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Guias e Dicas
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The Project Gutenberg eBook, A Paranoia, by Julio de Ma, Notas de estudo de Engenharia Informática

ENSAIO PATHOGENICO SOBRE OS DELIRIOS SYSTEMATISADOS

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 28/08/2010

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Baixe The Project Gutenberg eBook, A Paranoia, by Julio de Ma e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Informática, somente na Docsity! The Project Gutenberg eBook, A Paranoia, by Julio de Mattos This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: A Paranoia Author: Julio de Mattos Release Date: December 28, 2004 [eBook #14503] Language: Portugese Character set encoding: ISO-8859-1 ***START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PARANOIA*** E-text prepared by Miranda van de Heijning, Larry Bergey, and the Project Gutenberg Online Distributed Proofreading Team from images generously made available by the Bibliothèque nationale de France (BnF/Gallica) at http://gallica.bnf.fr A PARANOIA Julio de Mattos ENSAIO PATHOGENICO SOBRE OS DELIRIOS SYSTEMATISADOS _...Ci iroviamo proprio faccia a faccia col nudo querito della pura pazzia._ EUGENIO TANZI Lisboa Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão 5, Largo de Camões, 6 1898 A MEMORIA AMIGA DO PROFESSOR SOUSA MARTINS PREFACIO Ao passo que na sua maioria as doenças hoje estudadas pelos alienistas pertencem no fundo á pathologia interna, e só pelo predominio, mais apparente ás vezes do que real, dos seus symptomas psychicos se apropriaram a designação de _mentaes_, os delirios systematisados, esses, pela ausencia de caracteristicas lesões, pela falta de privativas causas determinantes e pela carencia de symptomas funccionaes objectivamente apreciaveis, constituem a verdadeira loucura, a psychose por excellencia, n'uma palavra, o proprio e irreductivel dominio da psychiatria. Isto é dizer que a observação clinica não póde, ella só, determinar a génese d'estes delirios, pois que o confronto dos dados psychicos com os somaticos e etiologicos é, no caso sujeito, impraticavel. Foi, todavia, pelo exclusivo exame do hypocondriaco, do perseguido, do ambicioso, que os alienistas buscaram até ha pouco surprehender a pathogenia dos delirios essenciaes. D'aqui o natural insuccesso dos seus trabalhos, melhor do que nunca evidenciado nos ultimos debates das sociedades psychiatricas de Paris e de Berlim, em que se não fez, por confissão dos proprios oradores, mais do que obscurecer e confundir o problema posto. Por outro caminho,--introduzindo no controvertido thema a criterio da evolução, seguiram, felizmente, na Italia contemporanea eminentes pshychiatras. Inquiridos clinicamente os delirios essenciaes nos seus symptomas e na sua marcha, uma coisa resta ainda fazer para os interpretar: o estudo do delirante, considerado, não em si mesmo, como individuo, ou nos seus ascendentes immediatos, como membro de uma certa familia, mas anthropologicamente na sua vasta ancestralidade, como representante de uma especie em plena evolução. Na sua marcha normal não segue o Espirito ao acaso, mas _progressivamente_ por linhas de ideação desde muito entrevistas, senão inteiramente definidas; quem nos affirma que na sua marcha anormal elle não segue _regressivamente_ pelas mesmas prefixas e inflexiveis linhas ideativas? Se a dissolução da memoria se apagam primeiro os factos recentes e só depois os remotos, primeiro os nomes e só por ultimo os adjectivos e os verbos; se na dissociação da motricidade se perdem em primeiro logar os actos conscientes e só por fim os habituaes e instinctivos; se na [1] Pinel, _Traité médico-philosóphique sur l'aliénation mentale_, pag. 165. Sob diversa nomenclatura, Esquirol propagou, sem as alterar no fundo, as idéas dos seus antecessores. Designando pelo termo infeliz de _monomania_ o grupo dos delirios parciaes, acceita duas variedades ou especies: uma, depressiva, a _lypemania_, outra, expansiva, a _monomania propriamente dita_. A _lypemania_, que não é senão a _tristimania_ de Rusch ou a melancolia de fórma depressiva de Pinel, comprehende entre outras variedades o delirio de perseguições, ainda então innominado; _a monomania propriamente dita_, que equivale á _aménomania_ de Rusch e á melancolia de fórma expansiva de Pinel, é por elle definida «um delirio parcial ou monomania alegre», e comprehende os delirios de grandezas, não só o idiopatico, mas, como se vê nos casos que aponta, o symptomatico da paralysia geral, ao tempo ainda não descripta. Recebendo a influencia tradicional dos seus predecessores, Esquirol transmittiu-a, reforçada pela sua grande auctoridade, aos alienistas que lhe succederam na primeira metade d'este seculo. É documento d'isso o extraordinario successo da doutrina das monomanias, aliás psychologicamente erronea, clinicamente infecunda e juridicamente perigosa. No seu _Tratado das Doenças Mentaes_ affirma Esquirol que o termo _monomania_ adquiriu direitos de cidade pela, introducção no diccionario da Academia Franceza, e felicita-se por isso. E, todavia, esse termo é confuso, porque no proprio livro do mestre nos apparece com significações diversas, ora designando, como vimos, delirios parciaes, ora obsessões e impulsos, isto é, um conjuncto de factos heterogeneos e de significação clinica diferente. Primitivamente creada para designar o mesmo que a melancolia dos antigos--uma affecção parcial do entendimento, acompanhada quer de tristeza, quer de expansão, a palavra _monomania_ foi insensivelmente generalisada pelo proprio Esquirol no sentido de exprimir uma doença, ou desvio parcial de qualquer faculdade: ao lado de uma _monomania intellectual_, tem logar uma _monomania affectiva_ e uma _monomania impulsiva_. Delirios systematisados, emoções procedentes de idéas obsediantes, impulsos cegos e irresistiveis, tudo entra no quadro da monomania--o mais amplo, diz Esquirol, de toda a classificação. De sorte que, se os antigos, desviando a palavra _melancolia_ do significado que Areteu lhe dera, chamaram a um só grupo delirios do caracter diverso e lançaram assim na sciencia uma grande confusão, Esquirol não fez senão augmental-a pela creação das monomanias. Como quer que seja, o immenso e, por innumeros titulos, justificado prestigio d'este observador fez correr a palavra e a doutrina. Sem duvida, objecções foram bem cedo erguidas contra ambas por Falret, Delasiauve e outros, que negaram a existencia de delirios circumscriptos a uma só idéa, affirmados na palavra, ou pozeram em relevo a solidariedade das funcções mentaes, contradictada pela doutrina. «Todas as faculdades, escrevia Falret em 1819, participam em maior ou menor grau das desordens intellectuaes; de resto, sempre que uma idéa falsa invade a intelligencia, o seu poder contagioso exerce-se sobre as outras, de sorte que sob um delirio preponderante véem-se estabelecer delirios secundarios e derivados que não tardam a invadir todo o intendimento»[1]. Pelo seu lado, Delasiauve escrevia em 1829: «Póde acaso limitar-se o circulo d'acção em que uma idéa dominante deve exercer ou realmente exerce a sua influencia?» E mais tarde ainda: «O delirio dos monomanos não é nunca tão circumscripto como se pretendeu; a verdadeira monomania é rarissima!»[2] Todavia, a criticas d'esta ordem redarguiam Esquirol e os seus discipulos que nem a palavra _monomania_ significava unidade de delirio, nem a doutrina necessariamente implicava que a lesão de uma faculdade não podesse fazer-se sentir sobre as outras; para elles, a monomania designava uma lesão parcial e preponderante, mas não unica e independente, das faculdades. [1] Falret, _Des maladies mentales_ [2] Delasiauve, _Les Pseudomonomanies_ «Tem-se negado, escrevia Esquirol, a existencia dos monomaniacos, dizendo-se que os alienados não deliram nunca sobre um só objecto, mas que sempre n'elles há perturbações da sensibilidade e da vontade. Mas, se assim não fosse, os monomaniacos não seriam loucos.»[1] Pelo seu lado, Marcé escrevia: «Nunca os que crêem na existencia das monomanias pensaram em negar a solidariedade das faculdades intellectuaes no monomaniaco. Reconhecendo que o delirio é raras vezes limitado a um só ponto, crêem, no emtanto, dever conservar as monomanias a titulo de grupo distincto.»[2] [1] Esquirol,_Des maladies mentales,_ tom. II, pag. 4. [2] Marcé, _Traité pratique des maladies mentales,_pag. 351. Voltemos, porém, ao nosso restricto assumpto. A _monomania intellectual_ de Esquirol, caracterisada por um delirio limitado de natureza alegre ou triste, não é senão a _melancolia_ dos antigos medicos. Para aquelle, como para estes, era a extensão dos conceitos falsos o criterio para classificar as loucuras em que ha compromisso da intelligencia: de um lado, a mania, manifestando-se por um delirio geral e dispersivo, do outro, a monomania, symptomatisada por um delirio parcial e fixo. Se a estas duas especies accrescentarmos a _idiotia_ e a _demencia,_ entrevistas por Pinel, mas só definidas por Esquirol, a _estupidez_ descripta por Georget, e a _paralysia geral,_ estudada por Calmeil, encontramo-nos em face da classificação das psychoses que até ao meiado do nosso seculo a França inteira adoptou. Ora, dentro d'esta classificação, não teem logar distincto e proprio, como se vê, os delirios systematisados: o de perseguições é descripto como uma variedade lypemaniaca, e o de grandezas é confundido com as manifestações symptomaticas de outras doenças mentaes. II--PHASE ANALYTICA De Lasègue a J Falret e de Griesinger a Snell e Sander--O delirio de perseguições; a megalomania; o delirio dos perseguidores; a Verrücktheit secundaria; a Verrücktheit originaria--Começo de interpretação pathogenica. Foi Lasègue em 1852 quem primeiro destacou do cahos da melancolia o delirio de perseguições para eleval-o á dignidade de «especie pathologica entre as alienações mentaes». No seu memoravel trabalho sobre este assumpto, o eminente alienista começa por notar que as idéas de perseguição apparecem como episodio symptomatico e a titulo de phenomeno incidente no _alcoolismo_, nas _loucuras provocadas por certas substancias narcoticas_ e em muitos _delirios parciaes_; na doença, porém, que elle descreve pela primeira vez essas idéas não são um syndroma fortuito, mas um facto constante e essencial, um phenomeno preponderante e fixo. A nova psychose tem, de resto, como titulos á autonomia nosographica, symptomas especiaes e uma evolução caracteristica. Estudando a marcha do delirio de perseguições, Lasègue reconhece-lhe dois periodos: um, _de incubação,_ consistindo n'um mal-estar indefinido e vago, mas absorvente e inquietante, em que o doente se suspeita victima de hostilidades cuja origem não sabe ainda determinar; outro, _de estado_, em que o delirio definitivamente se installa e systematisa. Ao principio o doente não exprime a idéa de uma perseguição senão com uma _certa reserva_, hesitantemente, tentando ainda provar a si mesmo que ella é _absurda_; mais tarde, porém, a duvida esbate-se e o systema delirante apparece definitivamente formado. A duração do primeiro d'estes periodos é essencialmente variavel: tão rapida em alguns doentes _que a custo se lhe surprehende o primeiro grau_, prolonga-se e arrasta-se em outros, que só _muito gradualmente_ e por uma _progressão bem sensivel_ e bem apreciavel attingem a construcção do seu romance delirante. Do mal-estar caracteristico do primeiro periodo diz Lasègue que elle _se não parece em nada com a inquietação ainda a mais viva do homem normal_; é indefinivel, accrescenta, como _os symptomas que annunciam e fazem presentir a invasão das doenças graves_. O periodo de estado, esse, é como a _floração_ da psychose: o _romance systematico_ desenvolve-se pelo reconhecimento dos perseguidores--a policia, o jesuitismo, os magnetisadores, a maçonaria, os physicos, etc. Passando ao estudo dos symptomas, Lasègue põe em relevo o papel que desempenham na doença as falsas sensações auditivas. «O orgão do ouvido, escreve o eminente professor, fornece as primeiras sensações sobre que se exerce a intelligencia pervertida. O doente ouve retalhos de conversas que interpreta e se applica; os mesmos ruidos que naturalmente se produzem,--a passagem de um trem, os passos de uma pessoa que sobe ou desce uma escada, uma porta que se abre ou fecha, são objecto dos seus commentarios».[1] Fallando, em seguida, das allucinações auditivas, declara-as _as unicas compativeis com o delirio de perseguições;_ e accrescenta: «Basta que um doente accuse visões para exemplos alguns interessantes vesanicos primeiro hypocondriacos, depois perseguidos e por ultimo ambiciosos. Entre os casos de Pinel ha o de um alienado que durante oito annos delirou como perseguido, crendo-se em constante imminencia de morte por envenenamento, não ingerindo senão alimentos que furtava na cosinha do asylo, e que acabou por crêr-se igual ao Creador e soberano do mundo; entre as observações de Esquirol figura a de um doente que, excessivamente inquieto sobre o seu estado de saude durante mais de dois annos, entra em seguida no caminho das perseguições, imaginando-se objecto de tentativas de envenenamento por parte da familia, e termina, decorrido um anno, por crêr-se filho de Luiz XVI. Mas, por valiosas e instructivas que sejam em si mesmas, estas observações não desempenham nos livros de Pinel e de Esquirol mais que um papel episodico e sem alcance. Morel foi indiscutivelmente o primeiro a vêr n'uma tal successão de delirios, não apenas um curioso accidente, mas uma verdadeira lei de evolução vesanica, segundo a qual a passagem regular da hypocondria ao delirio de perseguições e d'este ao delirio ambicioso seria um facto constante nos alienados hereditarios. D'aqui a affirmar a existencia de uma psychose degenerativa de que os delirios hypocondriaco, persecutorio e ambicioso, succedendo-se, não constituiriam senão _étapes_ ou phases evolutivas, vae uma pequena distancia que Morel percorreu, como veremos, desde a publicação dos _Estudos Clinicos_ em 1853 até á do _Tratado das Doenças Mentaes_ em 1860. Outros auctores franceses, entre os quaes Renaudin, Broc e Dagonet, notaram a successão de delirios diversos, nomeadamente de perseguições e de grandezas, n'um mesmo alienado; todavia, por desconhecimento ou incomprehensão do alcance dos trabalhos de Morel, nenhum d'elles se preoccupou com a interpretação do phenomeno. Só em 1869 Foville, retomando a questão na sua excellente memoria sobre a _Loucura com predominio ao delirio de grandezas_, procurou interpretar, sobretudo, a passagem--tão frequentemente observada agora que a attenção dos clinicos incidia sobre ella--do delirio de perseguições ao de grandezas. Marcando na historia dos delirios systematisados um periodo importante, o trabalho de Foville merece deter-nos um momento. Depois de ter mostrado que o delirio de grandezas póde apparecer a titulo episodico na maioria das doenças mentaes e com mais ou menos relevo constituir um syndroma de algum dos seus periodos evolutivos, Foville estabelece que elle se torna preponderante e reveste inconfundiveis caracteres semeioticos em dois casos: na loucura parcial e na demencia paralytica. Pondo de parte, por alheio ao nosso estudo, este ultimo caso, vejamos o que Foville pensava do primeiro. A loucura parcial, que importa não confundir com a monomania de Esquirol, representaria, segundo Foville, as alienações caracterisadas pelo conjuncto d'estes caracteres: presença de um delirio systematisado, ausencia de um estado habitual depressivo ou expansivo, existencia de perturbações sensoriaes, e chronicidade. O delirio de perseguições descripto por Lasègue é um dos representantes d'este grupo; um outro seria, segundo Foville, a _megalomania_, que elle define como um delirio de grandezas logicamente coordenado, associando-se a allucinações chronicas e, no seu periodo de estado, a idéas de perseguição. Em rigor, nem o termo é novo, porque antes o tinham empregado, entre outros, Broc e Dogonet, nem a definição da doença absolutamente original, porque desde Esquirol se havia reconhecido a existencia de um delirio ambicioso idiopatico. O que de original e novo existe no trabalho de Foville é a maneira de estudar a génese do delirio de grandezas e as relações d'elle com a doença de Lasègue. Segundo Foville, na loucura parcial, de que são escólas o delirio de perseguições e a megalomania, toda a symptomatologia essencial se reduz a concepções delirantes e erros sensoriaes, podendo estas duas ordens de factos manter entre si relações diversas, que importa muito considerar para a comprehensão da pathogenia. Ou as concepções delirantes se apresentam primeiro, apparecendo as illusões e allucinações como um facto secundario da doença, ou, pelo contrario, a esphera sensorial é primitivamente affectada e só depois irrompem as concepções chimericas. Ora, segundo Foville, não é de modo nenhum indifferente para a natureza mesma da doença que a successão das duas ordens de symptomas se realise n'um sentido ou n'outro, porque o allucinado-delirante é, em regra, um perseguido que póde tornar-se megalomano, ao passo que o delirante-allucinado é mais vezes um megalomano que póde vir a ter idéas de perseguição. A razão d'isto, no dizer de Foville, vem de que na loucura parcial as allucinações primitivas são, como estabelecera Lasègue, preponderantemente, senão exclusivamente as do ouvido, de um caracter, em regra, penoso ao principio e de molde, portanto, a gerarem um delirio depressivo. Ora, sendo a hypothese do allucinado-delirante mais frequente que a do delirante-allucinado, é tambem mais vulgar o perseguido-megalomano que o megalomano-perseguido. Posto isto, que serve para mostrar que não é meramente accidental a passagem de um delirio a outro, Foville, estreitando mais o assumpto, deriva á explicação do modo intimo por que ella se realisa. A transição (mais frequente, como foi dito) do delirio de perseguição ao de grandezas opera-se, ao vêr de Foville, por um processo logico. «Depois, diz elle, de terem por mais ou menos tempo attribuido as proprias allucinações a inimigos desconhecidos, contentando-se com explical-as por uma palavra mais ou menos obscura e mysteriosa, certos lypemaniacos allucinados dizem a si mesmos: Factos d'esta ordem não podem passar-se, no estado social em que vivemos, sem a intervenção de pessoas influentes e altamente collocadas; essas só, portanto, são as instigadoras dos nossos tormentos. Outros, ao contrario, reconhecendo que não succumbem nunca de um modo completo aos perigos de que se sentem cercados; suppõem ter amigos occultos, mas de um grande poder, que os protegem. Esta ordem de idéas imprime desde então o seu cunho ao conjunto das concepções e allucinações: os doentes fallam de grandes personagens que vêem por toda a parte, desconhecem a identidade real dos individuos, que os cercam e crêem que imperadores, imperatrizes e principes os visitam ou lhes enviam mensagens. No meio do delirio melancolico as idéas de grandeza adquirem realmente uma importancia preponderante. Mas as coisas podem ir mais longe ainda. Impressionados pela desproporção entre a sua posição burgueza e o poder de que devem dispôr os seus inimigos para os attingirem, a despeito de tudo; entre o apagado papel que desempenham no mundo e os moveis imperiosos que podem explicar o encarniçamento com que são perseguidos, alguns d'estes doentes acabam por a si proprios perguntarem se realmente são tão pouco importantes como parecem. Uma nova perspectiva se abre diante do seu atormentado espirito: não é já a dos outros, mas a propria personalidade que aos seus olhos se transforma. Para que os persigam d'este modo, dizem elles, é preciso que um alto interesse se dê, e isso só se comprehende porque elles façam sombra a gente rica e poderosa, porque tenham, elles proprios, direito a uma fortuna e a uma posição de que fraudulentamente os despojaram, porque pertençam a uma classe elevada de que foram afastados por circumstancias mais ou menos mysteriosas, porque não sejam seus verdadeiros paes os que como taes consideram, porque pertençam, emfim, a uma alta estirpe, as mais das vezes real»[1]. [1] Foville, _La folie avec prédominence du délire des grandeurs_, pag. 345. E accrescenta: «Estas idéas terão, sobretudo, tendencia a produzir-se nos casos em que, já antes de doente, o individuo teve de soffrer no seu orgulho ou nos seus interesses pelo facto da irregularidade ou do mysterio do proprio nascimento. Assim, temos notado que esta fé n'uma origem illustre, que esta crença n'uma imaginaria fortuna é relativamente frequente nos _filhos naturaes_ que véem a cahir na loucura. São elles principalmente os preparados para ás idéas de perseguição juntarem um novo romance em que dominam as concepções de grandeza, as substituições ao nascer, as confusões de pessoas»[1]. [1] Foville, _Loc. cit._, pag. 346. Como se vê, Foville não faz senão seguir a orientação psychologica de Lasègue, que explicava pela intervenção de um raciocinio a passagem, no delirio de perseguições, do periodo prodromico ao de estado. Um processo logico, essencialmente deductivo e syllogistico preside tambem, segundo Foville, á génese das idéas ambiciosas que derivam de um delirio persecutorio. Mas não é este, reconhece-o Foville, o unico modo por que o delirio de grandezas póde produzir-se; algumas vezes succede que as concepções ambiciosas se installam primitivamente, dando-se então o caso de surgirem depois idéas de perseguição, por _uma sorte de propagação regressiva que, ao fim de um certo tempo, acaba por nivelar as situações._ Qual é agora o mecanismo de transição? «É difficil, escreve Foville, crêr-se um doente na posse de direitos á fortuna e ao mando, figurar-se descendente de uma familia illustre, e não se sentir vexado pela modestia da posição que occupa ou pela exiguidade dos recursos de que dispõe. N'isto vê elle um signal de injustiça, que attribue á acção de inimigos poderosos; crê-se, pois, victima de manobras hostis e fabrica assim um systematico delirio de perseguições, secundario agora e consequencia das idéas de grandezas»[1]. [1] Foville, _Loc. cit._, pag. 347. electro-magnetismo, o perseguido recolhe-se por vezes e pensa: Como podem em pleno seculo XIX produzir-se factos d'esta natureza? É preciso admittir no fundo de tudo isto uma energica vontade superior, a de um alto personagem, a de um principe ou, talvez, de um rei! Deve ter sido necessaria, com effeito, para explicar o meu caso uma auctoridade verdadeira, que só póde existir nas mãos de millionarios, de ministros e de imperadores: quem ordenou tudo é, pois, um grande senhor ou um notavel personagem. Um outro perseguido pensará: Armam-me redes, mas eu evito-as; expõem-me a coalisões formidaveis, mas eu saio-me bem d'ellas; attentam contra a minha vida, mas eu resisto; alguem, pois, de um alto poder vela por mim e me protege; esse alguem é o chefe do estado. Eis, a partir d'aqui, toda uma ordem nova de idéas imprimindo uma outra direcção ás concepções delirantes e ás allucinações. O perseguido não cessa desde então de fallar em ministros, em familias reinantes, na côrte pontifical, desconhecendo o caracter real das pesssoas que o cercam e affirmando que Napoleão lhe envia mensagens, que Trochu o chamou, que Thiers vae recebel-o, que tal ou tal princesa vem visital-o. N'uma palavra, encontramo-nos em presença de idéas de grandeza pathologicamente juxtapostas, porque as perseguições não cessaram, os inimigos existem ainda»[1]. [1] Legrand du Saulle, _Obr. cit._, pag. 84. «Acabamos de constatar, continua Legrand du Saulle, erros grosseiros sobre a personalidade dos outros; pois vamos vêr que uma nova transformação se opera agora e que erros mais grosseiros ainda vão dar-se d'esta vez sobre a personalidade de perseguido. Sigamos um pouco o raciocinio do doente: As operações dos meus inimigos, pensa elle, são tão desleaes como persistentes e perigosas; os meus inimigos são infatigaveis e poderosos; mas que interesse podem elles ter em me mortificarem d'este modo, a mim, homem ignorado, obscuro ou collocado n'uma situação modesta? O contraste entre os perseguidores e a victima é dos mais notaveis. Quem sou eu com effeito? Talvez um ser menos apagado do que se pensa, mais importante do que se imagina, mais temivel do que se suppõe. E nem póde deixar de ser assim. Enchem-me de humilhações odiosas, dirigem contra mim os mais tenebrosos attentados; ha, pois, um interesse em fazel-o. Esse interesse parte de millionarios, duques, principes ou imperadores, e é, portanto, dos mais consideraveis. Mas então faço eu sombra a alguem e esse alguem roubou-me necessariamente o meu nome, o meu titulo, a minha fortuna, o meu logar social, a minha corôa. Eu não sou, portanto, o homem humilde sob cuja mascara vivi até hoje: fui mysteriosamente posto de lado, iniquamente esbulhado; o nome de que uso não é o meu, os que teem feito de meus paes não são da minha familia; eu sou o neto de Luiz XVI ou o filho de Napoleão, sou o duque de Orleans ou chamo-me D. Carlos»[2]. [2] Legrand du Saulle, _Obr. cit._, pag. 85. Para não deixar de seguir passo a passo Foville, que, como vimos, notara a relativa frequencia do delirio ambicioso nos perseguidos _filhos naturaes_, Legrand du Saulle accrescenta: «Se o perseguido não tem um acto de nascimento regular, se alguma vez soffreu pelo facto de uma situação indecisa, de uma paternidade não confessada ou de uma educação mysteriosa, se o seu orgulho foi torturado ou lesada a sua fortuna, com que perniciosos elementos não crescerá o seu delirio, com que apparencias de verosimilhanças não fallará elle a todos da sua imaginaria fortuna, do seu nascimento illustre?!»[1] [1] Legrand du Saulle, _Obr. cit._, pag. 86. Como Foville e Morel, Legrand du Saulle refere casos em que no delirio de perseguições se observam concepções hypocondriacas; estas, porém, como as de grandeza, não constituem para elle uma phase evolutiva, mas apenas um _acompanhamento_ ou _complicação_ da doença de Lasègue. Uma parte nova e valiosa do trabalho de Legrand du Saulle é a que se refere ao diagnostico differencial entre o delirio de perseguições idiopathico e o que, como syndroma, apparece na demencia senil, na paralysia geral, no alcoolismo subagudo e nas intoxicações pelo chumbo e pelo sulfureto de carbone. Não terminaremos esta rapida analyse do livro de Legrand du Saulle sem notar que elle soube pôr em relevo dois factos interessantes, ulteriormente notados por quantos se teem occupado d'este assumpto: a existencia em muitos perseguidos de allucinações auditivas bilateraes de caracter differente--vozes benevolas d'um lado, vozes hostis do outro, e a tendencia d'estes doentes á formação de _neologismos_ e de um incomprehensivel vocabulario privativo de cada um. * * * * * Até aqui os trabalhos francezes. Vejamos agora, retrocedendo um pouco na ordem dos tempos, de que maneira os psychiatras allemães comprehenderam os delirios systematisados. Foi Griesinger o primeiro entre elles a occupar-se d'este assumpto no seu _Tratado de Doenças Mentaes_ cuja apparição remonta a 1845, mas que só vinte annos depois veio a ser conhecido em França pela traducção Doumic. N'esse livro, por muitos titulos notavel, descreve o eminente professor de Zurich, sob a denominação de _Verrücktheit_, os delirios parciaes que alguns annos mais tarde Lasègue e Foville haviam de elevar, dando-lhes nomes privativos, á cathegoria de especies em nosographia mental. Se bem que abreviada e n'um ou outro ponto confusa, a descripção de Griesinger abrange todos os pontos essenciaes da symptomatologia dos perseguidos e megalomanos, como facilmente se ajuizará pelas transcripções que seguem. Referindo se ás concepções que são o nucleo mesmo do delirio e o seu mais apparente symptoma, Griesinger escreve: «São umas vezes idéas activas, exaltadas, maniacas; o doente occupa uma posição elevadissima e tem um grande poder: é Deus, as tres pessoas da Santissima Trindade, reformador do Estado, rei, um grande sabio, um propheta, um enviado de Deus ou descobriu o movimento perpetuo, é o dominador de toda a natureza e conhece os elementos de todas as coisas, etc. Outras vezes são idéas passivas: os doentes crêem-se lesados, dominados, submettidos ao poder d'outrem; julgam-se perseguidos, victimas de tramas hostis; mysteriosos inimigos atormentam-nos pela electricidade, os maçonicos fazem lhes mal, são possessos do diabo, estão condemnados a supplicios eternos, e roubados nos seus bens mais caros, etc.»[1] [1] Griesinger, _Traité des maladies mentales,_ trad. franceza, pag. 386. Occupando-se dos erros psycho-sensoriaes, escreve: «As illusões e allucinações em nenhuma outra fórma de loucura são tão frequentes como na _Verrücktheit;_ em grande numero de casos são ellas principalmente que alimentam e entreteem o delirio. Muitas vezes os doentes conversam com as vozes que escutam, ou discutem com ellas, entregando-se então a accessos de colera»[1] [1] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 388. Sobre o caracter absorvente d'estes delirios e sobre as transformações de personalidade, diz Griesinger; «Involuntariamente o alienado refere tudo ao seu delirio, e é d'este ponto de vista que julga todas as coisas ... As concepções falsas relativas ao proprio Eu chegam a attingir um elevadissimo grau, a partir do qual o doente não considera as coisas do mundo externo senão de um modo inteiramente pervertido ... Alguns d'estes doentes parecem crêr que a sua verdadeira personalidade anterior deixou de existir»[2] [2] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 387. Sobre a necessidade do _neologismo_ nos delirios systematisados de uma longa duração, escreve o eminente alienista: «Por vezes a linguagem ordinaria não basta ao doente para exprimir o proprio pensamento, pelo que construe, ao menos para traduzir as suas concepções delirantes, um vocabulario especial, que elle crê ser a linguagem primitiva, a linguagem dos ceus»[3]. Ainda a proposito da exteriorisação do delirio, Griesinger nota que «por vezes o doente occulta cuidadosamente o seu systema geral de absurdos»[4]. [3] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 388. [4] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 388. Sobre o estado affectivo d'estes delirantes exprime-se assim o professor allemão: «Nunca estes doentes tomam parte, como outr'ora, nas coisas do mundo externo, ou são capazes de amar e odiar como antes; podem morrer-lhes os paes e os amigos, póde ser-lhes subtrahido o que mais estimavam, póde o mais terrivel acontecimento incidir-lhes sobre a familia sem que elles sintam mais que uma ligeira emoção, se alguma sentem. Um só ponto ha em que podem ser ainda emocionados, que póde abalar-lhes promptamente os sentimentos e provocar uma forte reacção da vontade: procurem-se combater pelo raciocinio as suas idéas fixas e logo elles se irritarão e entrarão em colera; acariciem-se, pelo contrario, as suas concepções e elles mostrar-se-hão contentes»[1]. [1] Griesinger,_Obr. cit._, pag. 388. Crêmos que as citações precedentes bastam para demonstrar que Griesinger conheceu intimamente os perseguidos e ambiciosos. A descripção que sua memoria sobre o delirio de perseguições, Lasègue foi conduzido pela ulterior observação clinica dos factos a modificar uma das affirmações que n'esse trabalho fizera. Assim, tendo escripto em 1852 que os perseguidos supportam resignadamente todos os seus martyrios--a ponto, dizia então, de não ter visto um só reagir por um acto de vingança, Lasègue constatou mais tarde a existencia de muitos que se apresentam armados para a lucta, represaliando energicamente, como Sandon, como Verger, como Teulot, as suppostas perseguições. Perito em mais de uma ruidosa questão medico-legal determinada pelas violencias d'esta ordem de doentes, o eminente professor foi ainda, elle proprio, victima das aggressões brutaes de um d'elles, que o appellidava _chefe dos alienistas alienisantes_. Modificando as suas primitivas idéas, o celebre psychiatra achou que o delirio de perseguições comporta duas variedades, correspondendo aos modos de reacção dos doentes: uma _passiva_, a mais commum, representada pelos perseguidos que apenas se defendem, fugindo ao convivio, mudando de logares, tomando nomes suppostos, cosinhando os proprios alimentos, queixando-se ás auctoridades, barricando-se dentro dos seus aposentos, suicidando-se mesmo; outra _activa_, representada pelos que acceitam a lucta e respondem ao mal com o mal, calumniando, ferindo, matando até. Aos doentes d'esta ultima cathegoria deu Lasègue o nome, depois consagrado, de perseguidos-perseguidores, consignando que a explicação do seu modo especial de reagir deve ser pedida, não a condições privativas do delirio, mas ao caracter moral preexistente á vesania. Pondo no estudo da variedade _activa_ do delirio de perseguições o mesmo espirito de analyse que desenvolvera na creação da fórma _passiva_ ou commum, Lasègue fez a proposito as seguintes indicações de uma justeza clinica indiscutivel: que os perseguidos-perseguidores chegam á personificação do seu delirio em virtude de circumstancias accidentaes ou de factos sem importancia, mas exactos, que determinaram a sua antipathia por um dado individuo; que taes circumstancias ou factos reaes não são, em geral, recentes, mas antigos e evocados pela memoria, incessantemente occupada na revivescencia do passado; emfim, que os doentes, uma vez achado o seu perseguidor, não o esquecem mais, não o abandonam, nem o substituem, quando mesmo factos ulteriores e de maior valia justifiquem sentimentos de odio e de vingança contra outros individuos. Na escolha do perseguidor evidenceiam os perseguidos activos a mesma critica futil que os passivos demonstram na determinação dos factos que apontam como provas de perseguição: uma pedra achada á porta, um lençol esquecido na varanda de um visinho, a tosse de um sujeito que passa. De resto, Lasègue observou que, excepção feita do modo de reacção delirante, perseguidos activos e passivos se comportam identicamente, offerecendo o mesmo quadro de symptomas e a mesma evolução pathogenica. Creando a variedade _activa_ do delirio de perseguições, o notavel professor melhorou, pois, completando-a, a sua primitiva descripção clinica d'esta psychose, sem, todavia, a alterar na essencia; de facto, a unidade da doença persistiu, não tendo alcance nosologico, mas apenas medico-legal, o reconhecimento das duas variedades. Ulteriores trabalhos, porém, vieram quebrar, dentro da propria França, essa unidade do delirio de perseguições. Notou, com effeito, J. Falret em 1878 que ha entre os perseguidos activos ou perseguidos-perseguidores duas cathegorias de doentes que profundamente divergem; symptomas, evolução, etiologia--tudo n'elles é differente. Uns, em verdade (e são esses os que Lasègue notou), apenas no modo de reacção delirante se separam do typo classico dos perseguidos passivos, sendo-lhes em tudo o mais similhantes: nos symptomas, porque, como estes, offerecem idéas systematicas de perseguição alimentadas por erros sensoriaes constantes, sobretudo por allucinações auditivas; na marcha, porque, como os perseguidos communs, podem soffrer a alteração de personalidade caracterisada clinicamente pela passagem do delirio de perseguições, ao de grandezas; na etiologia, emfim, porque teem uma historia ancestral e pregressa identica á dos perseguidos vulgares. Com razão, portanto, fez Lasègue d'estes perseguidos activos os representantes apenas de uma variedade clinica do delirio de perseguições. Outros, porém, não offerecem do quadro d'esta psychose senão as idéas systematisadas de perseguição, divergindo em tudo o mais: na symptomatologia, porque as suas concepções morbidas não se apoiam em erros sensoriaes; na marcha, porque nunca o seu delirio se transforma, n'um sentido ambicioso; na etiologia, emfim, porque a sua historia ancestral e anamnestica não é a dos outros perseguir, dos, activos ou passivos, mas a dos degenerados hereditarios. A doença de Lasègue não comporta esta cathegoria de perseguidos-perseguidores; forçoso é, pois, no dizer de Falret, acceital-os como representantes de uma outra _especie_ nosographica. Pottier desenvolve no seu _Estudo sobre os alienados perseguidores_ as idéas do eminente clinico de Salpêtrière, seu mestre, insistindo no diagnostico differencial entre estes vesanicos e os outros perseguidos. A proposito da etiologia escreve: «Estes doentes, em vez de apresentarem desde a juventude um caracter desconfiado ou de passarem pela phase de hypocondria que muitas vezes precede o delirio de perseguições ordinario, teem quasi sempre manifestado na infancia, na adolescencia ou na idade adulta alguns dos symptomas physicos e moraes attribuidos hoje aos alienados hereditarios: alterações de caracter, desigual desenvolvimento das funcções intellectuaes, faculdades eminentes ao lado de enormes lacunas, accidentes nervosos ou perturbações mentaes passageiras, na puberdade, existencia movimentada, irregular, vagabunda, perversões genitaes e outras. O passado d'estes doentes é, n'uma palavra, não o dos perseguidos classicos, mas o dos alienados hereditarios»[1]. [1] Pottier, _Ètude sur les aliénés persécuteurs_, pag. 3 A proposito da ausencia de allucinações n'estes doentes, diz Pottier: «Imaginou-se que as allucinações auditivas, escapando a uma observação superficial, seriam encontradas n'estes doentes por um exame escrupuloso. Não é assim, porém. Nós crêmos, ao contrario, que, na direcção actual das idéas, se teem admittido allucinações não demonstradas ou se teem tomado como allucinações simples phenomenos de interpretação delirante, illusões ou mesmo impressões procedentes do mundo exterior e realmente percebidas pelos doentes, cuja acuidade sensorial se encontra muitas vezes exaggerada»[2]. [2] Pottier, _Obr. cit._, pag. 38. Sobre a evolução do delirio n'estes doentes, diz ainda Pottier: «Ha periodos de remissão prolongada e de intensa exacerbação, mas nenhuma evolução progressiva ... Estes alienados são, em regra, muito orgulhosos, mas não chegam, como os outros perseguidos, á megalomania, ao delirio de grandezas, emfim, a uma verdadeira transformação da personalidade»[1]. [1] Pottier, _Obr. cit._, pag. 39. A estas notas differenciaes junta Pottier uma outra: a existencia, nos doentes de que nos occupamos, de accidentes cerebraes, congestivos ou convulsivos, produzindo-se a largos intervallos. «Observem-se attentamente, diz, o auctor, estes doentes durante o curso da sua vida, estudem-se as observações já publicadas, e chegar-se-ha a verificar que, nos perseguidores lucidos, accidentes cerebracs graves se dão de tempos a tempos e que, as mais das vezes, elles morrem cerebralmente, quer por um ataque, quer por influencia de lesões consecutivas»[2]. [2] Pottier, _Obr. cit._, pag. 41. Ainda no capitulo do diagnostico, o mais completo do trabalho que vimos citando, observa Pottier a extrema facilidade com que os perseguidores conseguem fazer perfilhar as suas idéas por um grande numero de pessoas, chegando mesmo a interessar em sua defeza a propria imprensa. A explicação d'este _contagio delirante_ procede sobretudo, segundo Pottier, da convergencia d'estes dois factos: de um lado, a intelligencia de ordinario muito viva d'estes doentes e a sua incansavel actividade; de outro lado, o colorido verosimil do seu delirio, que não é em si mesmo absurdo, que se não apoia em estados allucinatorios, mas que tem por base factos reaes, embora morbidamente interpretados, e circumstancias possiveis, cuja veracidade não é facil contestar ou mesmo pôr em duvida. Os _litigantes_ ou _processomanos_ constituem a mais importante cathegori d'estes doentes; uma outra é formada pelos _perseguidores hypocondriacos_ que, attribuindo os seus imaginarios males ao tratamento seguido, hostilisam o medico assistente. As idéas de J. Falret fizeram carreira em França, onde os perseguidos-perseguidores são geralmente considerados como exemplares de loucura lucida _(folie raisonnante)_, sub-grupo das degenerescencias psychicas hereditarias. Nas suas _Lições clinicas sobre as doenças mentaes_, Magnan presta um largo apoio á doutrina de Falret, fazendo apenas reservas sobre dois pontos: as allucinações, que elle admitte a titulo de excepção, e os accidentes cerebraes, que julga, em face da sua experiencia pessoal, muito menos frequentes do que se tem pensado. De passagem faremos notar que na Allemanha o _delirio processivo_ tem soffrido as mesmas vicissitudes theoricas que experimentou em França o delirio dos perseguidos-perseguidores. Ao passo que a maioria dos auctores, á maneira de Lasègue, consideram aquelle delirio uma simples variedade da _Verrücktheit_, descrevendo-o, como faz Krafft-Ebing, ao lado do delirio de perseguições, outros, como Arndt, Kraepelin e Schüle, doença que, germinando sempre n'um terreno hypocondriaco, se denuncía nos seus casos typicos e eschematicos pela successão regular de tres periodos: um de concentração dolorosa do espirito; um de expansão; e um mixto ou de transição entre os dois. Se a doença se prolonga sufficientemente, a demencia é o seu termo natural. O terreno hypocondriaco em que, segundo Gérente, o _Delirio Chronico_ mergulha as suas raizes para constituir-se e crescer, é caracterisado essencialmente por uma impressionabilidade anormal, de origem quasi sempre hereditaria, por uma perversão dolorosa da sensibilidade mental, n'uma palavra, por uma _hyperalgesia psychica_; uma autoobservação permanente, uma sorte de habitual _ruminação_ interior de estados physicos ou de estados moraes define a mentalidade prediposta, da qual, sob a mais ligeira causa determinante, ha de surgir a vesania. É, pois, um hypocondriaco o candidato ao _Delirio Chronico_; mas não é um alienado, emquanto sobre si mesmo poder exercer uma acção de _contrôle_. Sel-o-ha no dia em que esse exercicio se torne impossivel, no dia em que a preoccupação dos seus estados physicos e moraes venha a ser absorvente e o desligue das relações normaes com a sociedade. A hypocondria simples torna-se então loucura hypocondriaca. E é d'ela que vae sahir o periodo inicial ou depressivo do _Delirio Chronico_. Este periodo é caracterisado por uma concentração dolorosa do Eu, de que procedem idéas delirantes de natureza depressiva e de um contheudo que varía com a intelligencia, a educação e o meio do doente. As falsas concepções hypocondriacas subsistem ainda; mas, ao lado d'ellas, outras germinam: a crença n'uma hostilidade dos homens (delirio de perseguições) ou de maleficos poderes sobrenaturaes (demonomania). Perturbações da sensibilidade geral e especial, sobretudo allucinações auditivas, dominam esta phase do _Delirio Chronico_, de uma duração que póde ser muito longa. Mas, pouco a pouco, a dôr moral esbate-se; e na personalidade vesanica, enfraquecida pelo delirio depressivo, uma sorte de reacção se dá em sentido contrario. Então, no espirito enfermo, trabalhado por infinitas angustias, uma pouca de felicidade rompe, como n'um ceu enevoado uma restea de sol: entre as idéas depressivas surgem idéas de grandeza, ainda vagas, mas a que o futuro reserva uma preponderancia definitiva. Esta confusão de elementos apparentemente contradictorios, de idéas e sentimentos depressivos com estados expansivos, caracterisa o segundo periodo, chamado, por isso, mixto ou de transição. Como a dôr moral e as idéas depressivas definem o primeiro periodo, a plena beatitude de espirito e as idéas ambiciosas definem o terceiro. Lentamente, as emoções e as concepções expansivas do periodo mixto vão tomando crescente logar no espirito vesanico á custa de uma reducção na intensidade e numero das emoções e idéas depressivas, que acabam por desapparecer. Então, um delirio de grandezas de colorido mystico ou humano, versando sobre a graça, sobre dotes pessoaes, sobre riquezas, sobre posição social, se estabelece definitivamente, caracterisando na sua exclusividade o terceiro periodo do _Delirio Chronico_. Esta lenta evolução da vesania--tão lenta que póde cobrir dezenas de annos, não se faz sem que a mentalidade soffra nas suas forças vivas e productoras. E assim, o seu termo natural é a demencia, quer simples e apathica, se o delirio cessou absolutamente, quer agitada, se restam perturbações da sensibilidade e falsas concepções desconnexas e dissociadas. Tal é, summariamente, a marcha typica do _Delirio Chronico,_ segundo Gérente, Nem sempre, porém, faz observar o auctor, as coisas se passam d'este modo regular e eschematico; não raro apparecem casos em que a evolução descripta não tem logar: póde, por exemplo, o periodo depressivo, representado por um delirio de perseguições, extender-se por toda a vida do doente que não chega a fazer um delirio de grandezas, caracteristico do terceiro periodo; póde do periodo mixto passar um outro doente á demencia, sem que o periodo expansivo se tenha realisado em toda a sua pureza; póde acontecer que a doença suspenda a sua evolução n'um delirio hypocondriaco inicial, que se perpetua, systematisando-se e estereotypando-se; emfim, póde mesmo dar-se uma regressão, voltando o doente do delirio ambicioso ao de perseguições. Como todas as doenças, comporta o _Delirio Chronico_ anomalias evolutivas, que compete á clinica registrar; esses casos, porém, não invalidam o _typo_ descripto sobre exemplares completos. Como se vê, n'esta synthese clinica retoma Gérente as idéas fundamentaes de Morel sobre os delirios systematisados, reduzindo-os a expressões symptomaticas e momentos evolutivos de uma vesania caracterisada pela successão de duas phases apparentemente oppostas: uma, inicial, angustiosa e depressiva; outra, final, expansiva e de beatitude, Toda a differença, entre os dois psychiatras, está em que Morel chamava _Loucura hypocondriaca_ ao que Gérente denomina _Delirio Chronico_, Vejamos agora a pathogenia da doença, tal como a comprehende este psychiatra. De um lado, importa considerar o fundamento hereditario, commum a todas as psychoses funccionaes: «Não é vesanico, diz elle, quem quer: é precisa uma longa incubação; são precisas, pelo menos, duas gerações que preparem o terreno»[1]. Não, é claro, duas gerações de delirantes chronicos, mas de nevro e psychopatas. «São umas vezes, explica, nevroses, outras vezes intoxicações chronicas, outras ainda anomalias da intelligencia, do sentimento ou da vontade a que se não prestaria, talvez, attenção, mas que nem por isso deixaram de imprimir o seu cunho sobre o individuo e os seus descendentes»[2]. A tara hereditaria cria a predisposição; para determinar a doença qualquer abalo moral é bastante. [1] Gérente,_Obr. cit._, pag. 8. [2] Gérente,_Obr. cit._, pag. 9. Mas, por outro lado, importa em relação ao _Delirio Chronico_ attender á natureza especial do terreno predisposto. O que atraz dissemos, dispensa-nos de insistir sobre este ponto: é sabido que para Gérente, como para Morel, essa feição peculiar consiste na hypocondria. Emfim, conhecidas as causas e o terreno morbido, importa conhecer a _lesão,_ no sentido psychologico do termo. Ora, segundo Gérente, nenhuma duvida póde existir a este proposito. «É sempre, diz elle, uma alteração do senso emotivo, é a alteração do sentimento, agora penosa, logo expansiva, que imprime tal ou tal direcção ás perturbações da sensibilidade e ás idéas delirantes; esta alteração é, pois, a _lesão essencial e caracteristica ao delirio chronico_»[3]. [3] Gérente,_Obr. cit._, pag. 24. Cremos ter dado uma idéa sufficiente da doutrina exposta por Gérente. Uma psychose, de origem hereditaria, de evolução de ordinario regular e tendo por lesão primitiva uma perturbação do sentimento, integraria como syndromas os delirios systematisados, hypocondriaco, de perseguições e ambicioso, descriptos na antiga psychiatria como doenças autonomas, sob a designação de monomanias; _Delirio Chronico_ é o nome d'essa psychose. Dissemos que Gérente se inspirou nas idéas de Magnan; e talvez podessemos mesmo affirmar que aquelle não fez senão expôr no seu trabalho, que é uma these de doutoramento, os pontos de vista do mestre. De facto, não só a designação de _Delirio Chronico_ tomada por Gérente para titulo do seu livro, foi creada por Magnan, que a vulgarisara nas suas lições oraes, mas foram colhidas no serviço e sob a direcção d'este, no asylo de Sant'Anna, as observações clinicas da these. Entretanto, nos debates que em 1887 se abriram sobre o assumpto na Sociedade Medico-Psychologica de Paris, Magnan apparece-nos, como mais tarde nas suas _Lições Clinicas_, publicadas em 1893, expondo uma doutrina do _Delirio Chronico_ notavelmente diversa da proclamada por Gérente. Admittiremos que o insigne clinico de Sant'Anna concedesse ao seu discipulo uma absoluta liberdade de opinião? É isso possivel; mas não é provavel que Gérente abusasse de tal liberdade até ao ponto de cobrir com a designação consagrada pelo mestre uma doutrina propria e em mais de um ponto contraria á d'este. O que nos parece mais acceitavel é que o conceito de _Delirio Chronico_ tenha soffrido no espirito de Magnan uma evolução durante o periodo que vem da these de Gérente á discussão da Sociedade Medico-Psychologica. Como quer que seja, as duas doutrinas, a de 1883 e a de 1887, differem muito. É o que vamos vêr. Ao passo que Gérente, como foi dito, fazia derivar o _Delirio Chronico_ de uma predisposição quasi sempre hereditaria e preparada atravez de gerações, Magnan affirma que um tal facto é excepcional e que, de ordinario, a psychose affecta individuos isentos de qualquer tara nervosa e absolutamente correctos no ponto de vista mental. «O _Delirio Chronico_, diz Magnan, fere em geral na idade adulta individuos sãos de espirito, não tendo até então apresentado perturbação alguma intellectual, moral ou affectiva. Insisto sobre este importante ponto, porque tal particularidade basta para separar immediatamente os delirantes chronicos dos degenerados hereditarios que offerecem desde a infancia perturbações que os fazem reconhecer»[1]. legitimidade d'esta psychose. Para Magnan, ao lado do _Delirio Chronico de evolução systematica_, ha os delirios que elle chama _polymorphos_ ou _d'emblèe_. E as distincções entre aquelle e estes são, segundo o eminente alienista, tão profundas quanto possivel, porque derivam da marcha, da etiologia e do prognostico. Ao passo que o _Delirio Chronico_ se caracterisa evolutivamente pela successão regular e irrevogavel de certos periodos, sendo o primeiro de incubação, os delirios polymorphos teem uma evolução irregular, imprevista, e rompem subitamente, sem preparação. Emquanto, sob o ponto de vista da etiologia, o _Delirio Chronico_ prescinde para constituir-se de uma pesada tara ancestral, podendo installar-se em individuos psychicamente correctos, os delirios polymorphos são eminentemente hereditarios e só podem realisar-se em degenerados, quer dizer em individuos tendo antes offerecido signaes de um desequilibrio mental. Emfim, emquanto o _Delirio_, _Chronico_, na sua qualidade de psychose progressiva e cyclica, é absolutamente incuravel, os delirios polymorphos, de marcha remittente ou intermittente, curam muitas vezes. É evidente, em face d'esta doutrina, exposta sem reticencias no seio da Sociedade Medico-Psychologica de Paris, que os casos, invocados por Dagonet e outros, de doentes que entram em delirio de grandezas para ulteriormente se tornarem perseguidos, de doentes que abruptamente, de um dia para o outro, apparecem allucinados do ouvido e se crêem victimas de injustificadas hostilidades, de doentes que após semanas de um delirio qualquer ambicioso ou de perseguições, surgem curados para recidivarem mais tarde, ou cahem rapidamente em demencia,--é evidente, diziamos que esses casos nada provam, em si mesmos, contra a existencia do _Delirio Chronico_, por isso que, segundo Magnan, elles pertencem a uma cathegoria diversa e não são senão episodios mais ou menos longos e interessantes da vida dos degenerados hereditarios. A doutrina do medico de Sant'Anna não póde ser combatida senão pela demonstração de que as differenciações por elle feitas entre os delirantes chronicos e os delirantes degenerados, são infundadas. Mas como, sob o ponto de vista da marcha, a differenciação é, _ao menos n'um certo numero de casos_, indiscutivelmente exacta; como por consenso de todos os alienistas e por testemunho irrecusavel da experiencia, ao lado de doentes que incubam um delirio de perseguições e d'este passam para o ambicioso, cahindo por fim n'um estado de fraqueza mental (_Delirio Chronico_ de Magnan), ha doentes que fazem bruscos, irregulares e mais ou menos ephemeros delirios multiplos, de que por vezes curam, embora para recidivarem mais tarde (_delirios degenerativos_ de Magnan), o ataque á synthese clinica do medico de Sant'Anna só póde ser feito de um ponto de vista mais alto, demonstrando-se que as duas ordens de delirios, a despeito das suas _allure_ diversas, procedem de uma causa commum e assentam sobre um mesmo fundo. Séglas viu isto--e só elle parece tel-o visto--quando na Sociedade Medico-Psychologica affirmou que alguns delirantes chronicos de Magnan apresentam os estygmas physicos e mentaes dos degenerados hereditarios. Demonstrar esta proposição seria evidentemente destruir á doutrina de Magnan o seu mais solido fundamento: o etiologico. Se os degenerados hereditarios podem delirar tanto de um modo remittente e anomalo como de um modo regular e progressivo, caminhando tanto para a cura como para a demencia, toda a differença entre o _Delirio Chronico_ e os _delirios polymorphos_ se reduz a accidentes de marcha e a possiveis variações de prognose, o que não é bastante para estabelecer _especies_ morbidas distinctas. Nos longos debates da Sociedade Medico-Psychologica sobre os delirios systematisados, tomaram parte os mais eminentes psychiatras francezes; cremos, porém, que só Falret e Séglas produziram contra a legitimidade clinica do _Delirio Chronico_ argumentos de valor. Mas não insistiremos sobre elles; por agora fazemos apenas historia. Para completarmos o que na psychiatria franceza tem direito a menção especial em materia de delirios systematisados, resta-nos expôr a maneira de vêr de Régis. Retomando uma doutrina exposta por Baillarger em 1853, o auctor do _Manual pratico de Medicina Mental_ sustenta que uma natural distincção existe entre as _loucuras generalisadas_ e a _Loucura parcial_: ao passo que as primeiras se caracterisam pela presença constante e essencial de um elemento affectivo, _excitação_ na mania e _depressão_ na melancolia, a segunda manifesta-se por simples perturbações intellectuaes e moraes sem participação, a não ser accidental e episodica, da emotividade. A excitação e a depressão, affirma Régis, são tanto a fundamental caracteristica das loucuras generalisadas que muitas vezes só ellas existem n'estas doenças: tal é o caso das manias e melancolias sem delirio, nas quaes, como se sabe, ha exaltação ou diminuição do _tonus emotivo_, sem compromisso grave da intelligencia e do senso moral. O contrario d'isto se dá na _Loucura parcial_: um delirio mais ou menos extenso caracterisa n'este caso a alienação, que só por momentos póde acompanhar-se de crises ephemeras de excitação ou depressão, analogas ás dos espiritos normaes em conflicto com causas externas. A mania e a melancolia, accrescenta Régis, sendo muitas vezes idiopathicas, são, não raro, meros symptomas d'outras doenças mentaes, como a hysteria, a epilepsia, a demencia paralytica; ao contrario, a _Loucura parcial_ é sempre idiopathica, essencial. Ora, é n'esta _verdadeira loucura_ que os delirios systematisados se integram, segundo Régis, a titulo de manifestações e de estadios evolutivos. No seu curso regular e typico, a _Loucura parcial_ offereceria tres periodos: um, de _analyse subjectiva_, caracterisado pelo _delirio hypocondriaco_; outro de _interpretação_, revellado pelo _delirio de perseguições_ ou pelo _delirio mystico_, segundo o doente attribue a pessoas ou a divindades os seus males; um terceiro, emfim, de _transformação pessoal_, exteriorisado pelo _delirio ambicioso_. As allucinações, sobretudo auditivas, são o symptoma dominante da _Loucura parcial_. Quanto á etiologia, sustenta Régis que a doença é constitucional, faz parte do individuo e surge n'um dado momento sob a influencia de quaesquer circumstancias; isto é dizer que _Loucura parcial_ é eminentemente hereditaria. Segundo este auctor, «ella attinge de preferencia os individuos sombrios, desconfiados, com tendencias á mysantropia e ao orgulho»[1] [1] E. Régis, _Manuel pratique de médecine mentale_, 2º ed., pag. 228. Como se vê, a _Loucura parcial_ de Régis mantem relações profundas de similhança com a _Loucura Hypocondriaca_ de Morel e o _Delirio Chronico_ de Gérente. Um mesmo pensamento etiologico-evolutivo preside ás tres syntheses clinicas. * * * * * Expostos os trabalhos francezes sobre os delirios systematisados na sua phase de synthese clinica e de interpretação pathogenica, vejamos, retrocedendo na ordem dos tempos, o que se passou na Allemanha desde que, com Snell, Griesinger e Sander, a psychiatria d'este paiz assentou na existencia de delirios _primitivos_ de perseguições e de grandezas. Antes, porém, seja-nos licito dar uma explicação sobre a marcha a seguir. Delimitar um assumpto é a primeira das condições a preencher para tratal-o scientificamente; a segunda, é possuir uma nomenclatura definida e precisa. Ora, não satisfazendo a uma só d'estas duas condições os trabalhos allemães sobre os delirios systematisados, a impressão que recebe quem d'elles procura tomar conhecimento, é, sem exaggero, a de ter penetrado n'um labyrintho. Não o dizemos nós: por esta ou analogas expressões disseram-no em 1887 Séglas e recentemente Kéraval, os alienistas francezes que com maior auctoridade se occuparam do assumpto; disse-o tambem, mais insuspeitamente, Pelman ao formular ha vinte annos esta queixa: «Acabaremos por nem mesmo entre nós, psychiatras, nos entendermos»; repetirara-n'o, emfim, em 1894 quasi todos os alienistas allemães que tomaram parte na discussão aberta sobre a Paranoia na Sociedade Psychiatrica de Berlim. De facto, a extensão do assumpto varia de auctor para auctor; restricta para uns que, como Krafft-Ebing, lhe estabelecem os mesmos limites que os alienistas francezes, ella é tão vasta para outros, para Cramer, por exemplo, que parece estar contida lá dentro a psychiatria inteira. Por outro lado ainda, a nomenclatura é vaga e é confusa: vaga, pela multiplicidade de termos com que um dado auctor exprime um mesmo facto; confusa, pela variedade de significações de cada termo para cada auctor. _Wahnsinn, Verrücktheit_ e _Paranoia_ são as palavras com que na litteratura allemã apparecem designados os delirios systematicos descriptos pelos franceses; estes termos, porém, ora figuram como synonimos, ora como vocabulos de significados distinctos, succedendo ainda que o ultimo é pelo mesmo auctor tomado umas vezes n'um sentido restricto, outras vezes n'um sentido geral, infinitamente mais amplo. N'estas deploraveis condições de maxima obscuridade, fazer n'uma ordem rigorosamente chronologica e sob a respectiva terminologia a exposição Depois dos trabalhos de Snell[1], de Griesinger[2] e de Sander[3], a doutrina da Paranoia foi retomada em 1878 por Westphal[4], que a desenvolveu e aprofundou. [1] _Über Monomanie_, 1863. [2] _Arch. f. Psych._, 1867. [3] _Über eine specielle Form der primäre Verrücktheit_, 1868-69. [4] _Zeitschr. f. Psych._, 1878. Como os seus antecessores, elle insistiu na origem protogenica da Paranoia: a perturbação ideativa é o facto inicial, independente de estados affectivos preexistentes; os sentimentos depressivos ou expansivos que no curso d'esta psychose se observam, não são senão secundarios e determinados pelo contheudo das idéas hypocondriacas, de perseguição ou de grandezas. Ainda como os seus predecessores, Westphal insistiu na falta de tendencias da Paranoia para a demencia; a debilidade mental que por vezes se nota nos paranoicos, é prévia e não consecutiva, e não póde, por isso, servir para caracterisar a psychose, mas o terreno em que ella germina. Reconhecendo a frequencia das allucinações na Paranoia, Westphal notou, todavia, que ellas podem algumas vezes faltar; para elle a caracteristica fundamental da Paranoia reside na perturbação ideativa, na anomalia conceptual que, por si só e independentemente dos erros sensoriaes, gera as idéas delirantes destinadas a dominarem de um modo completo e absoluto o Eu vesanico. As idéas de perseguição e de grandeza podem, segundo Westphal, succeder, como notara Morel, á hypocondria, mas podem tambem nascer e organisar-se _d'emblèe_. De resto, segundo Westphal, o desvio paranoico está no modo de formar as idéas, não de as associar, o que explica a persistencia do raciocinio e a coherencia entre os actos e os pensamentos do doente. Alargando a area extensiva da Paranoia, Westphal integrou no quadro clinico d'esta psychose as _obsessões_, que, não offerecendo a marcha e evolução das idéas delirantes dos paranoicos, teem, comtudo, como ellas, uma origem primitiva e espontanea; d'aqui a creação de uma variedade, _Paranoia abortiva_ ou rudimentar ou frustre, para designar a loucura obsessiva ou das idéas fixas. Até aqui, como se vê, a doutrina de Westphal não differe essencialmente das estudadas syntheses clinicas dos psychiatras francezes. Todavia na sua classificação da Paranoia produziu o eminente professor de Vienna uma idéa que o separa dos seus predecessores francezes e allemães: de facto, ao lado da fórma _hypocondriaca_, já conhecida desde Morel, da fórma _originaria_ ou congenita, descripta antes por Sander, e da fórma _chronica_, de marcha progressiva ou remittente, em que _d'emblèe_ se produzem idéas de perseguição e de grandeza, admittiu Westphal uma fórmia _aguda_, caracterisada pela subita eclosão de allucinações principalmente auditivas e muitas vezes aterradoras, acompanhando-se de idéas de perseguição e levando o doente ora á incoherencia e confusão mental (_Verwirrtheit_) com impulsões, ora ao stupor, á prostração e aos estados catatonicos de Kahlbaum. A creação d'esta fórma _aguda_, que está fóra dos limites por nós traçados ha pouco á Paranoia, foi o ponto de partida, entre os allemães, das mais numerosas e mais graves dissidencias doutrinarias sobre este capitulo da psychiatria. Comquanto não tenhamos de occupar-nos agora d'este ponto, entendemos dever fazer-lhe desde já uma referencia, não só para não deixarmos incompleta a exposição das idéas de Westphal, mas para marcarmos a origem historica de uma corrente de idéas que teremos de estudar e precisar mais tarde. Notaremos, por fim, que Westphal só á fórma _originaria_ reconhece um fundo degenerativo. Fritsch[1] em 1878 insistiu nas relações entre as idéas delirantes e os estados affectivos, comparando o que se passa na Paranoia com o que tem logar na mania e na melancolia. [1] _Psychiatr. Centralblatt_, 1878. Ao passo que n'estas psychoses o delirio surge secundariamente, e as idéas falsas podem, com Griesinger, considerar-se _tentativas de interpretação_ das emoções iniciaes depressivas ou expansivas, na Paranoia, ao inverso, as idéas delirantes são primitivas e os estados emocionaes secundarios,--meras reacções do sentimento sob o contheudo das idéas. Adiante voltaremos a citar este auctor, que não acceita a fórma _aguda_ da Paranoia. Em 1879, Schaefer[1] continuou as idéas de Westphal, pondo, comtudo, n'um relevo maior o papel das allucinações e illusões. [1] _Alig. Zeitschr. f. Psych._, 1879. Se a Paranoia essencialmente consiste no facto de que as idéas delirantes são acceites pelo doente como realidades e n'este sentido constituem o alimento habitual e ordinario de toda a sua actividade psychica, não deve esquecer-se que os erros sensoriaes, mais frequentes n'esta psychose do que em todas as outras, activam o delirio, dão-lhe uma base, um ponto de apoio constante, e pela sua diuturnidade criam para o doente um mundo phantastico, falseam-lhe o juizo e acabam por n'elle abolir o _senso critico_. Digamos de passagem que Schaefer acceita todas as fórmas da Paranoia descriptas por Westphal, incluindo a _aguda_, que teria por ponto de partida as allucinações. No mesmo anno, Merklin[2] descreveu pela primeira vez o delirio processivo (_Quaerulantenwahnn_) como variedade ou sub-grupo da Paranoia, encontrando-se assim no terreno da theoria com Lasègue, para quem, como foi dito, o delirio dos perseguidores seria uma variedade (_fórma activa_) do delirio de perseguições. [2] _Studien über primäre Verrücktheit_, 1879. No seu _Tratado_, cuja primeira edição remonta a 1879, fez Krafft-Ebing da Paranoia um estudo completo, de uma rara e attrahente lucidez. Paranoia e loucura systematisada são termos e noções equivalentes; assim, separando-se de Westphal, regeita a fórma aguda da Paranoia e desintegra d'esta psychose a loucura obsessiva, no que procede á maneira dos auctores francezes. Mas o ponto original da sua doutrina está em dar á Paranoia um logar entre as degenerescencias psychicas. Duas ordens de considerações conduzem Krafft-Ebing a este modo de vêr; a génese e a evolução da doença, por um lado, os antecedentes psychopaticos dos doentes, por outro. Nem o modo de apparição, nem a marcha permittem considerar a Paranoia uma doença accidental, como o são as psychonevroses; pelo contrario, tudo a inculca uma psychose constitucional, uma doença de um cerebro tocado quer pela hereditariedade, quer por graves affecções capazes de irreparavelmente o enfraquecerem. De facto, sem obnubilação de consciencia, sem alteração fundamental de affectos, no goso habitual de um humor nem deprimido, nem exaltado, e a despeito da integridade das fórmas do raciocinio, o paranoico vê o mundo erradamente e é incapaz de corrigir quer as suas idéas, quer as suas falsas percepções. As idéas delirantes, não procedendo do exterior, nem resultando de emoções preexistentes pelo mecanismo psychologico da reflexão, vêem do inconsciente e impõem-se ao paranoico, do mesmo modo que se lhe impõem os erros sensoriaes: um excesso de subjectivismo e uma radical ausencia de senso critico, são, pois, as caracteristicas fundamentaes da Paranoia, cuja evolução, sem tendencias para a demencia ou para a cura, é essencialmente chronica. De resto, a banalidade das causas determinantes (que muitas vezes não são senão as phases physiologicas da vida: a puberdade, a menopause, etc.) implica uma forte predisposição congenita ou adquirida. Por outro lado, a historia de todos os paranoicos (e não só, como pretendia Westphal, a dos originarios de Sander) é a dos desequilibrados, dos candidatos á loucura, dos degenerados, n'uma palavra; de sorte que a doença representa apenas o exaggero ou _hyperthrophia_ de um caracter preexistente, não podendo entre ella e o estado normal traçar-se, como nas psychonevroses, uma nitida linha divisoria. Krafft-Ebing classificou a Paranoia pelo contheudo das idéas delirantes, descrevendo uma fórma _persecutoria_ com o seu sub-grupo _processivo_, e uma fórma _ambiciosa_ com as suas variedades _religiosa_ e _erotica_; e notou o sabio professor de Graz que estas fórmas podem observar-se isoladas e podem ora coexistir, ora succeder-se no mesmo doente. Na descripção da Paranoia persecutoria insistiu na passagem gradual e progressiva das idéas hypocondriacas ás de perseguição e d'estas ás de grandeza. Segundo a pratica do grande alienista, esta ultima evolução dar-se-hia n'um terço dos casos da doença. É de notar que Krafft-Ebing, ao inverso da maioria dos auctores francezes, não concedeu ao raciocinio o minimo papel na transformação pessoal, que se realisa pela passagem do delirio de perseguições ao de grandezas; o inconsciente domina, segundo o eminente professor, toda a evolução da doença. Póde seguramente affirmar-se que, com Krafft-Ebing, a doutrina da Paranoia, tomada como equivalente de loucura systematisada, recebeu na Allemanha os seus derradeiros desenvolvimentos. De facto, n'esta ordem de idéas, os psychiatras allemães que lhe succedem, nada accrescentam a esta construcção synthetica, ao mesmo tempo simples, elegante e profunda. movimentos de defeza, apossar-se-hia da natureza para as suas necessidades, mas succumbiria sem resistencia ás nocivas acções d'essa mesma natureza; um ser sem movimentos de conquista, como resultados de affectos relativos, poderia subtrahir-se aos males da natureza, mas, por defeito de apropriação, morreria á falta de satisfação das proprias necessidades. Na illimitação das idéas de defeza da creança inexperiente e timida encontra-se esboçado physiologicamente o delirio de perseguições, como o de grandezas se encontra na mesma creança, quando tenta soprar á lua para apagal-a como se fôra uma vela. O delirio de perseguição inclue em si a angustia; na Paranoia, como na mania e na melancolia, isto póde representar uma relação restabelecida entre este sentimento e as circumstancias exteriores. Do sentimento de angustia conclue-se para a perseguição. Eu vou, porém, mais longe: o que immediatamente se associa ao sentimento de angustia, é o perigo. Perigo, antes de tudo, de uma doença illusoria, na hypocondria simples; perigos, nas idéas de violencia, em connexão com a chamada angustia neurasthenica; perigos, nas coisas da natureza morta--infecções, venenos; perigos, creados por nós proprios, como quando receiamos, por impulso d'outrem, cahir de uma altura. Este é o delirio de perigo. O delirio de perseguição refere-se, porém, a uma influencia procedente d'outrem, sendo certo que na Paranoia a angustia causada pelos homens excede a que determinam as coisas. O sentimento de defeza é n'este caso _anthropomorphisado_: como as suas aggressões procedem de um impulso humano, as que o doente receia, teem para elle analoga origem nos sentimentos dos homens, na vontade d'elles. Este modo de pensar não é especial de um estado de doença; o delirio que se lhe refere é popular, diffuso, quanto póde sel-o, por exemplo, a crença na religião natural. Todos os phenomenos favoraveis ou perniciosos, o ceu, o sol, as nuvens, o oceano, o fogo são assim comprehendidos n'um termo de analogia; e, como o homem explica as suas aggressões ou conquistas sobre o natureza como resultados de disposições que o estimulam, pensa elle que tambem as vantajosas ou maleficas influencias naturaes procedem de affectos de seres mais perfeitos. Com razão disse um dos mais profundos pensadores da época da encyclopedia que o _homem creou os deuses à sua imagem_»[1]. [1] Meynert, _Lezioni cliniche di Psychiatria_, trad. it., pag. 128. Como do sentimento de defeza fez surgir o delirio de perseguição, Meynert faz derivar o delirio de grandezas do sentimento de conquista; e como as duas ordens de sentimentos physiologicos, longe de se hostilisarem, coexistem no mesmo individuo e mais ou menos se implicam n'um fim geral de conservação, as duas ordens de delirios, persecutorio e ambicioso, se agregam e formam corpo no mesmo doente. D'onde vem ao paranoico o exaggero d'esses fundamentaes sentimentos de defeza e de conquista? Meynert não hesita em responder que elle procede de uma sorte da hypertrophia do sentimento pessoal, determinada por _sensações hypocondriacas_ ou _estimulos subcorticaes bulbares_. O doente sentiria mais fortemente o seu Eu; e esta emoção intensa, associando-se a todas as percepções, crearia um estado particular de consciencia no qual tudo seria interpretado egocentricamente. Uma _hyperesthesia psychica_ seria, pois, para Meynert, como vimos que o era para Gérente, o fundamento da Paranoia. Ao contrario de Krafft-Ebing, Meynert não liga uma grande importancia á hereditariedade como causa da Paranoia; e junto d'elle a noção psychiatrica da degenerescencia não tem senão um frio e reservado acolhimento. Para Meynert a etiologia não fornece, nem fornecerá nunca a base de uma classificação natural das psychoses; essa base tem de ser procurada na anatomia pathologica, na lesão do cerebro. Na Paranoia essa lesão seria um processo atrophico do manto cerebral. O conceito da degenerescencia psychica não encontra em Mendel[1] melhor acolhimento do que em Meynert. Occupando-se em 1883 da Paranoia, n'um extenso trabalho a que teremos de alludir ainda, Mendel apenas concedeu fóros de degenerativa á fórma originaria de Sander. [1] _Die Paranoia_, 1883. Pelo seu lado, Schüle[2], em 1886, só considerou francamente degenerativas as fórmas _originaria_ e _processiva_, por elle descriptas no seu _Tratado Clinico_ dentro do grupo das psychoses hereditarias, entre a loucura obsessiva e a loucura moral. [2] _Klinische Psychiatrie_, 1886. Mendel, distinguindo a obsessão da idéa delirante, separa da Paranoia a fórma _abortiva_ de Westphal. Ao contrario, Salgo[3] vê na loucura obsessiva uma fórma frustre ou incompleta da Paranoia, porque para elle a obsessão e a idéa paranoica teem a mesma génese: uma e outra surgem primitiva e espontaneamente n'um cerebro fraco. Para este auctor, com effeito, a _debilidade de espirito_, no sentido do que outros chamam _invalidade psychica_ e _ausencia de senso critico_, representa na Paranoia um papel fundamental. Poderiamos inscrever, ao lado dos nomes até aqui citados, os de Koch, Arndt, Weiss, Pelman, Samt, outros ainda, tão vasta é na Allemanha a bibliographia do assumpto que nos occupa; não accrescentariamos, porém, com isso o quadro doutrinario da Paranoia como conceito equivalente ao de Loucura Systematisada dos auctores francezes. Passemos, pois, á exposição dos trabalhos em que um tal conceito se altera pela integração de uma fórma _aguda_, sem precedentes quer em França, quer na Allemanha, antes de 1878. [3] _Compend. der Psychiatrie_, 1887. Foi Westphal, como dissemos, quem primeiro admittiu a existencia de uma variedade da Paranoia procedendo de estados allucinatorios primitivos e apresentando na sua marcha ora a confusão mental da mania, ora a depressão stuporosa da melancolia. Tal era a Paranoia aguda do professor de Vienna, desde logo perfilhada por Schaefer e tambem desde logo rudemente combatida por Fritsch e outros. Sem extemporaneos intuitos de critica, mas n'um unico fim de ordenar idéas, accentuemos, antes de tudo, as differenças que separam as fórmas aguda e chronica da Paranoia. Segundo as doutrinas recebidas de Snell, de Griesinger, de Sander, do proprio Westphal, dois factos caracterisam principalmente a fórma chronica: de um lado, a primitividade das idéas delirantes, que ao espirito se impõem á maneira de obsessões; do outro, a integridade da associação logica dos pensamentos, explicando a resistencia dos doentes á demencia. Na fórma aguda, o contrario teria logar: as allucinações seriam o facto primordial, e a associação das idéas achar-se-hia fundamentalmente compromettida quer por um exaggero até á fuga, quer por um affrouxamento até á suspensão. Na fórma chronica, as allucinações, constituindo um symptoma secundario e mesmo fallivel, são tributarias das idéas delirantes a cujo contheudo se subordinam (depressivas e hostis no delirio persecutorio, expansivas e benevolas no ambicioso); na fórma aguda, pelo contrario, sendo um facto primitivo e essencial, as allucinações teriam sob a sua dependencia os conceitos delirantes (de perseguição sob vozes hostis, de grandeza sob audições lisongeiras). Quanto á associação das idéas, não ha na fórma chronica mais do que um desvio inicial de orientação, sem compromisso da consciencia e sem perda de lucidez; pelo contrario, na fórma aguda a precipitação das idéas poderia levar o doente á incoherencia e á dissociação da mania, como o affrouxamento do seu curso o poderia conduzir á fixidez melancolica ou mesmo, sob a acção inhibitoria de allucinações terrorisantes, a estados de catatonia. Estas differenças de marcha implicam naturalmente a de prognostico: a fórma chronica não cura e não conduz por si mesma á demencia; pelo contrario, a fórma aguda terminaria umas vezes pela cura, outras pela abolição das faculdades. Assim, tanto a subordinação dos symptomas como a terminação separam as duas fórmas. O que as une então? O contheudo das idéas delirantes, que são sempre, n'uma e n'outra, reductiveis ás tres conhecidas cathegorias: hyponcondriacas, persecutorias e ambiciosas, sobretudo ás duas ultimas. É este, com effeito, para todos os que admittem uma Paranoia aguda, o traço clinico de ligação entre esta fórma e a outra. Que exista uma perturbação de consciencia ou até mesmo uma inconsciencia mais ou menos duradoura; que o delirio se acompanhe de allucinações em massa de todos os sentidos; que haja manifesta incoherencia, pouco importa, desde que, como diz Mendel, se possam reconhecer os dois typos de ideação: persecutorio e ambicioso. Muitas vezes, como o mesmo Mendel o confessa, o diagnostico differencial entre a Paranoia aguda e a mania com predominio de allucinações seria difficil de estabelecer. D'esta sorte, no quadro da Paranoia entram não só os delirios systematisados, mas até os dissociados e incoherentes, uma vez que as idéas de perseguição ou de grandeza n'elles predominem ou mesmo _tendam_ a predominar, como alguns escrevem. É necessario, entretanto, reconhecer que Schüle, achando, talvez, demasiadamente frouxo, como unico laço de união entre fórmas por muitos symptomas diversas e até antinomicas, o contheudo das idéas delirantes, tenta a approximação das duas Paranoias sobre um terreno de evolução, notando que dos casos agudos aos chronicos e d'estes áquelles a transição se póde fazer sem violencia, antes insensivelmente. Depois, com effeito, de ter accentuado (como acabamos de fazel-o) todos os symptomas que separam as fórmas chronica e aguda, Schüle escreve: «Estas differenças, porém, caracterisam apenas os casos extremos do delirio systematisado chronico e agudo; ha casos intermedios em que aguda aquelles que apenas admittem uma Paranoia chronica. Fritsch, um dos primeiros a combater a noção da Paranoia aguda, designou esses casos sob o nome _Verwirrtheit_ ou confusão mental, fazendo-os depender de uma fraqueza irritavel ou esgotamento nervoso dos hemispherios cerebraes, que póde observar-se como syndroma ou como complicação da maior parte das psychoses e, portanto, da Paranoia. Decerto, a _Verwirrtheit_ offerece, como a Paranoia, idéas delirantes e allucinações; estes symptomas communs, porém, não são da natureza, segundo Fritsch, a permittir a confusão entre uma _doença_, de marcha gradual, em que se dá uma transformação da personalidade, e um simples _estado_ transitorio, um mero _syndroma_ de innumeras psychoses funccionaes e organicas. Pelo seu lado, Krafft-Ebing, que á Paranoia dá um logar entre as degenerescencias psychicas ou psychoses constitucionaes, relega os pretendidos casos de Paranoia aguda para o delirio sensorial, _Hallucinatorischer Wahnsinn_, que elle colloca entre as psychonevroses ou psychoses accidentaes, ao lado da mania e da melancolia. Como Fritsch, Krafft-Ebing faz esses casos tributarios de uma asthenia cerebral. De facto, segundo elle, o _Hallucinatorischer Wahnsinn_ reconhece por causas as doenças febris, infecciosas, neurasthenisantes; a sua caracteristica é um enfraquecimento cerebral _d'emblèe_, ou passageiro e curavel ou rapidamente demencial, impedindo todo o trabalho de systematisação delirante. A passagem do _Hallucinatorischer Wahnsinn_ á Paranoia é, pois, impossivel. Para Kraepelin os pretendidos casos de Paranoia aguda entrariam quer na _Hallucinatorische Verwirrtheit_, quer no _Hallucinatorischer Wahnsinn_. A primeira d'estas psychoses é uma confusão mental devida a um esgotamento agudo do cerebro; a segunda é um delirio pouco coherente, da marcha rapida e terminação favoravel, em que as allucinações representam o principal papel, subordinando a si o estado emotivo e as idéas falsas. A distincção entre estas duas doenças não parece muito nitida; como quer que seja, ambas se distinguem profundamente, segundo Kraepelin, da Paranoia, que consiste n'uma lenta e intima transformação da personalidade, sem obnubilação da consciencia e sem perturbações fundamentaes do humor. Mayser[1] considera os mesmos casos de Paranoia aguda como exemplares de _Delirio asthenico_, analogos aos produzidos pelas intoxicações medicamentosas ou outras; a obnubilação da consciencia e a confusão mental, devidas a um esgotamento do cerebro, seriam as caracteristicas d'este delirio. [1] _Zur sogennanter hallucinatorischer Wahnsinn_. Meynert[2] pertence ao numero dos que contestam a existencia de uma Paranoia aguda. Os casos expostos como taes, são por elle estudados sob o nome da _Amencia_, especie de confusão mental, ora idiopathica, ora symptomatica, tributaria de uma fraqueza irritavel, de um exhaurimento do cerebro e podendo manifestar-se tanto por symptomas de stupor, como por excitação acompanhada de vivos e multiplos estados allucinatorios. O predominio de phenomenos neurasthenicos sobre os irritativos explicaria os casos que difficilmente se distinguem da melancolia, como, inversamente, o predominio de phenomenos irritativos sobre os depressivos explicaria os casos que a custo se distinguem dos delirios maniacos, agudos e sobreagudos. [2] _Obr. cit._, pag. 27 e seg. As causas da _Amencia_ seriam todos os accidentes capazes de produzir mais ou menos rapidamente o esgotamento cerebral: choques moraes intensos n'um individuo debilitado, onanismo abusivo, doenças febris, puerperio, intoxicações, traumatismos, molestias infecciosas, outros ainda. A hereditariedade não exerceria senão um papel subalterno. A marcha da _Amencia_ seria sempre aguda e a terminação far-se-hia pela morte, pela demencia ou pela cura ao fim de um tempo variavel entre algumas semanas e alguns mezes. As recidivas seriam para receiar. De resto, a Amencia póde complicar grande numero de psychoses, não sendo raro que surja como um episodio na marcha da Paranoia. Meynert insiste, porém, sobre o diagnostico differencial entre a Amencia e a Paranoia que, mesmo coincidindo temporariamente, conservam a sua physionomia propria. Da Amencia não póde passar-se a outra psychose que não seja à demencia, termo natural das psychopatias que não curam. Tal é, pela voz dos seus mais illustres representantes, a theoria que rejeita a existencia de uma Paranoia aguda. Esta designação representaria um mal-intendido, pois que os casos clinicos por ella cobertos não seriam senão expressões de uma asthenia cerebral, quer idiopatica e primitiva, quer symptomatica e secundaria, profundamente diversa, não só pelos _symptomas_ e pela _marcha_, mas ainda pelas _causas_, da Paranoia. Que essa, asthenia com todo o seu cortejo de phenomenos ora stuporosos, ora maniacos, venha intercalar-se na marcha da Paranoia em algum dos periodos d'esta, é incontestavel; que devamos confundir as duas entidades morbidas é, porém, insustentavel, porque, desde os symptomas até ás causas, desde a marcha até á terminação, tudo se conspira para as separar. Os casos de delirio agudo em que retalhos de conceitos persecutorios e ambiciosos apparecem de mistura com erros sensoriaes, não seriam, pois, exemplares da Paranoia; seriam casos de _Verwirrtheit_, de _Hallucinatorischer Wahnsinn_, de _Hallucinatorische Verwirrtheit_, de _Amencia_, n'uma palavra, de _confusão mental_ asthenica. E a mistura possivel dos symptomas agudos d'essa confusão com os symptomas chronicos da Paranoia, não significam, como pretende Schüle, a passagem ou _transição_ entre duas fórmas de uma mesma doença, mas a _coexistencia_ de duas psychoses distinctas n'um unico doente. Duas palavras ainda sobre a Paranoia secundaria antes de fecharmos a historia dos trabalhos germanicos. Vimos quanto esta noção dominante nos inicios da psychiatria allemã, foi perdendo terreno á medida que se elevava a de Paranoia primitiva. O nome não chegou nunca a desapparecer, graças á tradição; mas o conceito de Paranoia secundaria foi posto em contraste como o de Paranoia primitiva. Esta seria uma doença; aquella, um _estado terminal_, apenas, da melancolia ou da mania, uma _étape_ d'estas psychoses na sua marcha para a extincção definitiva. Tal em Krafft-Ebing, por exemplo, nos apparece a Paranoia secundaria: um prefacio da demencia vesanica, uma situação mental pouco definida e transitoria, correspondendo ao que os psychiatras francezes denominaram em todos os tempos a _demencia incompleta_. E assim devia ser. Entre o formidavel processo da Paranoia primitiva, tão movimentado, tão independente, tão cheio de cambiantes evolutivas, e o estado predemencial, tão pallido que os seus symptomas não são já senão residuos de psychoses moribundas--pedras de um edificio em ruinas, taboas de um navio em naufragio--nenhuma approximação pathogenica ou nosologica era, com effeito, possivel. Mas comprehende o leitor que esta situação tenha variado a partir do momento em que o conceito da Paranoia primitiva foi remanuseado e os seus severos moldes partidos pelos iconoclastas, introductores da fórma aguda. Desde que não repugna admittir que da confusão mental se passe á Paranoia, menos repugnará crêr que a ella se trasite da mania e da melancolia. E, de facto, os auctores que admittem a fórma aguda da Paranoia, acceitam igualmente a secundaria. * * * * * Datam apenas de 1882 os trabalhos da psychiatria italiana sobre os delirios systematisados; são elles, porém, de um tão grande valor intrinseco e de uma tão alta originalidade, algumas vezes, que o seu logar na historia contemporanea está definitivamente marcado. A primeira memoria a citar sobre o assumpto é a de Buccola: _Sui delirii sistematisati_. Não tanto pela novidade das proprias idéas como pela clareza com que expõe e commenta as doutrinas germanicas, ainda então quasi desconhecidas fóra do paiz originario, é notavel este trabalho do mallogrado escriptor italiano. Na debatida questão da génese do delirio, Buccola hesita em affirmar com Krafft-Ebing a constante prioridade das idéas sobre as allucinações, do desvio conceptual sobre os erros sensoriaes. «A génese do delirio, escreve, não é em todos os casos nitidamente delimitada e não sabemos definitivamente se as allucinações precedem ou succedem sempre o desenvolvimento das idéas delirantes e se estes devem considerar-se tentativas de interpretação ou antes, á maneira de Samt, productos da vida psychica inconsciente»[1]. Quanto ao especial terreno sobre que assentam os delirios systematisados, é Buccola decisivo, affirmando com Weiss que elles traduzem uma invalidade mental; e este modo de vêr, apoia-o Buccola sobre o criterio etiologico, vista a preponderancia da hereditariedade na loucura systematisada, e ainda no prognostico, porque a doença é, maioria dos casos, estereotypada e insusceptivel de cura, comquanto capaz de remissões. [1] Buccola, _Sui delirii sistematisati_, in _Rivista di Freniatria_, vol. VII. O estudo de Buccola, que fizera na Allemanha o seu noviciado grosseira concepção anthropomorphica, nada mais natural; que a tenha, porém, um branco de maior idade e scientificamente educado, eis o que denuncía um desvio paranoico da ideação. Que um rude marinheiro analphabeto responsabilise o seu santo de um naufragio ou lhe agradeça com offerendas uma viagem feliz, não é caso para espanto; que faça o mesmo um almirante, eis o que revellaria uma ideação paranoica. As raças, as idades e as classes (que são raças sociaes) teem cada uma a sua psychologia; e é dentro d'ella e pelos principios d'ella que os conceitos teem de ser afferidos. Um homem tendo as crenças dos da sua raça, do seu paiz, da sua idade, da sua classe e do seu nivel cultural, não é um paranoico, por falsas que essas crenças sejam; para que possa fallar-se da Paranoia é preciso que uma _regressão_ ideativa se realise. Na parte critica do nosso trabalho insistiremos sobre este e outros pontos. Por agora resta-nos sómente resumir a documentação do atavismo paranoico, tal como a apresentam os dois illustres psychiatras. Tanzi e Riva fazem notar em primeira linha a crença profunda e inabalavel dos paranoicos nas suas concepções delirantes, mau grado todos os raciocinios que as demonstram falsas, mau grado a evidencia dos factos, que as contradicta, e a realidade das coisas, que as choca; essa crença, inaccessivel a argumentos, superior a controversias, resistente ás suggestões do mundo objectivo, é verdadeiramente uma _fé_--tão integral e tão pura como a das velhas almas religiosas em face dos dogmas e das doutrinas revelladas. De uma intensidade inversamente proporcional ao seu fundamento logico, a fé paranoica não encontra hoje equivalente a não ser nos povos barbaros ou nos simples de espirito. Um novo documento da natureza degenerativa e atavica da Paranoia encontra-se no proprio contheudo do delirio, sobretudo nas idéas de perseguição, que representam uma phase de _lucta_ incompativel com os tempos actuaes e apenas possivel e necessaria em épocas anteriores á constituição do direito e ao reconhecimento das garantias individuaes. Como importante caracter degenerativo e prova de que o paranoico representa um producto inferior, referem os auctores o conjuncto de anomalias _psycho-sexuaes_ que só nos imbecis se encontram com a mesma frequencia e fórma. Indo do onanismo ao _horror feminae_ por innumeras cambiantes, essas anomalias, se não produzem o effeito da impotencia material, tornam o paranoico inadequado ao amor e ao matrimonio. «A extracção forçada de esperma por machinas electricas, a copula imaginaria com pessoas reaes, os mysticos commercios carnaes com entes nebulosos e imaginarios representam outros tantos aspectos, escrevem os auctores, das condições de inferioridade sob o ponto de vista da existencia da especie, em que se despenha o paranoico muitas mais vezes do que qualquer outro alienado»[1]. [1] Tanzi e Riva, _Loc. cit._, pag. 307. Emfim, ha na symptomatologia da Paranoia um grupo particular de factos de procedencia atavica evidente: taes são os que se designam pelas expressões syntheticas de _symbolismo_ e _allegorismo_. «Os complicados arabescos, as figuras allegoricas, os gestos e altitudes cabalisticas, as interpretações phantasticas de factos naturaes, os jogos de palavras, os neologismos, e o _argot_ individual que na Paranoia pullulam, dão ao delirio uma côr tão viva e tão grotesca, dizem os escriptores italianos, que o fazem reviver nas mais remotas phases da evolução historica da cultura. Lembram a escripta cuneifórme e hyerogliphica exprimindo material e figuradamente os conceitos abstractos, a conservação dos amuletos symbolisando as almas dos santos, a vivificação dos phenomenos naturaes, as evocações d'alemtumulo, os themas da alchimia medieval e da magia arabe, as cerimonias hyeraticas de velhos tempos, importadas do mysticismo oriental. Cada uma d'estas duas séries de factos, encontrando-se, de um lado, nos paranoicos, do outro, nos povos primitivos, exprime uma condição psychica commum»[1]. [1] Tanzi e Riva, _Loc. cit._, pag. 307. Tem a data de 1884 o trabalho eminentemente original que acabamos de resumir. A idéa de uma constituição paranoica, essencialmente degenerativa, recebe n'elle a consagração pathogenica. A Verrücktheit de Krafft-Ebing e da sua escóla é ainda um delirio systematisado, cuja primitividade, estabelecida pela clinica, não encontra uma clara interpretação; a Paranoia de Tanzi e Riva é pura e simplesmente uma degenerescencia intellectual, que a doutrina da evolução permitte comprehender. A Verrücktheit era com os allemães um conceito _medico_; a Paranoia, que d'elle deriva por natural desdobramento historico, tornou-se com os italianos, uma doutrina _anthropologica_. Mas não se esgotou com a memoria de Tanzi e Riva, a cujas idéas, seja dito de passagem, deram a sua adhesão Amadei, Tamburini, Morselli e outros, a fecundidade original da psychiatria italiana n'estes dominios. Tres annos depois, em 1887, surge o estudo de Tonnini sobre a _Paranoia secundaria_--um velho thema visto a uma nova luz. De facto, não é a primitiva concepção de Griesinger que Tonnini reedita: a Paranoia secundaria do auctor italiano não é Secundäre Verrücktheit do allemão, uma psychonevrose prefaciando uma demencia, um delirio systematisado feito dos residuos ideativos da mania e da melancolia; é antes uma fórma hybrida, participando ao mesmo tempo dos caracteres da psychonevrose e da degenerescencia. Demos, porém, a palavra ao escriptor italiano: «A Paranoia secundaria diz elle, é uma psychopatia que se affirna por delirio e caracter paranoico mais ou menos accentuados sobre um fundo de debilidade mental invasora, como terminação de uma psychonevrose que, desarranjando o equilibrio de um cerebro já de si invalido, reforça processo degenerativo, abreviando-lhe a evolução e concentrando n'um mesmo individuo os caracteres de um série pathologica»[1]. [1] Tonnini, _La Paranoia Secundaria_ in _Rivista di Freniatria_, vol. XIII, pag. 61. Como d'esta definição se vê, a Paranoia secundaria implica uma inicial degenerescencia, uma invalidade mental primitiva, que a psychonevrose; mania ou melancolia, não faz senão aggravar e tornar manifestas. Sem a intervenção accidental da psychonevrose, a degenerescencia, menos avançada que na Paranoia primaria, não se accentuaria n'um delirio systematisado; dado, porém, o abalo maniaco ou melancolico, pronuncia-se o estado degenerativo por um complexo symptomatico especial em que ha concepções delirantes e tendencias para a demencia. «Estabelecido, diz Tonnini, que uma psychonevrose por recessivas evoluções morbidas produz a degenerescencia (Paranoia primaria) n'um ou mais individuos da especie, póde admittir-se que a Paranoia secundaria representa n'um só individuo o que faz a psychonevrose na especie. A Paranoia secundaria seria o resultado tardio (Paranoia tardia) de uma disposição precedente, apressado por uma doença mental qualquer, as mais das vezes de base affectiva. Segundo este conceito, a Paranoia secundaria não seria, como se pretende, uma psychonevrose que, caminhando para a demencia, deixa observar systematisadas as idéas falsas da mania ou da melancolia cessantes; ao contrario, a Paranoia secundaria offereceria um terreno degenerativo, naturalmente ligeiro em si mesmo, não chegado ainda ao de dar por maturidade propria o producto da Paranoia genuina; sobre este terreno, em si mesmo degenerado, a apparição de uma psychonevrose traria um profundo desequilibrio a um espirito já invalido, occasionando a manifestação de um processo com apparencias degenerativas, que por si só talvez se não accentuasse. Aconteceria, n'uma palavra, como nas fórmas de Paranoia illustradas por Leidesdorf, que se originam em graves doenças da infancia, em traumatismos, etc., e nas quaes, todavia, é necessario admittir uma predisposição, porque, na grande maioria dos casos, nem os traumatismos, nem as doenças infantis ou outras determinam ulteriormente a apparição da Paranoia. Por maioria de razão, uma doença mental como a mania ou a melancolia poderá determinar o apparecimento de uma doença affim, baixando os poderes de critica, introduzindo o elemento allucinatorio e guiando á demencia, que terá sempre o caracter paranoico. O exhaurimento cerebral psychonevrotico (demencia) n'um terreno mais ou menos degenerado produz o fructo hybrido da Paranoia secundaria, que não é a verdadeira demencia, mas tem alguma coisa da demencia e da Paranoia»[1]. [1] Tonnini, _Loc. cit._, pag. 60. Tal é a doutrina da Paranoia secundaria, segundo Tonnini,--profundamente diversa, repetimol-o, da theorisação de Griesinger. Vejamos agora como o alienista italiano documenta a sua tão original concepção. Fazendo da Paranoia secundaria uma fórma hybrida, Tonnini procura demonstrar que ella não é uma psychonevrose genuina e que não é tambem uma degenerescencia pura e simples, mas participa dos caracteres de uma e de outra. Que não é uma psychonevrose genuina, demonstram-no segundo o escriptor italiano, tres ordens de razões: a primeira, não faltar nunca ao delirio o ar extranho da Paranoia e os neologismos, que são seus habituaes companheiros; a segunda, ser ás vezes o delirio muito menos a continuação do que se gerou durante a mania ou a melancolia precedentes, do que um delirio novo procedente de disposições paranoicas, como se vê n'um caso, que o auctor publica, de delirio exaltado succedendo á alienistas allemães, assignalando-lhe uma origem primitiva e fazendo-a assentar sobre um fundo de fraqueza mental. Na classificação dos delirios, que divide em expansivos e depressivos, reconhece as variedades descriptas por Krafft-Ebing, excepto a processo-maniaca. [3] Spitzka, _A Manual of Insanity_, 1883. No mesmo anno, Hammond[4] occupa-se dos delirios systematisados, sem, todavia, se pronunciar sobre a sua pathogenia. [4] Hammond, _A Treatise on Insanity_, 1883. Não conhecemos, senão por ligeiras noticias de Tanzi e de Séglas, a litteratura russa da Paranoia. A julgar por essas noticias, não é ella nem mais abundante, nem mais original que a ingleza e a norte-americana. Parece que os mais importantes trabalhos são os de Rosenbach, em 1884, e de Greidenberg, em 1885. O primeiro d'estes auctores sustenta, como a maioria dos allemães, a génese expontanea dos delirios paranoicos, que teem por base a debilidade mental. As illusões e allucinações seriam secundarias e não primitivas na evolução d'estes delirios. As idéas de grandeza não derivariam, por um processo logico, das idéas de perseguição, mas seriam contemporaneas destas; de resto, o exaggero da personalidade, que as idéas ambiciosas põem em relevo, está já indicado nas idéas de perseguição. O segundo dos auctores citados reconhece uma Paranoia allucinatoria aguda, em que distingue duas variedades: uma hereditaria, e outra adquirida, asthenica. Esta seria a mais frequente, e terminar-se-hia quer pela cura, quer pela demencia, quer por um certo grau de enfraquecimento cerebral. SEGUNDA PARTE EXAME CRITICO DO CONCEITO DE PARANOIA METHODO A SEGUIR Dados resultantes do estudo historico dos delirios systematisados--Exame critico dos conceitos clinicos de Delirio Chronico e de Verrücktheit aguda e secundaria--Determinação final do conceito anthropologico de Paranoia. Todo o extenso caminho ascensional até agora andado nos apparece, da altura attingida, como uma linha de ideação que, partindo do exame dos delirios systematisados, se dirige para o conhecimento da constituição intellectual dos delirantes. Nas phases iniciaes da sciencia e quando ainda um exclusivo criterio symptomatico a orienta, é cada delirio uma doença--que se chama melancolia, monomania intellectual, lypemania, delirio de perseguições ou megalomania, segundo as modalidades clinicas de _fixidez_, de _extensão_, de _contheudo_ ou de _marcha_ das idéas delirantes. Mais tarde, a preponderancia do criterio etiologico, imposto á psychiatria pelo genio incomparavel de Morel, modifica e alarga a visão do assumpto, fazendo pensar no terreno especial de que as concepções falsas emergem; não ha então tantas doenças distinctas quantos os delirios, mas, formada pela convergencia da noção symptomatica de delirio e do conceito causal de predisposição, uma só doença de variaveis aspectos clinicos, successivamente denominada loucura hypocondriaca, delirio chronico, loucura parcial, delusional insanity e Verrücktheit. Emfim, a tentativa de explicar pela doutrina geral da evolução psychica a natureza da predisposição delirante origina o conceito de Paranoia como expressão de um desvio regressivo, de uma constituição atavica da intelligencia. Analyse, synthese e interpretação pathogenica--taes foram, pois, na marcha historica do assumpto que nos occupa, as _étapes_ seguidas pelo espirito scientifico. Mas esta linha evolutiva, que abstractamente nos apparece rectilinea, foi na realidade irregular e ondulante. Conhecidos, á maneira de dois pontos, o primeiro e o ultimo termo das séries de doutrinas, traçamos entre elles a mais curta distancia, como se a filiação das idéas se houvesse dado n'um mesmo cerebro; na verdade, porém, as theorias nasceram, como vimos, em litteraturas diversas, independentes por vezes e accusando cada qual o genio particular e as tendencias especiaes da respectiva nacionalidade. Assim, por exemplo, quando ainda o pratico espirito francez se occupava em fazer pelas pennas de Lasègue e de Foville a minuciosa descripção clinica dos delirios systematisados de perseguição e de grandezas, já o cerebro allemão, que os tinha entrevisto, prematuramente lhes assignalava pela voz de Griesinger urna hypothetica pathogenia. Por outro lado, dentro do mesmo pais, potentes organisações intellectuaes quebraram por bruscos saltos de genio o parallelismo entre as evoluções logica e chronologica das idéas, misturando assim n'um dado momento, como vimos succeder em França com Morel, o espirito de analyse e a tendencia synthetisadora. Emfim, o inevitavel desejo de explicar, coevo da humanidade, indisciplinada e temerariamente semeou de fragmentarias notas pathogenicas o proprio periodo analytico do nosso thema, como se viu em Lasègue e em Foville, tentando filiar n'uma autoobservação consciente as idéas delirantes. É, pois, por um artificio do espirito que figuramos como perfeitamente definidas e succedendo-se rectilineamente as phases evolutivas da questão que nos occupa. Mas esse mesmo artificio, aliás necessario e legitimo, está indicando que a historia, não sendo aqui, como as sciencias exactas, uma simples exposição chronologica dos erros e illusões que precedem a conquista definitiva da verdade, mas uma complicada e suggestiva revista de opiniões, carece de ser completada pela critica. Já no que apenas parece uma núa e secca exhibição de doutrinas, o espirito critico intervem, procurando no labyrintho de contradictorias affirmações a filiação das idéas; é preciso, comtudo, que elle se affirme ainda mais larga e mais activamente, julgando as theorias e os pontos de vista individuaes ou de escóla em face dos factos clinicos e dos principios de psychologia normal e pathologica. Eis o que explica a necessidade d'esta segunda parte do nosso trabalho. Acceitando nos seus traços fundamentaes a doutrina anthropologica da Paranoia--inevitavel corollario da theoria geral da evolução psychica--tentaremos demonstrar, aqui, que ella explica todos os factos e synthetisa todas as verdades incompletas das doutrinas que a precederam; n'este sentido reforçaremos e ampliaremos com novos dados e novos pontos de vista a argumentação dos psychiatras italianos. Antes, porém, uma tarefa se nos impõe: a de examinar as questões do Delirio Chronico e das variedades aguda e secundaria da Verrücktheit, sobre as quaes são ainda hoje em França e na Allemanha tão vivos e accesos os debates como antes dos trabalhos italianos que, uma vez comprehendidos, deveriam tel-os, a meu vêr, definitivamente encerrado. I--O DELIRIO CHRONICO A etiologia; a marcha; o prognostico--Confronto com os delirios polymorphos--A passagem do periodo persecutorio ao ambicioso não e vulgar; a passagem á demencia é excepcional--O delirante chronico é um degenerado; importante observação pessoal--A prognose dos delirios polymorphos é muitas vezes a do Delirio Chronico--Dois conceitos de Delirio Chronico no espirito de Magnan; génese do segundo. O delirio chronico de evolução systematica, tal como nas paginas, anteriores o descrevemos, não é no espirito de Magnan uma formula eschematica ou uma abstracta construcção destinada a fazer comprehender um certo grupo de factos, mas uma doutrina concreta que a observação não faria senão confirmar. Recordemos que duas circumstancias--uma d'ordem etiologica, outra de natureza symptomatico-evolutiva, caracterisam a psychose: a primeira consiste em que ella ataca na idade média da vida individuos até então perfeitamente normaes, embora predispostos; a segunda, era que ella segue na sua marcha quatro periodos distinctos, succedendo-se n'uma ordem invariavel--o de incubação, o de perseguições, o megalomano e o demencial. Pelo que respeita á primeira d'estas caracteristicas, diz Magnan: «O delirio chronico fere em geral na idade adulta individuos sãos de espirito, não tendo até então apresentado nenhuma perturbação intellectual, moral ou affectiva. Insisto sobre este facto que tem sua importancia, por isso que por esta particularidade os delirantes chronicos se separam immediatamente dos hereditarios degenerados, que desde a infancia apresentam perturbações que os fazem reconhecer»[1]. Em relação á marcha dos symptomas não é menos explicito o medico de Sant'Anna: «Estes periodos (incubação, delirio de perseguições, É evidente que uma critica profunda d'este novo aspecto da questão só póde fazer-se discutindo a noção da degenerescencia, que não é identica para todos os psychiatras, que não tem o mesmo alcance em todos os livros e que representa para o medico de Sant'Anna um grupo de factos muito diverso do que representa para Krafft-Ebing ou para Tanzi e Riva, por exemplo. Ulteriormente examinaremos este assumpto. Notemos, porém, desde já que J. Séglas combateu vivamente, em nome da observação clinica, a etiologia de Magnan, referindo casos de Delirio Chronico em doentes portadores de estygmas physicos da degenerescencia; que Legrain, discipulo de Magnan, admitte a possibilidade da evolução caracteristica do delirio chronico nos degenerados hereditarios; que Respaut, outro discipulo de Magnan, descreve um caso de delirio chronico n'um epileptico impulsivo; que Dericq considera aptos a realisarem o delirio chronico os proprios fracos de espirito (_degenerados inferiores_, na technologia da escóla de Sant'Anna); emfim, que Marandon de Montyel, acceitando a doutrina de Magnan emquanto á evolução do Delirio Chronico, se afasta resolutamente do mestre emquanto á etiologia, affirmando que grande numero de delirantes chronicos se fazem notar desde a infancia ou desde a juventude por anomalias de caracter, que Magnan reputa indicios seguros da degenerescencia e que não desdizem da pesada herança que muitas vezes incide sobre estes doentes. Por nossa parte, cremos dever apontar um caso clinico de observação pessoal que póde juntar-se aos de Séglas. Trata-se de um antigo empregado commercial, celibatario, tendo actualmente 45 annos de idade, e a quem já em outra publicação nos referimos. O periodo de incubação delirante, a que accidentalmeme assistimos, mercê das relações que então mantinhamos com um irmão, remonta a 1878; no anno immediato o delirio de perseguições achava-se installado, fazendo-se acompanhar de allucinações auditivas e provocando da parte do doente reacções violentas: chamavam-lhe, na rua e nos cafés, _pederasta, onanista, devasso_, ao que elle respondia aggredindo os suppostos insultadores. Refugiando-se successivamente em casas de amigos, em pequenos hoteis e em hospitaes particulares, o doente veiu, por fim, a dar entrada no manicomio do Conde de Ferreira, em abril de 1883, apresentando então, de mistura com o delirio de perseguições, idéas ambiciosas que apenas exhibia em cartas e só um anno depois começou a exteriorisar oralmente: tinha descoberto um novo systema do mundo, pretendia reformar toda a sciencia astronomica e todo o systema social; as perseguições soffridas e a sequestração, _o mais infame de todos os crimes até hoje praticados_, vinham-lhe do Papa, que assim defendia os dogmas christãos, e do Rei, que defendia a ordem social existente. Lentamente, as idéas ambiciosas foram dominando o delirio de perseguições, que hoje se alimenta exclusivamente no prolongamento da sequestração; livre, este doente seria o typo perfeito do megalomano. Eis aqui um caso a que nada parece faltar do que Magnan exige para o diagnostico do Delirio Chronico: iniciada aos 30 annos n'um individuo apparentemente são, que era um bom guarda-livros, que sustentava a mãe, que mantinha regulares relações sociaes, que se governava financeiramente bem, a psychose atravessou, na successão assignalada por Magnan, os periodos de incubação, de perseguições e de megalomania, sem a presença episodica de idéas hypocondriacas, eroticas ou outras que podessem fazer pensar n'um delirio polymorpho. Pois bem; este doente é um degenerado incontestavel, ainda para os que acceitam a mais estreita noção da degenerescencia. A hereditariedade é n'elle convergente e das mais pesadas: o _pae_, prematuramente morto, foi um louco moral; a _mãe_, de uma fealdade pathologica, morreu em estado de demencia senil aos 70 annos; um _tio materno_ é disforme; um outro _tio_ materno, mal dotado de sentimentos de probidade, passa por ter feito uma fallencia fraudulenta; um _irmão_, prematuramente morto de tuberculose, foi um louco moral, dipsomano, bulimico e de uma vaidade exaggerada; emfim, uma _irmã_, louca moral e impulsiva, prostituiu-se. Na historia pregressa do nosso doente figura uma febre typhoide grave na puberdade. Apparentemente ponderado, elle foi sempre, no dizer dos seus intimos, de uma susceptibilidade excessiva, de um grande orgulho; entregava-se a leituras para que não tinha preparação e evitava o commercio das mulheres. Como estygmas physicos, apresenta o nosso doente _hypospadias_ e uma notavel _asymetria facial_. Este caso, que em nossa propria experiencia é o mais nitido, senão é mesmo o unico de um delirio paranoico offerecendo a evolução precisa e irrevogavel da entidade de Magnan, longe de confirmar as idéas d'este psychiatra em materia de pathogenia, infirma-as eloquentemente. Encaremos agora a duração e prognose comparadas do Delirio Chronico e dos delirios polymorphos. Como foi dito, na doutrina de Magnan a demencia faz parte do Delirio Chronico a titulo de phase terminal da sua evolução; é dizer que a psychose se installa definitivamente e o seu prognostico é sempre infausto. Ao contrario, os delirios polymorphos teriam por habituaes sahidas a _cura_ e, menos vezes, a _demencia precoce_, seriam de uma duração limitada e comportariam, portanto, um prognostico discretamente benigno. Será isto absolutamente exacto? Responde negativamente a clinica. De facto, se muitas vezes se obtem a cura dos delirios multiformes e se, algumas outras, uma demencia vem precocemente fechar a sua evolução, não é menos verdade que ha, ao lado dos que assim terminam, um formidavel numero de casos de uma duração perpetua, tendendo, se tendem, para a demencia tão lentamente como o Delirio Chronico. Os proprios discipulos de Magnan o reconhecem; e Legrain não hesita em descrever delirios polymorphos ou degenerativos _de marcha essencialmente chronica_. É, de resto, o que a experiencia nos ensina: ou se fixem n'um pequeno numero de idéas ou percorram toda a gamma dos conceitos morbidos, ha degenerados que deliram perpetuamente. Como distinguil-os prognosticamente dos delirantes chronicos? O invariavel e tranquillisador _ça guérira_ de Magnan e dos seus discipulos em face dos delirios _d'emblèe_, reserva-nos por vezes decepções crueis; muitos casos conheço, por minha parte, em que _ça n'a jámais guéri_. De resto, as pretendidas curas dos delirios systematisados não são, as mais das vezes, senão apparentes, quer porque o doente esconde as suas concepções para obter a liberdade, o que não é excessivamente raro nos manicomios, quer porque, desapparecendo realmente as idéas morbidas, subsiste a disposição a creal-as de novo, isto é, subsiste a mentalidade paranoica--a verdadeira doença, no fundo. Que Magnan tenha podido descriminar nos delirios systematisados evoluções diversas e justificativas de sub-grupos clinicos do que em França se chama a Loucura Parcial e na Allemanha a Verrücktheit, é perfeitamente incontestavel; que elle tenha proseguido com rara sagacidade analytica estudos anteriores sobre a successão dos delirios n'um mesmo alienado, é tambem indiscutivel; mas que o Delirio Chronico, tal como nos ultimos annos o descreve, seja uma especie morbida e um grupo nosologico bastantemente differenciado--pela evolução, pela pathogenia e pelo prognostico--dos delirios systematicos dos degenerados, eis o que não póde acceitar-se. Fechariamos aqui a nossa analyse da pretendida psychose de Magnan, se não crêssemos dever insistir n'um ponto, só ao de leve tocado na parte historica d'esta monographia: que anteriormente á concepção actual do Delirio Chronico existiu no espirito de Magnan uma outra, a exposta por Gérente, mais conforme com a realidade clinica e mais proxima da Verrücktheit de Krafft-Ebing. É certo que, quando na Sociedade Medico-Psychologica Séglas punha em evidencia as contradições entre as duas doutrinas, citando trabalhos dos discipulos de Magnan, este se defendeu declinando a responsabilidade de taes trabalhos e cathegoricamente affirmando que aos respectivos auctores concedera sempre a mais inteira independencia. Ora, sem de modo algum pretendermos que o medico de Sant'Anna imponha os proprios pontos de vista aos seus discipulos, é licito acreditar que estes os acceitam e propagam nos seus escriptos. Não é só Gérente que n'uma these de 1883, escripta no serviço da admissão e feita de casos clinicos ahi colhidos, expõe, sob a designação de _Delirio Chronico_, uma doutrina que em pontos capitaes se oppõe á que Magnan apresentou em 1887 á Sociedade Medico-Psychologica e reeditou em 1893 no seu livro de _Lições Clinicas_. N'um trabalho publicado em 1884, Boucher procede como Gérente, chamando aos delirantes chronicos _predispostos mal equilibrados_, declarando que _toda a etiologia do Delirio Chronico reside na hereditariedade_, e constatando n'um caso de Delirio Chronico, diagnosticado pelo proprio mestre, anomalias de caracter degenerativo na evolução da infancia; e, n'um artigo publicado já em 1889, o meu collega Magalhães Lemos, que aliás viveu perto de dois annos na intimidade scientifica de Magnan, descreve como exemplar clinico _frustre_ de Delirio Chronico um caso que se iniciou por idéas ambiciosas de colorido erotico. E nenhum dos escriptores que acabamos de citar se declara em opposição com o mestre, antes crê cada um interpretal-o; nem descobrindo signaes de degenerescencia nos portadores do Delirio Chronico, nem achando possivel a inversão evolutiva das phases habituaes d'esta psychose, pensa qualquer d'elles afastar-se da mais pura orthodoxia d'escóla. Tendo seguido o ensino de Sant'Anna e conhecendo as idéas de Magnan, Bajenoff escrevia tambem em 1885 que o Delirio Chronico é o equivalente da Verrücktheit e da Paranoia. A inevitavel conclusão a tirar d'estes factos é que realmente no espirito de Magnan o conceito de Delirio Chronico se modificou a ponto de apparecer-nos duplo á distancia de alguns annos. Infelizmente, o actual não vale o antigo. Mas, porque passou Magnan da larga concepção de 1883 para a de hoje, tão systematicos e até dissociados em que as allucinações desempenham um papel dominante. Será licito manter uma tal confusão? Já na parte historica d'este _Ensaio_ expozemos em detalhe não só os argumentos com que os adversarios de Westphal rejeitam da Verrücktheit o hallucinatorischer Wahnsinn, mas os motivos por que fazem d'este um grupo das psychonevroses. Não reeditaremos essa vigorosa critica; examinaremos, porém, os argumentos com que Schüle pretende justificar a opinião contraria. Não contesta este eminente psychiatra que entre os casos typicos ou, para me servir da sua propria linguagem, entre os casos extremos da Verrücktheit e do Wahnsinn existam realmente as profundas notas differenciaes apontadas por Fritsch e Krafft-Ebing, entre outros; sustenta, porém, que ha casos de transição em que ellas se esbatem, ficando então a descoberto a fundamental identidade dos dois processos. A confissão, por parte de Schüle, de que são justas as differenciações notadas pelos adversarios da escóla de Vienna entre a Verrücktheit e o Wahnsinn que n'ella se pretende incorporar a titulo de variedade aguda, é um facto importante e que deve registar-se, porque essas differenciações referem-se, como vimos, à coordenação dos symptomas, à etiologia, à marcha, à pathogenia, n'uma palavra, a quanto serve para definir uma entidade nosologica. A coordenação symptomatica, porque, enquanto na Verrücktheit as idéas delirantes formam systema e as allucinações occupam um logar secundario ou até nullo, no Wahnsinn o delirio é incoherente e os erros sensoriaes teem o primeiro plano; á etiologia, porque, emquanto a Verrücktheit se installa sem causa exterior apparente, o Wahnsinn reconhece como determinantes todas as causas capazes de provocarem uma asthenia profunda dos centros nervosos; á marcha, porque, tendo a Verrücktheit uma evolução essencialmente chronica, o Wahnsinn termina agudamente pela cura, pela demencia ou pela morte; á pathogenia, porque, emquanto a Verrücktheit se interpreta como um processo constitucional ou degenerativo, o Wahnsinn é uma doença accidental ou psychonevrotica. A estes multiplos elementos differenciaes outros se juntam ainda: ao passo que na Verrücktheit as allucinações, predominantemente auditivas, são determinadas pelo curso do delirio, dependendo o erethismo sensorial da absorvente fixidez das idéas, que provocam a apparição das imagens, no Wahnsinn succede que é o automatismo dos centros sensoriaes que determina as idéas delirantes, por esse facto variaveis, movediças, dissociadas; tambem, ao passo que na Verrücktheit o elemento affectivo não só é secundario, mas tende a apagar-se com os progressos mesmos da doença, no Wahnsinn, embora igualmente secundario pela génese, pois é determinado pelo contheudo das idéas, esse elemento representa um papel importante, mercê das vivas allucinações emergentes de todos os sentidos. Para diminuir o valor d'este quadro de differenciações nosologicas, ao mesmo tempo numerosas e profundas, argumenta o medico de Bade affirmando não só que na chronica evolução da Verrücktheit se observam phases agudas de Wahnsinn, mas que d'este se póde passar áquella, o que, a seu vêr, demonstra a identidade nosologica dos dois processos morbidos. Examinemos o valor d'estes argumentos. Quanto ao primeiro, sem de modo algum contestarmos a realidade clinica dos factos invocados por Schüle, pois mais de uma vez temos observado episodicos delirios asystematicos no curso da Paranoia, seja-nos permittido notar, na excellente companhia de Krafft-Ebing, de Fritsch, de Kraepelin e de Meynert, que esses factos comportam uma interpretação muito diversa da que lhes dá o celebre medico de Bade. Qualquer que seja a physionomia que apresentem, depressiva, expansiva ou mixta, esses delirios asystematicos podem conceber-se como não fazendo parte integrante da evolução da Verrücktheit, mas coexistindo com ella a titulo de complicações ou de intercorrencias psychonevroticas, tendo uma etiologia e uma marcha autonomas. Porque não? «Nenhuma razão há, dizem Tanzi e Riva, para crêr que o cerebro de um paranoico possa oppôr ás causas das doenças intercorrentes uma immunidade de que muitas vezes o individuo normal é incapaz, antes tudo conspira para nos fazer admittir que elle apresenta a essas causas uma resistencia menor»[1]. Assim pensamos tambem, recordando os casos de observação pessoal. [1] Tanzi e Riva, _Loc. cit._, vol. XII, pag. 417. Um d'estes, notavel entre todos, é o de um paranoico-originario, que já aos 17 annos se cria victima de tentativas de envenenamento e em quem sempre uma exaggerada autophilia se notou. Mas, nem as idéas de perseguição, nem a hyperbolica opinião dos seus meritos lhe embargaram o passo no curso de direito, que concluiu. Ridiculo e profundamente desequilibrado, de grande memoria e de pequena reflexão, desconfiado, phantasista e discursador, foi fazendo o seu caminho até delegado de procurador regio na India Portuguesa. Ahi, excessos de toda a ordem, juntos a uma febre biliosa, aggravaram-lhe o mal; regressando, muito fraco, á metropole, systematisava o seu delirio até ao ponto de viver só e de passar habitualmente a ovos e a agua, que elle proprio ia colher de noite ás fontes. Um dia, tendo chamado a casa um operario para lhe encadernar uns livros, foi por este traiçoeiramente aggredido, recebendo na cabeça um extenso e profundo traumatismo. A partir d'esse dia, allucinações auditivas, que até então parecia não terem existido, irromperam com extranha violencia; ao mesmo tempo apossou-se do doente um sentimento intenso de terror e de anciedade que o levou, poucos dias depois do traumatismo, a projectar-se de uma janella abaixo, fazendo uma luxação. Simultaneamente, illusões visuaes, confusão constante de pessoas, rejeição de alimentos e absoluta insomnia. Trazido ao hospital, persistiu algum tempo n'esta situação; rapidamente, porém, idéas de grandeza, se juntaram. O encadernador, tentando matal-o, foi apenas um instrumento de quem, por inveja do seu alto genio incomparavel, buscava desfazer-se d'elle. Tornou-se aggressivo então, fabricando uma nova religião, crendo-se superior a Christo, e começou a manifestar idéas eroticas e allucunações visuaes: masturbava-se, dizia obscenidades, proclamava as excellencias da pederastia, dos amores lesbicos, e via mulheres núas em attitudes lascivas. Mas, subitamente, derivou a idéas hypocondriacas e d'estas a um delirio de humildade, rojando-se no chão, beijando os pés dos companheiros, chorando, pedindo perdão a todos, rejeitando os alimentos n'um intuito de penitencia. Pouco a pouco resvallou no mutismo, a physionomia tornou-se-lhe parada, inexpressiva, contrahiu habitos immundos, apresentou, n'uma palavra, o quadro da demencia com accentuada desnutrição. Por mezes persistiu n'este estado, indifferente a sollicitações naturaes, deitado sobre bancos ou no chão da enfermaria, movendo-se como um automato, não respondendo a ninguem. Julguei-o então perdido e cheguei a consignar com segurança esta impressão clinica. Mas um dia, abruptamente, o doente dirige-se a mim, cumprimenta-me polidamente e diz-me que se sente, emfim, restabelecido, que deseja sahir, que quer escrever uma carta a um irmão para que venha buscado. Do pseudo-demente nada restava; a datar d'esse dia ficou o primitivo delirante, o perseguido-ambicioso quasi sem allucinações, que podia viver fóra do hospital e que eu, com effeito, deixei sahir algum tempo depois. Isto passou-se em 1884; de então até hoje fez o doente duas novas entradas no hospital, reproduzindo quasi sem variantes o quadro que vimos de esboçar. Conta-me um irmão que o aggravamento da doença se manifesta sempre por uma subita explosão de allucinações, succedendo a excessos venereos e alcoolicos. Como interpretar este caso? É evidente que os defensores da Verrücktheit aguda veriam n'elle um excellente exemplar d'esta fórma clinica; os que a combatem, porém, pensariam no hallucinatorischer Wahnsinn de Krafft-Ebing, na Amencia de Meynert, na Verwirrtheit de Fritsch, no Asteniche Delirium de Mayser, na confusão mental, emfim. Os primeiros invocariam, com Werner, o caracter egocentrico das concepções delirantes do nosso paranoico; os segundos poriam em evidencia o contraste entre um delirio de humildade e os delirios de perseguições e de grandezas, notariam a phase de estupidez ou demencia aguda que não pertence ao quadro da Verrücktheit, fariam valer o estado de anciedade, salientariam o phenomeno somatico da desnutrição, appellariam, emfim, para a etiologia asthenica do caso. Ora, emquanto no quadro clinico descripto tudo se reduz a uma acuidade maior dos delirios persecutorio e ambicioso, que a insistencia das allucinações explica de sobra, não seria difficil acceitar o diagnostico de Verrücktheit, pois que nem a systematisação dos conceitos se perdeu, nem o seu caracter egocentrico e autophilico deixou de fazer-se notar; e a mesma anciedade poderia acceitar-se como secundario symptoma de reacção em face dos erros sensoriaes. Mas é já muito difficil explicar n'esta ordem de idéas a phase de espirito que conduz o nosso doente a rojar-se no chão, a abater-se diante dos companheiros, a recusar os alimentos para se penitenciar e a pedir perdão de imaginarias culpas. Por outro lado, pensando na etiologia d'este caso, em que concorrem formidaveis elementos de esgotamento e de asthenia, é mais facil explicar por ella do que pela acuidade do delirio a demencia funccional que por mezes observei. Segundo a minha pratica pessoal, o onanismo abusivo seria frequentemente o responsavel de subitas invasões allucinatorias, acompanhadas de reacções emotivas de uma viva feição depressiva e anciosa em paranoicos averiguados. Assim, na interpretação do caso que citei, como de todos os de igual physionomia, julgo mais consentaneo com os dados da sciencia invocar uma complicação psychonevrotica (seja qual fôr o nome preferido para exprimil-a) do que alargar o quadro da Verrücktheit pela creação de uma obscura variedade aguda. que a extensão d'esta diminuiu sempre na medida em que augmentava a d'aquella. Entendamo-nos, porém: se os delirios systematisados que succedem á mania e á melancolia de longa duração, não merecem realmente um logar no quadro clinico da Verrücktheit, que é uma doença constitucional, mas no grupo das psychonevroses, de que são apenas estados terminaes prefaciando a loucura e revellando já, pela sua mesma inactiva e apagada coordenação, um enfraquecimento cerebral, é indiscutivel que a observação clinica nos permitte uma ou outra vez surprehender delirios persecutorios e ambiciosos vivamente systematisados, activos e tenazes, succedendo, todavia, a psychoses de manifestações maniacas, melancolicas e até mesmo apparentemente demenciaes. Raros, estes ultimos delirios systematisados não o são tanto, comtudo, que os não tenham observado psychiatras de todos os paizes. Como interpretal-os? Onde achar-lhes logar dentro das modernas classificações? A resposta parece-nos poder derivar-se da doutrina formulada por Tonnini: Estes delirios são paranoicos; e a psychonevrose que os precedeu, impotente em si mesma para os crear, provocou-os todavia, estimulando a peculiar actividade ideativa de um cerebro degenerescente. É possivel que, a não se realisar a incidencia perturbadora do elemento emocional implicado na psychonevrose, esse cerebro tivesse feito a sua evolução sem manifestações delirantes, comquanto houvessem de caracterisal-o sempre um exaggerado subjectivismo e uma apreciavel egocentricidade. Vulneravel, porém, elle não póde resistir ás causas que nos espiritos sãos determinam as psychoses; uma d'estas installou-se, portanto. O que deverá succeder a partir d'esse momento? Naturalmente, alguma coisa diversa do que costuma passar-se nos cerebros normaes: em vez de marchar para a cura ou para a demencia franca, a psychonevrose apressará aquella _maturidade degenerativa_ de que fallam Tanzi e Riva e que tem por expressão intellectual um delirio systematisado. Já em manifesto desequilibrio e já cançado pela passagem tormentosa da psychonevrose, o cerebro não poderá dar a este delirio secundario a forte seiva de que se alimentam os primitivos; entretanto, dar-lhe-ha ainda a força psychica precisa a uma evolução que póde ser longa e de certo modo movimentada. É n'este especial sentido que, a meu vêr, a Verrücktheit secundaria deve ser admittida. Note-se, porém, que dizemos Verrücktheit e não Paranoia, no que divergimos de Tonnini. E esta divergencia não é só de fórma, mas de fundo, não apenas de nomenclatura, mas até certo ponto de interpretação. Com effeito, se bem comprehendemos todo o pensamento do escriptor italiano, a psychonevrose sommar-se-hia com uma simples predisposição vesanica para determinar a Paranoia, que os delirios systematisados secundarios symptomatisam; ao contrario, eu penso que a Paranoia preexiste á psychonevrose, embora tendo uma fórma mitigada e revestindo até ao advento d'esta uma feição mal definida, um verdadeiro typo indifferente. A psychonevrose que, na interpretação de Tonnini, contribuiria essencialmente para a constituição da Paranoia, não faz, a meu vêr, mais do que accentual-a, provocando a Verrücktheit, isto é, imprimindo-lhe um definido typo delirante. Todas as degenerescencias teem graus intensivos ou de gravidade: na ordem das paranoicas a mais grave seria a que mais rapidamente chega á maturidade, a mais precoce, a que desde a puberdade se revella por delirios systematisados, isto é, pela _Verrücktheit originaria_; a menos grave seria a que só attinge a maturidade por virtude de um abalo emocional, a mais tardia, a que se manifesta pela _Verrücktheit secundaria_. Mas em qualquer dos dois casos, como cm todos, a anomala constituição cerebral que na essencia caracterisa a Paranoia, é congenita. E eis porque eu não hesito em acceitar uma _Verrücktheit secundaria_, como não hesitei em admittir uma _Verrücktheit aguda_, comquanto sustente a _primitividade_ e a _chronicidade_ essenciaes da Paranoia. IV--O RACIOCINIO E OS DELIRIOS PARANOICOS Erros doutrinarios de Lasègue e Foville sobre a interpretação pathogenica dos delirios systematisados; como se perpetuaram na psychiatria franceza--A autoobservação e o raciocinio não representam um papel na génese dos delirios paranoicos--Depoimento dos factos--A primitividade dos delirios paranoicos, sua origem ideativa. Entre os erros concebidos a proposito da origem, sempre anciosamente procurada, dos delirios de perseguições e de grandezas, um ha que, embora contradictado pela experiencia, se divulgou, sobretudo em França, com manifesto prejuizo de uma sã pathogenia: refiro-me ao que faz intervir na génese d'estes delirios a autoobservação e o raciocinio do doente. Lasègue, affirmando que o perseguido, normal até ao momento da invasão da doença, annunciada por um vago, mas profundo mal-estar, se perscruta, se dobra sobre si mesmo, e acaba, não sem hesitações, por encontrar na hostilidade dos homens a interpretação dos seus soffrimentos, foi o creador d'esse erro funesto, que Foville generalisou mais tarde, fazendo proceder a megalomania da necessidade que o perseguido sente de explicar-se os motivos das acintosas miserias soffridas. Repetida como uma sorte de _cliché_ por successivas gerações de alienistas franceses, esta gratuita vista do espirito, que só Morel repudiou, insinua-se ainda nos livros contemporaneos; e assim é que, embora sem um só caso em apoio, Magnan, á maneira de Foville, enumera o _raciocinio_ entre os fundamentos possiveis da transição, no Delirio Chronico, da phase persecutoria á phase ambiciosa. Comecemos por examinar esta singular pathogenia em relação ao delirio de perseguições a que primeiro se applicou. Segundo ella, o perseguido, como um homem são, abruptamente assediado de obscuras emoções dolorosas, buscaria comprehendel-as, determinar-lhes as causas, fazendo conjecturas e construindo hypotheses, entre as quaes está a que, por successivas e mais ou menos demoradas exclusões, elle acceita como a melhor e mais explicativa: a de uma perseguição. A apparente nitidez d'esta pathogenia seduziu os espiritos; e, comtudo, ella é radicalmente falsa. Em primeiro logar, a observação clinica protesta contra, a normalidade do perseguido anteriormente á invasão do delirio, proclamando-o não só um predisposto, as mais das vezes hereditario, mas um verdadeiro candidato á loucura, Antes de imaginar o seu Delirio Chronico anti-degenerativo, releve-se-me a expressão, Magnan reclamava para os delirantes systematisados uma ancestralidade vesanica de duas gerações, pelo menos; e esta idéa, já antes emittida por Morel, é a que sempre dominou as psychiatrias allemã e italiana, accordes em acceitar como hereditariamente invalido o cerebro paranoico. Por outro lado, jámais se estudou de perto a vida predelirante de um perseguido sem que n'ella se encontrassem seguras manifestações de exaggerado subjectivismo, de autophilia, de egocentricidade, tornando difficil, melindroso e ás vezes chocante o commercio social d'este paranoico. E, como se tudo isto não fosse bastante para condemnar a ingenua supposição da normalidade de um espirito, que ámanhã fabricará, sem causas determinantes, um absurdo e tenacissimo delirio, surge não raro no perseguido a estygmatisação physica da degenerescencia. Em segundo logar, é absolutamente inexacto que o inicial symptoma da doença seja no perseguido, como a theoria inculca, um phenomeno obscuro de ordem sensivel, uma vaga e confusa emoção de que se encontre excluido, como nos prodromos de outras affecções, um elemento ideativo. A experiencia diz precisamente o contrario. Quando o perseguido começa, no periodo chamado de incubação do delirio, a isolar-se da familia e dos amigos, a evitar o convivio, a alterar os seus habitos de existencia, a irritar-se, se o censuram ou simplesmente o interrogam, fal-o já por desconfiança do meio, que reputa hostil. É certo que, a titulo de vaga, mas persistente emoção egocentrica, essa desconfiança, mitigada e ainda compativel com a vida social, o caracterisou sempre; agora, porém, ella tornou-se definido _sentimento_ pela clara apparição no espirito de uma _idéa_ de hostilidade e de perigo. A inquirição perscrutadora do doente a tudo quanto o cerca, a procura minuciosa e subtil de provas palpaveis e evidentes da mal-querença dos outros, a eclosão, emfim, das illusões sensoriaes, tudo prova, irrecusavelmente, que a morbida sensibilidade do perseguido se exerce sob o dominio de um pensamento definido, de uma _idéa_ que a orienta, que lhe imprime uma direcção, que a conduz. A illusão auditiva, phenomeno prodromico dos mais precoces e do qual a allucinação ha de surgir, suppõe já um erethismo sensorial a que preside, consciente e nitida, embora ainda susceptivel de ulteriores desdobramentos, a _idéa_ de uma hostilidade exterior. E é mesmo, é justamente porque essa idéa está presente no espirito e se lhe impõe que o perseguido paralogisticamente exhibe, como provas de uma mal-querença, interpretações aggressivas das palavras mais indifferentes, dos sons mais insignificativos, dos gestos e dos successos mais incaracteristicos; cahindo sinceramente n'uma petição de principio, o perseguido prova que no seu cerebro existe uma idéa que o tyrannisa, que o empolga, e que, tornada um centro de associações psychicas, lhe vicia o raciocinio. Que essa idéa, como todas, proceda de preexistentes emoções, eis o que não contestamos, porque tudo na ordem do pensamento directa ou indirectamente reponta do humus da sensibilidade; mas só depois que ella espontaneamente appareceu na consciencia é que o delirio se Tal é o irrecusavel depoimento da clinica, absolutamente incompativel, como se vê, com a theoria que faz dos delirios paranoicos resultados de um esforço da intelligencia para comprehender e interpretar vagos e obscuros estados emotivos. Se essa theoria prevalecesse, a autonomia nosographica do delirio systematisado de perseguições seria inteiramente chimerica; e todo o esforço de Lasègue para o destacar da melancolia delirante resultaria inane, pois que a pathogenia, a despeito de todas as possiveis differenciações symptomaticas, identificaria definitivamente as duas doenças. Tendo de voltar ainda a este assumpto, procuraremos então interpretar as hesitações dos perseguidos e megalomanos na exhibição dos respectivos delirios. Por mal comprehendido, esse facto contribuiu não pouco para acreditar a phantastica doutrina da génese consciente e reflexiva dos delirios systematisados. A hesitação, parecendo implicar a duvida, iria bem com a opinião que faz d'esses delirios _conjecturas_ de um Eu que se observa, _hypotheses_ de um espirito que se perscruta, buscando dar-se conta de accidentaes perturbações emotivas. Veremos opportunamente que a interpretação do facto é muito outra; que essas hesitações não são senão o resultado da lucta que se exerce entre idéas nascidas do inconsciente e o systema de conceitos formados pela educação e até um certo tempo impostos pelo meio social. De modo analogo explicaremos o facto, erroneamente interpretado pelos psychiatras francezes, da inquietação dos perseguidos no periodo inicial da doença. V--AS ALLUCINAÇÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS Erro de Foville sobre as relações dos delirios systematisados com as allucinações; como se perpetuou na psychiatria franceza--Uma antiga idéa de Magnan, exposta por Legrain, sobre este assumpto; falsidade d'essa idéa--Primitividade da concepção sobre a allucinação nos delirios paranoicos--Uma rectificação de Magnan. Dada a extrema frequencia dos erros sensoriaes, sobretudo das allucinações auditivas, na loucura systematisada, tem-se perguntado se as perturbações da sensibilidade especial precedem as idéas delirantes, servindo-lhes de base e fornecendo-lhes o contheudo, ou se, pelo contrario, apenas lhes succedem como uma sorte de confirmação. Lasègue, sustentando que as allucinações auditivas, unicas, segundo elle, compativeis com o delirio de perseguições, não são nem o antecedente necessario, nem o consequente inevitavel d'esta vesania, estabeleceu claramente a independencia essencial dos erros conceptuaes e perceptivos na mais commum das fórmas delirantes da Paranoia. Retomando, porém, annos depois a questão, Foville admittiu para ella duas ordens de soluções, desigualmente frequentes: uma, relativamente rara, em que o delirio é primitivo e as allucinações secundarias; outra, muito commum e, no delirio de perseguições, constante, em que a relação inversa se realisa. «O delirio, dizia elle, póde ou principiar _d'emblèe_ pelos conceitos ou affectar primeiro as sensações e extender-se depois ás idéas de um modo secundario»[1]. E, analysando cada um d'estes casos, commentava: «N'este ultimo (primitividade das allucinações) as funcções puramente intellectuaes não são, desde o começo, intrinsecamente lesadas, antes continuam a executar-se segundo a logica. Como faz notar Delasiauve, a faculdade syllogistica persiste intacta: emquanto se exerce sobre dados exactos, o producto das suas operações é normal e sensato; quando, pelo contrario, se exerce sobre dados falsos, isto é, sobre sensações imaginarias ou mal interpretadas, sobre allucinações e illusões, o producto encontra-se forçosamente em contradicção com a realidade. O delirio das sensações tem por effeito engendrar o delirio dos conceitos, sem que a intelligencia seja em si mesmo lesada e sem que ella deixe de funccionar sãmente, quando não é induzida em erro. Tal é um dos modos de producção e, não hesitamos em crêl-o, o _mais vulgarmente observado_ da loucura parcial ... Mas esta ordem na successão dos phenomenos morbidos, embora a _mais frequente_, não é constante. Acontece tambem _algumas vezes_ gue a perturbação começa por concepções erroneas, que succedem a uma idéa fixa na ausencia de qualquer allucinação. N'este caso ainda, faz-se ordinariamente uma propagação analoga á que indicamos ha pouco, mas em sentido inverso. Ao fim de certo tempo, as concepções delirantes transformam-se em sensações falsas, o delirio extende-se ás percepções; o doente torna-se allucinado, porque era já delirante, em vez de tornar-se, como ha pouco, delirante, porque era allucinado»[2]. [1] Foville, _Obr. cit._, pag. 341. [2] Foville, _Obr. cit._, pag. 341. Ora, ao passo que o megalomano-perseguido seria as mais das vezes, segundo Foville, um delirante-allucinado, o perseguido-megalomano, pelo contrario, seria sempre um allucinado-delirante. Por muito singular que se nos affigure, este modo de vêr de Foville sobre a primitividade das allucinações na Paranoia persecutoria teve um exito só comparavel ao da sua theoria das origens reflexivas e raciocinadas do delirio ambicioso. Repetido em milhares de tiragens pelos alienistas francezes, este novo _cliché_ pathogenico perpetuou-se como o primeiro. Magnan, por exemplo, acceitava-o ainda em 1886 e dava-lhe curso nos trabalhos dos seus discipulos. Como Foville, o medico de Sant'Anna admittia que nos delirios systematisados a allucinação póde tanto ser um symptoma derivado da persistencia de conceitos falsos, como um phenomeno primitivo sobre que assenta e de que procede a ideação pathologica. O primeiro d'estes casos dar-se-hia nos _delirios d'emblèe_; o segundo no _Delirio Chronico_. Os degenerados, unicos capazes de fabricarem um delirio sem preparação, e de serem, portanto, megalomanos-perseguidos, entrariam no grupo dos delirantes-allucinados; os normaes, unicos a quem se consigna o Delirio Chronico e, portanto, perseguidos-megalomanos, seriam allucinados-delirantes. Eis como, interpretando o pensamento do mestre sobre as relações da allucinação com as idéas morbidas nos _delirios d'emblèe_ e no _Delirio Chronico_, se exprimia Legrain: «O mecanismo segundo o qual se produzem as allucinações, varia nos dois casos. No Delirio Chronico ellas são essencialmente primitivas; todo o delirio é construido sobre ellas, e se ellas não existissem, o delirio, que lhes é consecutivo, não existiria. Nos degenerados delirantes, quando existem, as allucinações formam-se de um outro modo. São symptomas contingentes da doença, não a sua base immutavel, pois que numerosos delirios degenerativos evolucionam sem allucinações. Quando estas complicam a scena morbida, é o proprio delirio que as _provoca_, as mais das vezes, em virtude do seguinte mecanismo: Todos os centros cerebraes se encontram em estado completo de erethismo; o cerebro anterior elabora as idéas delirantes e evoca as imagens nos centros posteriores; as imagens assim evocadas véem representar-se nos centros anteriores com uma vivacidade tal que são interpretadas como outras tantas realidades. Assim, a allucinação encontra a sua causa directa n'uma série de idéas delirantes que a fazem nascer, e produz-se como um verdadeiro reflexo. O caminho centripeto parte dos centros anteriores, em que é elaborada a idéa delirante, ganha as regiões posteriores do cortex, em que a imagem é evocada, depois volta aos centros anteriores, trazendo a imagem, que vem misturar-se ao delirio e se impõe como realidade ... Muito outra é a allucinação no Delirio Chronico: nasce primitivamente, _sur place_, nas regiões posteriores do cortex, sem ser provocada. Uma lesão local, lentamente progressiva, a produz; ella é a expressão funccional de uma lesão anatomica. Partindo d'esse ponto, ganha as regiões anteriores, que surprehende realmente. O cerebro anterior, em plena posse do seu equilibrio, da sua ponderação, interpreta-a como um facto real e deduz d'ella conclusões logicas, que são as primeiras idéas delirantes. Vê-se então evolucionar um delirio absolutamente sistematisado, lançando uma perturbação na intelligencia intacta e ponderada, que reage com todas as suas energias. No degenerado, a adhesão no delirio é plena e inteira desde o começo; no delirante chronico ella não é senão lenta e progressiva, fazendo-se a systematisação pouco a pouco, mercê de persistentes allucinações»[1]. [1] Legrain, _Du délire chez les dégénérés_, pag. 141. Se n'esta passagem de Legrain substituirmos as expressões de _cerebro anterior_ e _posterior_ pelas suas equivalentes antigas de _intelligencia_ e _sensibilidade especial_, reapparece-nos a citação precedente de Foville. Uma velha doutrina, pois, resurge sob roupagens novas. Será necessario affirmar n'esta altura do nosso trabalho que a primitividade das allucinações nos delirios paranoicos é ainda uma ficção, que o exame despreoccupado dos factos annulla e apaga? É incontestavel que, encarando de um modo geral as relações possiveis dos erros sensoriaes com os conceitos morbidos, são legitimos e a cada passo se realisam os casos enumerados por Foville: se ha delirios que provocam as allucinações, outros ha, que, ao contrario, as teem por base raciocinando sempre. É a velha doutrina. Mas como de um raciocinio só podem surgir conclusões falsas quando as premissas o são tambem, Legrain, á maneira de Delasiauve e de Foville, faz das illusões e allucinações, nascidas _sur place_ nos centros sensoriaes, o elemento morbido aggressivo e a premissa erronea de que o cerebro anterior deduzirá, emfim, o delirio. Acabamos de vêr, e toda a insistencia n'este ponto seria impertinente, que a incapacidade de corrigir percepções erradas implica deficiencia de senso critico e, portanto, insanidade mental, anormalidade psychica. Nem mesmo admittindo com Legrain que o cerebro reage contra a allucinação invasora com todas as suas energias, poderia evitar-se a conclusão, pois que a derrota denuncía a fraqueza e inferioridade d'essas energias. Mas será verdade, ao menos, que o perseguido reaja contra as illusões e allucinações incessantemente originadas nos centros sensoriaes sobreexcitados? De modo nenhum. Bem ao contrario do que Legrain pretende, as illusões e allucinações são para os perseguidos, como para todos os paranoicos, pontos de apoio e não de partida do delirio, confirmações e não elementos formativos d'elle, eccos dos erros conceptuaes e não o seu fundamento, n'uma palavra, precarios symptomas derivados e não phenomenos essenciaes e primitivos. A demonstração d'esta verdade clinica não será difficil, nem longa. Uma só passagem de Magnan a fará. Fallando do que se passa no chamado periodo de incubação do delirio persecutorio, escreve n'um dos seus ultimos trabalhos o eminente observador: «Os doentes experimentam um mal-estar, um descontentamento que não sabem explicar-se; tornam-se apprehensivos, inquietos, _desconfiados, crendo notar certas mudanças_ na maneira de ser da familia e mesmo dos extranhos. Dormem mal, teem menos appetite, menos aptidão para o trabalho e para os negocios. N'esta época poderiam ser tomados por hypocondriacos. Pouco a pouco _parece-lhes que os observam_, que _os olham de travez_, que os _desprezam_; duvidam, hesitam, permanecem fluctuantes entre idéas variadas, acceites primeiro, repudiadas em seguida, admittidas pouco a pouco e dando logar, emfim, a interpretações delirantes ... O doente persiste assim perturbado, inquieto, por vezes excitado, todo entregue ás _concepções penosas que principiam a assaltal-o_ e _indifferente a tudo o que não parece prender-se com o seu delirio_. Os grandes acontecimentos não o commovem, as perturbações politicas deixam-no indifferente, as perdas de dinheiro e as luctas de familia não o emocionam. Pelo contrario, factos insignificantes, mas que se relacionam com as suas preoccupações penosas, que as justificam, adquirem uma importancia extrema e provocam-lhe a colera. Se uma pessoa se esquece de o saudar, vê n'isto uma injuria voluntaria; se alguem tosse ou escarra ao pé d'elle, se diante d'elle uma janella ou uma porta se abrem, se-uma cadeira se desloca, reconhece outros tantos testemunhos de despreso. As provas de benevolencia e de afeição tornam-se zombarias, e o proprio silencio é uma offensa. O vago apaga-se pouco a pouco; á hesitação succede a certeza, e, fortificadas por todas estas provas, as suas convicções tornam-se inabalaveis. N'estas condições, o doente, sempre em guarda, espia, escuta, surprehende n'uma conversação uma phrase que se attribue--eis a interpretação delirante; ou se crê aggravado por uma palavra insignificante, mas cujo som apresenta alguma analogia com uma injuria grosseira e que elle confunde com esta--eis a illusão. Depois, a _idéa constante de uma perseguição_, a tensão incessante da intelligencia acabam por _despertar o signal representativo da idéa_, a imagem tonal; n'uma palavra, a allucinação auditiva produz-se»[1]. [1] Magnan, _Obr. cit._, pag. 237. Não é possivel estabelecer de um modo mais preciso e mais eloquente a primitividade do delirio e a secundariedade da allucinação. Todo o commentario seria pallido, todo o retoque prejudicial a este quadro _d'après nature_. A questão de saber corno Magnan exprime em 1893 uma opinião diametralmente opposta á de Legrain, que em 1886 se dava como interprete da escóla de Sant'Anna, é secundaria para nós e sem interesse para a sciencia. Cremos que n'este caso, como no de Gérente, Magnan se contradicta a si proprio, fazendo do seu Delirio Chronico edições successivas e todas differentes. Felizmente, e é isto o que nos importa notar, a correcção introduzida ultimamente no capitulo das relações entre os erros perceptivos e conceptuaes, é conforme á verdade clinica. VI--AS OBSESSÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS. A inquietação dos perseguidos e as hesitações de certos paranoicos na exhibição do delirio; como se explicam estes factos--A doutrina classica das obsessões; sua inexactidão--Idéas do auctor; inesperada confirmação d'ellas por J. Séglas--A obsessão é um delirio systematico abortado; este é uma obsessão progressiva--Demonstração; analyse dos factos--Como se fórma o Eu; estratificações systematisadas--A personalidade e as subpersonalidades; o atavismo. Se as idéas que formam o contheudo dos delirios paranoicos, não traduzem um esforço de reflexão exercendo-se sobre estados emotivos, nem reconhecem por causa os erros sensoriaes, como cremos ter provado, a conclusão se impõe de que ellas surgem na consciencia á maneira de obsessões. Comquanto sustentada por uma parte dos psychiatras allemães e italianos, esta affirmação está de tal modo em desaccordo com as radicadas tradicções da escóla franceza que não será sem vantagem discutil-a. Antes, porém, seja-me licito notar que, acceite a origem obsessiva dos delirios systematisados, dois factos, que os alienistas francezes não lograram explicar senão phantasiosamente e em contradicção com os dados mais positivos da observação clinica, recebem uma interpretação simplicissima: refiro-me á inquietação dos perseguidos quando o seu delirio aponta, e ás hesitações de grande numero de paranoicos na exhibição dos seus conceitos falsos. O primeiro d'estes factos, abusivamente comparado pelos psychiatras francezes ao vago mal-estar precursor das doenças graves, não é, em realidade, mais do que a natural reacção emotiva do Eu, subitamente empolgado por uma idéa penosa, que irrompe do inconsciente; longe de constituir, como a anciedade melancolica, uma situação primitiva de que surgirão os erros conceptuaes, é um estado secundario, um effeito mesmo da presença inesperada de uma idéa depressiva no campo da consciencia. Em que consiste, de facto, essa inquietação? Definitivamente e no fundo--em sentimentos e actos defensivos; ora, a organisação de uma defeza suppõe a idéa de um ataque, de uma hostilidade, de um perigo. Sem duvida, essa idéa só se terá transformado n'um conceito e recebido a sua inteira systematisação, quando se houver feito o reconhecimento do inimigo e das causas da aggressão; a partir, porém, do momento em que obsessivamente ella irrompe e se impõe ao espirito, a inquietação apparece como o grito de alarme da esphera emotiva do perseguido. Quanto ás hesitações, tantas vezes observadas, do paranoico na exteriorisação do seu delirio, qualquer que elle seja, nada mais facil que interpretal-as. Trata-se ainda, n'este caso, de um phenomeno secundario, inseparavel do primeiro. Surprehendendo a consciencia pelo contraste que faz com o systema de conceitos positivos recebidos da educação, a idéa delirante é para o Eu alguma coisa de extranho e de interposto que, tendo-lhe provocado uma forte reacção emotiva, irá ainda remodelar toda a sua precedente orientação pensante, não sem difficuldades e combates; a hesitação em affirmar o delirio é, pois, o resultado da novidade e extranhesa das idéas que o formam. Longe de ser, como se pretendeu, a duvida de um espirito que elabora conjecturas e procura cotejal-as com os actos, essa hesitação traduz o esforço penoso e vacillante de adaptação do Eu a uma nova ordem de idéas, que elle vê surgir e cuja origem desconhece. O paranoico não duvida, porque não critica. Como a victima de uma suggestão hypnotica activa não procura evitar o acto ordenado e imposto, ainda quando elle choca, ás suas habituaes inclinações, mas busca dar-lhe apparencias de espontaneo e querido, o paranoico, longe de tentar a correcção da sua idéa falsa, cuida em reforçal-a pela interpretação delirante dos factos. Mas ás vezes succede tambem que já o delirio se encontra systematisado e ainda o paranoico o occulta ou apenas o confia do papel, n'uma sorte de soliloquio. A razão d'este facto está em que o doente, reconhecendo, pelo que, em si proprio se passou no periodo presystematico, a extranheza do seu delirio e a formidavel antithese que elle faz com as idéas correntes, procura evitar as inuteis e irritantes discussões que provocaria, exhibindo-o. É o conhecido caso de alguns crentes que, em vez de propagarem a sua fé, penosamente conquistada em repetidas luctas interiores, se recolhem n'ella, evitando a controversia, sentindo uma sorte de pudor em desdobrar diante de profanos irreverentes o inabalavel systema das suas convicções religiosas. Mas eu prevejo uma objecção a esta doutrina. Como acceitar, dir-se-ha, a origem obsessiva dos delirios systematisados, se um dos caracteres das obsessões é justamente o de não serem integradas na consciencia, de Tal foi, nos seus contornos, a doutrina que esboçamos em 1892 e exposemos ainda em conferencias sobre a Paranoia no começo de 96, contradictando os que pretendem achar contrastes irreductiveis entre obsessão e delirio. Insubsistentes no terreno da psychologia abstracta, esses contrastes não o são menos no campo da clinica, onde Tamburini, Stephani, Séglas, Catzras e outros demonstraram, contrariamente á cathegorica affirmação de J. Palret, que existem allucinações sensoriaes e psychomotoras exclusivamente determinadas pela persistencia de idéas obsessivas. Longe de serem antinomicos, a obsessão e o delirio approximam-se pela communidade de origem: a obsessão seria, na ordem de idéas que sustentamos, um começo de delirio systematisado, como este seria uma obsessão progressiva, desenvolvendo-se á custa de successivas associações. N'este sentido se interpreta sem esforço a expressão de _paranoia rudimentar_ por que Arnadt, Morselli e outros designam a obsessão. Mas, porque reputamos fundamentaes estas idéas, procuraremos dar-lhes aqui todo o desenvolvimento que ellas comportam. O phenomeno pathologico da obsessão tem, como nota Dallemagne, um representante physiologico no facto banal de uma idéa indifferente que, sem sabermos como, nos surge na consciencia, interrompendo disparatadamente o curso das nossas preoccupações e desapparecendo um instante depois. Não ha aqui, em verdade, nem angustia, nem irresistibilidade; ha, porém, o phenomeno da emergencia inexplicavel e extranha de uma imagem, que o jogo consciente das idéas não provocou. A systematisação não existe tambem: um momento presente na consciencia, a idéa desappareceu sem deixar n'ella um vestigio. Imaginemos, porém, que a idéa extranha pertence á cathegoria das impulsivas, e concedamos que o acto n'ella representado seja de natureza cruel: atirar, por exemplo, á linha férrea um companheiro de viagem. É evidente que o novo caso differe muito do anterior. Em primeiro logar, a idéa tem desde logo um começo de systematisação, por isso que mentalmente nos representamos uma scena complicada e os seus possiveis effeitos: imagens motoras, imagens sensoriaes, sentimentos, emoções, idéas de leis e principios moraes, idéas de sanção penal, tudo entra em jogo, tudo se grupa, em torno da idéa primitiva. A vontade lucta, como geralmente se diz, ou, como melhor deveria dizer-se, as systematisações normaes, mais ou menos organisadas e resistentes, repellem a systematisação anomala e intrusa. Esta, todavia, não desapparece sem vestigios; impossibilitada de tomar as reclamadas vias motoras externas, gastou-se na esphera emotiva, dando-nos um instante de inquietação, um sobresalto, um começo de angustia, traduzida, talvez, physicamente n'um subito pallor de face, n'uma agitação momentanea do pulso. Mas figuremos que a idéa se reproduz ainda, uma vez, duas, muitas vezes. A systematisação, que ella provocou no inicial momento, repete-se, avigora-se, organisa-se; a lucta das systematisações normaes antagonistas renova-se, e d'essa renovação deriva o prolongar-se na consciencia a presença de uma systematisação anomala, cada vez mais nitida e mais forte. As imagens motoras farão nascer o impulso; e este, se as systematisações normaes o não conseguem desviar n'um sentido diverso (a convulsão, o espasmo, o toque d'uma campainha de alarme, o grito de aviso) acabará por ser satisfeito, provocando uma _détente_, um allivio. Os caracteres da obsessão pathologica--origem invluntaria, angustia, irrisistibilidade, satisfação consecutiva, estão realisados, O que provocou a apparição d'estes caracteres? Em primeiro logar, as systematisações determinadas pela idéa obsessiva, em segundo, a lucta d'ellas com as systematisações normaes. Se a idéa obsessiva fosse incapaz de provocar systematisações, se fosse indifferente, ter-se-hia dissipado sem vestigios conscientes, como no caso que primeiro figuramos; se, por outro lado, uma forte lucta se não tivesse realisado entre antinomicos grupos ou systemas de factos psychicos, não existiria angustia concomitante, nem satisfação consecutiva. A obsessão deu-se, pois, á custa, de uma dissociação parcial e transitoria do Eu. Alarmada e impotente, a consciencia assistiu ao desdobramento de um acto reflexo; clara ao principio, ella obscureceu-se um instante--aquelle precisamente em que todo o vasto e harmonico systema de idéas, de affectos e impulsos, que constituem o Eu, se deixou vencer pelo systema antagonista creado pela idéa imposta. Que esta seja impulsiva, emotiva ou meramente abstracta, pouco importa, de resto; o quadro dos symptomas da obsessão é em todos os casos o mesmo, desde que se estabelece lucta entre systematisações pathologicas e normaes. É n'esta lucta que reside o caracter essencial da obsessão; tudo o mais é secundario e derivado. Imaginemos, por exemplo, que a idéa de matar surge no espirito de um criminoso-nato. Não encontrando em face d'ella, a offerecer-lhe resistencia, a longa série de systematisações que se comprehendem na designação synthetica de _senso moral_, essa-idéa exteriorisar-se-ha de um modo puramente reflexo e automatico; fallaremos, então, de impulso morbido, mas não será licito pronunciar o nome de obsessão. Figuremos ainda que uma idéa, embora não derivada do jogo normal e logico do pensamento, é de natureza a lisongear os nossos gostos, as nossas aspirações, os nossos desejos. Insubsistentes e chimericas, as systematisações, ás vezes complicadas e extensas, que ella gera ao irromper no nosso espirito, não provocam, todavia, uma lucta, é o estado de espirito assim creado não póde chamar-se obsessão. Tal é o caso da _réverie_, dos castellos no ar, de toda essa phantasiosa ideação em que, a despeito do testemunho contradictorio da realidade, nos deixamos apanhar involuntariamente. Quem, apenas remediado ou pobre, se não sentiu uma vez tomado, sem saber como ou porque, da idéa de opulencia, e não partiu d'ahi para o sonho dos palacios, das equipagens, da arte, da phylantropia? Comquanto anomalo e inutil, este estado de espirito não é obsessivo, porque não provoca urna _lucta_ de systematisações. Esta é, pois, repetimol-o, o signal, o seguro indicador da obsessão:--aquillo em que ella essencialmente consiste. Mas não poderá essa lucta, que de ordinario se renova, dando ás obsessões um caracter _intermittente_, cessar pela victoria definitiva das systematisações pathologicas, o que equivale a dizer--pela constituição de um delirio? Cremos que sim; e para comprehendel-o basta admittir que a idéa obsessiva é, na esphera inconsciente de que procede, um forte centro de systematisações organisadas, capazes não só de vencerem a resistencia das systematisações normaes, mas de as desviarem em proveito proprio. Já a victoria intermittente da obsessão sobre as systematisações normaes denuncía a existencia de ignoradas estratificações psychicas, tão extensas e importantes, comtudo, que podem por força propria ou por fraqueza das suas antagonistas, provocar uma dissociação do Eu e n'um dado instante occupar todo o campo da consciencia. Que se supponha maior a sua força e menor ao mesmo tempo a das systematisações normaes inhibitorias, e o triumpho será definitivo, porque toda a esphera consciente não conterá mais do que associações pathologicas. Teremos o delirio systematisado; e então, bem evidentemente, a dissociação do Eu, que na obsessão é passageira, tornar-se-ha definitiva, substituindo-se á personalidade normal vencida uma outra vencedora. Mas d'onde vem esta e como se formou? Eis o que a doutrina da evolução permitte explicar. Na sua lenta e progressiva constituição, a personalidade humana encontra-se successivamente representada por systematisações psychicas de uma complexidade crescente, isto é, por associações e inhibições cada vez mais extensas, traduzindo a acção do mundo sobre o Eu e a reacção d'este sobre o mundo. Cada nova systematisação formada, integrando elementos psychicos, é uma satisfação dada ás naturaes affinidades d'estes; cada nova inhibição realisada, dissociando elementos psychicos, provoca a formação de outras systematisações em que ellas vão achar novamente logar e novamente satisfazer uma affinidade propria. Assim se formam lentamente, mercê da hereditariedade, que capitalisa as conquistas do espirito, successivas estratificações systematicas de idéas, de emoções, de impulsos, n'uma palavra, successivas _tendencias_, que representam em momentos dados um espirito, um Eu, uma personalidade, emfim. As estratificações mais recentes são tambem as menos organisadas e as mais instaveis; os systemas de que ellas se compõem, contrariando em grande parte antigas e habituaes affinidades dos elementos psychicos, subsistem n'um equilibrio que só o tempo tornará estavel. Mas o tempo, quando se trata de evolução, não é a vida de um individuo, é a de gerações seguidas; é, pois, necessario para que a estabilidade psychica de uma personalidade se realise que a herança se faça sempre n'um mesmo sentido, que a orientação ou finalidade do espirito não seja perturbada. Se este facto se não dá, a estratificação mais antiga sobreleva a mais recente e atravez d'ella rompe total ou parcialmente. Cada personalidade é, pois, n'um dado momento a juxtaposição de subpersonalidades relegadas para o inconsciente, mas tenazes, persistentes, susceptiveis de uma integral ou parcial revivescencia. Por traz do _individuo_, que representa as ultimas acquisições de uma civilisação, está a _especie_, que representa todas as systematisações procedentes da acção lenta do meio, capitalisada pela herança. N'esta ordem de idéas, as obsessões e os delirios systematisados apparecem-nos _como resurreições parciaes e mais ou menos extensas de um Eu ancestral_. É da lucta que se estabelece entre este e o Eu de recente formação que derivam, de um lado, a _angustia_ que acompanha as obsessões e o allivio que lhes succede quando a _détente_ se realisa, do outro, a _inquietação_ dolorosa que faz cortejo aos delirios systematisados na sua phase inicial e a tranquillidade relativa que depois surge quando o paranoico definitivamente adquire uma convicção, uma crença, quando, na phrase justa dos alienistas francezes, elle sabe, papel e alcance da hereditariedade, fallando apenas de psychoses ancestraes, quando deveriamos com os auctores contemporaneos fallar tambem, pelo menos, das nevropatias. Mas quem não vê que n'este novo terreno o problema se complica sem se resolver? Que para a tara hereditaria de um louco contribuam sómente as psychoses ancestraes ou tambem as nevropatias, ou ainda, generalisando, as diatheses, é seguro que jámais se determinará _á priori_, onde a _predisposição_ termina e a _impregnação_ principia. Tacita ou explicitamente é isto reconhecido pelos proprios auctores que, á maneira de Magnan e de Krafft-Ebing, assignalam á degenerescencia uma pluralidade de causas. Buscando na observação clinica dos symptomas e na marcha das affecções mentaes os indicios da degenerescencia, é evidente que elles abandonam o exclusivo criterio etiologico. Mas se, d'este modo, uma fonte de divergencias cessa, outra, como vamos vêr, immediatamente surge. Que anomalias symptomaticas e evolutivas da mentalidade psychiatrica deverão ser consideradas como indicios ou estygmas de degenerescencia? A este proposito um evidente desaccordo recomeça. Não sendo as doenças mentaes em si mesmas senão anomalias do espirito, o problema posto é o de procurar a anormalidade no anormal. Com que criterio? Magnan não hesita em adoptar _o estado mental_ do louco antes da invasão da psychose. Ouçamos as suas proprias palavras: «O grande grupo dos predispostos simples, faz-se notar por um caracter essencial, invariavel, pathognomonico: até ao dia em que cahem na loucura, os doentes que o formam são julgados _normaes_; comparados aos individuos que nunca se tornam alienados, nenhuma differença apparente revellam. É que n'elles a predisposição não adquiriu ainda um grau sufficiente para se traduzir em caracteres especificos. Esta predisposição é latente e não produziu senão um resultado: fazer do cerebro um logar de menor resistencia e um terreno favoravel, crear uma situação em virtude da qual as causas de desorganisação do equilibrio intellectual terão uma influencia mais marcada do que em outros e uma acção mais duradoura e mais energica. O factor _predisposição_ é evidentemente muito variavel como importancia; o seu valor não póde apreciar-se, á falta de criterio proprio, a não ser entre dois casos extremos. Como quer que seja, a resistencia cerebral dos predispostos deve variar em razão inversa da importancia do factor _predisposição_ ... N'uma outra grande divisão dos predispostos, collocamos os doentes cuja personalidade intellectual e moral é completamente transformada desde a base desde o nascimento pelo facto da aggravação progressiva do factor _predisposição_. Este grupo comprehende os predispostos com _degenerescencia_»[1]. [1] Magnan et Legrain, _Les dégénérés_, pag. 58. Nada, como se vê, apparentemente mais claro: emquanto o simples predisposto é um ser _normal_ até á invasão da doença psychica, o degenerado é _ab ovo_ um ser anormal. Resta sómente determinar em que essa anormalidade consiste. Eis como Magnan se explica a este proposito: «Nos degenerados, a predisposição, qualquer que seja a sua natureza (hereditaria ou adquirida), produziu uma perturbação profunda das funcções psychicas. Desde a origem, desde o nascimento, fazem-se elles notar por anomalias quer do sentimento quer da intelligencia, dos instinctos e das inclinações, quer de todas estas espheras ao mesmo tempo. Adquiriram estygmas que os fazem reconhecer immediatamente e agrupar á parte. Além d'isso a tara degenerativa, de que são portadores, traduz-se muitas vezes por anomalias physicas, cuja significação vem junctar-se á das anomalias psychicas concomitantes. Todos estes estygmas são permanentes, nascem com o individuo e só com elle se extinguem. Em caso algum, estes doentes pensam, sentem ou actuam como os individuos de cerebro normal ou como os predispostos simples. Degenerados por accumulação de taras hereditarias, na quasi totalidade dos casos, podem sel-o, comtudo, algumas vezes pela intervenção de momentos etiologicos potentes, cuja acção desorganisadora se exerce sobretudo nas épocas da evolução cerebral, isto é, na primeira infancia: doenças agudas graves, taes como a variola, a escarlatina e a febre typhoide, acompanham-se de lesões cerebraes irreparaveis. Póde-se admittir ainda a acção degenerativa das doenças fetaes, dos traumatismos, n'uma palavra, de todas as causas sufficientemente fortes para lesar materialmente os centros nervosos ou para impedir o seu desenvolvimento. Mas, qualquer que seja a causa degenerativa, hereditaria ou adquirida, os productos são identicos, e entre si comparaveis; são portadores de caracteres clinicos proprios a fazel-os reconhecer em todos os casos, e significativos da tara hereditaria. Comparados aos seus ascendentes directos, differem d'elles totalmente no ponto de vista das aptidões cerebraes: encontram-se visivelmente n'uma situação mental inferior; são seres novos, anormaes, de mecanismo cerebral falseado. A sua situação mental define-se n'uma palavra: o equilibrio entre todas as funcções cerebraes acha-se destruido e não póde recuperar-se. Fóra mesmo dos casos de verdadeira alienação, esta falta de equilibrio é flagrante. Quando deliram, as suas concepções revestem caracteres pathognomonicos: surgem ás menores causas occasionaes, indicio de extrema instabilidade do equilibrio mental. Fóra das causas moraes, cuja influencia é aqui preponderante em razão da extrema emotividade particular d'estes individuos, os proprios momentos physiologicos--a puberdade, a menopause, os menstruos, a prenhez, são causas de perturbação cerebral. N'elles, as doenças geraes acompanham-se frequentemente de delirio; o cerebro tornou-se o _locus minimae resistentiae_. Os accessos delirantes não teem uma evolução propria: affectam todas as fórmas possiveis e substituem-se com a maior facilidade. A systematisação e a cohesão das concepções delirantes é muito fraca. Não existe nenhuma tendencia á systematisação progressiva. Emfim, os degenerados de maior tara são candidatos a uma demencia precoce, quer primitiva, quer post-delirante»[1]. [1] Magnan et Legrain, _Obr. cit._, pag. 60 a 62. Como se infere d'estas passagens, que citamos _in extenso_, porque resumem toda a doutrina da Escóla de Sant'Anna sobre o assumpto, não ha verdadeiramente, como poderia parecer, um só criterio, _à posteriori_, o estado mental predelirante, para determinar a presença da degenerescencia, mas muitos. Ao lado, com effeito, de uma estygmatisação psychica, essencialmente consistindo n'um original e irreparavel desequilibrio de funcções cerebraes, apparece-nos a estygmatisação somatica, a feição polymorpha e a marcha irregular do delirio, e, ainda, a desproporção entre a causa occasional, que incide sobre o prediposto, e o effeito que ella produz. Ora, não é inteiramente facil conjugar entre si todos estes criterios. Se o degenerado é, como Magnan proclama, um _predisposto maximo_, e se o grau de predisposição é inversamente proporcional ao das causas occasionaes, porque não é degenerado o delirante chronico, no qual uma vesania irreparavel e perpetua surge as mais das vezes sem causa? Responderá Magnan que o delirante chronico é normal até á invasão da vesania. Mas quem não vê que, se o eminente alienista se não engana, affirmando tal, os seus dois criterios brigam? Por outro lado, como já vimos tambem, a estygmatisação physica apparece algumas vezes nos delirantes chronicos. Como conciliar, n'estes casos, o criterio das anomalias somaticas, indicando degenerescencia, com o da systematisação progressiva do delirio, que a exclue? Por outro lado, ainda, se o desequilibrio psychico é a principal caracteristica das degenerescencias, porque não considerar degenerados os hystericos e os epilepticos, tão profundamente desharmonicos sempre não manifestações da vida cerebral? O criterio clinico de Krafft-Ebing é mais extenso que o de Magnan. A presença de um estado de desequilibrio mental antes da invasão da doença, sendo para o psychiatra allemão de uma altissima importancia, não constitue; comtudo, como para o francez, um caracter essencial e imprescindivel do diagnostico da degenerescencia. Fazendo, com enfeito, a distincção entre os predispostos simples e os degenerados, Krafft-Ebing escreve: «Póde ser objecto de discussão saber se um individuo normal até ao apparecimento da psychose, mas procedente de geração psychopatica, deve collocar-se n'um ou n'outro grupo»[1]. O valor maior ou menor da causa occasional póde servir para dissipar as duvidas a este proposito, pois que um dos caracteres distinctivos das psychoses dos degenerados reside precisamente no facto da sua eclosão espontanea ou sob a influencia de minimos agentes provocadores. Este criterio, sobrelevando, na doutrina de Krafft-Ebing, o da presença de um desequilibrio mental anterior á psychose, alarga o ambito da degenerescencia, introduzindo ahi doenças, que Magnan excluiria sob pretexto da normalidade do individuo até á invasão d'ellas. Estão n'este caso, por exemplo, alguns delirios systematisados post-menopausicos. [1] Krafft-Ebing, _Trattato clinico pratico delle malattie mentali_, trad. It., vol. II, pag. 3. Krafft-Ebing separa-se ainda de Magnan, fazendo da periodicidade um dos signaes das psychoses degenerativas, no que é seguido por consideravel numero de psychiatras. Os confrontos e citações feitos bastam para mostrar como são numerosas as dissidencias dos auctores sobre a constituição nosologica do grupo dos degenerados. gravidade e continuidade das causas productoras, a loucura não se considera degenerativa; é-o, pelo contrario, se constitue um estado irreparavel, subsistente, espontaneo ou derivado de insignificantes causas e accusando, portanto, uma inferioridade constitucional. Mas já nas loucuras não degenerativas, nas psychonevroses, o germe da degenerescencia existe; cruzamentos infelizes o desenvolverão na descendencia, mercê da hereditariedade; e eis porque, podendo ter as mais variadas causas, as loucuras degenerativas teem sido chamadas _hereditarias_. Por outro lado, nas fórmas degenerativas menos graves, a regeneração é ainda possivel, mercê de cruzamentos felizes, pois que a hereditariedade tanto capitalisa as boas como as mas tendencias. Isto é dizer que a distincção psychiatrica das psychonevroses e das degenerescencias não tem nada de absoluta, desde que, em vez de considerarmos os casos extremos das duas escalas, fixamos os mais proximos. Dizer com Magnan que o _atavismo_ não implica degenerescencia, porque um typo regressivo seria _normal_, emquanto que um degenerado é um _doente_, que o primeiro, entregue a si, caminharia para diante, como fizeram os o contemporaneos da época por elle representada, ao passo que o segundo marcharia para a extincção pela infecundidade, é commetter um duplo erro: não comprehender que o atavismo humano é sempre parcial e incompleto, consistindo na revivescencia _d'algumas_ qualidades ancestraes, e não reconhecer que a regeneração aos degenerados superiores se torna, em certas condições, possivel. Pois é acaso fatal que a descendencia de um phobico ou de um impulsivo, que são para Magnan incontestaveis degenerados, venha a liquidar pela idiotia esteril? E esse phobico e esse impulsivo não são, pelo facto mesmo do seu _terror_ e do seu _automatismo_ indisciplinado, exemplares de atavismo parcial? Comprehende-se que, a não fazermos um livro do que deve ser apenas um final capitulo d'este _Ensaio_, nos cumpre suspender considerações, que o assumpto comporta, mas que se não prendem immediatamente com o nosso thema. O que acabamos de dizer sobre as degenerescencia em geral, conjugando-se com o que foi dito sobre o atavismo intellectual dos delirantes systematisados, justifica largamente a conclusão de que a Paranoia é uma degenerescencia. BIBLIOGRAPHIA TRABALHOS FRANCEZES: FOVILLE--_La folie avec prédominence du délire des grandeurs_; GARNIER--_Des idées de grandeur dans le délire de persécutions_; GÉRENTE--_Du délire chronique_; KÉRAVAL--_Des délires plus on moins coherents designés sons le nom de Paranoia_ (Archives de Neurologie, vol. XXIX); LEGRAIN--_Du délire chez les dégénérés_; LASÈGUE--_Le délire de persécutions_; MAGNAN--_Le délire chronique à evolution systematique_; MAGNAN--_Leçons cliniques sur les maladies mentales_; MAGNAN ET LEGRAIN--_Les dégénérés_; RÉGIS--_Manuel pratique de médecine mentale_; SÉGLAS--_La Paranoia_ (Archives de Neurologie, vol. XIII). TRABALHOS ALLEMÃES: CRAMER--_Abgrenzung und Differencial Diagnose der Paranoia_ (Allg. Zeitschr. f. Psychiatrie, vol. II); FRITSCH--_Die Verwirrtheit_ (Jahbücher f. Psych., vol. II); KRAFFT-EBING--_Lehrbuch der Psychiatrie_; KRAEPELIN--_Compendium der Psychiatrie_; MEYNERT--_Klinische Vorlesüngen über die Psychiatrie_; MENDEL--_Paranoia_ (Real Encyclopedie); MERKLIN--_Studien über die primäre Verrücktheit_; SCHÜLE--_Klinische Psychiatrie_; SALGO--_Compendium der Psychiatrie_ WERNER--_Die Paranoia_. TRABALHOS ITALIANOS: AMADEI E TONNINI--_La Paranoia e la sue forme_ (Archivio italiano per le malattie nervose, 83-84); BUCCOLA--_Sui delirii sistematisati_ (Rivista di Freniatria, vol. VIII); TANZI--_La Paranoia_ (Rivista di Freniatria, vol. x); TANZI E RIVA--_La Paranoia_ (Rivista di Freniatria, vol. X, XI e XII); TONNINI--_La Paranoia secundaria_ (Rivista di Freniatria, vol. XIII). TRABALHOS INGLEZES E NORTE-AMERICANOS: CLOUSTON--_Clinical lectures on mental diseases_; HAMMOND--_A Treatise on insanity_; HAC TUKE AND BUCKNILL--_A Manual of Psychological medicine_; MAUDSLEY--_Pathlogy of Mind_; SPITZKA--_A Manual of Insanity_. INDICE PREFACIO PRIMEIRA PARTE HISTORIA DOS DELIRIOS SYSTEMATISADOS I--PHASE INICIAL De Areteo a Esquirol--Confusão dos delirios systematisados com a melancolia--A monomania intellectual e as suas fórmas depressiva e expansiva. II--PHASE ANALYTICA De Lasègue a J. Falret e de Griesinger a Snell e Sander--O delirio de perseguições; a megalomania; o delirio dos perseguidores; a Verrücktheit secundaria; a Verrücktheit originaria--Começo de interpretação pathogenica. III--PHASE SYNTHETICA
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