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Guias e Dicas
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Livro - Samuel Sergio Salinas do Feudalismo Ao Capitalismo Transicoes, Notas de estudo de Economia

Para alunos 2010.2 de Ciências Econômicas UFRN disciplina: História Econômica Geral I

Tipologia: Notas de estudo

2010
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Baixe Livro - Samuel Sergio Salinas do Feudalismo Ao Capitalismo Transicoes e outras Notas de estudo em PDF para Economia, somente na Docsity! discutindo a história do feudalismo ao capitalismo: Eta [ejo a As cidades e o campo | O mercantilismo Teorias da transição samuel sérgio salinas . inização Am Ss at dh PDC www.portaldocriador.org sumário Bate-papo com o Autor 1 1. O que muda na História 3 2. Roma 6 3. O feudalismo europeu 15 4. O capitalismo 31 5. América Latina: capitalismo mercantil , feudalismo . . . 49 6. Observações finais 56 Bibliografia 59 Cronologia 61 Discutindo o texto 63 "Os capitalistas se distinguem dos senhores feudais, na medida em que estes últimos têm uma relação externa com a produção, pois eles são beneficiários externos — com aju- da de meios repressivos particulares — através dos tributos ou da renda, num processo de trabalho onde eles não apare- cem estruturalmente integrados. O capitalista teria então uma situação nova junto à produção, pois à diferença dos outros representantes das classes dominantes dos modos de produção pré-capitalista, ele está integrado na produção como organizador da produção e da circulação. A burguesia tem uma atividade no processo de sua reprodução — seu direito de propriedade — que é, e constitui, tanto uma pre- sença direta quanto uma presença delegada. Estudar a bur- guesia como classe é estudar o Estado, pois é através deste aparelho que a burguesia como tal se constitui em classe dominante." (Carlos Henrique Escobar, Ciência da História e Ideologia,) bate-papo com o autor Nascido em 1932, em Araraquara, Samuel Sérgio Salinas foi jornalista e bacharelou-se em Direito pela USP em 1955, tendo ingressado no Ministério Público do Estado de São Paulo, onde se aposentou como Procurador da Justiça. For- mou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, e t rabalhou na UNICAMP. Foi t ambém aluno do I Curso Taller, organizado no México pelo Ins t i tu to Latino-americano de Pesquisas Econô- micas e Sociais. Atuou como consultor das Nações Unidas pa ra o II Curso Taller de Estratégias Econômicas e Sociais. É autor do livro O bando dos quatro, sobre a industria- lização do sudeste asiático, e integra o Conselho Curador da Fundação Cásper Libero. A seguir, Samuel Salinas responde a três questões: 1. Qual a atualidade de seu livro? O tema é pa r te do conjunto de preocupações teóricas que redimensionaram a História a par t i r do século XIX, projetando-a como a mais dinâmica das Ciências Sociais contemporâneas. 1 acontecer está no que já aconteceu. Não temos outros parâ- metros . A cada dia vivemos o nosso passado, como passado histórico e como repertório das indagações que ele nos per- mite propor para o futuro. Sabemos hoje que as sociedades mudam, estão mudando, e compreendemos que devem mudar . O que muda? O indivíduo ou a sociedade? Os idealistas, entendida a palavra no sentido filosófico, privilegiam o papel do indivíduo e suas idéias, deslocando-o pa ra o proscênio dos acontecimentos. A corrente materialista, por sua vez, não descarta a relevância do indivíduo, mas procura situá-lo na sociedade, de que é par te . O homem muda, não porque tenha vontade de mudar, nem poder individual pa ra produzir a mudança, mas porque a sociedade, onde atua, muda. Se não é a consciência dos indivíduos que produz a mu- dança, o que explica a certeza dessas mudanças? As respostas dos historiadores são controvertidas, em qualquer campo onde se queira classificá-los. Neste livro o autor toma par t ido para afirmar: muda a maneira como os homens produzem e reproduzem a sua vida econômica, social, política etc. Por outro lado, a vida mate- rial, a produção cotidiana dos meios de sobrevivência, histo- r icamente concretizada, revela como os homens se organizam para assegurá-la, despendendo energias no t rabalho e nas condições de emprego do trabalho, desta ou daquela forma, deste ou daquele modo. Nessas relações, cristalizadas pelo emprego da força de t rabalho, residem os elementos subs- tanciais quer das mudanças nos "tempos de longa duração", quer das "revoluções" que assinalam a transição acelerada de um modo de produção para outro. A leitura das periodizações, propostas em obras e cole- ções famosas de história, permite perceber que entre a Idade Média e a Época Contemporânea as diferenças residem es- sencialmente na forma como, na primeira, o t rabalho servil assegura a reprodução da vida material e, na segunda, a pro- dução de mercadorias e o trabalho assalariado consti tuem aspectos decisivos para compreender as profundas transfor- mações que os aumentos de produtividade do t rabalho pro- piciaram nos últ imos séculos. A história aí não se esgota; no entanto, par te daí. 4 Feudalismo e capitalismo definem os dois momentos indicados por esta conceituação da história. Como ocorreram as mudanças que acarre taram a transição do feudalismo para o capitalismo — eis o tema central deste t rabalho, abordan- do-se pelo menos alguns aspectos de matér ia tão ampla, complexa e polêmica da historiografia contemporânea. 2. roma A formação social romana Vejamos, inicialmente, como ocorreu a derrocada do Império Romano e a emergência do feudalismo na Europa. A formação social romana, em sua fase de maior expan- são, tendeu a polarizar-se entre duas classes sociais, a dos homens livres e a dos escravos. Isto ocorreu depois que a concentração da te r ra em po- der dos latifundiários enfraqueceu a pequena propriedade camponesa, após contínuas lutas sociais e políticas. A resis- tência dos pequenos proprietários rurais foi sendo minada, quer nos conflitos denominados guerras civis, quer pela com- petição da grande propriedade agrícola, al imentada pela mão-de-obra escravizada nas guerras romanas pa ra dominar a bacia do Mediterrâneo, par te da Ásia, enfim, pa ra erigir o Império. À medida que o imperialismo romano se expandia, a imposição de tr ibutos aos povos vencidos permit ia consi- derável importação de cereais, desestimulando a produção interna. O imperialismo romano propiciou aos latifundiários a atenuação das tensões sociais e o envio, pa ra as guerras de conquista, dos proprietár ios arruinados. Os soldados-cam- poneses consti tuíram as famosas legiões que impuseram a supremacia romana. 6 beneficia, ainda mais, a crescente urbanização. As cidades, nesse contexto, consti tuem centros de supervisão adminis- trativa, de onde as classes agrárias dominantes exercem o governo. Não há qualquer oposição entre cidade e campo. A cidade é a expressão política do Império, sede da burocracia e domicílio dos grandes latifundiários. Os escravos aríesanais constituíam grande parte da mão-de-obra urbana. Na foto, trabalhadores numa oficina de serralheria. A produção agrícola e a artesanal dependeram, ainda mais, após as conquistas, da mão-de-obra escrava. Evidente- mente esta mão-de-obra não vendia sua força de trabalho, nem adquiria, no mercado, os bens necessários à sua sub- sistência. A produção manufatureira, escorada também na mão-de-obra escrava, alimentava um comércio de bens de luxo. Nada de produção em massa ou de competição entre empresas para aumenta r a produtividade e maximizar as taxas de lucro. Por conseguinte, inútil pensar em revolução científica e tecnológica. Sem o Estado romano, seria inconcebível a sobrevivência do Império. Cícero, cônsul, discursa no Senado romano (quadro de Maccari, século XIX). 10 O exército romano Os romanos não inventaram armas muito superiores às dos povos por eles derrotados. Organizaram exércitos de pequenos camponeses (evidentemente não havia um plano para isto) — homens livres que passaram a lutar contra os povos vizinhos, mais tarde liberados de tarefas no campo pela mão-de-obra escrava que ajudavam a apresar nos cam- pos de batalha e, finalmente, sem alternativas a não ser alis- tar-se no exército ou engrossar a plebe urbana. A aristocracia A aristocracia romana, cultivando o direito (o famoso Direito Romano) e os assuntos da res publica, revelava a sua posição central , nuclear, em relação à es t rutura de poder que aglutinava a formação social romana. Sem o Estado ro- mano seria inconcebível a sobrevivência do Império. Roma suportou uma balança comercial deficitária porque o dese- quilíbrio era suprido pelos ingressos extraídos de suas áreas de dominação. Esta não seria tarefa realizável sem um Esta- do centralizado, apto a coordenar os esforços militares e impor uma es t rutura administrativa complexa, preparada para resolver, nos imensos espaços dominados, intr incados problemas. Somente o Estado poderia empreender a conquis- ta, mantê-la e assegurar a submissão dos escravos. A impor- tância do Estado não foi desconhecida pelos juris tas roma- nos, que pela primeira vez, de maneira sistemática, discerni- ram o Direito Público do Direito Privado. A decadência A conquista, as instituições burocrát icas, a organização do exército, a formalização do Direito, e ram instrumentos que reproduziam a formação social romana. Porém, esse complexo arcabouço não consegue subsistir indefinidamente. Roma sucumbiu. Como ocorreu? Quais as fissuras do edifício, montado para a conquista e a imposição de tr ibutos, que o 11 Por sua vez, o intercâmbio com Roma propiciou a diver- sificação social e política dos povos que reagiram contra o Império, que passaram a usar as mesmas armas, estratégias e táticas que contr ibuíram para erigi-lo, transformando-o na formidável máquina militar e burocrát ica sempre pronta à conquista pelas a rmas ou pela diplomacia, ou por ambas , concomitantemente. A disposição para antagonizar o predomínio romano incluía a luta direta, as infiltrações terr i toriais , alianças mi- litares e políticas, numa palavra, todos os meios que propi- ciaram aos povos desafiantes do poder romano instrumentos para escapar à opressão, alcançar autonomia e espalhar-se sobre os campos e cidades outrora dominados pelo Império. Concluindo, não foi o latifúndio que "perdeu a Itália", nem a degeneração dos costumes, mui to menos o insuficiente desenvolvimento político, mas a revolta da periferia romana e o desgaste interno provocado pelas tensões sociais diante da impotência mili tar para conter os "bárbaros" . O imperialismo romano era uma relação de força, de violência bem organizada. Quando esta violência enfrenta a contraviolência da "periferia", a resistência pertinaz dos po- vos, inicia-se a decadência. Enrijece-se a burocracia, desman- tela-se a disciplina militar. O poder civil, que César houvera apr imorado, sofre os embates dos líderes militares, do mili- tarismo. Desarticula-se, finalmente, o apara to mili tar e buro- crático. No ocidente europeu, o feudalismo está na linha do horizonte. A periferia bárbara , celta, germana, eslava, golpeia o Império, mas não o reabilita. O feudalismo será outra for- mação social e política. O Império está mor to . 14 3. o feudalismo europeu A fragmentação do poder As formações sociais do feudalismo europeu ocidental constituíram-se no interior das ruínas da formação imperial- tr ibutária romana. Esta transformação não foi provocada por "profunda e súbi ta" revolução social e política, conduzida por uma classe social, mas decorreu da derrota do Império Romano, incapaz de sustentar suas fronteiras e terr i tórios paulat inamente minados pelos povos invasores. A extração de excedentes externos era vital para Roma, e o escravismo dependia do abastecimento constante da mão- de-obra capturada ou obtida de outras maneiras, decorrentes dos mecanismos jurídicos e políticos associados à escraviza- ção. Quando esta ordem torna-se insustentável, Roma não consegue reproduzir os seus exércitos e a sua burocracia de Estado. Embora a agonia imperial houvesse durado séculos, com maior ou menor resistência à desagregação, o centra- lismo estatal sucumbe. O Império Romano não foi subjugado por um povo con- quistador que houvesse assumido as instituições políticas romanas para renovar, a par t i r do seu interior, do seu âma- go, a pujança da formação imperial-tributária. Não houve um invasor, mas diversos. As invasões, por sua vez, não ocorre- ram subitamente, mas dura ram séculos. Nem por isso o feudalismo europeu é a anarquia, o iso- lamento cultural , as trevas, enfim, uma era de decadência, como muitos historiadores, a par t i r do Renascimento, disso nos procuram convencer. 15 Por sua vez não é o feudalismo, também, o herdeiro de Roma. Nem sequer a Igreja Católica era a mesma; a Igreja Romana tornou-se instituição feudal. Os conflitos entre senhores feudais pelo domínio das terras suscitavam as denominadas guerras privadas, tão co- muns que a Igreja as tolerava a princípio, impondo, em de- terminadas circunstâncias, as "tréguas de Deus". Vejamos qual o alcance e o significado prático destas tréguas e o que elas denotavam: uma situação de permanente antagonismo, admitido e tolerado como regra para a solução dos conflitos entre os senhores de terras . Prescrevendo para determinados dias a "trégua de Deus", sancionava pelo resto do tempo as guerras privadas. A paz permanente, por outro lado, era vista como contrária à natureza humana, como certa feita afirmou, energicamente, Gérard, bispo de Cambrai. Georges Duby, famoso medievalista francês, afirma que uma "civilização nascida das grandes migrações dos povos era uma civilização da guerra e da agressão". As pequenas Castelo francês, próximo a Bordéus, sitiado pelos ingleses em fins de 7377. 16 grande alcance, a agricultura medieval conseguiu — uma vez terminada a explosão demográfica dos séculos XI, XII e XI I I — assegurar melhor padrão de vida para proporção maior da população em fins do século XIV e no século XV. Até certo ponto a riqueza estava distr ibuída com maior eqüidade. Esse feito da agricultura medieval foi alcançado através do cultivo laborioso do solo, pois a agricultura medieval era de utilização intensiva de mão-de-obra e não de capital e estava auxiliada por administração eficiente, da qual os t ra tados sobre contabilidade são indício". Verifica-se, por tanto , que o aumento da produtividade, quando as circunstâncias que impunham o contingenciamen- to mencionado não se manifestavam, era real, dado o interes- se do produtor direto em reter par te do excedente produzido. A Igreja feudal A feudalização da Igreja resultou em grande par te da sua riqueza fundiária. Sem dúvida a Igreja tenta, alcançando privilégios, libertar-se o quanto pode do direito comum, mas alguns dos privilégios solicitados feudalizam-na ainda mais . Essa feudalização teve conseqüências políticas e sociais de amplo alcance. Como no ambiente feudal tudo decorre da posse da terra , o prelado torna-se senhor feudal. Capacete na cabeça, vemo-lo combater nos campos de batalha. Terá a sua justiça. Perceberá direitos feudais e senhoriais. A propr iedade feudal da Igreja Católica sobre as ter ras constituiu empecilho ao desenvolvimento das relações capi- talistas de produção. Marx, no célebre capítulo de O capital sobre "A chamada acumulação primitiva", descreve a forma como enorme parcela da população camponesa foi desapos- sada das suas terras e também o que aconteceu com as pro- priedades terri toriais da Igreja Católica: "O processo violen- to de expropriação do povo recebeu terrível impulso, no século XVI, com a Reforma e o imenso saque dos bens da Igreja que a acompanhou. À época da Reforma, a Igreja Ca- tólica era proprietár ia feudal de grande par te do solo inglês. A supressão dos conventos etc. enxotou os habitantes de suas terras, os quais passaram a engrossar o proletariado. Os bens 19 Miniaturas de um manuscrito francês de princípios do século XII, mostrando o trabalho de padres nos campos eclesiásticos. 20 eclesiásticos foram amplamente doados a vorazes favoritos da Corte ou vendidos a preço ridículo a especuladores, agri- cultores ou burgueses, os quais expulsaram, em massa, os velhos moradores hereditários e incorporaram as suas pro- pr iedades . . . A propriedade da Igreja constituía baluar te re- ligioso das antigas relações de propriedade. Ao cair aquela, estas não mais se poderiam manter" . Por outro lado, a ex- propriação das terras comuns, na órbita da Igreja, pelos avanços do capitalismo, empobrecia os camponeses, deixan- do-os em situação inferior à desfrutada no feudalismo, ou seja, sem terras comuns onde pudessem levar os seus ani- mais, obter as sobras das colheitas para al imentação do gado, aproveitamento de lenha etc. Vale a pena mencionar que esta apropriação capitalista dos bens da Igreja obedece a r i tmos e tempos diversos e su- blinha a transição do feudalismo para o capitalismo, em di- versos países. Em Portugal, por exemplo, a dissolução dos laços feu- dais na agricultura processou-se muito mais lentamente, e não foi tão adiantada e radical, se comparada à da Inglater- ra; nem sequer o tempo do processo coincide, pois a apro- priação privada das terras comuns inicia-se no século XVII, intensifica-se no século XVIII e prossegue século XIX aden- tro. Em Portugal, como era de se esperar, dada a pujança da Igreja Católica, a transferência das terras para a burguesia não podia amparar-se no movimento religioso da Reforma; no entanto, com o tempo, a predominância dos interesses capitalistas manifestou-se, principalmente após o triunfo do liberalismo, em 1835. A usura, o justo preço, os tribunais Por outro lado, a ideologia religiosa era feudal à medida que, à sua maneira, contribuía para reproduzir as relações sociais de produção do tipo feudal. Os obstáculos criados por essa ideologia propunham preservar o feudalismo, den- tre eles a doutr ina do jus to preço, a condenação da usura etc. 21 O Estado moderno Para compreendermos adequadamente as diferenças en- tre feudalismo e capitalismo neste aspecto, ou seja, em rela- ção ao direito, basta examinar a formação do Estado moder- no, nos séculos XVI e XVII, pr incipalmente neste últ imo, o século do Absolutismo. A homogeneização do espaço econô- mico, l iberando a circulação das mercadorias , restringindo os part icularismos locais, combatendo a multiplicação de poderes fragmentados que const i tuíam obstáculos à realiza- ção dos negócios, era indispensável à burguesia. A burocrat i - zação, por seu lado, para desempenhar este papel, exige direito formal, certo, capaz de ser compreendido por toda par te e executado por especialistas devotados ao seu estudo e prática. No Estado romano, por exemplo, o conhecimento do direito, a certeza da sua vigência e a uniformidade da sua aplicação consti tuíam pilares do poder estatal, encarre- gado de adminis t rar amplo império, socialmente diversifi- cado, mas unido, fundamentalmente, pelas legiões e leis romanas . A unificação legislativa, conseqüentemente admi- nistrativa e política, do Estado moderno burguês não é da mesma natureza da que ocorreu em Roma. Entretanto, sob muitos aspectos a herança romana, embora destinada a cumpri r outros objetivos, foi de grande util idade pa ra a construção dos modernos institutos jurídicos. Nas formações sociais do feudalismo esta centralização da ordem jurídica era desconhecida, inútil para ordenar re- lações que se t ravavam no interior dos feudos. Não havia um império, nem legiões, mas o senhorio e monarquias enfra- quecidas, onde o poder não era absoluto, nem sobre as ter- ras, nem sobre os homens. A autonomia camponesa Embora os senhores feudais houvessem tentado impor a regra de que toda terra deve ter seu senhor, na prática isto não ocorreu. As terras comuns, pastos, prados e florestas, 24 além de pequenas propriedades, subsistiram como importan- tes aspectos da autonomia camponesa e condições de resis- tência às imposições feudais. Esta resistência camponesa ma- nifesta-se de forma variada, incluindo a sustentação intran- sigente de seus direitos contra as tentativas dos senhores feu- dais de interpretá-los unilateralmente e contra o aniquilamen- to de conquistas, já consolidadas, da população camponesa. Era comum a recusa coletiva de cumprir obrigações de tra- balho — as "proto-greves" — e freqüentes as pressões para obter redução nas rendas e até chicana sobre o peso dos produtos entregues ao senhor feudal. No feudalismo, o direito, como vimos, era costumeiro e os costumes (entendidos no sentido jurídico) de formação As transformações dos direitos de propriedade da terra realizavam-se em detrimento dos camponeses pobres, Na foto, um quadro de Bosch retratando um camponês alemão abandonando a terra arruinada. 25 local, daí a sua grande diversidade. E ram iníquos para uns e al tamente vantajosos para outros? Sem dúvida, mas urge precavermo-nos de uma ótica contemporânea, extrapolada para um quadro social e político diferente do nosso. Os cam- poneses não eram livres, mas os senhores também não dis- punham de poder absoluto. Os costumes, dada a sua forma- ção, permit iam aos camponeses espaço de luta e reivindica- ções, como já assinalamos. Os autores apontam este apego dos camponeses aos direitos coletivos, principalmente dos camponeses mais pobres. A exploração tradicional do solo permitia, em certa medida, aos camponeses pobres compen- sarem a sua falta de terra. As comunidades aldeãs mant i - nham-se ativas. Os bens das comunidades — tais como pastagens e florestas — e os direitos de uso neles implícitos ofereciam recursos aos camponeses. Embora os camponeses ricos fossem hostis a esses direitos coletivos, que lhes res- tringiam a l iberdade de exploração e o direito de proprieda- de, os pobres, em compensação, a eles se apegavam. Os esforços dessas camadas camponesas propunham-se l imitar o direito de propriedade individual, e defender os direitos coletivos, opondo-se ao individualismo agrário, caracterizado pelos cercamentos de terras e t ransformação da agricultura em exploração capitalista da terra . Razões por que o pequeno camponês não t inha a mesma concepção da propr iedade agrícola, própr ia dos nobres ou da burguesia rura l . Sua perspectiva da propriedade coletiva opunha-se à noção bur- guesa de direito absoluto do propr ie tár io em relação ao bem imóvel. A posse da terra A agricultura para consumo era, no feudalismo, a ativi- dade principal. O comércio, mui to reduzido. As terras não t inham valor de troca, de mercado, porque, geralmente, não se adquir iam terras comprando-as no mercado, mas mediante princípios peculiares à enfeudação. A posse da terra, para os senhores feudais, era indispen- sável, quer para assegurar a subsistência do feudo, quer para manter o seu poderio, sempre dependente da obtenção de 26 A ilustração, que se encontra em um manuscrito francês de 1448 retrata o trabalho na construção das igrejas medievais. tes temunham a existência de excedentes disponíveis para sustentar artesãos e artífices. O t rabalho era árduo, mas en- tremeado de lazeres, definidos pela religião, que suavizavam os rigores da labuta no campo e nas cidades. As cerimônias religiosas agrupavam os fiéis — e quem não o era? — pro- piciando encontros e oportunidades de congregação. Na Idade Média, as festividades religiosas e os dias santificados eram numerosos. Na ilustração, camponeses dançam, tendo ao fundo as muralhas de uma cidade medieval. 30 4. o capitalismo O espírito burguês Como ocorreu a transição do feudalismo para o capita- lismo? As teorias se multiplicam, mas o debate fixou-se em torno de algumas orientações fundamentais. Será o capita- lismo a manifestação de nova mental idade do homem mo- derno, conjunto de atr ibutos psíquicos apto a desencadear o processo de liquidação do feudalismo e implantar a eco- nomia de produção para o mercado? Quais seriam as carac- terísticas desse homem novo, dinâmico e disposto a tudo re- formular? Alguns autores acredi tam que as formações sociais capitalistas decorreram do espíri to empreendedor do burguês. Werner Sombar t afirma que, na época do capitalismo inci- piente, era o empresário quem fazia o capitalismo, enquanto na época do capitalismo pleno é o capitalismo quem faz o empresár io . Sombar t , em seus primeiros trabalhos, a tr ibuíra o capi- tal ismo emergente à independência dos judeus em relação às proibições católicas da usura e ganhos do capital, o que assegurava a eles liberdade de iniciativa na manipulação de operações financeiras e bancárias , capaz de consti tuir em- brião da nova mentalidade empresarial que desencadeou o capitalismo. Em obras subseqüentes, Sombart modificaria 31 espírito que, em suas múltiplas emergências, engendra as formas de convivência humana. Para Weber a ética protes- tante é uma dessas aparições, "pronta a mudar a alma das pessoas e a t rajetória da razão humana" . A escravidão do salário Vimos que os camponeses e também os servos não foram desapossados dos instrumentos de produção, e os "direi tos" sobre a terra não excluíam participação maior destas classes e frações de classe no excedente produzido. As classes domi- nantes feudais, pr ivadas do Estado e seus aparelhos, não dis- põem de meios de dominação semelhantes aos que permiti- ram, no Império Romano, a verdadeira expulsão, dos cam- pos, do campesinato livre, do pequeno proprietár io , constran- gido a vegetar nos centros urbanos, engrossando a camada do que hoje denominaríamos lumpemproletar iado e quase integralmente substi tuído pela mão-de-obra escrava, na agri- cultura. No feudalismo europeu surge u m a fração de classe, a dos camponeses proprietár ios, que contracena com os senhores feudais e a burguesia urbana. A especificidade do feudalismo europeu não é só a fraqueza das classes dominantes, mas a existência de frações de classes dominadas que resistem e impedem a sua total dominação pelos senhores feudais. É nesse espaço, nesse campo das lutas de classes e frações de classe que a burguesia vinga e o pequeno produtor sobrevive quer mercanti l izando os excedentes, quer conduzindo o pro- cesso de industrialização doméstica, ou compondo alianças políticas que solapam o poder feudal. Nesse espaço, através de combinações sociais diversas, ressalta a fragilidade dos se- nhores feudais, que ora se aliam aos burgueses, ora resistem e enfrentam revoluções. Os camponeses, por sua vez, ora se aproximam dos senhores feudais (independentemente dos conflitos entre essas classes), ora os enfrentam, auxiliados pela burguesia. De qualquer maneira, os camponeses, futuros proletários, serão os grandes perdedores, saindo de uma ser- vidão para outra, mui to mais cruel, principalmente para as primeiras e numerosas gerações — a escravidão do salário. 34 O feudalismo cede caminho As linhas de investigação sobre a transição feudalismo— capitalismo convergem para a especificidade das formações sociais do feudalismo europeu, ou seja, do conjunto de condições que, inegavelmente, favoreceu o desenvolvimen- to do comércio e a acumulação de dinheiro nas mãos de comerciantes que, estrategicamente, ocupavam posições pri- vilegiadas para concentrar tais recursos. Discussão que se impõe, de imediato, decorre da natu- reza das lutas de classe t ravadas no interior das formações sociais feudais e do papel que cada uma dessas classes de- sempenha no aparecimento de condições propícias à acumu- lação de capital-dinheiro, em poder da burguesia mercanti l . O feudalismo europeu ocidental, como procuramos de- mons t ra r no capítulo anterior, é entremeado por lutas e disputas entre os produtores diretos, os camponeses, e os detentores da posse da terra, os senhores. O produtor di- reto não é, invariavelmente, um desvalido, que produz ex- cedentes pa ra o senhor de terras , nada conservando pa ra si. A situação do servo, embora não tenha sido invejável, não o reduzia à escassez permanente . Parte da produção perma- necia com o produtor direto, deixando de ser transferida ao senhor feudal. A disputa por melhores condições, pela posse dos ins t rumentos de produção, pelo aproveitamento coletivo dos campos, pelas sobras das colheitas, pela lenha colhida nos bosques, pelas pastagens etc. denota, examinados os costumes locais que dispunham sobre estes assuntos, u m a sutil luta de classes, empenhadas em verdadeiro jogo de paciência e habilidade, para conquistar e conservar posi- ções, luta em que a violência desempenhou, como em mui- tos outros momentos da história, papel ambíguo. Nem sem- pre a força logra compelir ao t rabalho, sobretudo quando os produtores diretos podem se esquivar, desarmando o poder mediante resistência obst inada em defesa de toda e qualquer pequena conquista. A força, por sua vez, é contida pelas exigências da produção. Nos limites e fissuras da sua ingerência insinuam-se as relações sociais de produção que seguem de per to os equilíbrios alcançados ao longo do per- fil t raçado pelas lutas a que nos vimos referindo. 35 O campo revitaliza o mercado Conservando a posse da te r ra e dos instrumentos de trabalho, o produtor direto não está inteiramente subme- tido ao nível de subsistência, dadas as condições de então, mas a perspectiva de dispor de excedentes depende das pe- culiaridades regionais das lutas de classe, acirradas em de- corrência da pulverização do poder no feudalismo. A presença de excedentes no mercado, por tanto , não é privilégio exclusivo de bens disponíveis pelos senhores feu- dais. Efetiva e potencialmente, o p rodu tor direto assegura a sua part icipação no mercado, quer como produtor , quer como consumidor. Desta maneira o campo oferece u m a gama de potencia- lidades revitalizadoras do mercado, criando condições pa ra o desenvolvimento do comércio, o qual, por sua vez, a pa r t i r da esfera da circulação interna, ingressa na atividade pro- dutora, aproveitando o excesso de mão-de-obra, ou o tempo livre desta mão-de-obra, e compelindo-a a t rabalhar pa ra o comerciante, no campo mesmo, sistema conhecido por tra- balho a domicílio. Aos poucos o comerciante domina e co- manda esta mão-de-obra, assenhoreando-se, também, do processo produtivo. A manufa tura e, posteriormente, o t rabalho nas fábricas complementam este processo em que o capital mercanti l (não me refiro ao conceito equivocado de capitalismo mercantil) exerceu significativo papel. Ine- xistindo as disponibilidades de tempo e os excedentes do camponês feudal, o capital comercial não teria meios pa ra ingressar no processo produtivo. Em Roma, onde dominavam o t rabalho escravo no campo e a obtenção de excedentes pelos mecanismos da conquista, não vingou o capital mer- cantil, confinado aos grandes circuitos internacionais sem, porém, penet rar na capilaridade do terr i tório italiano. As teses sobre o papel exclusivo do comércio na tran- sição feudalismo—capitalismo têm sido muito combatidas . Para expressiva maioria dos autores, não é o comércio a ma- triz do capitalismo. Quer seja ele o de grande curso, deno- minado comércio externo, quer o pequeno intercâmbio local. 36 quais a prosperidade dos campos circundantes às cidades teria sido decisiva. As perspectivas parecem, hoje, inverti- das: o que suscitou o desenvolvimento foi a demanda de produtos provenientes de mercados distantes, conforme Pirenne; foi a oferta de excedentes agrícolas, provenientes dos mercados locais, estimam numerosos economistas, que, por sua vez, admitem o papel acelerador do processo susci- Para muitos historiadores, a propriedade dos campos próximos às cidades foi decisiva para o desenvolvimento do comércio. Na foto, o mercado de gado do centro comercial de Hamburgo; observa-se, ao fundo, o tribunal do mercado durante uma sessão. 39 tado pela demanda de mercadorias importadas de mercados distantes, mas recusam-lhe a condição de fator decisivo para o predomínio do capitalismo no ocidente europeu. Quanto aos agentes do crescimento, Pirenne julgava tê-los descoberto nos mercadores it inerantes (as primeiras jurisdições comerciantes na Inglaterra chamavam-se cortes dos pés-poeirentos, alusão aos comerciantes regionais), os quais ter iam se fixado junto de um castelo ou de uma anti- ga cidade. Seus entrepostos e habitações (portus) ficaram conhecidos como "burgo de fora" (foris-burgus, de onde "falso-burgo"). Este, por sua vez, cercado de muralhas, inte- grar-se-ia nos limites da cidade ampliada. Sem negar a importância desempenhada pelos comer- ciantes de longo curso, destaca-se, atualmente, o papel de- senvolvido pelos mercadores locais e pelos artesãos, tanto do setor têxtil quanto da metalurgia, no crescimento de numerosas cidades. Aspectos da vida urbana numa cidade medieval. 40 Comércio e capitalismo Vimos que há discordância entre os autores quanto ao papel do comércio no desenvolvimento de relações capita- listas. Nem sequer o papel das cidades é t ratado sem dis- putas acaloradas. Quanto ao comércio a longa distância, afirma-se que sempre existiu na Antigüidade — grandes cidades eram centros mercantis , e nem por isso o capita- lismo nelas vingou. A questão remete a uma precisa indagação: qual a especificidade do caso europeu ocidental? O feudalismo europeu ocidental não foi impermeável ao comércio, quer desencadeado pelos mercadores de longo curso, quer pela atividade incessante dos bufarinheiros. Como vimos, a penetração do mercador só foi possível, no grau e intensidade capazes de incentivar a produção para o mercado, porque as populações dispunham de excedentes No feudalismo europeu ocidental, a atividade comercial não se resumia às transações de longa distância, mas penetrava nos poros das malhas feudais. A foto mostra o comércio em Paris no século XIV; observa-se um descarregamento de carvão, enquanto trabalhadores empurram toneis de vinho pela ponte. 41 O capitalismo não é filho do luxo dessas classes domi- nantes, mas da presença, no mercado local, de excedentes produzidos por camponeses e artesãos urbanos e da sua disponibilidade de tempo livre para vender a força de trabalho. O capitalismo é fruto da presença, no mercado local, de excedentes produzidos por camponeses e artesãos urbanos. 44 A "segunda servidão" As reações feudais ao capitalismo foram tardias e em alguns lugares corresponderam a tentativas, a lgumas bem- sucedidas, de extrair mais t rabalho dos servos, não afastada a possibilidade de se t ra ta r de empreendimento dest inado a satisfazer as novas necessidades de consumo, induzidas por esta ampliação dos mercados, tanto no aspecto quali tat ivo como no quantitativo. As resistências dos servos e das popu- lações camponesas e a fuga pa ra as cidades opuseram obstá- culos a esta "segunda servidão", contribuindo para aumenta r a mão-de-obra disponível nas cidades. Lutas e alianças de classes A transição feudalismo—capitalismo está inscrita, por- tanto, no espaço das lutas de classes que se t ravam no univer- so feudal. Não se cuida, somente, de um período de grandes revoltas camponesas, rebeliões urbanas , mas de profundas disputas entre classes e frações de classe que nem sempre t ransparecem, no embate surdo, mas vigoroso, do enfrenta- mento cotidiano. Luta-se pa lmo a palmo pelas condições de sobrevivência e garantia de conquistas milimétricas mas de- cisivas pa ra o processo de t ransformação do servo em "tra- ba lhador livre". Neste intrincado mas fecundo mosaico social, as alianças se cruzam e entrecruzam, compondo um quadro nem sempre familiar ao observador. O jogo das alianças de classes e frações de classe arti- cula as combinações de forma complexa, por vezes de região pa ra região. Na Inglaterra, para exemplificar, este jogo cris- taliza alianças entre a burguesia e a nobreza, desempenhando este impor tante papel político. Na França, as lutas entre a burguesia e a nobreza não associam combinações deste t ipo — o tecido social e político é mais complexo, se considerar- mos o papel desempenhado pelos camponeses, pequenos pro- prietár ios rurais etc. O feudalismo europeu não engendrou uma classe domi- nante suficientemente forte pa ra impor ao p rodu to r direto 45 submissão total e, dessa maneira, quando tem de enfrentar a burguesia e o proletariado emergente, cede terreno e poder . A burguesia, fortalecida pela contínua penetração no aparelho produt ivo (que ajuda a criar), manobra política e ideologicamente entre as classes, firmando-se definitivamente como expressão não só econômica, mas política. Desses embates o resultado é, invariavelmente, o enfra- quecimento da nobreza fundiária, reduzida a fração no poder, quase sempre sob a hegemonia burguesa. A burguesia firma-se como expressão econômica e política. Na foto, um quadro de Quentin Massys, intitulado "O banqueiro e sua esposa", 1514, Paris, Louvre. 46 5.américa latina: capitalismo mercantil, feudalismo Numerosos historiadores e cientistas sociais insistem em considerar a expansão européia nas Américas um fenômeno peculiar do capitalismo mercantil. A fase de transição feu- dalismo—capitalismo teria sido dominada pelo capital ismo mercanti l , gerado, diretamente, no processo de circulação de mercadorias e agente dinamizador de toda a vida econômica subseqüente. Em princípio sabemos que a circulação ou a t roca não cr iam valor. O ciclo do comércio não produz mercadorias , mas , por ocasião do antigo comércio a longa distância ent re continentes, beneficia-se dos preços relativos das mercadorias , das diferenças culturais ent re os povos e t c , obtendo fartos lucros. Trata-se, como vimos, de acumulação estéril. Capita- lismo é, substancialmente, produção de mercadorias. Nesta linha, quando o comércio não está unido à realização da mercadoria produzida, mas limita-se a especular com a pro- dução, não se pode falar, impunemente , da existência de ca- pital ismo mercantil . No capitalismo, uma par te do capital total é empregada na esfera da circulação. Na transição feudalismo—capitalismo, par te do capital comercial aban- dona o caráter meramente especulativo, ingressa no circuito da produção ou realização de mercadorias e se dedica à tarefa de realizar o valor nelas contido, dadas as condições sociais e econômicas favoráveis, acima descritas. 49 Capitalismo tardio Outro equívoco consiste em supor a existência de capi- talismo tardio na América Latina (a expressão foi cunhada por Sombar t ) . O capital comercial, em nosso continente, não se l imitou a explorar os modos de produção preexistentes — afirmam os epígonos desta tese — mas teria desdobrado o âmbi to da circulação, que lhe é próprio , e invadido a esfera da produção, constituindo a economia colonial. Esta hipótese não suporta algumas observações, dent re elas a de que os conquistadores não dispunham de capitais expressivos, nem de experiência no r amo comercial. O capital comercial da época não se interessava pelos espaços vazios, mui to menos pela modesta e exótica produção ar tesanal de astecas e incas. Não havia o que explorar nesse sentido. A conquista, em semelhantes circunstâncias, não é empresa mercanti l . Os primeiros conquistadores, sobretudo na Nova Espanha (México), tiveram de organizar a produção, a princí- pio pa ra subsistência própria, poster iormente, descobertas as minas de prata , surgem pólos de desenvolvimento u rbano com produção mais diversificada. A mão-de-obra indígena foi empregada na mineração, em grande escala no Peru, em me- nor número no México. A atividade agrícola, quer de subsis- tência, quer de exportação, serviu-se do celeiro de mão-de- obra indígena. Os comerciantes, nestas regiões, não se empe- nha ram na atividade produtiva, quer na agricultura, quer na mineração, a não ser de maneira esporádica. Os comerciantes se interessavam por essas atividades, no entanto não foram os seus iniciadores. Viriam mais tarde , para intermediar as transações, financiar a produção (forne- cendo adiantamento em víveres, implementos etc. aos minei- ros, por exemplo), abastecer os mercados incipientes e esta- belecer o intercâmbio europeu-americano, à proporção que aumentava a demanda americana por produtos europeus de- corrente da expansão da fronteira agrícola e do setor mineiro . O capital mercantil , dessa maneira , não invadiu a produ- ção americana, mas dela foi complemento e interagiu com ela em alguns ramos, ra ramente abandonando a esfera da circulação, que lhe é própria . 50 Na América, a atividade agrícola, quer de subsistência, quer de exportação, serviu-se do celeiro de mão-de-obra indígena. Detalhe do mural "História da Independência Mexicana", mostrando a subjugação de trabalhadores indígenas no período colonial. 51 a dianteira da industrialização em massa e a sua indústr ia dominar ia os séculos XVII a XIX, declinando no século XX. As Américas, principalmente a América Latina, bem como a periferia européia, não escaparam à hegemonia exercida pelos países industrializados; entretanto, esta nova articula- ção nada tem a ver com feudalismo. Ao contrário, a nova divisão do trabalho, a nível internacional, não só reduzia os vestígios de formações sociais pré-colombianas como acele- rava a participação americana no mercado de matérias-pri- mas , produzidas nas fazendas, plantações e áreas minera- doras . Para as regiões latino-americanas as grandes fazendas ofereciam duas faces ao observador. Uma, voltada à produ- ção de excedentes para o mercado interno e, substancialmen- te, pa ra o mercado externo. Outra, revelando acentuada tendência para a autarcização. Este últ imo fenômeno ocorre durante o período de queda nas atividades de algumas regiões européias no século XVII (menciona-se até a "crise do século XVII") , caso da acentuada decadência do Império Espanhol . Nem sempre isto significou queda nas atividades latino-ame- As Américas tornaram-se fornecedoras de matérias-primas e consumidoras dos produtos industrializados, particularmente ingleses. Na foto, uma plantação de algodão para exportação, no vale do Mississippi, EUA. 54 ricanas, mas provocou alterações no r i tmo de crescimento e vinculações externas. Retomadas as atividades em volume ascendente no sé- culo da "Revolução Industr ia l" , as Américas, sobretudo as de expressão ibérica, especializaram as suas economias, tor- nando-se fornecedoras de matérias-primas e importando, pr imordialmente da Inglaterra, produtos industrializados. O tesouro americano e o capitalismo Há uma teoria que atr ibui ao ouro e à p ra t a americanos papel decisivo no processo de acumulação capitalista. Os metais preciosos ter iam acarretado a alta dos preços euro- peus e esta, por sua vez, teria estimulado a indústr ia , o co- mércio e a agricultura. É o fenômeno que o economista John Maynard Keynes denominou de "inflação nos lucros" (profit inflation). Os salários, por sua vez, não acompanharam os preços e a mais-valia obtida permitiu reinvestimentos e acumulação crescentes. Historiadores, como Pierre Vilar, replicam que os preços já estavam subindo quando os metais preciosos americanos começaram a chegar na Europa, via Sevilha. A relação preços —salários também não teria ocorrido de forma tão prejudi- cial aos assalariados. A expansão capitalista do século XVI é que incentivou a produção de metais preciosos, quer na Europa, quer na América. Em resumo, não é a moeda que faz o capitalismo, mas o capitalismo que faz a moeda. Cresce a produção de merca- dorias e, entre elas, a da mercadoria dinheiro. Aumenta a produção de metais preciosos, e esta atividade na América alimenta e desenvolve pólos de crescimento demográfico, econômico e t c . . . 55 6. observações finais Preferi encerrar este breve tópico com o t í tulo de "Observações Finais" para evitar a tentação de denominá-lo "Conclusão". O tema do livro ofereceu a ocasião para suscitar reno- vadas indagações, nunca para concluir peremptor iamente . O leitor paciente descobriu que o autor não recomenda, como fazem alguns, soluções que esquivam a luta de classes num específico contexto social, político e econômico e atri- buem ao "Comércio", à Moeda, ao "Espír i to", ao "Empresá- r io", a "gênese do capitalismo". Dentre estes adversários da luta de classes como cenário da transição, o conceito de "capital ismo mercanti l" é o mais sutil e apto a seduzir mui- tos historiadores. A produção de mercadorias é subst i tuída pela circulação e a mais-valia diluída num aspecto mais apra- zível do processo global. É a diferença entre os preços das mercadorias que, nessa concepção, ocupa o palco dos acon- tecimentos. A natureza do preço, do valor nele contido, deixa de consti tuir a questão decisiva. O capital mercantil, pa r te de um todo, é metamorfoseado em capitalismo mercantil, ou seja, passa a representar o todo. Procuramos, ao contrár io dessas teses, sustentar que o capital mercanti l não engendra a disponibilidade de mão-de- obra e o embrião do mercado interno emergente no feuda- lismo europeu, mas interage com essa mão-de-obra que não foi "escravizada" pelos senhores feudais. O " t raba lho l ivre" não é resultado do capitalismo e de suas "revoluções burguesas" , mas propicia requisitos para o capitalismo, quer produzindo para o mercado, quer ofertando mão-de-obra pa ra as manufaturas . 56 PIRENNE, H. Historia econômica y social de la Edad Media. México, Fondo de Cultura Econômica, 1960. POULANTZAS, Nicos. Hegemonia y dominación en el Estado moderno. Córdoba (Argentina), PyP, 1973. ROSTOVTZEFF, M. História de Roma. Rio de Janeiro, Zahar, 1961. SINGER, Paul. Curso de introdução à economia política. Rio de Janeiro, Forense, 1975. SIRINELLI, Jean. História das idéias políticas, v. I. Lisboa, Europa-América, 1970. SOMBART, W. El burguês. Madrid, Alianza Editorial, 1976. VÁRIOS. Do feudalismo ao capitalismo. Lisboa, Dom Quixote, 1971. VÁRIOS. El modo de producción feudal. Madrid, Akal Editor, 1976. WEBER, Max. La decadência de la antigua cultura. In: VÁRIOS. La transi- cián dei esclavismo al feudalismo. Madrid, Akal Editor, 1974. . Historia econômica general. México/Buenos Aires, Fondo de Cultu- ra Econômica, 1961. 60 cronologia Roma 230 — Invasões bárbaras ; godos (a par t i r de 230); fran- cos e alemães (a par t i r de 260); persas (a par t i r de meados do século III) . 306-337 — Imperador Constantino. Transferência da capital do Império pa ra o Oriente (330); aliança com a igreja cristã através do Edito de Milão (331). 379-395 — Imperador Teodósio I. Desmembramento do Im- pério em Impér io do Ocidente e Impér io do Oriente. 410 — Captura de Roma por Alarico. 455 — Roma é saqueada pelos vândalos. 476 — Queda do Impér io Romano do Ocidente. 493 — O rei dos ostrogodos, Teodorico, domina a Itália. O Ocidente europeu — o feudalismo 496 — Conversão de Clóvis, rei dos francos, ao crist ianismo. 653 — Os lombardos na Itália; em 653 convertem-se ao cristianismo. 732 — Carlos Martel impede a invasão á rabe da Europa ocidental. 771 — Carlos Magno é coroado rei dos francos. 800 — Carlos Magno é coroado Imperador . 814 — Morte de Carlos Magno e subseqüente desmembra- mento do Impér io — Tratado de Verdun (843). Seguem-se invasões do Ocidente pelos normandos , húngaros e t c , independentemente da tentativa de criação, por Oto, o Grande, do Santo Impér io Roma- no-Germânico. 61 Transição do feudalismo para o capitalismo Século XI — Recuperação do comércio e da indústria. A pr imeira cruzada. Século XII — Consolida-se a monarquia dos capetos na França. Desenvolvimento urbano . Arte gótica. Século XI I I — Predomínio do Papado. A quar ta cruzada e a conquista de Constantinopla. Criação das Ordens Mendicantes. Limitação do poder da realeza na Ingla- terra , com a Magna Carta (1215). Desenvolvimento da indústr ia e do comércio. Crescimento demográfico. Século XIV — A Guerra dos Cem Anos. 0 estabelecimento dos turcos na Europa. O pré-Renascimento italiano. Crises econômicas e sociais. Século XV — A Guerra das Duas Rosas abate a aristocracia inglesa. A Espanha expulsa os muçulmanos (1492) c o m - a tomada de Granada. Descoberta da América em 1492 po r Colombo. Século XVI — As grandes descobertas marí t imas e a colo- nização. A conquista do México e do Peru. O ouro e a p ra ta do Nova Mundo. A "Primeira Revolução Indus- tr ial" . As sociedades por ações. O Absolutismo. 62
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