Podemos afirmar o mesmo no caso brasileiro, onde as disciplinas de física e de matemática foram desenvolvidas dentro da lógica destas ciências, sem ter havido uma maior integração com as disciplinas profissionais. Este efeito é um dos exemplos da resistência dos professores e da estrutura acadêmica a alterações curriculares profundas: o novo conteúdo sendo acrescido sem absorção, via novos professores (físicos e matemáticos, no caso) e novas disciplinas. É preciso dizer que, apesar desta crítica, a qualificação cada vez maior dos professores dos cursos de graduação, fruto da política governamental, aumentou o nível de exigência e a sofisticação do que é ensinado, principalmente nas escolas citadas acima. Inclusive porque os professores com doutorado trouxeram aos cursos de graduação outros modelos e parâmetros de comparação. Uma reação começou a ocorrer nos EEUU em meados dos anos 80 (leis permitindo a exploração de patentes obtidas com financiamento estatal), aparecendo no Brasil 15 anos depois53. Nos anos 90, o fim da guerra fria retirou a física de sua posição hegemônica, levando a novas políticas de estado buscando redirecionar os currículos de engenharia. Falamos aqui das iniciativas da NSF54, nos EEUU, financiando coligações de escolas em torno de novos currículos (no plural) ou de novas metodologias didáticas, e do PRODENGE, programa brasileiro (inicialmente capitaneado pela agência estatal FINEP) buscando a criação de redes temáticas de pesquisa em engenharia (subprograma RECOPE) e a reforma do ensino de engenharia (subprograma REENGE). Uma análise do caso norte- americano aparece em Etzkowitz e Guldbransen55. Os resultados do PRODENGE foram sumarizados por Longo56. Uma das motivações destes programas foi buscar a conexão entre pesquisa básica e desenvolvimento, isto é, entre invenção e inovação. O conceito de aglomerados (clusters) de escolas e indústrias apareceu neste contexto, buscando uma integração mais profunda e crítica. No Brasil, o aspecto mais característico foi o tentar desenvolver o "engenheirar" produtos no país, tentando quebrar uma dependência histórica dos países desenvolvidos. A análise deste problema é o eixo central dos textos fundadores do PRODENGE57. A notar que o bem estar social continua sendo o valor principal (agora associado a produtos novos, não mais à ciência básica em si), mas a motivação é geo-política: aumento da produtividade nacional e integração com êxito no mercado internacional, e, no caso do PRODENGE (em contradição com as políticas do governo de então), diminuição da dependência tecnológica brasileira. Outra motivação foi a já citada hegemonia da visão de mercado, onde a "empregabilidade" do engenheiro passa a depender mais de suas competências gerenciais e da sua capacidade de resolução de problemas que de seu conhecimento técnico especializado. Só que agora em um mercado globalizado: a formação transnacional (duplos diplomas e intercâmbios internacionais). Muda o 52 John Prados, Engineering education in the United States: past, present and future, ICEE-98 Keynote Address, Proceedings of the ICEE98, CDROM, Rio de Janeiro, RJ: PUC-Rio, 1998. 53 Ver o Livro Branco de Ciência e Tecnologia, MCT, 2002, onde a situação e sua história são descritas. 54 NSF, Shapping the Future, op. cit. 55 H. Etzkowitz e M. Gulbrandsen, Public entrepreneur: the trajetory of United States science, technology and industrial policy, Science and Public Policy, Vol 26, n. 1, pp. 53-62, 1999. 56 Wladimir Pirró y Longo, Ivan Rocha e Maria Hortência da Costa Telles, "Reengineering" engineering research and education in Brazil: cooperative networks and coalitions; Science and Public Policy, Vol. 27, n. 1, pp. 37-44, 2000. 57 Wladimir P. Longo, Ciência e tecnologia e a expressão militar do poder nacional, TE-86 DACTec, Rio de Janeiro, RJ: Escola Superior de Guerra, 1986; Wladimir P. Longo, Ciência e tecnologia: evolução, inter-relação e perspectivas, Anais do 9° Encontro Nacional de Engenharia de Produção, Vol 1, p. 42, Porto Alegre, RS: UFRGS; Ministério da Ciência e Tecnologia, PRODENGE – Programa de Desenvolvimento da Engenharia, Documento Básico, Rio de Janeiro, RJ: MCT, 1995. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 22 papel do engenheiro: de um técnico especializado, com ou sem formação científica suplementar, passa ao de um gerente com visão tecnológica, podendo atuar no mercado ou no desenvolvimento de inovações e produtos. Os papéis anteriores não desapareceram, apenas perderam sua predominância cultural. O novo engenheiro apresentado para o novo século deve ser empreendedor, possuir base científica suficiente para acompanhar rapidamente as mudanças tecnológicas e antever sua função econômica. Deverá assumir novas atitudes exigindo um novo tipo de formação, pois atuará em um novo modelo social. Todas as caracterizações apresentadas na virada de século parecem convergir, como o Engenheiro 2000, da ABET/EEUU58, a formação sugerida pelo SEFI59 para a Europa, a proposta de Diretrizes Curriculares da ABENGE60, e, finalmente, as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Engenharia61, homologadas em 2002 pelo Ministério da Educação do Brasil. As características deste novo engenheiro exigem uma formação longa, embora perfis muito diferentes caibam neste esquema global. O "engenheiro empreendedor de base científica" proposto pela PUC-Rio62, ou os perfis de formação propostos pela Escola Politécnica da USP63 - o engenheiro Poli 2015 - ou pelo CEFET/PR64, embora de escopos diferentes, se encaixam nas diretrizes oficiais – que deixa às escolas a definição de seu perfil particular, das habilitações e modalidades, do nível de especialização (salvo um visão generalista embutida nas diretrizes) e do currículo apropriado. I.3. Acordos internacionais e o problema da certificação A grande quantidade de perfis de formação e as diferentes formas de definir o conceito de "engenheiro", espalhadas por diferentes títulos, dificultam a mobilidade de alunos e professores entre países diferentes e, mais ainda, o reconhecimento mútuo de títulos. Ora, estes dois temas começaram a ser tratados enfaticamente a partir dos anos 80, por razões que falam por si: • expansão global da indústria, motivada por vantagens de escala e barateamento de custos; pressão das indústrias multi-nacionais visando a movimentação internacional de seus quadros especializados e a contratação de engenheiros em países diferentes; • acesso a um maior conjunto de mercados e de idéias; • possibilidades técnicas (grupos de trabalho e laboratórios remotos) e comerciais (OMC, desregulamentação, etc.); • desejo de maior integração cultural, buscando um trabalho em conjunto (ideais da ONU), o que facilita o movimento comercial e também o entendimento dos povos por cima das barreiras nacionais. Vários acordos internacionais tem sido firmados na busca de uma maior uniformização dos títulos e dos processos de formação, buscando atender os desiderata acima. A Declaração de Bologna, por exemplo, tem por objetivos principais: • harmonizar a "arquitetura do Sistema Europeu de Educação Superior, sem prejuízo do reconhecimento do valor da diversidade cultural, lingüística e dos sistemas nacionais"; • potencializar a mobilidade de estudantes, professores e pesquisadores; • aumentar a transparência e garantir a qualidade do ensino; 58 Accreditation Board for Engineering and Technology (ABET), http://www.abet.org. 59 Societé Européenne pour la Formation des Ingénieurs, http://www.ntb.ch/SEFI. 60 Associação Brasileira para o Ensino de Engenharia, fundada em 1973, http://www.abenge.org.br. 61 Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Engenharia (Parecer CNE/CNS 1362/2001 e Resolução CNE/CNS 11/2002), em http://www.mec.gov.br/Sesu/diretriz.htm. 62 Ver sua definição em www.puc-rio.br. 63 Ver sua definição em www.poli-usp.br. 64 Ver sua definição em www.cefet-pr.br. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 25 Cabe lembrar que o acesso à profissão de engenheiro nem sempre é regulamentado legalmente. Não há regulamentação oficial (isto é, legislação restringindo o exercício profissional) na Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Holanda. Na Itália e na Grécia há um exame nacional para o acesso à habilitação, e na Espanha, Portugal, Reino Unido, Irlanda, e em alguns estados norte- americanos, exige-se a certificação de qualidade por uma instituição profissional, nem sempre associada à obtenção de um diploma universitário72. O controle legal do exercício profissional por organismos estatais ou para-estatais (como o sistema CONFEA/CREA) baseado em diplomas associados a cursos universitários credenciados aparece essencialmente nos países íbero-latino-americanos. 72 Ver tabela em C. Lange, op. cit., p. 160-161, especificando por país (na Europa) o diploma, os estudos necessários, o nível de regulamentaçào, o título associado, e os tipos de organizações profissionais. Uma análise histórica das exigências para o exercício profissional no Brasil, nos EEUU e na GB no período 1822-1930 aparece em E. C. Coelho, op. cit, associando essas exigências ao desenvolvimento tecnológico e às ideologias dominantes em cada país e ao longo do período considerado. Cabe lembrar que a doutrina liberal estado-unidense levou a que não houvesse nenhuma exigência para o exercício profissional em medicina, advocacia e engenharia por toda a segunda metade do século XIX, o mesmo ocorrendo no Brasil quanto à engenharia até 1920 (E. C. Coelho, op. cit., p. 271). Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 26 I.4. A construção do currículo de engenharia73 Uma visão aparentemente clara e pragmática da noção de "desenvolvimento de currículos" é apresentada por Evans e Roedel74, seguindo a escola educacional norte-americana de Bobitt e Tyler75. Nela, um currículo é desenvolvido a partir da especificação dos seguintes itens: • Objetivos do curso, descritos de forma genérica e abstrata (cobrindo várias das especificações da ABET ou das Diretrizes Curriculares brasileiras, por exemplo); • Resultados a serem obtidos, descritos de forma objetiva e específica (capacidade de leitura e correção de plantas, por exemplo); • Indicadores de desempenho, específicos e medindo o desempenho dos alunos nos resultados especificados; • Estratégias e ações, ou como atingir, institucionalmente, os resultados; • Métodos e métricas de medida de desempenho, para medir os indicadores de desempenho; • Avaliação: um sistema de análise crítica para examinar as medidas de desempenho obtidas, estimando o progresso na direção dos objetivos; • Realimentação: aplicação dos resultados da avaliação para desenvolvimento futuro e correção de objetivos e de estratégias. Esta visão pragmática, embora seja útil, encobre ideologicamente muitos dos problemas centrais da educação em engenharia. Assume que o papel social dos engenheiros já está determinado e que os valores educacionais são consensuais – não havendo espaço para sua discussão. Ora, "o currículo tem relação com o modelo de sociedade, na medida em que, através do currículo, difundem-se conhecimentos, valores, conceitos, interpretações dos fatos sociais"76. Uma crítica comum no meio acadêmico brasileiro pode ser expressa pela seguinte citação: "O projeto hegemônico, neste momento, é um projeto social centrado na primazia do mercado, dos valores puramente econômicos, nos interesses dos grandes grupos industriais e financeiros. ... Neste projeto, a educação é vista como simplesmente instrumental à obtenção de metas econômicas que sejam compatíveis com esses interesses"77. Nesta linha crítica aparece a defesa de uma formação em engenharia ampliada às ciências sociais, contra a priorização absoluta das áreas técnico-científicas78. Distinguindo uma formação em ciências sociais de uma formação aberta a seus valores e informada de suas questões, não é possível negar a pertinência desta discussão. Mais profundamente, Bordieu e Passeron79 mostram que a escola, em especial as escolas de engenharia, são mecanismos reprodutores de determinadas estruturas de poder socialmente instaladas – e, a bem da democracia, cabe romper com este funcionamento80 - o que gera um impasse que explica parte dos problemas em discussão atualmente na área de educação. 73 Esta parte do texto é baseada em Marcos A. da Silveira e Luiz C. Scavarda do Carmo, Comments on the design of engineering curriculum and the choice of didatic strategies, INEER, a ser publicado. 74 D. L. Evans e Ronald Roedel, Workshop on Curriculum Development, apresentada no IASEE2003, São José dos Campos. Ver http:/www.univap.br/iasee. 75 Franklin Bobbit, The curriculum. Cambridge, MA: Riverside, 1918. R. Tyler, Basic principles of curriculum and instruction. Chicago: University of Chicago Press, 1950. 76 Flávio M. Cunha e Mário Borges Neto, Currículo para cursos de engenharia: o texto e o contexto de sua construção, Revista de Ensino de Engenharia, vol. 20, n. 2, 2001, pp. 41-47. 77 T. T. Silva, O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular, 2a edição. Belo Horizonte, MG: Ed. Autêntica, 2000, p. 28. 78 Cunha e Borges Neto, op. cit., Walter A. Bazzo, Luiz T. V. Pereira e Irlan von Lisingen, Educação tecnológica, Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 2000. 79 Pierre Bordieu e Jean-Claude Passeron, A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. 80 Uma boa revisão sobre o assunto aparece em João J. E. Rabelo, O pensamento sobre currículo no século XX: uma revisão na literatura, Anais do COBENGE2002, CDROM, Piracicaba, S.P., UNIMEP, 2002. Capítulo I O papel do engenheiro e sua formação 27 Apesar da pertinência das críticas acima, o curso de engenharia é, por definição, um curso profissionalizante. Cabe então questionar o mercado de trabalho, pensando-o em forma prospectiva, e questionar os interesses sociais – buscar as tendências tecnológicas e sócio-econômicas e analisar criticamente as mudanças de valores. E, para além destas direções de exploração, há o interesse dos candidatos e alunos do curso de engenharia. O problema da construção do currículo, buscando uma metodologia que permita transpor as competências já estabelecidas – o que inclui as novas funções e atividades do engenheiro na sociedade pós-industrial, mas, e principalmente, considerando os valores implícitos, será tratado em maior extensão no restante deste trabalho, em especial no que toca à formação do engenheiro empreendedor, voltado para a inovação. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 30 Já Perrenoud90 define “competência como o saber-mobilizar conhecimentos e habilidades para fazer frente a um dado problema, ou seja, as competências designam conhecimentos e qualidades contextualizados.“ É um "savoir-faire de alto nível, que exige a integração de múltiplos recursos cognitivos para o tratamento de situações complexas". Ainda, "uma competência remete a uma ação bem sucedida". Reserva o termo para uma capacidade de nível alto, lembrando que "competências específicas" (ou habilidades, ou savoirs-faire) em um nível dado serão elementos a serem mobilizados por competências em um nível mais alto. Isto é, a competência se estabelece em relação a um dado problema contextualizado, e refere-se a competências embutidas, "específicas" ou de "nível mais baixo". As competências "mobilizam esquemas de percepção, de pensamento, de ação, intuições, suposições, opiniões, valores, representações (comuns ou construídas) do real, saberes.....o todo se combinando em uma estratégia de resolução do problema ..... por raciocínios, inferências, antecipações, estimativas, diagnósticos, etc."91. Adotaremos uma adaptação da visão de Perrenoud, onde "competência" é a capacidade de mobilizar e articular os saberes (ou conhecimentos), habilidades (ou competências específicas92), aptidões e atitudes para resolver eficazmente novos problemas, devidamente contextualizados, de forma fundamentada e consciente. Assim, para definirmos as competências necessárias para uma dada formação em engenharia, precisamos começar especificando os tipos de problemas que esperamos que este engenheiro resolva, e os contextos em que atuará. Perrenoud chegou a este conceito buscando os limites da dissociação entre saberes e práticas, para chegar a um instrumento que sintetizasse as duas vertentes de organização curricular: a que começa dos conteúdos e a que parte das práticas educacionais93. Este caminho é próprio à área de educação, e se inscreve no projeto de pesquisa central na área da teoria do currículo nos últimos 20 anos. O autor e sua equipe chegaram ao conceito a partir da epistemologia própria à engenharia, que parte dos problemas a serem resolvidos, definidos a partir de seu contexto, para as técnicas, métodos e saberes94. A crítica de que esta definição, por referir-se a problemas contextualizados, está restrita a engenheiros operacionais e técnicos, não se aplica, pois por "problema contextualizado" podemos entender problemas tão complexos como o de enviar um homem a Marte. A crítica de que esta definição ignora saberes (ou, 90 Ph. Perrenoud, La transposition didactique à partir de pratiques: des savoirs aux compétences, in Revue des sciences de l'éducation (Montréal), Vol XXIV, n. 3, 1998, pp. 487-514 (acessível no site do autor, http://www.unige.ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud). 91 Interessa observar que a definição de Perrenoud assemelha-se ao uso do termo em gramática geradora: "um conhecimento implícito que os sujeitos falantes possuem de sua língua, e que lhes permite produzir e compreender um número infinito de enunciados nunca escutados anteriormente" (Dictionnaire Hachette, preface de Roland Barthes, Paris, França: Editions Hachette, 1988). Vemos aqui o domínio psicológico (e inconsciente) de um conjunto de saberes e processos cuja articulação permite resolver problemas novos (aqui a produção e a interpretação de sentido, no contexto semântico e gramatical de uma língua) – uma competência de nível mais alto que o simples reconhecimento do sentido de palavras ou de regras gramaticais. Por outro lado, Perrenoud exige que o sujeito seja consciente da articulação que realiza, mas não necessariamente de todas as habilidades implicadas. A referência a "esquemas" relaciona o conceito a preocupações da psicologia da percepção e da epistemologia, e ao problema central das atividades mentais reflexivas e reflexionantes, tema levantado em Ph. Perrenoud, L'intuition dans la classe: un mystère?, http://www.unige.ch/fapse/SSE/perrenoud, mas, essencialmente, em aberto. 92 Ou savoir-faire, ou know-how. 93 Perrenoud, op. cit. 94 Caminho esse que pode ser relacionado diretamente com uma temática epistemológica em torno das "ciências do artificial" e da noção de interesse, explorada por Kant e por Habermas. Mas esta é outra direção de pesquisa, que não será tratada neste trabalho. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 31 de forma operacional, conteúdos) foi respondida por Perrenoud em seu texto seminal95. A definição de competência, que ficará mais clara ao discutirmos os termos que a compõem, não impede a existência de cadeias de competências mais específicas, todas importantes em si, mas eventualmente encaixadas diante de um problema específico. Por exemplo, a sequência: conceber (ou projetar) a solução de um problema de engenharia→ formalizar o problema → modelar o problema → escolher as variáveis essenciais para descrever um sistema (em consideração à resolução de um determinado problema). Cada termo desta sequência é uma competência específica em relação à competência anterior, e necessária para que a competência anterior possa ser dominada. Outro exemplo (sempre em relação a um dado problema de engenharia): inovar → mobilizar e estimular a criatividade → focar esta criatividade no objetivo dado → produzir soluções. Notar que "produzir soluções" faz parte da definição de "inovar", mas é uma competência a ser invocada inclusive em problemas onde não se coloca a questão de uma verdadeira inovação. Saberes, conhecimentos, savoir-faire Passemos agora aos termos usados na definição de competência. A noção de "saberes", comum na literatura francesa e presente nos trabalhos de Ropé e Tanguy96, é muito geral, incluindo todo tipo de prática, procedimento ou explicação aceito ou utilizado no domínio de interesse. No dizer de Perrenoud, "os saberes são representações do real que nos vêem ao espírito quando somos confrontados a situações que desafiam nossas rotinas", incluindo os "conceitos e teorias (eruditos, práticos ou do senso comum) que os estruturam"97. No caso da engenharia, inclui o estado da arte, o estado da técnica e o estado da prática98, assim como as ciências que lhe servem de base e todo 95 Ph. Perrenoud, Construire des compétences, est-ce tourner le dos aux savoirs, in Résonances. Mensuel de l'école valaisanne, n. 3, Dossier "Savoirs et compétences", novembre 1998, p. 3-7, reproduzido em http://www.unige.ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud. 96 Ropé e Tanguy, op. cit. 97 Ph. Perrenoud, La transposition didactique à partir de pratiques: des savoirs aux compétences, in Revue des sciences de l'éducation (Montréal), Vol XXIV, n. 3, 1998, pp. 487-514 (acessível no site do autor, http://www.unige.ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud). Neste texto aparece toda uma discussão sobre os tipos de saberes, conforme diferentes chaves de classificação. Citamos algumas definições: "Um saber erudito exige uma ordenação, uma linguagem apropriada e controle intersubjetivo". "Um saber teórico (erudito ou não) não é a representação de uma situação singular, mas de um processo trabalhando dentro de uma classe de situações comparáveis". "Um saber comum funciona sem que o sujeito se observe agindo". Há saberes formais (validados teoricamente), práticos (referidos a práticas de referência, submetidos a critérios de eficácia prática) e saberes procedurais (representações do procedimento a ser seguido). 98 O estado da arte, estado da técnica e estado da prática correspondem, aproximadamente, aos saberes formais, práticos e procedurais tratados por Perrenoud. Uma definição mais completa aparece em da M. A. da Silveira, L. A. Meirelles e M. I. P. Silva, Notas sobre o curso de engenharia, in Nova Visão dos Cursos de Engenharia e suas Implicações na Universidade Moderna: uma Proposta da PUC-Rio, Relatório Interno do Decanato do CTC, PUC-Rio, julho de 1995: • "Estado da arte": conjunto de hipóteses e teses consideradas válidas pela comunidade acadêmica sobre problemas científicos específicos. O estado da arte é normalmente documentado em periódicos especializados. • "Estado da técnica": conjunto de métodos e técnicas para a resolução de problemas técnicos específicos devidamente documentados na literatura ou nos bancos de dados dos serviços de patentes e congêneres. • "Estado da prática": conjunto de soluções técnicas em uso, incluindo técnicas de projeto, produtos e formas de organização empregadas em processos de trabalho concretos. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 32 outro conhecimento ou prática que lhe possa ser útil (os saberes comerciais, jurídicos e administrativos, por exemplo). Em sua tese de doutorado, Gama99 propõe uma reconstrução do sentido de "conhecimento" no contexto da educação que facilita a crítica da descrição habitual dos currículos: "conhecimento" (de um aluno/profissional) é o conjunto de saberes apropriado pelo sujeito de forma que possa ser aproveitado nas competências sob análise. Esta definição separa claramente o conteúdo ensinado (um conjunto de saberes) do conhecimento aprendido, e apresenta este aprendizado em relação às competências – estabelecendo o sentido em que se espera que ele seja utilizado e, implicitamente, a forma de avaliação. A pergunta sobre a utilidade do conhecimento (Conhecimento para quê?) está respondida pela sua referência às competências escolhidas100. Notar como "conhecimento" aqui se aproxima de "know-why", expressão frequentemente encontrada nas descrições norte-americanas do novo engenheiro101. Outro termo usado acima é "savoir-faire" ou "saber-fazer", cujo sentido é recoberto, às vezes, pelo de "know how", "skill" ou "habilidade". Pode ser definido como: um "saber-fazer" é a capacidade de resolver um problema específico ou de executar com sucesso uma tarefa bem definida. Ou, como definem Ropé e Tanguy no texto já citado: "savoir-faire (aqui entendido como as capacidades numa situação precisa que o indivíduo manifesta para resolver um problema proposto utilizando suas habilidades e incorporando um conjunto de atitudes)". Exemplos: efetuar uma pesquisa bibliográfica, ler um desenho técnico, medir o passo de um parafuso, calcular a pressão sobre uma hélice de submarino, ou calcular uma integral. "Um savoir-faire não é um saber. ..... O primeiro se manifesta na ação eficaz, sem prejulgar o modo operatório. Um saber (procedural) é uma representação do procedimento a ser aplicado"102. Alguns autores usam uma definição muito abstrata, que se confunde com a de competência sem especificar claramente a existência de um problema ou de um contexto: savoir-faire é a "habilidade de ter sucesso naquilo que se empreende"103. Esta definição esboça mais uma qualidade moral que uma característica específica e verificável, não sendo de grande utilidade para estudar o problema que nos interessa. 99 Sinval Z. Gama, O perfil de formação do engenheiro elétrico para o século XXI, Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Elétrica, PUC-Rio, 2002. 100 Ver a discussão do assunto em M. A. da Silveira e L. C. Scavarda do Carmo, Sequential and Concurrent Teaching: Structuring Hand’s-On Methodology, IEEE Trans. Education, Vol. 42, n. 2, p. 103- 108, maio 1999, que mostra que o ensino sequencial e o ensino concorrente são baseados em concepções diferentes de conhecimento. Por exemplo, concursos e provas convencionais (o exame vestibular e o Provão, inclusive) – se o sucesso nestes passa a ser considerado o objetivo da educação – definem uma competência implícita: ter sucesso no concurso, prova ou exame especificado. Esta competência define a razão imediata do conhecimento a ser adquirido: responder questões padronizadas em tempo dado segundo o tipo de avaliação específico à prova ou concurso em vista. O resultado final (implícito e mascarado) é a reprodução social apontada por Perrenoud. Claro, o tipo de conhecimento (segundo o artigo citado) e a pedagogia apropriada diferem do que se espera para competências como "resolver problemas de engenharia em ambiente industrial", por exemplo. Vemos aí a diferença entre objetivos e padagogia de cursinhos preparatórios para tal concurso ou exame e objetivos e padagogia da escola (ensino fundamental, médio ou superior), consideradas as diretrizes curriculares emanadas do MEC. Infelizmente, as escolas acabam por ceder às exigências sociais em torno do sucesso nos concursos que marcam o caminho escolar habitual. Um exemplo flagrante é o aluno que chega às Grandes Écoles francesas, verdadeira máquina de responder as provas típicas nos concursos franceses (na França chamados de bêtes à concours), e que exige toda uma pedagogia apropriada para torná-lo um engenheiro autônomo e empreendedor capaz de tomar decisões no contexto empresarial – entrevistas pessoais do autor com os corrdenadores pedagógicos da maioria destas escolas. 101 Engineer 2000, ver htpp://www.abet.org, por exemplo. 102 Perrenoud, op. cit. O parênteses foi colocado pelo presente autor. No trabalho citado, Perenoud discute os sentidos de savoir-faire na literatura francesa. 103 Nouveau Petite Larousse, Paris, França, Ed. Larousse. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 35 Currículo "Currículo" se origina, por metáfora, da palavra latina "curriculum", o "lugar onde se corre". Kramer115 esclarece a metáfora com o seguinte comentário: "Uma proposta pedagógica [ou curricular] é um caminho, não é um lugar. Uma proposta pedagógica é construída no caminho, no caminhar. Toda proposta pedagógica tem uma história que precisa ser contada. Toda proposta contém uma aposta." Mais adiante comenta: "uma proposta pedagógica ..... tem uma direção, um sentido, um para quê, tem objetivos." Frisamos aqui o currículo como pretensão e proposta – a "proposta curricular". Frisamos também a aposta que este contém, aposta esta a ser assumida, com seus riscos e esperanças. Por isso mesmo, para não tornar-se um jogo irresponsável, um currículo deve conter mecanismos de avaliação contínua, com a possibilidade de correção de rota ou de métodos, possibilitando que seus resultados sejam verificados e seus objetivos efetivamente alcançados116. Um princípios facilmente defensável é que a metodologia educacional deve levar em consideração o educando concreto e particular que está na escola, em contato com seus professores, na sua situação social e histórica específica. O currículo (ou a proposta curricular) deve deixar espaço para esta consideração, o que exigirá a contínua adaptação metodológica citada acima – e que constitui o caminho da proposta curricular, no sentido dado por Kramer117. Por outro lado, a escola refere-se, com seus valores, objetivos e métodos, à sociedade da qual faz parte, e deve possuir mecanismos que a ponham em contato contínuo com suas instâncias. Daí o perfil de formação ser parte essencial do currículo, assim como este deve conter mecanismos de consulta social apropriados, prontos a indicar a necessidade de mudanças nos caminhos e métodos. Um terceiro princípio é que o conhecimento tem sempre uma razão de ser, responde a um interesse118, ou, no caso da engenharia, atende à resolução de um problema definido de acordo com os interesses profissionais, considerados os valores da escola. De imediato podemos dizer que é possível organizar os conhecimentos segundo sua ordem lógica interna, ou organizá-los como "um conjunto de recursos aos quais o sujeito recorre, ao sabor das necessidades de sua ação, em função de um problema"119. A primeira organização corresponde ao ensino sequencial, a segunda ao ensino concorrente; as duas formas correspondendo a organizações curriculares diferentes – respectivamente reduzindo os conhecimentos a conteúdos organizados, ou, no caso do ensino concorrente, exigindo a escolha de problemas e a definição de competências, a partir dos quais o aprendizado pode ser organizado. Cada uma destas formas corresponde a uma resposta diferente à pergunta sobre o interesse do conhecimento, trazendo consigo suas consequências metodológicas120. Expressões relacionadas, no contexto que nos interessa, são "plano de curso" e "organização dos estudos", desde que estejam no formato de uma proposta, a ser modificada ou adaptada de acordo com objetivos, valores e 115 S. Kramer, Propostas pedagógicas ou curriculares: subsídios para uma leitura crítica, in VV. AA. Currículo: políticas e práticas; Campinas, SP: Papirus Editora, 2002, p. 165 – 183. 116 Temos aqui o conhecido princípio da "realimentação do erro", ou feedback. "Erro" aqui é entendido como a distância entre o que é realmente obtido e os objetivos ou direções pré-estabelecidos. A realimentação permite elaborá-lo e corrigí-lo. 117 Muito facilmente um "currículo" contém apenas listas de conteúdos, ou uma lista fixa de atividades, sem menção alguma ao aluno concreto, como se a educação fosse dirigida a um ser abstrato, o aluno passivo da educação tradicional. O texto acima foi construído de forma a nos demarcarmos fortemente desta concepção, apesar dos diagramas apresentados a seguir – que estabelecem etapas de uma construção – não permitirem o aparecimento explícito do sujeito do aprendizado: o aluno. Esta discussão aparece nas discussões das diferentes metodologias didáticas e no problema, ainda em aberto, de como representar a transposição didática levando em consideração o contexto e o aluno. 118 J. Habermas, Connaissance et intérêt. Paris, França: Gallimard, 1976. 119 Perrenoud, op.cit. 120 M. A. da Silveira e L. C. Scavarda do Carmo, Sequential and Concurrent Teaching: Structuring Hand’s-On Methodology, IEEE Trans. Education, Vol. 42, n. 2, p. 103-108, maio 1999 Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 36 direções explícitos. Estes podem estar expostos através da especificação de valores, competências, conhecimentos, savoirs-faire e atitudes, que conduzem – através de uma argumentação a ser apresentada na proposta curricular – à listagem e à descrição das atividades e disciplinas propostas (que, a rigor, dependerão do aluno concreto que estiver diante do professor)121. Reunindo a conceituação acima, podemos compor um quadro teórico de composição do currículo, exposto diagramaticamente a seguir. 121 M. A. da Silveira, L. C. Scavarda do Carmo e W. P. Longo, Comments on the Design of Engineering Curriculum and the Choice of Didatic Strategies, in Engineering Education and Research 2002 – a Chronicle of Worldwide Innovations. Arlington, VA, USA: Begell House Publishers, 2002. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 37 Figura II.1: Primeiro diagrama de formação do currículo. O conceito de currículo acima apresentado mostra que este deve ser organizado, posto em prática e avaliado por seus principais executantes: os professores e a comunidade acadêmica, na qual deve se incluir a escola (sua administração e seu pessoal) e os alunos (ou seus representantes); mas ouvindo o ambiente externo à escola: a sociedade, sua cultura e seus valores e o mercado de trabalho. As aptidões são supostas já adquiridas pelo sujeito do aprendizado e são necessárias, especialmente, nos savoirs-faire; os valores influenciam as competências e são referenciados diretamente nas atitudes; e as competências definem o campo onde saberes, savoirs-faire, atitudes e valores levam à definição do currículo (isto é, escolha das atividades pedagógicas e de sua organização no tempo e no espaço). O problema da organização deste campo de forma a compor o currículo será um assunto tratado em outros capítulos. Primeiro, será discutida a escolha de valores, competências, saberes, savoirs-faire e atitudes, assunto do próximo capítulo. Depois a escolha do currículo e da pedagogia associada, desenvolvendo a noção de transposição didática proposta por Perrenoud122. O termo "pedagogia", utilizado no parágrafo anterior, deve ser "compreendido no sentido amplo de uma atividade social que engloba a seleção de saberes a serem transmitidos pela escola, sua organização, sua distribuição numa instituição diferenciada e hierarquizada, sua transmissão por agentes 122 Ph. Perrenoud, La transposition didactique à partir des pratiques: des savoirs aux compétences, in Revue des sciences de l'éducation, Vol XXIV, n. 3, p. 487-514 (acessível no site do autor). Aptidões Saberes Savoir-faire Atitudes Currículo Competências Valores Perfil profissional Problemas contextualizados transposição didática • atividades curriculares • disciplinas • avaliações X • tempo • espaço • organização escolar Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 40 capítulo). As demais pontas consideram a formação social & gerencial aprofundada, e a formação humanística & ética aprofundada. De fato, qualquer posição intermediária é possível - ver a Figura II.3. De um engenheiro estadunidense formado em um college (ou do incorporated engineer inglês, ou do ingenieur formado em uma Fahohschule) não se espera mais que um conhecimento técnico (limitado ao estado da técnica em sua especialidade). Fala-se de instrução ou de treinamento128. Já do ingénieur francês formado em uma Grande École, ou do engenheiro saído de uma "research university" estadunidense ou de Cambridge (na Inglaterra), espera-se uma formação científica mais profunda e uma formação social e gerencial aprimorada (estado da arte e formação científica), embora um conhecimento do estado da prática e da técnica reduzido essencialmente aos trabalhos executados em algum estágio técnico. Claro, estas questões estão associadas ao seu papel social. A observar que há uma expectativa de que a formação social129 ou gerencial e a formação científica – em engenharia – tenham níveis de profundidade correlacionados. Esta expectativa é confirmada pelas pesquisas sociológicas, fato mais determinado pela origem social dos profissionais e pelo processo de seleção das escolas de maior prestígio – associados aos papéis sociais esperados de seus alunos – do que por uma lógica implícita às duas formações130. Figura II.3: Campo das formações (considerando sua profundidade). Um terceiro campo corresponde às disciplinas da engenharia, divisão dos saberes relativa às classes de problemas que são tratados, ou ao tipo de produto ou serviço. Por exemplo: • arquitetura e urbanismo131, • biotecnologia e ambiente, • energia, • engenharia civil, • engenharia dos materiais (incluindo metalurgia), • engenharia mecânica, • engenharia química, • redes e sistemas de informação, • serviços e sistemas sócio-econômicos, • sistemas de transporte e logística, • sistemas elétricos e eletrônicos, • telecomunicações, 128 M. Dodridge, Convergence on engineering higher education – Bologna and beyond, Proceedings of the Ibero-American Summit on Enginnering Education; São José dos Campos, SP: UNIP, 2003. 129 Aqui entram a "formação humanística" e a "formação ética", por exemplo. 130 Bourdieu, op. cit. 131 Na França fala-se de "aménagement", incluindo a organização dos equipamentos em áreas rurais. treinamento técnico especializado formação social e/ou gerencial aprofundada formação científica aprofundada formação tecnológica formação cultural e ética Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 41 • etc. Como toda organização disciplinar, a lista acima é arbitrária, podendo-se colocar novas divisões, como alimentos, aviônica, automação ou engenharia náutica, por exemplo. E organizá-las em uma árvore disciplinar. Não é necessário que as classes sejam excludentes: "aeronáutica" pode ser considerada uma sub- classe de "mecânica", mas aparece a partir de um problema suficientemente complexo para que tenha desenvolvido um conjunto de técnicas específicas suficientemente grande para merecer, se preciso, sua posição destacada. As propostas apresentadas pelo sistema CONFEA/CREAs partem de uma metodologia diferente132. Trabalham com uma classificação mínima, considerando apenas os suportes materiais e não os problemas tratados: civil, elétrica, materiais, mecânica e química. Esta classificação revela-se pobre demais para separar de forma útil o conjunto de técnicas atuais. Ela ignora suportes não- físicos ou suportes vivos, como biotecnologia, logística, sistemas informáticos – todos no coração da engenharia de ponta atual. Por exemplo, o objeto de estudo de um engenheiro de transporte ferroviário dedicado à logística deste transporte não é o trem ou os trilhos, mas a movimentação dos vagões e locomotivas modelada como um problema de programação matemática. O modelo mecânico do trem é irrelevante: a base material não determina o problema ou as técnicas utilizadas! Por isso preferimos fundamentar a classificação sobre problemas de engenharia, e não sobre suportes materiais. A notar que engenheiros generalistas devem possuir uma visão geral de várias dessas disciplinas. Neste caso, cabe perguntar o que este engenheiro sabe fazer. Deles, atualmente, costuma-se esperar uma forte capacidade de gestão, isto é, especialização em serviços e sistemas sócio-econômicos, o que foge ao que é representável pela classificação mínima. Ou então que conheça de cada disciplina o pouco que poderá ser utilizado por uma pequena empresa em determinado contexto histórico-geográfico. Este terceiro campo corresponde, de certa forma, à classificação de setores de atividade industriais, apresentada pelas confederações industriais: indústria (aeronáutica, civil, elétrica, mecânica, naval, etc.) e serviços (alimentação, bancos, financeiras, seguros, etc.). Não é exatamente igual à lista destes setores porque nasce da definição acadêmica dos saberes a serem utilizados, enquanto os setores industriais são definidos pelos produtos e serviços finais obtidos. Um quarto campo pode ser chamado de "domínios de atividade", correspondendo ao que na França é chamado (impropriamente) de "filières professionelles". Define o escopo da atividade de um dado engenheiro, a direção em que focaliza sua atenção e os limites de sua atuação. Esta classificação aparece nas chamadas de emprego e na definição das atividades de empresas terceirizadas. Uma listagem poderia conter: 1) pesquisa e desenvolvimento a) analistas b) concepção (produtos, serviços, sistemas, organização, urbanismo, etc. – desenvolver o estado da técnica ou o estado da prática) c) pesquisa (desenvolver o estado da arte e/ou as "ciências da engenharia") 2) produção industrial a) máquinas, equipamentos e materiais (compra, instalação, manutenção, gestão) b) gestão de técnicos c) exploração d) avaliação de riscos e de desempenhos técnicos e econômicos e) ergonomia, segurança, prevenção, f) etc. 3) administração (gestão), vendas, finanças 132 Por exemplo, a proposta de diretrizes curriculares do sistema CONFEA/CREAs, 1999. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 42 a) empreendedorismo (proposição de negócios ou criação de empresas) b) auditoria c) vendas d) logística industrial ou comercial e) gestão técnica e financeira (diversos níveis) f) estratégia comercial g) estratégia corporativa h) formação (treinamento, instrução, ensino – sempre necessária no ambiente empresarial quando da introdução de novas técnicas ou equipamentos) i) etc. O ponto crucial é que boa parte da atividade tecnológica ou empresarial na sociedade pós-industrial não é de base material, constituindo o que é chamado de "trabalho imaterial" na área de sociologia do trabalho133 - o trabalho de acompanhamento, regulamentação, organização, análise e projeto; busca, seleção e organização da informação; geração dos mecanismos informáticos apropriados; geração e manutenção da malha comercial, ou melhor, das redes de fornecedores e distribuidores que, também, recebem e encaminham demandas, saberes e possibilidades técnicas; prevenção e atendimento das demandas sociais; comunicação social (dentro da empresa e para o público/consumidores em geral; desenvolvimento e pesquisa; além de todo o trabalho (de relacionamento social e criação de redes de interesse) necessário para criar e fazer funcionar sinergicamente as equipes de trabalho e a estrutura empresarial. Isto é, um trabalho social do qual apenas parte de alguns itens cabem dentro das definições mais tradicionais da engenharia. E, no entanto, estas atividades constituem a base do aumento da produtividade social que se verifica atualmente (junto com a automação e a tecnologia da informação & telecomunicações – que as permitem e viabilizam), e agregam cada vez mais uma maior parcela da força de trabalho134. A lista acima revela este fato, mostrando como os domínios de atividade se moveram da produção de base material para o já citado "trabalho imaterial". Vejamos alguns exemplos na área de setores industriais. A Accentury (empresa multinacional nascida da antiga Arthur Andersen Consulting) é 133 Ver M. Lazzarato e A. Negri, Trabalho Imaterial, Rio de Janeiro, RJ: DP&A Editora, 2001. 134 Lazzarato e Negri, op. cit., e as estatísticas anuais sobre a força de trabalho norte-americana levantadas pelo U. S. Department of Labor. Uma situação mais fácil de ser apresentada é a do trabalho agro-pecuário: consumia mais da metade da força de trabalho norte-americana em 1850, quando não era relacionado à engenharia. Em 1992 consumia diretamente (no campo) apenas 2% da mesma força de trabalho, em um país onde a agro-pecuária está na base de boa parte da riqueza. Em 1850, à parte os grãos e o boi em pé, o transporte deste material era feito apenas a pequenas distâncias (150 km). A data é importante, pois corresponde à criação das universidades "agrícola-mecânicas", de forma disseminada nos EEUU, buscando levar a engenharia ao campo. Claro, uma das primeiras conseqüências da mecanização agrícola foi o êxodo rural derivado do incrível aumento de produtividade do trabalhador agrícola mecanizado. Hoje em dia há uma enorme atividade industrial, comercial e informática em torno da produção agrícola, congregando meios de transporte e distribuição, logística, frigoríficos, fábricas de enlatados e afins, chegando até a produção de variedades transgênicas de vegetais e animais, seu controle e sua regulamentação; que nos permitem encontrar salmão chileno "fresco" e saladas francesas frescas embaladas com gases raros em quase todo o mundo. Esta atividade inclui todo um sistema de informação distribuído regionalmente e globalmente e uma enorme massa de serviços (comerciais, propaganda, informática, criação e manutenção de redes de fornecedores e distribuidores, circulação de novidades e de inovações, etc.) associada à redistribuição geográfica e temporal do trabalho a ser realizado (buscando a compactação do processo de trabalho, e daí, ao aumento de produtividade, L. Meirelles, Miniaturização e Redução da Necessidade de Trabalho, Tese de Doutorado, Programa de PG em Engenharia Elétrica, PUC/RJ, 1991). Quanto dos 98% da força de trabalho "não-agrícola" está sendo ocupada por toda esta atividade derivada, porém classificada dentro de diferentes setores industriais e de serviços? Sem dúvida, boa parte desta atividade é realizada sob a égide da engenharia, e não apenas a engenharia de alimentos. A notar que tanto podemos dizer que telecomunicações, informática e logística (por exemplo) são causas desta expansão, como podemos considerá-las "mera" condição de possibilidade - de acordo com o tipo de atividade que desejamos sublinhar ou com nossos pressupostos ideológicos. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 45 essencialmente, para a produção industrial141. A classificação global à esquerda (na Tabela 1) é o resultado da ponderação destas três sub-classificações mais algumas considerações descritas no texto do artigo citado. As 15 escolas citadas possuem perfis de formação diferentes, reconhecidos como tais pelo mercado de trabalho. Tabela 1: Classificação das escolas de engenharia francesas, segundo enquete realizada pelas revista Capital (2003). Classificações iguais indicam que as escolas obtiveram o mesmo número de pontos no total da enquete. As escolas estão citadas pelas siglas pelas quais são indicadas no campo acadêmico francês. Classificação das escolas de engenharia francesas (as principais) Apreciação global Aptidão para pesquisa e desenvolvimento Aptidão para a produção Aptidão para finanças e gestão 1. Polytechnique Paris 1. Telecom Paris 1. Ensam 1. Polytechnique 2. Centrale Paris 2. INA P-G (Agronom.) 2. Centrale Paris 2. Centrale Paris 3. Ponts et Chaussées 3. Polytechnique 3. INA P-G 3. Mines de Paris 4. Mines de Paris 4. Centrale Paris 4. Mines de Paris 4. Ponts et Chaussées 5. Telecom Paris 5. Mines de Paris 5. Ponts et Chaussées 5. Centrale Lille 6. Supaero (Toulouse) 5. Supaero 6. Telecom Paris 6. INA P-G 7. Supelec 7. Supelec 7. Mines de St- Etienne 7. Centrale Lyon 8. INA P-G (Agronom.) 8. Ponts et Chaussées 8. Centrale Lyon 8. Mines de Nancy 9. Ensam 9. Ensta 9. Supelec 9. Supelec 10. Centrale Lyon 10. Telecom Bretagne 10. Supaero 10. Telecom Paris 11. Centrale Lille 11. Ensam 11. Polytechnique 11. Ensta 12. Ensta 12. Centrale Lyon 11. Mines de Nancy 11. Ensam 13. Mines de Nancy 13. Centrale Lille 13. Centrale Lille 13. Supearo 14. Telecom Bretagne 14. Mines de St- Etienne 14. Telecom Bretagne 14. Telecom Bretagne 15. Mines de St- Etienne 15. Mines de Nancy 15. Ensta 15. Mines de St- Etienne Ainda neste exemplo, cabe dizer que algumas escolas restringem-se a certos campos disciplinares (Supélec: engenharia elétrica e telecomunicações, Supaero: aeronáutica, INA P-G: agronomia) e outras são generalistas, admitindo especializações variadas (segundo a escola) apenas no último ano (Polytechnique, Centrale). Isto é, o eixo disciplinar está, frequentemente, inscrito no nome da escola (École Supérieur d'Eléctricité: Supélec). As Écoles Centrales, que formam generalistas, encontram seus egressos nos mais diferentes setores industriais: 20% em engenharia mecânica e transportes, 15% nas indústrias aeronáutica, espacial e automotiva, 15% nos setores de consultoria e de computação, etc. 141 Os egressos do ENSAM, tipicamente, vão projetar, planejar ou operar o chão de fábrica, organizando (inicialmente sobre o comando de engenheiros seniores) e dirigindo equipes de operários e de técnicos de nível superior. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 46 O perfil de formação genérico é acompanhado por uma lista de competências a serem enfatizadas na formação, o que especifica esta de forma mais completa. A École Centrale de Lille lista: concretizar, inovar, conceber, organizar, comunicar, formar, coordenar & incentivar, e comenta que todas estas competências apontam para "empreender". Estas competências genéricas são decompostas em dois níveis de competências mais específicas na apresentação do currículo da escola, o terceiro nível referindo-se aos problemas contextualizados exigidos na definição de competência. Isto é, a lista apresentada acima é uma indicação geral, obtida por agregação das competências em classes, facilitando sua apresentação e a discussão de seu conjunto. Na lista usada em sua apresentação internacional em seu site142, estas competências são referidas de forma menos afirmativa e mais realista (pois falam do que é garantidamente obtido ao longo do curso, não de objetivos reguladores da atividade de formação, i.e, tendências ou objetivos tentativos da formação): "largo conhecimento de numerosas disciplinas científicas e tecnológicas, confortável domínio das ciências econômicas e sociais, experiência pessoal na indústria, experiência de projetos em equipe, visão global & mente aberta, potencial para gerência de alto nível [high management]". Todas estas características apontam para a formação de um gerente executivo, ou melhor, de um gerente de alto nível técnico, voltado para a animação da empresa e para o trabalho em equipe. O centro da formação não é a manutenção e o desenvolvimento de equipamentos ou o gerenciamento da produção fabril, embora estas competências estejam entre as competências genéricas exigidas de todos os engenheiros franceses, conforme o critério da SEFI. Em geral, mesmo que diretrizes curriculares nacionais ou critérios tipo ABET ou SEFI listem uma grande quantidade de competências obrigatórias a todo bom engenheiro, dentre elas há as prioritárias por uma dada escola – aquelas a serem enfatizadas na formação. Porém, segundo estes critérios, um engenheiro voltado para a manutenção de equipamentos não será considerado um engenheiro de fato se não for capaz de compreender e melhorar os projetos e o uso das máquinas pelas quais é responsável, e de estudar novas máquinas desenvolvidas para a mesma tarefa. O perfil de formação assinala os pontos mais fortes da formação, mas não supõe que os outros pontos não tenham sido contemplados. A Tabela 1 cita as características profissionais como "aptidões" do engenheiro. O perfil de formação comunica as intenções oficiais da escola para o público interior (alunos e professores) - estabelecendo direções para o desenvolvimento curricular, e para o público exterior – uma peça de propaganda da escola. Este perfil, se atingido, é visto pelo mercado de trabalho como aptidões de seus egressos143. Um exemplo brasileiro é dado pela PUC-Rio: "O Curso de Engenharia ... acaba de passar por ampla reformulação, com vistas à formação do engenheiro do século XXI. Este engenheiro está preparado para ocupar posições de destaque em um contexto de trabalho que exige uma nova visão de seu papel social: o de um engenheiro empreendedor de base científica. Este engenheiro é auto- reciclável, pois aprendeu a aprender; sabe criar, projetar e gerenciar intervenções tecnológicas; sabe trabalhar em equipes multidisciplinares, pois possui sólida base científica e capacidade de comunicação; sabe avaliar os impactos sociais e ambientais de suas intervenções, reagindo de forma ética; e é 142 http://www.ec-lille.fr. 143 Do ponto de vista do mercado de trabalho, "aptidões" do egresso são as competências previstas no currículo, agora já adquiridas. É o ponto de vista de quem já encontrou o profissional formado, e irá contratá-lo. Esse exemplo ilustra algumas das relações nada óbvias entre as palavras usadas neste contexto e os conceitos utilizados. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 47 um empreendedor, construindo o próprio futuro."144 Em um outro trecho do mesmo texto encontramos: "O que distingue o nosso aluno é uma formação alicerçada em um currículo que inclui um núcleo básico de disciplinas obrigatórias, essenciais para a escolha consciente da carreira a seguir, e um leque de disciplinas eletivas, que permite estabelecer o seu ritmo, planejamento e objetivos." O texto continua apresentando a qualidade da pesquisa na universidade. O perfil fala, implicitamente145, da função esperada (técnico especializado e gerente, ao menos ao gerenciar o próprio destino), da profundidade de formação (larga base científica, que é usada como argumento para a capacidade de trabalhar em equipe), e dos domínios de atividade (pesquisa e desenvolvimento, empreendedorismo). Três valores são afirmados (ética, determinação e autonomia), e algumas competências citadas explicitamente. O folheto informa ser a PUC-Rio uma universidade de pesquisa, isto é, um ambiente propício à formação para pesquisa e desenvolvimento, mas não menciona explicitamente o termo "empresa", seguindo assim a tradição acadêmica brasileira, que refere a excelência de formação apenas ao ambiente de pesquisa146. O mercado de trabalho é referido implicitamente através da frase central: "Este engenheiro está preparado para ocupar posições de destaque em um contexto de trabalho que exige uma nova visão de seu papel social: o de um engenheiro empreendedor de base científica." Não é possível referenciar o contato direto do aluno com empresas (formação junto a empresas, etc.) porque o contato da escola com o mercado de trabalho é feito, essencialmente, através de contratos de pesquisa com empresas de alto nível tecnológico (setor elétrico, Petrobras, etc.). Lembremo-nos que não há, no Brasil, instituições voltadas para a formação específica de engenheiros para o estado (como na França), salvo o Instituto Militar de Engenharia e a Escola Naval147. Ora, os alunos do CTC/PUC-Rio ocupam o mesmo tipo de posição no mercado de trabalho que os alunos das Écoles Centrales, dirigindo-se em parte para as áreas gerenciais e de consultoria e auditoria. Isto é consequência do mercado de trabalho carioca, da classe social que frequenta a universidade, e das possibilidades de formação devidas à flexibilidade de seu curso. De fato, a maior parte dos egressos do CTC/PUC-Rio são habilitados (eventualmente em dupla habilitação) como engenheiros de produção, o que, no contexto da escola, implica em forte formação gerencial148. A flexibilidade do curso, afirmada no texto citado, permite aos alunos direcionarem suas formações individuais na direção do mercado de trabalho, gerando uma certa contradição entre o perfil de formação anunciado (que frisa "pesquisa e desenvolvimento" – conforme o padrão nacional e o desejo de seus professores) e o resultado obtido (onde as competências em "gerência, finanças e administração" são mais procuradas – conforme a demanda do mercado de trabalho e o desejo dos alunos, já que aí estão os maiores salários). Observamos que o rótulo "engenheiro empreendedor de base científica", um tanto ambíguo, não é desmentido nesta análise...149 144 Folheto de propaganda do CTC/PUC-Rio, entregue a colégios, candidatos e novos alunos, 2003. 145 O discurso brasileiro sobre engenharia é centrado na capacitação técnica, havendo resistência à visão de um engenheiro gerencial, com formação dirigida para esta função. Isto explica o cuidado da frase citada, com referências indiretas a esta função. 146 Resultado de sua história, onde o aumento de qualidade dos cursos foi obtido indiretamente, como consequência so desenvolvimento dos cursos de pós-graduação, estes voltados para formar professores pesquisadores, e não engenheiros. 147 Esta última oferece o curso de graduação em ciências navais (com várias especialidades) e a habilitação em engenharia mecânica operacional. 148 O autor, professor da PUC-Rio, tem acesso às suas estatísticas internas. Cabe lembrar que o aluno da PUC-Rio só escolhe sua habilitação em engenharia após terminar o Ciclo Básico, podendo cursar duplas habilitações com algum esforço e algum tempo a mais na universidade. 149 Foram usados dois exemplos: um francês, o que permite usar as estatísticas nacionais daquele país e os estudos sociológicos lá realizados, e um brasileiro. Não há, no Brasil, estatísticas nacionais tão cuidadosas, os resultados do Provão não possibilitando este tipo de análise. A PUC-Rio foi usada por ser conhecida do autor, e para evitar melindres políticos com outras escolas. É possível desenvolver Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 50 Um conceito interessante é o de "atividades transversais": disciplinas e projetos utilizando e complementando diferentes disciplinas, agregando a formação do aluno em torno de uma atividade de engenharia (pesquisa ou projeto). Pressupõe a existência de um tipo de atividade ou direção principal no currículo, em relação à qual as demais seriam transversais. Por exemplo, se o curso é organizado, essencialmente, por sequências de cursos magistrais orientados segundo a exposição sequencial da disciplina de engenharia sendo cursada (situação tradicional), um projeto multidisciplinar ou uma atividade junto à empresas são atividades transversais. A seguir serão mostrados alguns exemplos ilustrando a diversidade das estruturas de cursos de engenharia existentes atualmente. No Brasil os cursos de engenharia são centrados em aulas magistrais, com um maior ou menor número de aulas em laboratório, e a exigência de um Trabalho de Fim de Curso e um estágio supervisionado. Qualquer outra atividade é dita "extra-curricular", em especial as atividades de contato com empresas e com o mercado de trabalho. Donde são atividades secundárias... O mercado de trabalho costuma ser percebido apenas através dos professores (suas opiniões e suas consultorias). Há exceções a esta estrutura, como o curso de Engenharia de Produção da UFRJ, que exige uma disciplina implicando um projeto ou estágio por semestre, junto a uma empresa. O curso de Engenharia Mecânica da PUC-Rio propõe um semestre de estágio (não obrigatório), em estágio integral junto à uma empresa, que não parece atrair os alunos. Como exemplo de outra estrutura, o curso de Design da PUC-Rio (não sujeito às obrigações dos currículos mínimos de engenharia) é organizado em torno dos Laboratórios de Design (I, II, III, IV, etc...), as demais disciplinas sendo tratadas como complementares – porém obrigatórias. O recente curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio também é organizado em torno de disciplinas de projeto obrigatórias, semestre a semestre, seguindo o mesmo modelo. Um caso extremo de organização de todo um curso de engenharia baseado em "problem based learning", isto é, em disciplinas de projeto, é o modelo de Aalborg155, desenvolvido na Universidade de Aalborg, na Dinamarca. Uma teorização deste tipo de atividade – as disciplinas de projeto - estendendo-o à estrutura do curso, é o ensino concorrente, principalmente na sua forma mista, onde o curso é organizado a partir de projetos, com disciplinas ou atividades sequenciais aparecendo como atividades complementares ou preparatórias, atendendo à estrutura ou à extensão dos corpos teóricos a serem dominados156. Outra teorização, sem abordar os aspectos cognitivos, mas discutindo profundamente a organização curricular, é o "problem based learning", tema frequente nos congressos em educação em engenharia, e bem sumarizado nos trabalhos de F. K. Fink157. Na Alemanha, há a obrigatoriedade de um estágio em empresa na parte básica do curso (Studien Arbeit), e um último ano quase completamente dedicado a um estágio em empresa (Diplom Arbeit) e à preparação de uma "tese de diploma", sendo esses considerados a parte nobre do curso. Períodos de cesura junto a empresas são incentivados. No entanto, as opções possíveis para as disciplinas tradicionais encontram-se dentro da especialidade escolhida (máquinas elétricas, por exemplo), com pouca abertura a formações complementares 155 F. K. Fink, Innovations in engineering education - the Aalborg model, Sessão plenária da IASEE2003, São José dos Campos, 2003, http://www.univap.br/iasee. Outras informações no site do autor, http://elite.auc.dk/fkf, e no site da Universidade de aalbor, http://esn.auc.de. 156 M. A. da Silveira e L. C. Scavarda do Carmo, Sequential and Concurrent Teaching: Structuring Hand’s-On Methodology, IEEE Trans. Education, Vol. 42, n. 2, p. 103-108, maio 1999. 157 Ver http://elite.auc.dk/fkf e http://ucpbl.org, o site do Global Unesco Center for Problem Based Learning. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 51 (administração, gerência, etc.), sendo a quase totalidade das disciplinas obrigatórias (cada escola com sua lista). Na França, considerando apenas as Grandes Écoles, os dois primeiros anos ocorrem nas classes préparatoires, onde o ensino é completamente tradicional (cursos magistrais, aulas de exercício e de laboratório). Os três anos seguintes são bastante livres, sendo o último deixado à especialização, que, frequentemente, é feita em outra escola. Nos dois anos intermediários encontramos desde cursos tradicionais, com um estágio anual obrigatório em empresa (estágios de um a três meses), até cursos completamente organizados em torno de projetos obrigatórios de dois anos de duração (definidos em conformidade com o interesse de empresas) associados a estágios durante as férias. Seguindo o exemplo já discutido, as Écoles Centrale assinalam 1800 horas de contato com os alunos ao longo dos dois anos, 50% em formação científica e tecnológica, 50% em preparação para vida social, atividade profissional, realização de projetos e atividades em laboratório, além da preparação para formação internacional (línguas, cultura geral, etc.). Este número de horas não considera os estágios. A EC-Lille assinala que o projeto central ocupa, ele só, 300 horas (em dois anos), e os estágios em empresa ocupam 4 meses. Nesta escola, o último ano é dividido em 435 horas para disciplinas de especialização (incluindo trabalhos práticos), 180 horas para disciplinas e treinamentos voltados para o domínio de atividade (com um mínimo de 25 horas para cada um deles), 150 horas dedicados a um projeto, e cinco meses de estágio em empresa. Evidentemente, estas escolas possuem todo um secretariado voltado exclusivamente para a obtenção e acompanhamento de estágios, e para o contato com os antigos alunos – caminho fundamental para a obtenção de fundos (reversão para a escola da isenção de impostos para treinamento e educação), de estágios e de temas para projetos. Nos EEUU, seja em universidades de pesquisa, seja em colleges de importância local, as disciplinas são organizadas em grupos (ciências matemáticas, ciências físicas, ciências biológicas, ciências sociais, humanidades158), sendo o aluno obrigado a fazer um número mínimo de disciplinas em cada grupo, sobrando espaço para disciplinas eletivas. Desta forma, Cálculo I, Física I e algumas outras poucas disciplinas acabam obrigatórias, sendo as demais optativas. A formação especializada (em engenharia) é organizada da mesma forma, devendo o aluno escolher uma razoável porcentagem em um tema principal (major) e uma menor porcentagem em um segundo tema (minor). O contato direto do aluno com empresas não é a norma (mesmo sendo proposto episodicamente), tendo sido lançado como grande novidade pelos cursos "hands-on"159 e proposto pela MicroSoft160, recentemente, como uma grande mudança na formação. Esta autarquia das escolas em relação ao mercado de trabalho explica a enorme importância, neste contexto, dos desafios intra-universitários, como o mini-baja, o avião solar, o automóvel solar ou as guerras de robôs; e das atividades esportivas, tomadas como formadoras do espírito de equipe. A flexibilidade curricular (para além de algumas disciplinas eletivas), que permite ao aluno uma adaptação quase individual do currículo a seus interesses, exige uma estrutura que integre as diferentes especializações e habilitações, criando um máximo de disciplinas comuns, e começando com um Ciclo Básico 158 Ver o folheto do MIT, Facts, de 2002, cujo conteúdo é apresentado em http://www.mit.edu. 159 Exemplo: as disciplinas hands-on organizadas por Tom Regan na University of Maryland: T. Regan, Introduction to engineering design at Maryland — a major engineering education process improvement, Proceedings of the ICEE97, Vol. II, pp. 621-631. Carbondale, Illinois: Southern Illinois University, 1997. 160 Anúncio apresentado no IASEE2003, em são José dos Campos, por Jaime Pontes, da Microsoft Research, durante o trabalho da Força Tarefa D, dirigida por L Morell J. F. X. Faraco (ver http://www.univap.br/iasee). Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 52 comum a todos os alunos (centrado no aprendizado das ciências básicas), como ocorre na PUC-Rio e na Escola Politécnica da USP. Uma tentativa de aumentar a flexibilidade curricular (dentro de três especializações) está sendo tentada pela École Supérieur de Télécommunications de Paris, usando uma estrutura modular, onde cada módulo corresponde de 15 a 30 créditos, com três professores responsáveis, ministrados em dois semestres. A flexibilidade curricular implica grande complexidade no gerenciamento dos cursos (para evitar a explosão do número de disciplinas161) e um sistema de orientação eficaz, além de um manejo cuidadoso das cadeias de pré-requisitos. II.5. Exemplos Aprofundando os exemplos sobre a noção de competências, será mostrada uma parte da apresentação atual das Écoles Centrale, em especial a de Lille – o nosso caso de estudo. A escolha desta escola foi feita em função de seu modelo quase oposto ao conceito tecnicista (que vê o engenheiro completamente dedicado ao fazer técnico), e pela forma explícita com que apresenta seus objetivos. O perfil desta escola indica a formação de gerentes com visão técnica, isto é, alguém pronto a ocupar o papel social associado ao título de ingénieur, ou no Brasil, associado ao título de engenheiro. Depois serão mostrados alguns exemplos da PUC-Rio, trabalhados pelo autor. Primeiro, um resumo de discussões recentes acompanhadas pelo autor, onde valores, competências e conhecimentos "centraliens" foram explicitados. As quatro École Centrale francesas (Lille, Lyon, Nantes e Paris) escolas se organizaram em torno da formação de engenheiros voltados para trabalhar em empresas162, junto à sociedade, em equipes e no ambiente internacional. Decidiram que sua formação comum levaria seus egressos a possuir os seguintes: Valores determinação, responsabilidade, disponibilidade, solidariedade, humanismo, tolerância, abertura, respeito, cidadania, amor- próprio163, humildade, honestidade intelectual, exigência, rigor metodológico; Competências empreender, exercer espírito crítico, criar, inovar, dominar a complexidade, desenvolver-se pessoalmente, abrir-se culturalmente, comprometer-se, integrar a dimensão internacional, comunicar, transmitir, liderar uma equipe, trabalhar em equipe, desenvolver uma visão estratégica da empresa, decidir e agir, saber relacionar, adaptar-se; Conhecimentos ciências fundamentais, ciências sociais e humanas, a empresa e seus setores de atividade, ciências do engenheiro; Aptidões capacidade de abstração, agilidade intelectual, capacidade de trabalho e rigor. Os valores marcados acima são características a serem reforçadas nos alunos. São mais explícitos que os habituais "cidadania" e "humanismo", que encontramos repetidos nos textos brasileiros. As competências estão apresentadas sempre por verbos, isto é, como capacidades potenciais. Aqui, de 161 A idéia é evitar a criação de disciplinas diferentes, todas cobrindo o mesmo assunto, mas sob orientações diferentes. O grande desafio é criar disciplinas congregando alunos com diferentes objetivos, permitindo a cada um exercitar-se na direção que lhe interessa. Ver M. A. da Silveira, C. T. C. da Silva e M Speranza Neto, A Engenharia de Controle e Automação na PUC-Rio: Uma Habilitação Multidisciplinar, Anais do XII Congresso Brasileiro de Automática, CDRom, Uberlândia, MG, 1998. 162 Donde contrárias às escolas formadoras de quadros para o estado, uma questão francesa. 163 O que o francês chama de fierté, que difere do orgueil, este último um pecado capital. Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 55 A seguir será apresentada a descrição de uma disciplina da EC-Lille, escolhida por facilitar a separação entre conhecimentos e savoir-faire: Fabricação Mecânica II Disciplina obrigatória, 32 horas. Objetivos: Saberes: Processos racionais de fabricação. Funcionalidades dos programas de fabricação por controle numérico. Possibilidades das máquinas controladas numericamente. Normalização. Especificações dimensionais e geométricas. Metrologia tridimensional. Savoirs-faire: Escolhar a configuração de uma máquina-ferramenta controlada numericamente. Determinar e medir os diferentes parâmetros de situação sobre uma máquina-ferramenta controlada numericamente. Realizar o porta-peça especificado no contrato de fase. Utilizar um programa de projeto automático por computador. Utilisar as normas. Analisar, comparar e por em prática métodos de controle numérico. Observação: Adquirir um savoir-faire experimental não é um objetivo desta disciplina. Um módulo específico indispensável será proposto aos alunos-engenheiros que precisarem realizar algum objeto em uma máquina a controle numérico durante sua Atividade-Projeto. Conteúdo resumido: Ensino magistral: Estrutura das máquina-ferramentas a controle numérico. Acionamento. Programação. Conceito de mudança rápida de produção. Fabricação assistida pelo computador Controle - qualidade Trabalhos práticos: Preparação da fabricação: porta-ferramentas, porta-peça. Prática de fabricação em máquina a controle numérico Corte e dobras em máquina a controle numérico Programação de máquina a comando numérico Análise de especificações. Medidas de erros geométricos e dimensionais. Utilização da metrologia tridimensional. Qualificação de instrumentos de medida. A descrição desta disciplina não esclarece as competências a serem desenvolvidas em seu âmbito: na lista de objetivos só aparecem "saberes" e "savoirs-faire". Por isso serão apresentados dois outros exemplos, gerados na atuação do autor junto ao Departamento de Engenharia Elétrica da PUC-Rio. Na caracterização do perfil do egresso do curso de engenharia elétrica da PUC-Rio entram competências ligadas à especialidade, superpostas às competências associadas ao "engenheiro empreendedor de base científica". Como exemplo, duas delas serão mencionadas: • ser capaz de projetar e implementar instalações elétricas para situações simples, como uma residência com dois andares ou um estabelecimento comercial ou industrial de pequeno porte; • ser capaz de projetar e implementar interfaces entre micro- processadores e outros equipamentos. Lembrando que o engenheiro elétrico da PUC-Rio recebe uma formação básica nas suas diferentes ênfases, estas duas competências estabelecem um primeiro sentido dos cursos de circuitos elétricos e eletrônica, vistos como bases para a instrumentação eletrônica e para instalações elétricas - comuns a todos os alunos do curso. Em particular exigem o conhecimento dos equipamentos padrões e das Capítulo II Um quadro conceitual para a formação do engenheiro 56 normas técnicas e normas de segurança associadas aos problemas a que se referem. Notar que os "equipamentos" da segunda competência estão em aberto, o que deixa ampla margem de manobra aos professores, e que outras competências (como as relacionadas a máquinas elétricas) afetam as mesmas disciplinas. Notar também que as mesmas disciplinas de circuitos e de eletrônica são ministradas para alunos da ênfase eletrônica, que atendem a competências mais estritas que a segunda, o mesmo ocorrendo para alunos da ênfase sistemas de potência, em relação à primeira competência. Do conjunto de competências que afetam uma dada disciplina, é possível estabelecer seus objetivos, isto é, a lista de competências especializada, conhecimentos e savoir-faire, e daí a metodologia didática a ser empregada (e o sistema de avaliaçào associado). Como exemplo de disciplina, vejamos as competências associadas à disciplina ELE1814-Controles e Servomecanismos: 1. reconhecer e modelar problemas de controle, em especial os problemas de regulação e do servomecanismo; 2. analisar sistemas de controle lineares monovariáveis quanto às suas propriedades básicas (estabilidade, características transitórias, observabilidade e controlabilidade, etc.) e quanto à possibilidade de construir reguladores e servomecanismos; 3. usar as ferramentas computacionais existentes (MATLAB®, MAPLE®, etc.) para a simulação de sistemas de controle invariantes no tempo e de parâmetros concentrados, controlados ou não; 4. projetar controladores para sistemas lineares simples (a tempo contínuo ou discreto, monovariáveis, invariantes no tempo); 5. buscar na literatura as informações pertinentes ou metodologias inovadoras; 6. compreender e analisar os projetos industriais correntes; 7. relatar problemas de controle e sua resolução usando uma argumentação convincente; 8. organizar a resolução de um problema de controle a partir de sua exposição informal, sabendo decidir que dados serão necessários e escolher um dos caminhos possíveis. Dar ao aluno uma visão de técnicas modernas e de técnicas de ajuste tradicionais (em especial o uso do lugar das raízes e da simulação digital), considerando sistemas a tempo contínuo, a tempo discreto e amostrados. Reconhecido o limite do problema a ser tratado (sistemas modeláveis diretamente como lineares, parâmetros concentrados, tempo discreto ou tempo contínuo - incluindo sistemas amostrados, e monovariáveis) e sabendo que os sistemas podem ser retirados de problemas mecânicos, eletro-mecânicos, elétricos e eletrônicos, térmicos e hidráulicos (que foram tratados em disciplinas anteriores), estas competências estabelecem os problemas a serem tratados e seu contexto, embora este último esteja um tanto em aberto - situação habitual na área de controle. Por isso a necessidade de fixar uma sexta competência, especificando o contexto industrial corrente (o que, no país, não é tão aberto), além do contexto mais geral, onde a teoria de controle é usada como base para outras técnicas (telecomunicações, eletrônica, matemática aplicada) - situação que aparece em disciplinas em sequência e na quinta competência. A escolha destas competências não fixa os métodos de projeto ou os problemas específicos a serem tratados, mas mostra qual o interesse do conhecimento a ser adquirido, praticamente definindo a metodologia didática a ser utilizada. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 57 Capítulo 3 A ESCOLHA DOS PERFIS DE FORMAÇÃO164 Neste capítulo estaremos preocupados com a resposta a três das perguntas deixadas em aberto no primeiro capítulo: • Quais perfis de formação para engenheiros são mais indicados para a situação atual? • Como escolhê-los, diante de diferentes visões de futuro encontradas na academia e na sociedade, representando os mais diversos interesses? O que pode influenciar esta escolha, ou deve ser levado em consideração? • Como considerar a situação local de cada escola e as mutações do mercado de trabalho? Para respondê-las, é preciso problematizar a questão de onde e como obter informações para montar currículos de engenharia, e discutir algumas das dificuldades a serem consideradas, incluindo aí a questão dos valores que presidem a construção de um currículo. Do que já foi visto, devem ser atendidas seis demandas diferentes, eventualmente conflitantes, além de restrições históricas, legais e econômicas próprias ao país, à região, e à particular escola de engenharia: (a) Dado que o curso de engenharia pretende formar profissionais, deve atender às solicitações do mercado de trabalho, em geral resumidas em uma lista de competências, traduzidas em savoirs-faire e conhecimentos a serem dominados e atitudes a serem desenvolvidas. Mas qual mercado de trabalho? (b) Trata-se aqui da educação do futuro engenheiro, donde ser importante responder a algumas perguntas de cunho filosófico, a serem consideradas do ponto de vista da comunidade na qual está inserido o curso: qual cidadão e qual ser humano deseja-se formar, atento a quais valores, a atuar em qual sociedade? Qual o modelo de sociedade que temos em vista? (c) Como um curso formativo parte de uma demanda presente para uma atuação futura, em um mundo em mudança, deve atender às expectativas sobre as demandas futuras, lembrando que seus egressos irão participar do forjar o amanhã. Como prepará-lo para as demandas sociais (e tecnológicas) futuras? (d) Deve-se atender às expectativas dos alunos atuais e dos possíveis candidatos, o que inclui as condições para que venha exercer os papéis sociais esperados (e sinalizados, habitualmente, pelo prestígio da escola), e a sua futura "empregabilidade", que varia de acordo com o mercado de trabalho a que se dirige (mercado mutável ao longo do tempo, de acordo com a maturação industrial e a situação econômica do país ou região), com os papéis sociais exercidos pelos engenheiros e com o perfil de formação próprio ao curso. (e) Quais as possibilidades e as oportunidades da instituição universitária que oferece o curso, considerando sua história, sua tradição, suas fontes de financiamento, sua localização (e daí o mercado de trabalho e o ambiente industrial em que está inserida), e o público que pretende atingir? Nesse sentido, não há um perfil ideal de formação, organizado a partir de uma definição abstrata desta atividade profissional, mas perfis apropriados a uma dada instituição, considerando seu contexto, suas possibilidades e suas intenções. 164 Esta parte do texto é baseada em Marcos A. da Silveira e Luiz C. Scavarda do Carmo, Comments on the design of engineering curriculun and the choice of didatic strategies, a ser publicado; em Sinval Z. Gama e Marcos A. da Silveira, Definindo competências para engenharia: a visão do mercado de trabalho, Revista de Ensino de Engenharia (ABENGE), vol. 21, n. 2, 2003; e em resultados de Sinval Zaidan Gama, Novo Perfil de Formação do Engenheiro Eletricista no Início do Século XXI, Tese de Doutorado, Programa de PG em Engenharia Elétrica, PUC-Rio, 19 de dezembro de 2002. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 60 associações, com alcances geográficos e industriais variados e políticas gerenciais diversas) e altera-se pelo efeito das variações econômicas e de variações sociais172. Só podemos consultar profissionais trabalhando nas empresas consultadas, e, em especial seus diretores. Estes profissionais respondem a diferentes tipos de formação (técnica e ideológica), sofreram um conjunto não homogêneo de experiências (o que altera sua percepção do conjunto), e possuem diferentes visões do mundo, dependentes das funções e cargos historicamente ocupados. De fato, poucos profissionais estão bem informados sobre os cursos atualmente oferecidos pelas escolas de engenharia. Não há uma opinião do mercado de trabalho, mas opiniões dentro dele. Ao consultar o mercado de trabalho devemos estar preparados para reconhecer grupos imediatistas, sem visão de futuro. O engenheiro a ser formado deve estar preparado para enfrentar múltiplas exigências, que se alteram ao longo de seu tempo de vida, onde ocupará diferentes cargos e será responsável por diferentes funções. Mas o profissional questionado está, em geral, em meio a seu percurso, entregue à sua função atual. O aluno, por sua vez, busca aumentar sua empregabilidade, se nos permitem tal neologismo. Ora, empresas e profissionais tendem a esquecer que formações mais amplas aumentam a empregabilidade, mesmo se as listas de especificações profissionais que encontramos junto à empresas – basta recolhê-las nos anúncios para estagiários – privilegiem atitudes (ética, por exemplo) e competências gerais (saber aprender, por exemplo), em relação aos conhecimentos técnicos especializados. Exemplificando, a pesquisa de Gama173 junto ao setor elétrico dos estados de Pernambuco e do Rio de Janeiro agregou os engenheiros pesquisados em três grandes classes: (a) Grupo crítico: composto por aqueles que conhecem a formação do atual engenheiro, atuam em comando, em assessoramento ou junto à academia, e apresentam sugestões de melhoria dos cursos. A maior parte fez curso de pós-graduação, ao contrário dos demais grupos. São formados pelas universidades mais conceituadas (universidades cujos cursos de graduação e de pós-graduação são bem conceituados pelo MEC). (b) Grupo tecnicista: composto por aqueles que atuam na execução técnica e apresentam sugestões de melhoria. São formados em grande parte em universidades com cursos com conceituação mediana e já possuem certa idade (no Rio de Janeiro eram em grande parte formados pela UNIFEI (ex- EFEI), em Itajubá, MG, atuando, na época da pesquisa, na área gerencial), ou estão limitados a tarefas técnicas. (c) Grupo não-informativo174, os demais. O grupo crítico indicou um perfil de formação lembrando o engenheiro defendido nos textos do REENGE (citado nesta seção como engenheiro REENGE, muito semelhante, nos seus aspectos gerais, ao definido pelas competências gerais citadas nas Diretrizes Curriculares). A diferença essencial é a preponderância dada à formação técnica em sistemas de potência em relação às demais formações técnicas. Foram citadas como de maior importância, nesta ordem, conhecimentos e savoirs-faire em: 1) matérias técnicas de formação específica do engenheiro eletricista, 2) comunicação oral e escrita, 3) ciências básicas, 4) novas tecnologias e tecnologias auxiliares, 5) operação e planejamento, incluindo seus aspectos econômicos. O grupo tecnicista frisou, essencialmente, conhecimentos e aptidões (fugindo das características gerais). Na lista do parágrafo anterior, não assinalou 172 Ver, na pesquisa de Gama, citada acima, a influência das gerações de engenheiros que, por razões políticas (momentos em que houve investimento maciço seguidos de momentos sem investimento), não sofreram substituição continuada, permitindo mudanças bruscas na opiniões presentes no mercado de trabalho ao se aposentarem em bloco. 173 Gama, Tese de Doutorado, citada acima. 174 Chamado de “grupo neutro” em Sinval, op. cit. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 61 os itens 2 e 5 (comunicação e ciências básicas) entre os determinantes, dando preponderância completa às matérias técnicas. A importância das ciências básicas foi considerada secundária, a formação em gerenciamento e visão comercial considerada supérflua. Os aspectos econômicos foram considerados secundários por este grupo, assim como as novas tecnologias. O engenheiro com este perfil (citado nesta seção como engenheiro técnico-especialista) está próximo ao perfil definido pelo Conselho Federal de Educação/MEC na década de 70175. O grupo não-informativo reúne entrevistados cujas respostas foram contraditórias (comparando a parte espontânea e a parte induzida da pesquisa). Mostraram-se muito influenciado por sua atual tarefa técnica e (o que alguns entrevistados apontaram explicitamente) desinformados sobre os atuais cursos universitários na área, fatos que denotam falta de visão de conjunto sobre o exercício da profissão. Todos os grupos recusaram as ciências da engenharia não voltadas diretamente para o setor elétrico (resistência dos materiais e mecânica dos fluidos, por exemplo). Isto é, descartam um engenheiro generalista: o conhecimento técnico deve se ater à especialidade. Um resultado que só pode ser obtido dentro de um setor industrial específico e bem limitado - e que, no caso presente, emprega anualmente um número de engenheiros bem menor que os formados nesta especialidade no estado estudado. Por outro lado, ficou evidente na enquete que os engenheiros em funções técnicas, no momento da execução, exercem uma menor atividade técnica que a imaginada em geral. Ocupam-se principalmente com tarefas administrativas e gerenciais a ela relacionadas, uma característica do mercado de trabalho para engenheiros no país, onde pouco se desenvolve equipamentos e pouco se realiza projetos completos176. Conclui-se que os entrevistados usam, para o desempenho de sua função (dita técnica), na posição de engenheiro, de todo um conjunto de conhecimentos diferente do puramente técnico, corroborando, de certa forma, a visão do grupo crítico, e negando sua própria opinião. Aqui cabe uma pequena digressão sobre a terminologia empregada por Gama, que repetimos até o momento. O grupo crítico parece aceitar tanto a realidade do mercado brasileiro dependente tecnologicamente dos países desenvolvidos (embora fale de novas tecnologias), quanto as imposições da "modernidade" – e daí uma certa ironia na sua denominação. Por outro lado, a pesquisa realizada só perguntou a opinião sobre o que é necessário ao engenheiro "deste início de século, no Brasil", não abrindo espaço para externar discordâncias quanto à situação brasileira ou às políticas daquele momento177. Isto é, o grupo crítico foi assim denominado por sua discordância à visão da engenharia centrada no seu fazer técnico especializado e limitado às técnicas em uso – marca do grupo tecnicista – mas não por sua posição em relação a políticas nacionais ou visões sociais mais amplas. Quanto às novas tecnologias ou conhecimentos econômicos mais profundos, os entrevistados, em geral, indicaram serem apropriados para a formação contínua (MBAs e pós-graduação em geral), pois só seriam necessários eventualmente, ou de forma imprevisível (novas tecnologias), ou após grande experiência e tempo de serviço, quando o profissional tiver passado a atividades essencialmente gerenciais. Nisto repetem a situação atual, sem pensar em outras possibilidades de formação, como as que aparecem nas escolas de engenharia francesas generalistas, por exemplo. O que pode ser concluído da opinião dos engenheiros no mercado de trabalho (no setor elétrico do Estado do Rio de Janeiro, e na virada do século XX 175 Resolução 48/76 do CFE/MEC, 1976. 176 Apesar dos esforços do CEPEL e de algumas universidades, atingidos pelo programa da privatização do setor elétrico e pela redução de investimentos do governo federal neste setor. 177 O que se explica pela dificuldade encontrada para levar os entrevistados a expressarem uma visão de futuro. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 62 para o XXI178) sobre o perfil de formação do engenheiro eletricista? Primeiro, que ela é influenciada pela formação do entrevistado, pela funções que já ocupou e por suas tarefas atuais. Segundo, considerando a coerência das opiniões dos diferentes grupos detectados, é possível validar uma orientação na direção do engenheiro REENGE, desde que a necessária caracterização técnica não seja perdida. Esta é vista mais como fundamentação de decisões administrativo- gerenciais (o que inclui cálculo de custos e escolhas de política) do que como capacitação a resolver os problemas técnicos em si. Competências para a atividade de projeto de engenharia são vistas mais como desenvolvimento de novas tecnologias (e aí aparecem os pesquisadores do CEPEL e das universidades), do que apoio à manutenção de sistemas com tecnologias conhecidas, ou o desenvolvimento de novos produtos (inovações). Esta visão se encontra com a prática da maioria dos entrevistados e com a visão dos gerentes de recursos humanos das empresas. No entanto, há uma parcela considerável (63% do total dos entrevistados) que defende o engenheiro tecnicista-especialista, porém mais como um reflexo das idéias preponderantes há 30 anos, ainda repetidas nas diferentes escolas, do que em razão de sua experiência pessoal no setor elétrico. Há ainda engenheiros que jamais saíram de tarefas técnicas, isto é, não passaram a funções gerenciais, em geral formados por escolas de engenharia de menor renome. Conclui Gama que há um quadro que permite a defesa do perfil do engenheiro REENGE, com indicação clara dos conhecimentos, habilidades e atitudes a serem contempladas pela escola de engenharia. Mas há também necessidade de engenheiros especialistas voltados para os problemas técnicos do setor, não como anacronismo, mas como elo importante entre os técnicos e os gerentes. Daí, então, Gama sugere dois (ou mais) perfis de formação diferentes, a serem escolhidos de acordo com o público da escola em particular, com suas possibilidades e tradições, e com o mercado de trabalho local. Acreditamos que há muitos mais de dois perfis de interesse, como mostrado no primeiro capítulo. Na mesma pesquisa, foi verificado que o setor elétrico do Estado do Rio de Janeiro empregou nos 13 anos que a precederam um número muito menor de engenheiros eletricistas que os efetivamente formados (no mesmo estado). Boa parte destes engenheiros (o que inclui os formados pela UFRJ e pela PUC-Rio, conforme os dados levantados) encontra empregos de bom nível junto ao setor de serviços (não elétricos) – o mercado de trabalho estendido. Também foi observado que estão sendo contratados pelo setor elétrico fluminense – desde que o governo federal diminuiu drasticamente o investimento na área – engenheiros formados nas escolas de engenharia menos conceituadas (se usarmos os critérios da CAPES/MEC), tanto nas empresas estatais quanto nas empresas privatizadas, para exercer funções as mais diversas, desde que referentes a cargos de início de carreira. Temos aqui uma busca da diminuição da folha salarial destas empresas, com empregados novos (e com menores salários) cumprindo funções antes na mão de engenheiros mais experientes e dispendiosos. Mas não apenas isto: observamos que os corpos docentes das universidades menos conceituadas (no Estado do Rio de Janeiro) é formado majoritariamente por engenheiros trabalhando nas empresas pesquisadas, o que direciona o recrutamento dos novos engenheiros179. Podemos interpretar os dados contidos no último parágrafo como um desemprego relativo na área técnica para os formados em escolas mais conceituadas, compensado por um mercado de trabalho aberto a outros setores 178 Toda opinião deste tipo está limitada regionalmente e historicamente. 179 No entanto, quando a CERJ buscou preencher seus quadros, após o grande licenciamento que realizou ao ser privatizada, não conseguiu deslocar os ex-alunos da UFRJ e da PUC-Rio com os salários que oferecia, embora tivesse na mão as listas de formados nestas instituições nos últimos três anos. Nenhum destes ex-alunos atuava então no setor elétrico. E as empresas de maior porte, investindo de forma decisiva em seus quadros, declaram claramente a preferência por egressos de determinadas universidades (ver as ofertas de emprego e de estágios veiculadas na Mostra PUC nos últimos anos). Capítulo III A escolha dos perfis de formação 65 Outras formas de tomada de informação sobre a situação do mercado de trabalho são mais simples e podem ser realizadas continuamente, a partir da estrutura de gerenciamento da escola. Uma listagem de fontes de informação sobre o mercado de trabalho, recolhida junto às escolas estado-unidenses e francesas visitadas pelo autor, é dada a seguir: • Professores da escola trabalhando na indústria (em geral horistas); • Professores em contato direto com o mercado de trabalho, através de projetos, consultorias ou ainda realizando pesquisas sobre seus interesses e direções; • Responsáveis pelas incubadoras de empresas associadas à escola; • Ações de formação contínua para empresas, analisando tanto as solicitações destas quanto as informações obtidas pelos professores que as negociam, organizam e delas participam; • Associação de antigos alunos, quer por consultas de opinião, quer pelo levantamento de estatísticas sobre suas ocupações (setores de trabalho, domínios de atividade, empregadores), cargos e funções exercidas (ao longo do tempo de carreira); • Representantes do mercado de trabalho e dos antigos alunos nos júris de teses e trabalhos ou nas diferentes instâncias da administração acadêmica (conselho universitário, conselho de desenvolvimento, conselhos de ensino e/ou de pesquisa, comissões especiais – reforma curricular, etc.); • Havendo um sistema organizado de estágios profissionais ou de projetos para alunos, os responsáveis (nas empresas e na escola) pelos estágios, os propositores de temas para projetos de alunos, ou as estatísticas de oferta de estágios (considerando as empresas, e as funções e os postos de trabalho oferecidos); • Feiras para apresentação de empresas em vista de oferta de estágios ou empregos (Mostra PUC, no Rio de Janeiro, e o Forum da École Centrale, em Paris, por exemplo); • Feiras industriais setoriais e Federações industriais (FIESP, FIRJAN, etc.); • Contatos realizados pela Empresa Júnior ou pelo Escritório Modelo; • Auditoria externa realizada por empresas especializadas e/ou especialistas acadêmicos. Todos estes contatos pressupõem a existência de uma estrutura formalmente encarregada de coletar dados e de ponderar cuidadosamente as informações coletadas, principalmente porque a escolha dos representantes do mercado de trabalho nunca é controlada por amostragens significativas. Quanto mais formalizado o contexto industrial, mais fácil a interação deste com a escola de engenharia, e também mais representativa a informação obtida - mas esta não é a realidade brasileira. Por outro lado, algumas das fontes de informação acima pressupõem uma organização ativa por parte da escola de engenharia, como centrais de estágio acompanhando academicamente os alunos (e não apenas cuidando dos contratos exigidos pela lei), comissões de desenvolvimento buscando organizar o contato indústria–universidade, associações de antigos alunos com contato efetivo e representativo com estes, e, finalmente, uma estrutura acadêmica especialmente preocupada com o assunto, coletando e discutindo os dados e informações185. realização de trabalhos de fim de curso em grupo ou estágios não controlados (a contrário do que ocorre na França, nos dispendiosos – para o governo francês – cursos das Grandes Écoles, que, atendendo a uma pequena elite social, usam grande parte do tempo do aluno na realização de trabalhos colaborativos sobre problemas de engenharia, realizados em grupo e sobre problemas definidos por empresas; na Alemanha, onde o orgulho das escolas de engenharia é seu sistema de estágios junto a empresas, o trabalho em equipe ou o acompanhamento acadêmico não são tão estritos). 185 Lembrar que professores-pesquisadores que só conhecem a indústria a partir de alguns contratos com a mesma grande empresa, e sobre o mesmo tema, não costumam ter uma idéia clara do mercado de trabalho ou do leque de funções exercidas por engenheiros, mesmo na empresa com a qual trabalham. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 66 Foram indicadas acima várias formas e direções para levantar dados para o perfil de formação a partir do mercado de trabalho de forma a imunizar as conclusões a críticas imediatas construídas a partir de algum conhecimento sociológico ou político186. Simultaneamente foram expostas as conclusões de algumas pesquisas já realizadas. Do que foi mostrado acima podemos perceber a tensão entre alternativas que dependem da evolução histórica e econômica da sociedade – como o tradicional confronto entre os defensores da formação generalista e os defensores da formação especialista. Uma primeira análise permitiu recolocar esta discussão em novos termos e perceber a tensão entre uma formação individualista voltada para conteúdos técnicos (dominante no imaginário brasileiro) e as características assinaladas para os star engineers ou para o engenheiro REENGE, na realidade uma tensão entre papéis sociais diferentes cobrados, no Brasil, do mesmo profissional. Uma observação final O mercado de trabalho tem seus próprios mecanismos de levantamento dos perfis profissionais procurados. Há mesmo empresas especializadas nisto. Como exemplo, citaremos a seguir uma reportagem publicada no diário Folha de São Paulo, caderno Classificados/Empregos, em 7 de setembro de 2003, folha F8187. Nela vemos aparecer com clareza o perfil do engenheiro com visão gerencial, e a realidade do mercado de trabalho em São Paulo naquele momento. A notar que os dados não permitem separar duas situações diferentes: (a) o mercado de trabalho em São Paulo já estar correspondendo ao esperado na sociedade pós- industrial, sendo um mercado pós-fordista188, isto é, prevalecer a necessidade de engenheiros com visão gerencial que nunca chegam a passar pelo chão de fábrica (isto é, nunca usam o “capacete de engenheiro”); (b) o dito mercado ainda corresponder à sociedade industrial (ou fordista), mas a amostra considerada (na pesquisa) estar captando principalmente a realidade de engenheiros mais experientes, que já abandonaram o capacete. A autora do artigo parece acreditar na normalidade da segunda situação, mas expressa claramente que, se este é o caso, a situação está mudando rumo à maior necessidade de engenheiros com visão gerencial (isto é, acredita que sua amostra não é viciada na direção de engenheiros mais experientes). O mercado de trabalho lato-senso está claramente definido neste artigo, e a sua formação ampla (apropriada para este mercado) mais ainda. Leia até o fim, e verá que esta formação ainda deve ser "completada" para atingir eficazmente todo este mercado de trabalho: é o perfil gerencial ainda pouco conhecido no país. "Engenheiro ergue carreira diversificada Eles fazem parte da mais "empregável" das profissões. Na faculdade, formação ampla, abrangendo cálculo, treinamento de pessoal, economia e planejamento estratégico. São requisitados pelo mercado em áreas tão díspares como vendas e finanças. Até parece o perfil de uma profissão nova, recém-inventada, mas não é. Trata-se de uma área bem tradicional: a engenharia. O hábito de usar gravata e viver às voltas com indicadores financeiros está crescendo dia a dia entre esses profissionais, que aposentam o capacete mais cedo para se dedicarem a tarefas antes restritas a administradores. Em troca, recebem salários elevados189. 186 Nada está imune a críticas sociológicas, nem o pensamento sociológico em si... 187 De autoria de Maria Helena Martins, free-lancer para a Folha de São Paulo. A reportagem será citada por completo para que o contexto fique bem claro. 188 Cf. Lazzarato e Negri, op. cit. 189 Grifo nosso. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 67 Pesquisa da consultoria de RH Manager ilustra o fenômeno. Segundo o estudo, de outubro de 2002 a agosto de 2003 a engenharia aparece em primeiro lugar entre as formações mais solicitadas pelo mercado. Na média do número de vagas oferecidas, os setores que mais procuram engenheiros são, respectivamente, o de produção, o de compras, o comercial, o administrativo, o de informática e o financeiro. Para o ex-ministro do Trabalho (1992-1994) Walter Barelli, professor da Unicamp (Universidade de Campinas), a engenharia traz formação completa "devido ao conjunto de conhecimentos proporcionados pelo curso". As empresas contratantes parecem achar o mesmo. No período de estudo da Manager foram registradas 2.343 ofertas de trabalho para engenheiros, mais do que as oportunidades surgidas para especialistas em economia, ciências contábeis ou marketing. Concorrência A idéia de que há vaga para todo engenheiro é, contudo, falsa. A diversificação das áreas de atuação do profissional também é fruto da saturação de engenheiros no mercado, explica a gerente de recrutamento da Manager, Lúcia Pinho: "A concorrência acirrada leva o recém-formado a partir para a área comercial e para empresas do setor financeiro". Na disputa com outros candidatos, o engenheiro leva vantagem por ter visão sistêmica de planejamento, atributo bastante valorizado, e capacidade de criar controles, fluxos de caixa, análises de orçamentos e de custos. Segundo levantamento da consultoria de recolocação de executivos Fesa, as especialidades da engenharia mais solicitadas em 2002 foram produção, elétrica-eletrônica e civil, seguidas por aeronáutica, naval, mecânica, química e industrial. Renata Fabrini, vice-presidente da Fesa, lembra, contudo, que "embora a formação em engenharia seja um diferencial e aumente as chances de contratação, não é receita de bolo". Em outras palavras, não basta o título de engenheiro para impressionar os selecionadores. É necessário investir também em estudos mais aprofundados na área almejada. Para quem quer migrar para o setor bancário, por exemplo, características importantes são capacidade de persuasão, raciocínio lógico, dinamismo, liderança e resistência à pressão." A reportagem ainda compara salários de empresas de engenharia com os salários do setor financeiro, que são 50% mais altos. Só não explica porque o engenheiro que perde a concorrência nas áreas de engenharia "com capacete" busca, então, um salário mais alto, no mercado estendido. Mais ainda, consegue obter este emprego em concorrência com administradores e economistas – ver a opinião de Fabrini, citada no texto, formalmente aptos a exercê-los (se considerarmos as respectivas definições legais das profissões). Aliás, este problema é tratado em outra reportagem na mesma página da Folha de São Paulo: "Salário compensa troca de posto". O espanto quanto ao mercado de trabalho estendido para engenheiros mostrado no texto, afirmado pelos dados recolhidos, é mais um exemplo de como este mercado e o engenheiro com visão gerencial ainda não foram absorvidos no imaginário brasileiro. Por outro lado, apesar da crítica de Macedo citada acima, a formação atual em engenharia fornece "visão sistêmica de planejamento ... e capacidade de criar controles, fluxos de caixa, análises de orçamentos e de custos" em nível superior às outras formações. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 70 Basicamente, foi apontada a importância crescente do domínio tecnológico para a independência política e econômica do país; e verificado que a medida deste domínio tecnológico não estaria na produção de artigos científicos, mas na capacidade de transformar conhecimento em produtos (isto é, inovações tecnológicas) – e isto em um cenário de crescente competição internacional. E esta é a tarefa dos engenheiros, cuja formação deve levá-la em consideração. Dando a palavra ao próprio Longo201: "Estima-se que mais de 80 % do conhecimento científico e tecnológico foi produzido depois da Segunda Guerra Mundial, e supondo que não haja mudanças nesta direção na próxima década, em torno de 50% de todos os produtos futuros não foram ainda desenvolvidos. As mudanças contínuas no conhecimento e na capacidade técnica requerem que novas competências venham a ser dominadas pela força de trabalho. ... Então, as universidades são instadas a "reengenheirar" seus programas educacionais de forma a preparar profissionais com os conhecimentos inteletuais necessários para enfrentar esta nova realidade." Análises posteriores202 mostram que, depois que o país assinou os acordos internacionais sobre patentes, uma parcela significativa das importações brasileiras situa-se no item de pagamento de propriedade intelectual (royalties). De fato, a maioria dos equipamentos e métodos industriais aqui empregados é adquirida no exterior, com um número mínimo de patentes brasileiras. O movimento que originou o PRODENGE/REENGE parte destas constatações, e da inevitabilidade da questão, qualquer que seja a orientação política do país. O REENGE partiu da visão de que engenheiros participam do esforço econômico nacional, em uma atividade de relevância econômica direta. Mais ainda, trabalham no núcleo do processo de produção de riquezas, para usar uma expressão tradicional. E as escolas de engenharia devem prepará-los para tal, ou então estão fazendo algo diferente de atingir a finalidade a que foram destinadas. Donde estabeleceu a relação entre a formação do engenheiro – o ensino de engenharia – e os fatos econômicos e os processos de produção atuais ou a serem usados no futuro (provavelmente), sugerindo que as escolas de engenharia tirassem daí as consequências pedagógicas203. Idem, quanto à aproximação entre a escola de engenharia e as empresas, desde que sem subserviência de uma em relação à outra – afinal, a escola atende também a outros interesses. Na discussão aberta ocorrida na preparação do REENGE, foi lembrada a necessidade de lembrar que o contexto de atuação do engenheiro não se confina à visão redutora atualmente aplicada à economia (que a reduz ao setor financeiro), visão nascida da ideologia atualmente dominante (neo-liberais e ministros da área econômica, as duas classes não sendo excludentes)204,205. Dentro do REENGE (e defendido pela coordenação do programa) foi proposto um sistema de relacionamento com a indústria. Mas qual indústria? Com notórias exceções como a Petrobrás e a Eletrobrás, a indústria brasileira não utilizava o engenheiro projetista com visão empreendedora e voltado para a inovação tecnológica, um dos modelos do REENGE (o modelo principal, se "Reengineering" engineering research and education in Brazil: cooperative networks and coalitions; Science and Public Policy, Vol. 27, n. 1, pp. 37-44, 2000. 201 Usamos o texto de um artigo publicado em Longo et al., 2000, citado na nota anterior, pois este resume rapidamente a situação sem referências implícitas ao contexto brasileiro. 202 Neste sentido, ver os diversos artigos do Prof. Nikolski, da UFRJ, publicados na seção Opinião, do Jornal do Brasil, 2003. 203 O que faz parte da consideração do contexto em que se situa este processo educativo, conforme exigido por Candau, V. M., Reformas educacionais hoje na América Latina, in Moreira, A. F. B. (org.), Currículo: políticas e práticas; Rio de Janeiro, RJ: Papirus Editora, 1999. 204 Ver L. A. Meirelles e M. A. da Silveira, Sumário da experiência brasileira; Preprints do First International Seminar on Engineering Development Programs; Rio de Janeiro, RJ: CTC/PUC-Rio, pp. 174-182, 1995. 205 Para uma maior discussão, ver M. A. da Silveira, Sobre as idéias centrais do REENGE, Anais do COBENGE2003; Rio de Janeiro, RJ: UFRJ. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 71 considerarmos os textos preparatórios). O RECOPE foi criado exatamente para aumentar este relacionamento e incentivar a indústria brasileira em trabalhos de desenvolvimento industrial e tecnologia de ponta, considerado insuficiente. Como visto no primeiro capítulo, esta visão coadunava-se com a da NSF/EEUU exposta em diversos relatórios (já citados) e em seu programa de reforma do ensino de engenharia, e também com a visão exposta em relatórios europeus – sendo o esquema apresentado pelo REENGE central nas principais escolas de engenharia francesas e nas Tecknische Universität alemãs. Em resposta ao edital do REENGE, vieram os projetos das escolas de engenharia. Nenhuma rede de escolas se formou, nem aparecem contatos concretos destas com empresas para fins do curso de graduação, além dos pré- existentes. Embora o discurso de todos os projetos repetisse aquele apresentado no Termo de Referência do PRODENGE e no Sumário da Experiência Brasileira206, propondo enormes modificações curriculares e pedagógicas, a quase totalidade do financiamento foi aplicada na resolução de carências materiais. Houve mudanças culturais? Houve. Basta olhar o conteúdo dos COBENGEs e da Revista de Ensino de Engenharia, publicada pela ABENGE. A discussão sobre o ensino de engenharia, suas características, sua relação com o desenvolvimento do país e sua necessidade de mudanças, ressurgiu em outros foros. A qualidade da educação em engenharia deixou de ser considerada uma simples consequência da pesquisa – ou ao menos esta questão tem sido problematizada com maior força e profundidade. O movimento gerado a partir do REENGE levou às proposições da ABENGE e influenciou fortemente as Diretrizes Curriculares do MEC. Além disso, um conjunto de técnicos e pesquisadores foi seriamente preparado para estudar os problemas de relacionamento indústria-universidade e desenvolver a política promovendo inovações, e que pode ser encontrado, por exemplo, nos créditos do Livro Branco de Ciência e Tecnologia (MCT, 2002). Outro exemplo de influência das organizações sociais é a ação dos grupos organizados que fundaram ou influenciaram parte das principais universidades atuais. Pela afirmação de determinados valores, estas universidades permitiram o aparecimento de modelos educacionais diferentes. Exemplos particulares são os grupos estadunidenses financiados por doações de empresas ou de benfeitores; e os grupos religiosos presentes através das universidades confessionais, como as universidades católicas (as PUCs e a UNISINOS, por exemplo) e as universidades luteranas (ULBRA - Universidade Luterana do Brasil, em Canoas, RS, e FEPAR - Faculdade Evangélica do Paraná, por exemplo), que buscam a afirmação de valores religiosos e/ou humanísticos para além do conhecimento técnico. III.3. Ponto de vista da academia A academia é responsável por pensar criticamente o futuro, evitando escolhas ideológicas simplistas, e integrando as diversas demandas sociais em um currículo compatível com as possibilidades históricas e locais da instituição, com as possibilidades psico-pedagógicas do aprendizado e com as tendências da ciência e da tecnologia. Isto é, deve discutir valores, visões de futuro e tendências tecnológicas, econômicas e sociais, apresentando e indicando alternativas. Cabe-lhe pensar a estrutura do conhecimento: estado da prática, estado da técnica e estado da arte, e suas tendências, a partir das informações sobre a indústria, o mercado de trabalho e a ciência; e integrá-las ao currículo de forma adaptada à formação pretendida. De um ponto de vista da metodologia pedagógica, a pergunta inicial a ser respondida pode ser dada como: Conhecimento para quê? E conseqüentemente: 206 Meirelles, L. A. e da Silveira, M. A., 1995, Sumário da experiência brasileira; Preprints do First International Seminar on Engineering Development Programs; Rio de Janeiro, RJ: CTC/PUC-Rio, pp. 174-182, 1995. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 72 Qual conhecimento? Conhecimento para resolver problemas (e quais problemas), conhecimento para domínio de um discurso (também necessário nas tarefas gerenciais), ou alguma outra opção? Aqui se coloca o problema do interesse do conhecimento e da formação. Conhecimento para quem? De um lado, que alunos frequentarão a escola, qual o público que pretende atingir? De outro lado, que parcela da sociedade será suprida por engenheiros pela escola? Retornamos ao mercado de trabalho: a escola pretende formar professores e pesquisadores para seu próprio interesse ou engenheiros para o mercado de trabalho? E para qual mercado de trabalho? E para cumprir qual função política dentro do mercado de trabalho (semear novas idéias, adequar-se à ordem vigente)? As respostas a estas perguntas dependem de um questionamento interno à instituição de ensino: quais suas possibilidades (geográficas, políticas, financeiras), quais seus recursos, que público atinge ou pretende atingir, quais seus interesses principais, qual a sua história e imagem social, e o que elas permitem ou restringem? Outra direção de questionamento considera o que é possível ser aprendido, considerando o aluno que é admitido, os meios e o tempo de estudo – que limitam seriamente as pretensões utópicas das listas de competências montadas a partir do mercado de trabalho, das expectativas da sociedade, e, last but not least, da expectativa dos professores, dispostos a conceder a prioridade às suas respectivas especialidades (principalmente se são pesquisadores). A educação seqüencial habitual gera um paradoxo: a informação a ser absorvida pelo aluno (somando as exigências de todos os professores) exige mais tempo que o disponível ao longo do curso, e estará em grande parte ultrapassada antes que possa ser aprendida. Este paradoxo tem levado à reconsideração do ensino ativo, com origem nas pesquisas de Dewey207, e sua conexão com a estratégia didática de aprendizado a partir de problemas (ou ensino concorrente). Esta mudança estratégica corresponde a uma resposta diferente à pergunta acima, onde o conhecimento acadêmico disciplinarmente organizado é substituído pelo desenvolvimento das bases do conhecimento e de uma atitude pró-ativa de forma a tornar o engenheiro capaz de gerenciar o seu próprio fluxo de informações em função de suas necessidades (aprender a aprender)208. Mudanças deste tipo exigem uma posição ativa por parte da comunidade acadêmica, pois levam a mudanças estruturais na universidade e a mudanças de habitus e de comportamento por parte dos professores. E, finalmente, como organizar o currículo a partir de perguntas fundamentais: Qual o cidadão a ser formado? Qual o modelo social pretendido, no qual será baseada a formação? Quais os valores e interesses a serem desenvolvidos? Qual escola209? Qual estrutura diante das diferentes formas de geração de conhecimento210? Como organizar o relacionamento da escola e do curso de engenharia com o mundo externo211? Exemplos brasileiros de planejamentos estratégicos levando em consideração estas questões são dados pela UFMG, a partir de 1994, e pela Escola Politécnica da USP, ainda alterando seu curso de engenharia a partir da eliminação das faculdades (mas sem integrar os institutos de ciências básicas), 207 J. Dewey, How we think. Lexington, USA: D. C. Heath & Co. 208 M. A. da Silveira e Luiz C. Scavarda do Carmo, Sequential and concurrent teaching: structuring hand’s-on methodology, IEEE Trans. Education, Vol. 42, n. 2, pp. 103-108, May 1999. 209 Estas preocupações são discutidas nos textos publicados nos congressos em educação em engenharia, como os COBENGEs, os congressos sobre educação em engenharia da ASME, e os ICEEs, todos reuniões anuais discutindo estes temas e apresentando exemplos concretos. Ver, também, I. von Lisingen, L. T. V. Pereira, C. G. Cabral e W. A. Bazzo (org.), Formação do engenheiro; Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 1999; W. A. Bazzo, L. T. V. Pereira e I. von Lisingen, Educação Tecnológica; Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 2000; e, mais no contecto dos ensinos fundamental e médio, A. F. B. Moreira (org.), Currículo: política e práticas; Campinas, SP: Papirus Editora, 1999. 210 Gibbons, M., Higher Education Relevance on the 21st Century. Washington: World Bank, s. d. 211 J. Aranha, J. A. Pimenta-Bueno, L. C. Scavarda do Carmo e M. A. da Silveira; Entrepreneurship formation: the PUC-Rio experience, Proceedings of the ICEE98, CDRom; Rio de Janeiro, RJ: CTC/PUC-Rio, 1998. http://www.ctc.puc-rio.br/icee-98. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 75 • Informar parte da discussão com estudos encomendados (comissões internas e/ou consultores externos), tomando cuidado para que seus resultados não sejam interpretados como imposições215. • A partir de um princípio primeiro, objetivado por referências ao contexto, como indicado acima, estabelecer a ordem da discussão, indo de critérios gerais e desligados do dia-a-dia do professor para as consequências que o afetam, passando pelas mudanças estruturais da escola a serem implementadas. A seguir uma sequência sugerida: começar com a escolha dos valores e o estabelecimento de um perfil de formação genérico (o que inclui a escolha de um papel social); considerar os caminhos profissionais desejados (papel social e domínios de atividade prioritários) e as atitudes a serem incentivadas; escolher competências gerais (associadas ao perfil de formação) e seu detalhamento; escolher habilitações e especialidades coerentes com o decidido e com a história e as possibilidades da instituição; escolher competências específicas para as habilitações e seu detalhamento; estabelecer os conhecimentos e savoirs-faire apropriados; em função do já decidido, discutir as metodologias didáticas a serem empregadas e as estruturas acadêmicas necessárias para desenvolvê- las; estabelecer a proposta curricular (estrutura curricular, grade curricular, mecanismos de acompanhamento, avaliação e feedback), tudo devidamente explicado e justificado. Esta ordem não é absoluta, pois temas posteriores levarão à reforma de temas já discutidos, em um processo eminentemente dialético. • Todos devem usar a mesma linguagem, o que exige a cuidadosa definição de todos os termos e a preparação de glossários detalhados. Um exemplo do risco de coexistência de interpretações conflitantes do mesmo termo é dado por Ropé e Tanguy216, quando analisam os usos do termo "competência". • Todas as reuniões devem ser cuidadosamente relatadas, gerando documentação consultável e explícita. Relatórios devem ser preparados a cada etapa, incluindo a apresentação do processo de discussão217. Finalizando, qual o ponto de vista a ser adotado pelo corpo acadêmico? A resposta só pode sair do processo de discussão, e só será efetiva e eficaz se o corpo docente e a direção da instituição estiverem convencidos, sentindo a proposta apresentada como um trabalho seu. E conseguir este grau de adesão é muito mais complexo do que escrever, individualmente, uma boa proposta. III.4. Ponto de vista do aluno Enquetes sociais mostram que a escolha da profissão e da escola de formação são determinadas principalmente pelas influências familiares, dentro dos limites impostos pela realidade (distância, custos, necessidade de trabalhar enquanto estuda, sucesso ou não nos concursos de entrada)218. Colaboram com este quadro a expectativa sobre os papéis sociais relacionados com a profissão e esperados para os formados em uma determinada instituição. Neste ponto, a 215 Dois exemplos ilustrativos de relatórios deste tipo são o relatório sobre a introdução de ensino à distância na University of Illinois (Teaching at a internet distance: the pedagogy of online teaching and learning; the report of a 1998-1999 University of Illinois faculty seminar, em www.vpaa.uillinois.edu/tid/report); e as enquetes de mercado realizadas pela PUC-Rio (consultando as escolas secundárias da Zona Sul do Rio de Janeiro). 216 F. Ropé e L. Tanguy (org.), Saberes e competências. Campinas, SP: Editora Papirus, 1997. 217 Exemplo: metodologia da pesquisa do relatório da University of Illinois citada em nota anterior. 218 P. Bordieu, op. cit.. Enquete preparatória da proposta do curso de biologia, PUC-Rio, 2002. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 76 imagem social da instituição é um dos principais fatores na escolha dos candidatos. Os estudos de Bordieu, já citados, demonstram claramente estas afirmações quanto às escolas de engenharia francesas – provando, inclusive, a existência de verdadeiras dinastias nas escolas mais reputadas. Neste caso, a reputação das escolas foi construída historicamente, reforçada por pesquisas de opinião219, e é afirmada constantemente nos cursos preparatórios e no curso secundário – que mantém uma visão unidirecional da qualidade das escolas, como se houvesse um único eixo de comparação: das "melhores" às "piores". Esta escala é reencontrada nas notas mínimas de admissão em cada escola, mostrando que ela induz uma enorme seleção, colocando os alunos mais aptos à realização de concursos à francesa nas escolas ditas "as melhores". A relação candidatos/vagas nas escolas de ponta, embora enorme para os padrões brasileiros, não acompanha a mesma escala, pois candidatos com notas mais baixas sequer tentam as escolas "mais difíceis"220. Embora o fenômeno se repita nos EEUU, comparações tão detalhadas não são simples, visto que as escolas estadunidenses nunca são gratuitas e a diferença de custos é enorme. O sistema não é essencialmente diferente no Brasil, embora a regionalização dos concursos (com raras exceções) e o fato das escolas federais e estatais serem gratuitas confunda os dados. Os cursos vestibulares vivem da histeria de candidatos e suas famílias diante do exame de admissão à universidade. A pedagogia destes cursos é o simples treinamento via resolução de um número monstruoso de exercícios, o que, na visão dominante no país, é a forma de estudo correta, por mais que as estatísticas e os estudos educacionais digam o contrário. Mesmo colégios com formação mais completa (e cujos alunos não precisam de treinamento especial para entrar na universidade, salvo no curso de medicina), como o Colégio Pedro II, vêem seus alunos da terceira série do segundo grau estudarem em dupla jornada, uma no colégio, outra no curso vestibular. Não lhes sobra tempo para estudar seriamente... Os colégios particulares de bom nível sofrem a mesma pressão, e são obrigados a ministrar aulas extras, frequentemente em convênio com cursos vestibulares, por pressão das famílias dos alunos. Ora, esses cursos vestibulares mantém a mística das "melhores escolas", sem atentar às suas especificidades. Assim o IME (Instituto Militar de Engenharia) e o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) continuam nomeando as turmas especiais (onde se encontram os bolsistas dos cursos), ignorando que o IME é uma excelente escola de oficiais da arma de engenharia, mas não está preocupado (com boas razões) com a formação de engenheiros orientados para funções empresariais. A imagem social tem relação indireta com a realidade das escolas, mas não informa os candidatos sobre o fato essencial, que é o perfil de formação. Apesar desta desinformação interessada, uma enquete recente221 mostrou que os alunos das principais escolas da Zona Sul do Rio de Janeiro e de Niterói possuem, em sua maioria, uma imagem das escolas e universidades cariocas mais ajustada que a fornecida pelas escolas secundárias e cursos vestibulares: a informação percola pela trama social, através de pais e conhecidos com formação universitária ou trabalhando com engenheiros formados nas melhores instituições. Donde não é estranho que a maioria dos alunos de engenharia da PUC-Rio dirija-se, ao longo do curso, para uma formação mais gerencial (possível 219 Les 150 diplômes les plus cotés, Revue Capital, Mai 2003, p. 94, ver www.capital.fr., por exemplo. 220 Assinalando número de candidatos/número de vagas em 2002, temos: Polytechnique: 4064/390, Centrale Paris: 7634/345, Ponts et Chaussées: 11017/100, Mines de Paris: 11017/90, Télécom Paris: 11017/125, Supaéro: 11017/120, Supélec: 6699/340, onde a ordem das escolas é a ordem da notoriedade. Da terceira à sexta escola o concurso é comum. Cabe observar o número pequeno de vagas em cada escola, e o fato de que estas escolas, com a exceção da Centrale Paris, são ligadas aos corpos de estado, com garantia de emprego com altos salários iniciais (na faixa de 40.000 euros por ano). 221 Enquete da PUC-Rio preparatória para a proposta de um curso de Biologia, 2002. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 77 devido à flexibilidade do currículo), de acordo com a visão do estamento social predominante nesta escola e o papel social aí admitido! Tendo o aluno de engenharia passado o primeiro ano, passa-se a importar, principalmente, com sua "empregabilidade". Este movimento predomina no jovem de hoje, como revelam os comentários recolhidos nos diversos países visitados e nos comentários sobre a mudança do tipo de aluno – mais pragmático e realista, deixa de correr atrás de uma vocação para garantir sua posição (ou ascenção) social. Ora, a "empregabilidade" do aluno de uma escola de engenharia está relacionada com a rede de relações sociais de seus ex-alunos, a imagem social da escola, e com o relacionamento da escola com o mercado de trabalho. É preciso, então, considerar as consequências do desiderato "empregabilidade" no currículo de uma escola de engenharia. Podemos ver duas direções para explorar estas consequências. Primeiro, é importante que a escola estabeleça um máximo de laços com o mercado de trabalho, de acordo com o perfil de formação escolhido. Aqui aparece a rede de ex-alunos, os projetos e consultorias, eventos, e outras ferramentas já citadas. Segundo, há de se pensar no aparecimento de novas formações ou na adaptação rápida do currículo do aluno a mudanças no mercado de trabalho. O sucesso de novas habilitações (Computação, Controle e Automação, por exemplo)222 e a movimentação interna dos alunos do CTC/PUC-Rio (onde a habilitação não é escolhida no exame de admissão) em busca de duplas especializações, duplas habilitações e formações mais adaptadas ao mercado de serviços (dominante na cidade do Rio de Janeiro) indica esta direção. A expressão chave é a "flexibilidade curricular", permitindo uma mudança de rumo ou uma adaptação curricular do aluno à seus interesses ou expectativas – o que corresponde aos modelos da Escola Politécnica da USP e da PUC-Rio, ou das Grandes Écoles francesas, onde podemos observar currículos montados por módulos, currículos matriciais, ou contendo um grande número de disciplinas eletivas conjuntamente com "troncos comuns" ou "ciclos básicos". Um currículo bem flexível permite o aluno passar de uma formação mais técnica para uma gerencial (ou vice-versa), ou de uma visão especialista para uma formação mais generalista, dentro dos limites colocados pelo perfil de formação da escola. E a noção de vocação profissional? Um tratamento mais maduro e um tanto desencantado deste tema permite mostrar que, ao falarmos de vocação, estamos falando de imagens sociais conjugadas à busca do prazer na profissão (o que exige aptidões apropriadas à profissão desejada). Ora, o candidato ao exame de admissão possui uma informação simplificada da imagem social, pouca ou nenhuma informação sobre os domínios de atividade – isto é, sobre a realidade da vida profissional, tendendo a se fixar na imagem acadêmica das disciplinas que já conhece. O risco é o candidato se enganar de "vocação", descobrindo tardiamente que seu curso não corresponde a seu sonho. Ao analisarmos as causas da evasão na PUC-Rio223 encontramos o desencontro entre a imagem da profissão e a realidade da escola de engenharia. Por isso a criação da disciplina Introdução à Engenharia, para dar aos calouros o 222 Ver da Silveira, M., da Silva, C. T. C. e Speranza Neto, M., A Engenharia de Controle e Automação na PUC-Rio: Uma Habilitação Multidisciplinar, Anais do XII Congresso Brasileiro de Automática, CDRom, Uberlândia, MG, setembro de 1998. Ver http://www.ctc.puc-rio.br/icee-98. 223 F. Ferraz, K. D. Homma, J. O. Gomes e L. A. Meirelles; O processo de fabricação de engenheiros: o método e suas consequências, TFC em Engenharia Industrial, Departamento de Engenharia Industrial/PUC-Rio; reproduzido parcialmente em apêndice a M. A. da Silveira, L. A. Meirelles e M. I. Paes e Silva, Notas sobre o curso de engenharia, in Nova Visão dos Cursos de Engenharia e suas Implicações na Universidade Moderna: uma Proposta da PUC-Rio, Relatório Interno do Decanato do CTC, PUC-Rio, 1995 Capítulo III A escolha dos perfis de formação 80 • Todos querem ser analistas. • Visão estreita da engenharia e das disciplinas relacionadas. • Incompreensão dos processos de qualidade. • Fraca capacidade de comunicação. • Pequena capacidade ou experiência de trabalho em equipe. Comentários: Lembramos que o engenheiro estadunidense tem formação essencialmente técnica. As lacunas referem-se, principalmente, à falta de visão de contexto deste profissional e a suas dificuldades na relação interpessoal – que parecem ser geradas ou aumentadas pela formação que, usualmente, recebe. 2) Sugestões de algumas grandes empresas para o perfil de formação de engenheiros. recolhidas por L. Morell228. No IASEE2003, a Microsoft apresentou outra lista semelhante, da qual não encontramos a referência. • EXXON: competência acadêmica, profundidade e larga visão técnica, habilidades analíticas, liderança demonstrada, capacidade de comunicação, habilidades interpessoais, interesse e ajuste ao emprego, experiência profissional relevante. • Andersen Consulting: foco no cliente, colaboração, confiabilidade, pensamento crítico, integridade, capacidade de decisão, flexibilidade, responsabilidade, pró-ativo e empreendedor (self starter and thoroughness). • Raytheon: capacidade de comunicação/apresentação, estudos interdisciplinares (pensamento sistêmico, engenharia / manufaturas), desenvolvimento de equipes, conhecimento global / internacional / multicultural, motivação, planejamento de desenvolvimento da carreira, capacidade de aprendizado contínuo (life-long learning). • Upjohn (Puerto Rico): globalização, orientação para o usuário, empreendedor / equipes auto-dirigidas, benchmarking para melhores práticas, conhecer processos e produtos energeticamente eficazes & amigáveis ao ambiente, liderança, ética, comunicação. • Metro Chile: rigoroso e versátil, capacidade de auto-aprendizado, iniciativa & compromisso, conhecimento de ciência & engenharia básica, decidido, multilingue, capaz de conceitualizar, construir modelos e entender complexidade, inovador, apaixonado. • Hewlett Packard: paixão pelos usuários, verdade e respeito, gosto pela contribuição e capacidade de finalização, trabalho em equipe, velocidade e agilidade, inovações com sentido, integridade. Comentário: Nesta amostra, é quase possível reconhecer a empresa por suas opiniões. Buscam mais uma dada personalidade que um profundo conhecimento técnico. As empresas não esperam encontrar engenheiros formados para o seu negócio ou sua especialidade, mas sim profissionais que possam aprendê-los. 3) Sumário do Painel de Indústrias229 (organizado por L. Morell): atributos, habilidades e conhecimentos da força de trabalho em engenharia: • Conhecimentos em ciência & engenharia/tecnologia básicas, mas sabendo como pensar; usar ferramentas da engenharia. • Compreensão de sistemas, experiência de projetos completos e do ciclo de desenvolvimento de produtos. • Criativo e inovador, aceita desafios, cheio de recursos, empreendedor. • Multicultural. 228 Conferência plenária apresentada no IASEE2003. Ver em http://www.univap.br/iasee2003. 229 Painel apresentado no IASEE2003, ver em http://www.univap.br/iasee2003. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 81 • Multidisciplinaridade: conhecimento das tendências e possibilidades sociais, comerciais, econômicas e ambientais. • Inteligência emocional. • Trabalho em equipe, colaboração, trabalho em rede, adaptável, aberto. • Velocidade e agilidade. • Integridade. • Apaixonado. • Avaliável (accountable). • Autocrítico. • Responsabilidade social. Comentários: A lista refere-se a características do engenheiro enquanto pessoa, não de seu trabalho ou das competências que domina, visto que não se refere ao que se espera de sua atuação ou ao contexto em que trabalhará. O curioso é que Morell relata na mesma apresentação os itens comportamentais citados por Kelley230, sem ter percebido, aparentemente, que ele já havia mostrado que estas características não são correlatadas ao comportamento do engenheiro de sucesso (star engineer, na nomenclatura de Kelley). 4) Uma visão do novo paradigma para a educação da engenharia (cf. John Prados): citado por L. Morell231. O novo paradigma caracteriza-se por: • Ensino ativo, baseado no aprendizado por projetos. • Desenvolvimento integrado dos conceitos matemáticos e científicos no contexto da aplicação. • Interação forte com a indústria. • Uso extenso da tecnologia informática. • Professores devotados ao desenvolvimento de profissionais, agindo como mentores e tutores, no lugar de dispensadores de informações conhecedores de tudo. Comentários: Nas listas acima podemos ver a influência da área de atuação de cada empresa na especificação das qualidades do "bom engenheiro", e o fato de que, juntando-as sem considerar novos critérios, chegamos a um super-engenheiro, sem prioridades ou especialidades. A solução proposta pelo Prof. John Prados evita a discussão das qualidades do engenheiro e, sem passar por suas competências (e sem referências aos contextos de trabalho), propõe uma mudança completa na forma de estruturar o curso de engenharia, discutindo a metodologia didática na direção do ensino concorrente e do "problem based learning", uma novidade no ambiente norte-americano. Ela repete, ipsis literis, parte das propostas de da Silveira e Scavarda do Carmo, 1999232; a partir de uma análise cognitiva e epistemológica mais profunda (o Prof. Prados conhece este último artigo). Lista de recomendações curriculares da ABENGE, apresentadas por Salum, vice-presidente da ABENGE233 • Enfatizar no currículo conteúdos sociais e de humanidades, para atendender a demanda por um engenheiro de perfil largo. 230 R. E. Kelley, Becominh a star engineer, IEEE Spectrum, vol. 36, n. 10, 1999 (http://socrates.coloradotech.edu/~it53x/StarEng.html). 231 Na conferência plenária já citada, IASEE2003, http://www.univap.br/iasee2003. 232 M. A. da Silveira e L. C. Scavarda do Carmo, Sequential and concurrent teaching: structuring hand’s- on methodology, IEEE Trans. Education, Vol. 42, n. 2, pp. 103-108, May 1999. 233 M. J. Salum, Curriculum development in Brazil, Sessão paralela do IASEE2003, São José dos Campos, 2003, http://www.univap.br/iasee. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 82 • Integrar aspectos ambientais com o conteúdo técnico, em paralelo com cursos sobre engenharia ambiental. • Focalizar a educação em processos de "aprender a aprender", desenvolvendo uma atitude criativa e pró-ativa. • Inserir o currículo no contexto internacional. • Estimular a educação interdisciplinar. • Implementar a participação dos estudantes em programas sociais. • Integrar os conteúdos currículos não apenas no fim do curso mas também ao longo de toda sua duração. • Aumentar a relação entre a graduação e a pós-graduação. Comentários: A lista da ABENGE, apresentada em 2003, ilustra as preocupações curriculares (pontuais) ora em discussão no Brasil. Uma descrição detalhada, mas sem frisar os pontos acima, muito próxima das atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Engenharia (que foram organizadas mais tarde, com a colaboração da própria ABENGE) aparece na proposição de diretrizes curriculares da ABENGE, de 1998. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 85 XVII – Geotecnia; XVIII - Gerência de Produção; XIX - Gestão Ambiental; XX - Gestão Econômica; XXI - Gestão de Tecnologia; XXII - Hidráulica, Hidrologia Aplicada e Saneamento Básico; XXIII - Instrumentação; XXIV - Máquinas de fluxo; XXV - Matemática discreta; XXVI - Materiais de Construção Civil; XXVII - Materiais de Construção Mecânica; XXVIII - Materiais Elétricos; XXIX - Mecânica Aplicada; XXX - Métodos Numéricos; XXXI - Microbiologia; XXXII - Mineralogia e Tratamento de Minérios; XXXIII - Modelagem, Análise e Simulação de Sistemas; XXXIV - Operações Unitárias; XXXV - Organização de computadores; XXXVI - Paradigmas de Programação; XXXVII -Pesquisa Operacional; XXXVIII - Processos de Fabricação; XXXIX - Processos Químicos e Bioquímicos; XL - Qualidade; XLI - Química Analítica; XLII - Química Orgânica; XLIII - Reatores Químicos e Bioquímicos; XLIV - Sistemas Estruturais e Teoria das Estruturas; XLV - Sistemas de Informação; XLVI - Sistemas Mecânicos; XLVII - Sistemas operacionais; XLVIII - Sistemas Térmicos; XLIX - Tecnologia Mecânica; L - Telecomunicações; LI - Termodinâmica Aplicada; LII - Topografia e Geodésia; LIII - Transporte e Logística. § 4º O núcleo de conteúdos específicos se constitui em extensões e aprofundamentos dos conteúdos do núcleo de conteúdos profissionalizantes, bem como de outros conteúdos destinados a caracterizar modalidades. Estes conteúdos, consubstanciando o restante da carga horária total, serão propostos exclusivamente pela IES. Constituem-se em conhecimentos científicos, tecnológicos e instrumentais necessários para a definição das modalidades de engenharia e devem garantir o desenvolvimento das competências e habilidades estabelecidas nestas diretrizes. Art. 7º A formação do engenheiro incluirá, como etapa integrante da graduação, estágios curriculares obrigatórios sob supervisão direta da instituição de ensino, através de relatórios técnicos e acompanhamento individualizado durante o período de realização da atividade. A carga horária mínima do estágio curricular deverá atingir 160 (cento e sessenta) horas. Parágrafo único. É obrigatório o trabalho final de curso como atividade de síntese e integração de conhecimento. Capítulo III A escolha dos perfis de formação 86 Art. 8º A implantação e desenvolvimento das diretrizes curriculares devem orientar e propiciar concepções curriculares ao Curso de Graduação em Engenharia que deverão ser acompanhadas e permanentemente avaliadas, a fim de permitir os ajustes que se fizerem necessários ao seu aperfeiçoamento. § 1º As avaliações dos alunos deverão basear-se nas competências, habilidades e conteúdos curriculares desenvolvidos tendo como referência as Diretrizes Curriculares. § 2º O Curso de Graduação em Engenharia deverá utilizar metodologias e critérios para acompanhamento e avaliação do processo ensino-aprendizagem e do próprio curso, em consonância com o sistema de avaliação e a dinâmica curricular definidos pela IES à qual pertence. Art. 9º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Comentários: Estas diretrizes curriculares acompanham inicialmente a linguagem das competências, embora permanecendo em considerações muito gerais. Diferentemente da regulamentação anterior, mas de acordo com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (encontrável em http://www.mec.gov.br), deixam ampla liberdade às escolas para definirem currículos e "modalidades" da engenharia (que, acreditamos, substituem as antigas habilitações, especialidades e ênfases). Exige-se a montagem de um plano pedagógico, com algumas indicações de sua estrutura (que afetam a escolha de metodologias pedagógicas) no artigo 5°. O plano pedagógico deve conter o perfil de formação e as competências e habilidades a serem desenvolvidas. A concessão ao esquema tradicional – que especificava conteúdos, ou melhor, títulos de conteúdos (as "matérias") – aparece no artigo 6°, onde 30% da carga horária mínima é fixada sobre conteúdos básicos pré-especificados, sem especificar sua profundidade ou suas razões, e 15% da carga horária mínima passa a ser escolhida em uma lista pré-especificada que "define" o conteúdo profissionalizante – as chamadas "ciências da engenharia". As "modalidades" exigem a especificação de competências e habilidades (artigo 6°, §4°). Há diferença entre habilitações, especialidades e modalidades? Talvez tenham usado o último termo porque ele ainda não fora citado na legislação específica para cursos de engenharia – o que sinaliza na direção de uma grande liberdade de escolha por parte das escolas. O autor lembra que a interpretação usual (considerando os pareceres do antigo Conselho Federal de Educação) apenas exige a referência dos títulos dos conteúdos em alguma disciplina ou conjunto de disciplinas, deixando questões de extensão e profundidade à discrição da escola. Capítulo IV Educação para a inovação 87 Capítulo 4 EDUCAÇÃO PARA A INOVAÇÃO Passaremos agora à seguinte questão, já apresentada no primeiro capítulo: • Dado que a capacidade de produzir inovações tecnológicas e transformá-las em produtos tornou-se um dos principais ativos econômicos, como preparar os engenheiros para esta nova missão, levando em consideração – inclusive – o projeto de país e a situação nacional? O texto a seguir reúne o conteúdo de vários artigos, não sem alguma repetição - o que, esperamos, facilitará sua leitura. Os tópicos a serem abordados são: a relação da engenharia com as cadeias produtivas; algumas definições básicas (inovação, modos de produção de conhecimento e tipos de tecnologia frente à inovação); elementos da formação do engenheiro voltado para a inovação, abrindo a discussão sobre a educação baseada em problemas e o ensino concorrente e mostrando a importância de uma mudança no ambiente universitário; um novo paradigma para a universidade associado à formação de empreendedores e ao problema do desenvolvimento de inovações. IV.1. A engenharia e as cadeias produtivas235 A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra do século XVIII, mudou definitivamente os mecanismos de uso do conhecimento técnico e científico. As sociedades passaram, desde então, de agrárias e artesanais a industriais com manufaturas mecanizadas. Essas mudanças tiveram profundas conseqüências na vida dos homens e a extensão dos câmbios pode ser avaliado pelo nascimento das fábricas, pela transformação da agricultura em atividade industrial e pelo uso econômico do conhecimento ainda que, de início, de forma empírica. Os avanços industriais, entretanto, não vieram de uma só vez. Ao final do século XIX pudemos observar algumas novas características, muitas vezes associadas pelos historiadores a uma segunda revolução industrial: • a decentralização da fonte de energia mecânica (devido à maior mobilidade do motor a combustão interna, se comparado ao motor a vapor236); • o estabelecimento de processos de produção em massa (Henry Ford sendo o nome importante); • o oferecimento de produtos com baixos custos e acessíveis aos empregados da indústria; • a automação e fluxo automático de materiais e informação; • o desenvolvimento da indústria química; • o uso das ciências para criar conhecimento; • a exigência de um maior nível de habilidades e compreensão no processo produtivo, necessitando maior qualidade e universalização da escola elementar. Neste segundo momento evidenciou-se um movimento de descentralização irreversível. A engenharia precisou apoiar-se na ciência e Taylor, ainda que com 235 Esta seção reproduz, com pequenas alterações, o artigo: L. C. Scavarda do Carmo, J. A. R. Parise, M. A. da Silveira, A educação em engenharia e as cadeias produtivas, in F. A. R. Sandroni (editor), Cadernos de Tecnologia, Volume 1, pp. 127-138. Rio de Janeiro: Instituto Euvaldo Lodi, 2001. 236 A generalização do uso de motores elétricos e, mais tarde, os avanços da eletrônica, causaram grande impacto nos processos de produção, já tendo sido apontados como outras "ondas" do desenvolvimento industrial.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved