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Estudos do IPEA, Notas de estudo de Cultura

Estudos do IPEA

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 11/03/2010

fabio-caldeira-7
fabio-caldeira-7 🇧🇷

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Baixe Estudos do IPEA e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! ipea45anos Por um Brasil desenvolvido ipea Instituto de PesquisaEconômica Aplicada Organizador JOSÉ CELSO CARDOSO JR. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 REVISITADA: RECUPERAÇÃO HISTÓRICA E DESAFIOS ATUAIS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NAS ÁREAS ECONÔMICA E SOCIAL Volume 1 Governo Federal Ministro de Estado Extraordinário de Assuntos Estratégicos – Roberto Mangabeira Unger Secretaria de Assuntos Estratégicos Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos, o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais – possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiro – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus técnicos. Presidente Marcio Pochmann Diretor de Administração e Finanças Fernando Ferreira Diretor de Estudos Macroeconômicos João Sicsú Diretor de Estudos Sociais Jorge Abrahão de Castro Diretora de Estudos Regionais e Urbanos Liana Maria da Frota Carleial Diretor de Estudos Setoriais Márcio Wohlers de Almeida Diretor de Cooperação e Desenvolvimento Mário Lisboa Theodoro Chefe de Gabinete Persio Marco Antonio Davison Assessor-Chefe da Assessoria de Imprensa Estanislau Maria de Freitas Júnior Assessor-Chefe da Comunicação Institucional Daniel Castro Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria URL: http://www.ipea.gov.br ipea45anos Por um Brasil desenvolvido ipea Instituto de PesquisaEconômica Aplicada Organizador JOSÉ CELSO CARDOSO JR. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 REVISITADA: RECUPERAÇÃO HISTÓRICA E DESAFIOS ATUAIS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NAS ÁREAS ECONÔMICA E SOCIAL Volume 1 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Diretoria Colegiada .............................................................................................................7 INTRODUÇÃO A CF/88: ECONOMIA E SOCIEDADE NO BRASIL Ricardo L. C. Amorim ...........................................................................................................9 PARTE I: CONTEXTO HISTÓRICO E SIGNIFICADO ATUAL DA CF/88 .............. 35 CAPÍTULO 1 PARA ALÉM DA AMBIGUIDADE: UMA REFLEXÃO HISTÓRICA SOBRE A CF/88 Plínio de Arruda Sampaio ..................................................................................................37 PARTE II: A CF/88 E A DINÂMICA SOCIAL E ECONÔMICA ............................ 53 CAPÍTULO 2 A CF/88 E AS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS Jorge Abrahão de Castro, José Aparecido Ribeiro, André Gambier Campos e Milko Matijascic .............................................................................................................55 CAPÍTULO 3 A CF/88 E AS FINANÇAS PÚBLICAS BRASILEIRAS Cláudio Hamilton dos Santos e Denise Lobato Gentil .......................................................123 CAPÍTULO 4 A CF/88 E A INFRAESTRUTURA ECONÔMICA BRASILEIRA Ricardo Pereira Soares, Carlos Alvares da Silva Campos Neto, Bolívar Pêgo, Francesca Abreu e Alfredo Eric Romminger ......................................................................161 CAPÍTULO 5 A CF/88 E O MARCO REGULATÓRIO BRASILEIRO Lucia Helena Salgado ......................................................................................................201 CAPÍTULO 6 A CF/88 E AS POLÍTICAS DE INCENTIVO À CT&I BRASILEIRAS Mansueto Almeida ..........................................................................................................213 PARTE III: A CF/88 VINTE ANOS DEPOIS: AVANÇOS E DESAFIOS ............... 253 CAPÍTULO 7 OS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES E O PAPEL DO ESTADO Gilberto Bercovici ............................................................................................................255 APRESENTAÇÃO Na atual quadra histórica de desenvolvimento da sociedade brasileira, as desigual- dades sociais e regionais, a pobreza extrema, a extravagante concentração de fluxos de renda e estoques de riqueza, a insegurança no trabalho e nas ruas, as discrimina- ções de raça, gênero e idade, a baixa qualidade dos serviços públicos, entre outros problemas relevantes, são fenômenos analiticamente inteligíveis, mas moralmente inaceitáveis. Porquanto muito se tenha avançado na compreensão desses fenôme- nos, ainda não é possível vislumbrar uma concentração de interesses que rompa rápida e estruturalmente com as mazelas que assolam o cotidiano dos brasileiros. Passados mais de vinte anos daquele que foi o “lento, gradual e seguro” pro- cesso de redemocratização da sociedade brasileira, e exatos vinte anos da chamada Constituição Cidadã, devemos dizer que inúmeros avanços foram obtidos, mas, igualmente, reconhecer que imensos obstáculos ainda precisam ser examinados e superados. Para tanto, um aspecto que precisa ser considerado com mais atenção, entre nós brasileiros, é que os complexos embates que envolvem os processos decisórios em contextos democráticos refletem tanto o grau de amadurecimento das instituições e dos grupos de interesses organizados como a própria herança social e os ambientes políticos e econômicos dentro dos quais eles atuam. Por isso, recursos de poder muito diferentes e assimétricos em posse dos diversos grupos sociais em movimento na conjuntura, e estratégias de ação coletivas nem sempre transparentes ou respeitosas das regras democráticas vigentes, estariam a desnudar um caráter mais competitivo que cooperativo das posições políticas em disputa, não raras vezes dotadas de um viés perigosamente conflitivo. É nesse contexto que foi colocado, para os pesquisadores do Ipea, o desafio deste projeto de reflexão sobre os vinte anos da Constituição Federal de 1988 (CF/88), buscando-se, sobretudo, realizar um trabalho de atualização e de ressig- nificação histórica acerca dos avanços, limites e horizontes que se apresentam hoje para as políticas públicas e para a construção de um projeto de desenvolvimento econômico e humano inclusivo no país. Importante dizer que o esforço de reflexão aqui realizado visa instituciona- lizar e sistematizar, no Ipea, uma prática de acompanhamento, análise, avaliação e prospecção das diversas políticas, programas e ações governamentais de âmbito federal. Para tanto, além do trabalho cotidiano de assessoramento técnico prati- cado por boa parte de seus técnicos junto a diversos parceiros em ministérios e outros órgãos e instâncias de governo, torna-se necessário, também, desenvolver metodologias específicas e outras ferramentas de trabalho coletivo, visando pro- mover, de modo permanente, essas atividades de acompanhamento e avaliação 10 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Federativa do Brasil. Para tanto, na primeira seção, a problemática cidadania bra- sileira receberá atenção, assim como sua difícil construção. Na seção seguinte, será apontado como a grave crise que se abate sobre o Brasil no começo dos anos 1980 inicia uma transição que levará toda a década para ser concluída, resultando em um novo projeto de país já no início dos anos 1990. Será exatamente os anos 1990 o assunto da próxima seção. Aqui, promulgada a nova Constituição – cidadã, segun- do Ulysses Guimarães –, será percebido um processo de desconstrução da vontade escrita na Lei, enfraquecendo o Estado e seus compromissos com a prosperidade da Nação e os problemas sociais. Por fim, apenas como fecho da discussão, a conclusão mostrará que, mesmo sofrendo críticas, por vezes injustas, a Constituição Federal de 1988 foi fundamental para que o país avançasse sobre questões fundamentais, como a indesculpável pobreza brasileira. 2 A CONSTRUÇÃO INTERROMPIDA DA CIDADANIA A ideia de cidadania está longe de ser consenso ou ter uma forma ideal e final. Seu apelo, porém, nas últimas décadas, ganhou ares do mais nobre desejo social e da mais legítima aspiração de homens e mulheres de um país. O problema é que, como tudo em sociedade, essa ideia não é algo nascido naturalmente, anseio intrínseco das populações que buscam o progresso. A cidadania nasce com a fabulosa transformação histórica sofrida pela Europa desde o fim do feudalismo. Dali em diante, a burguesia, o grupo social que alçou ao poder, fez dos princípios que hoje compõem essa ideia uma poderosa ideologia, capaz de mover corações, mentes e armas a seu favor. Isso fica claro quando, obser- vando a história, percebe-se que os mesmos princípios exerceram papéis opostos na criação e consolidação do mundo burguês e depois na manutenção dele: primeiro como arma de transformação poderosa, apta a convencer todo o Terceiro Estado so- bre a importância do indivíduo e a construção de uma nova ordem social; segundo, no momento em que a burguesia já se tornou o grupo dominante, também como uma arma, mas agora apontada na posição contrária, como ideologia conservadora e de dominação sobre o restante dos grupos que compõe a sociedade.1 De outra maneira, ao fim do Regime Feudal, a burguesia, inclusive para agir eco- nomicamente, lutou e conseguiu, pela cooptação ou pelo argumento dos fuzis, impor aos antigos grupos dominantes uma série de direitos hoje conhecidos como civis. Isto é, normas que garantiam a vida, a liberdade e o fim do arbítrio dos mandatários sobre os indivíduos.2 Ou seja, algo revolucionário e apropriado para raspar do mapa a velha ideia de superioridade a partir do sangue, referida e justificada no direito divino. 1. Para essa discussão, ver Oliveira (2003), Covre (1999) e, por mediações, Sennett (2005). 2. Aliás, esse outro conceito que é ressignificado e ganha importância com a ascensão da burguesia. Para essa discus- são, ver Hobsbawm (2000). 11Recuperação Histórica e Desafios Atuais Apesar do avanço inegável que foi a constituição dos direitos civis, o poder ainda não estava nas mãos da burguesia, posto que os direitos políticos se con- centravam no rei. A conquista dos direitos políticos seria, então, a segunda fase para a construção da sociedade burguesa moderna, onde todo o homem é igual perante a lei e é por ela protegido, e também possui a faculdade de participar do governo de sua sociedade.3 Entretanto, quando a burguesia assume definitivamente o poder e a lógi- ca da sociedade capitalista torna-se dominante, os novos grupos sociais nascidos com a burguesia também passaram, com o tempo, a se entender como indivíduos portadores de direitos civis e, logo, políticos. Com o surgimento das massas tra- balhadoras e camadas médias, a burguesia viu-se do outro lado da mesa: não era mais ela quem reivindicava, mas, sim, era sobre seu poder e riqueza que pesavam as exigências dos novos grupos. Neste momento, as reivindicações, além das tra- dicionais, envolvendo questões civis e políticas, ganharam tons sociais, isto é, pela distribuição dos frutos do progresso e da riqueza cada vez mais visível e concen- trada. As mais importantes pugnas, então, giravam em torno das condições degra- dantes de trabalho, dos salários muito baixos, do abandono dos impossibilitados e acidentados e, principalmente, da pobreza e miséria.4 De outro modo, quando as revoluções burguesas da França e dos Estados Unidos elaboraram as primeiras regulações sociais da nova ordem que se instalava, os direitos civis e os políticos surgem de maneira revolucionária, como conquis- tas de uma nova era, capaz de varrer os privilégios de sangue e a arbitrariedade. Agora, o mérito, o valor de cada indivíduo deveria contar mais do que a cor, a origem e a nobiliarquia. Todavia, só com as lutas organizadas dos novos grupos subalternizados é que os direitos sociais ganham a agenda. Mesmo assim, até o começo do século XX, esses ganhos foram lentos, entrecortados, e seguem de perto o surgimento dos partidos trabalhistas e do movimento de esquerda na Europa.5 Apesar disso, o que se entende atualmente como a cidadania mais avançada, sempre referenciada nos países desenvolvidos, não foi fruto apenas das lutas sociais normais absorvidas nas instituições democráticas. O chamado, hoje, Estado de Bem-Estar Social nasceu de uma ruptura violentíssima que, ao seu final, apontava – ou pelos menos se temia – para o risco de espalhamento dos regimes socialistas pela Europa destruída, fragilizada, faminta e vítima de muitas dores. Foram a segunda Guerra Mundial e a ascensão da União Soviética que fortaleceram as lutas sociais e impuseram ao Ocidente a urgência da reconstrução do Velho Continente em 3. Para uma discussão muito interessante, ver Carvalho (2002). Neste livro, o autor, a partir da divisão clássica de Marshall (direitos civis, políticos e sociais), aborda a construção da cidadania no Brasil, apontando suas diferenças em relação ao caso clássico europeu e suas consequências para a história social e política brasileira. 4. Sobre esse período, é muito interessante o filme belga Daens: um grito de justiça, de 1992. 5. Um excelente quadro histórico dessa construção está em Eley (2005). 12 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada bases que impedissem que a sofrida população fosse seduzida por discursos radicais. O pacto social que surge depois da guerra cria claros laços de compromisso entre o Estado, os trabalhadores e a burguesia amedrontada.6 É daí e por estes motivos que nasce a mais avançada cidadania de que se tem notícia; e sua continuidade e manutenção, por sua vez, só foi possível pela resistência e embate constantes, seja nos parlamentos, seja nos sindicatos e nas ruas. Assim, por tudo isso, fica claro que, se a cidadania for entendida como a soma dos direitos civis, direitos políticos e direitos sociais conquistados, exatamen- te nessa ordem, pelos membros de uma sociedade, trata-se, então, de um conjunto de direitos e liberdades que exige reciprocidade de cada indivíduo, sendo, eminen- temente, uma construção histórica (datada e geograficamente localizada). Exatamente aí, mais uma vez, a história brasileira dá provas de sua espe- cificidade e termina por se tornar ímpar, incomparável aos modelos dos países desenvolvidos. Como bem analisa o professor José Murilo de Carvalho (2002), a cidadania brasileira inicia sua construção invertendo os polos lógico-históricos do padrão europeu descrito acima. Aqui, em meio a fortes mudanças geradas pela crise do café no pós-1930 e agravadas pela chamada Revolução de 30, sur- gem, e essa é a palavra, os alicerces truncados da cidadania brasileira moderna. Isto é, Getúlio Vargas, governando a maior parte do tempo em ditadura, inicia a concessão de direitos sociais já a partir de 1931, atingindo seu auge durante a Segunda Guerra Mundial.7 Foram criados ali direitos até hoje fundamentais ao trabalhador, tais como férias, previdência, jornada de trabalho delimitada e salário mínimo, sobre os quais pouca coisa se acrescentou depois de Vargas. Vê-se, portanto, que a construção da cidadania no Brasil inicia-se não pelos direitos civis, mas, sim, pelos sociais, gerando consequências complexas para a história do país. O ambiente era de plena mudança econômico-produtiva, com migração campo – cidade em aceleração e fortalecimento do Estado. Ao mesmo tempo, percebia-se uma significativa mobilidade social ascendente, reconhecida pela população mais pobre, e a formação de uma classe média moderna e numerosa. A industrialização em andamento puxava a roda da economia para as cidades e gerava oportunidades de emprego e renda impensáveis para o período primário- exportador.8 Esse processo de ganho econômico, porém, não foi tão disseminado. O crescimento da renda e os incluídos concentravam-se nas cidades, marcadamente do Sudeste, e foi sobre esta nova massa urbana que o governo despejou controladamente os importantes direitos sociais vinculados à legislação do trabalho. 6. Para esse tema, ver Hobsbawm (1995). 7. Alguns direitos políticos também avançaram, como o estabelecimento do voto secreto e a inclusão das mulheres nas leis que permitem o ato de votar e serem votadas. Contudo, em meio à ditadura, tais direitos pouco significaram. 8. Para uma discussão sobre o tema, ver Mills (1969), Pochmann et al. (2006) e Bresser-Pereira (2003). 15Recuperação Histórica e Desafios Atuais 3 TRANSFORMAÇÃO, CONFLITO E ESPERANÇA: OS ANOS 1980 A década de 1980 foi marcada por várias crises combinadas, mas que se tornam explicáveis quando se percebe que havia ali algo muito mais sério do que proble- mas conjunturais simultâneos. Na verdade, naqueles anos, instaurou-se no país uma crise do padrão de financiamento que vigorou desde os anos 1930 e tomou novo alento com as modificações implementadas nos anos 1950. “Um padrão de financiamento é definido pela forma pela qual os recursos são mobilizados em uma economia capitalista” (GOLDENSTEIN, 1994, p. 58). Isto é, os ordenamentos políticos e os arranjos econômicos é que definem o uso dos fundos sociais em uma direção ou outra. Estão em tela aqui as relações entre capitalistas bra- sileiros e o Estado e entre os primeiros e o exterior, em articulações que concentram, comandam e, portanto, orientam os fundos em direção aos diferentes possíveis tipos de gastos que terminam por beneficiar setores específicos. O resultado é que o padrão de financiamento sustenta e influencia o caminho econômico do país. No centro dessa questão situa-se o Estado. No Brasil, seu papel foi funda- mental, constituindo a principal base do tripé (capital privado nacional, capital estrangeiro e recursos estatais) no qual se assentava o tipo de crescimento econô- mico vivido pelo país até o início dos anos 1980.13 Assim, [...] a estrutura das poupanças pública, privada e externa, a organização da empresa capitalista, o sistema tributário, o sistema de crédito público, a estrutura de gas- tos públicos, o sistema financeiro resultam desse conjunto de relações e definem a capacidade do Estado de intervir na economia, facilitando ou dificultando o acesso de grupos e/ou setores aos seus diferentes canais de transferência de recursos (GOLDENSTEIN, 1994, p. 59). Então, fica claro que, quando estoura pela segunda vez na década de 1970 o preço do petróleo e os Estado Unidos iniciam a “Diplomacia do Dólar For- te”, o padrão de financiamento do crescimento brasileiro não pode mais se sus- tentar, exigindo um novo arranjo econômico e, por isso mesmo, político. Na- quele momento, houve esgotamento das tradicionais fontes de financiamento internacional, queda no investimento estrangeiro direto, superendividamento do Estado brasileiro e sérias dúvidas quanto à demanda efetiva interna do país. De outro modo, a Crise da Dívida acaba por tornar insustentável o mode- lo de desenvolvimento anterior, guia, até então, do crescimento econômico do Brasil. Ali, quando as fontes de financiamento desapareceram, todo o arranjo vivido ruiu de uma só vez e determinou o surgimento de duas impossibilidades fundamentais por parte do moderno Estado brasileiro, nascido a partir de 1930: 13. Sobre esse tema, ver Serra (1998). 16 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada 1) A impossibilidade de continuar administrando a aliança heterogênea en- tre elites com poder econômico e/ou político-regional no plano interno. 2) A impossibilidade de este Estado manter unido o tripé (capital estrangeiro, capital privado nacional e recursos estatais) que, desde os anos 1950, sustentou o país na rota da industrialização acelerada, embora desigual e socialmente injusta. A primeira impossibilidade surgiu devido ao Estado brasileiro, após o processo de estatização da dívida e a alta internacional dos juros, ter visto seu programa de intervenção econômica tornar-se inviável, impedindo a administração de conflitos em sua base de sustentação política. Se o setor público havia crescido em ação e fun- ção, administrando os conflitos pela realização de fugas para frente, não apenas abrin- do novas fronteiras que permitissem a continuidade da acumulação, mas, também, tornando-se peça fundamental da valorização do capital, agora, nos anos 1980, diante dessa impossibilidade, o pacto se desfazia e a aliança se desestabilizava (FIORI, 1989). É nesse sentido que a Crise da Dívida nos anos 1980 exacerba os conflitos: o Estado estava endividado e internamente não havia nenhum canal de financia- mento para continuidade do investimento e dos gastos públicos. Ou seja, sem recursos externos e internos, a fuga para frente tornara-se impraticável e o pacto político perdia a capacidade de cooptação, engendrando uma crise política que ensejou uma profunda transformação no Estado em relação à sociedade. Já a segunda impossibilidade marcou o fim de um padrão de acumulação, desarticulando o tripé Estado – capital privado nacional – capital estrangeiro. Era evidente que o Estado já não tinha condições de promover o crescimen- to econômico e planejar boa parte dos movimentos da economia brasileira. Assim, os demais capitais, dada a queda na demanda efetiva, entraram em com- passo de espera, aguardando o melhor momento para reiniciar sua expansão. Ou seja, sem confiança nos lucros futuros e sem fontes adequadas de financia- mento, o setor privado naturalmente recua em seus investimentos.14 O problema é que o Estado não se recuperou do tombo sofrido e os diferentes grupos da elite não entraram em acordo sobre qual rumo deviam tomar as ações e os, agora reduzidos, gastos públicos. O resultado não poderia ser outro: queda na formação bruta de capital fixo desde o início dos anos 1980, seja ele público, seja ele privado, e sua oscilação sem caminho de crescimento daí em diante, conforme apontado no gráfico 1.15 14. Uma discussão interessante sobre o tema pode ser encontrada em Baer (1993). 15. Para números sobre o comportamento dos investimentos públicos e privados, ver Dathein (2006). 17Recuperação Histórica e Desafios Atuais GRÁFICO 1 Formação bruta de capital fixo (1901-1997) – Brasil 50.000 19 01 19 05 19 09 19 13 19 17 19 21 19 25 19 29 19 33 19 37 19 41 19 45 19 49 19 53 19 57 19 61 19 65 19 69 19 73 19 77 19 81 19 85 19 89 19 93 19 97 100.000 150.000 200.000 250.000 Fonte: Ipeadata. Com taxas ruins de investimento e, consequentemente, com baixo crescimen- to econômico (gráfico 2), a arrecadação tributária não alcança patamares capazes de devolver ao Estado sua capacidade de implantar projetos de fôlego e gerar efeitos para frente e para trás nas cadeias produtivas. A partir dali, não se verá tão cedo o multipli- cador keynesiano da renda acelerando fortemente toda a parte moderna da economia. GRÁFICO 2 Produto Interno Bruto (PIB) per capita brasileiro (1947-2004) (Em R$ de 2004) 2.000 3.000 4.000 5.000 6.000 7.000 8.000 9.000 10.000 19 47 19 50 19 53 19 56 19 59 19 62 19 65 19 68 19 71 19 74 19 77 19 80 19 83 19 86 19 89 19 92 19 95 19 98 20 01 20 04 Fonte: Ipeadata. 20 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Ainda no campo estritamente econômico, tais eventos, entretanto, não eram tudo. O Brasil também patinava, dada a queda nos investimentos, sobre um crescen- te atraso tecnológico e a gravíssima deterioração dos serviços públicos. Essa paralisia, marcadamente no Estado, é, segundo o professor Ricardo Dathein (2006), o motivo da semiestagnação da economia brasileira iniciada há mais de duas décadas. Esse conjunto de problemas gerado pela crise econômica e pelo imobilis- mo do Estado, dada a crise de fundo, levaram, no transcorrer da década, a um questionamento feroz e intensificado de sua ação. A elevada e crescente taxa de inflação e os planos heterodoxos de estabilização, entremeados por políticas econômicas do tipo arroz com feijão, associaram a crise econômica ao interven- cionismo estatal e, por este caminho, ao desenvolvimento patrocinado pelo Estado. Todos os setores incluídos na sociedade passaram a pedir mudanças, nas quais o centro era a ação intervencionista estatal. O antigo pacto conservador teria de mudar: era necessário que o país voltasse a crescer. Mais: significava, em breve, mudanças em toda a economia. É neste ambiente que se instala a Assembleia Nacional Constituinte. 4 A PARCIAL DESCONSTRUÇÃO DA VONTADE POPULAR: OS ANOS 1990 Os anos 1990, contudo, foram um divisor de águas na economia brasileira e, neste ponto, a alteração ou mesmo o enfraquecimento da Constituição Federal, promulgada em 1988, foi importante instrumento para isso. O capítulo eco- nômico (Capítulo I – Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica), escrito pelo Senador Severo Gomes, possuía, originalmente, um teor nacionalista e relativamente protecionista, permitindo que esses instrumentos fossem utili- zados em favor da continuidade da industrialização do país. Nos anos 1990, marcadamente após 1995, porém, [...] afirmava-se que a Constituição inviabilizava a estabilidade e o crescimento eco- nômico e, ademais, tornava o país ingovernável. Esse discurso passou a ser repetido, por todos, sem que praticamente ninguém se abalasse em indagar por que, como, onde e quando a Constituição seria perniciosa, comprometendo os interesses da sociedade brasileira. [...] Estranhamente, após alcançados os específicos resultados visados pelo capital internacional, ao serviço de quem se colocou o Poder Executivo, a Constituição passou a ser palatável (GRAU, 2008, p. 175-176). Primeiro, o governo de Fernando Collor de Mello, em discurso e em ações, atacou o antigo tripé Estado – capital nacional – capital estrangeiro, com o Estado constituindo peça essencial no processo de acumulação. Sua equipe econômica havia diagnosticado que a crise brasileira tinha raízes na perda de competitividade da indústria nacional e na instabilidade inflacionária. Logo, um programa 21Recuperação Histórica e Desafios Atuais combinando pressão sobre as empresas, com base na competição, e outro dando estímulos a ganhos de competitividade reordenariam a estrutura industrial do país, resolvendo os problemas de organização industrial. Por sua vez, um plano de estabilização de preços resolveria a instabilidade inflacionária. Toda a arquitetura montada pela equipe econômica do antigo presidente, no entanto, ruiu muito rapidamente. Houve abertura comercial, mas não condições para que as empresas nacionais modernizassem seus parques e plantas. O resultado do início desse processo de abertura econômica sem a devida calibragem por setor, somado aos efeitos de um contexto recessivo, à alta taxa de juros e ao declínio do gasto e da oferta de bens públicos, conduziu a problemas que se traduziram em forte queda na formação bruta de capital fixo no início da década (gráfico 1). Como resultado, a indústria de capital nacional tecnicamente não saiu do lugar em meio às aceleradas inovações na produção que aconteciam no exterior.19 O fracasso do governo e o impeachment do Presidente Collor de Mello, so- mados à inflação a taxas absurdas (em torno de 22% ao mês), induziram o novo presidente, Itamar Franco (vice de Collor), a dar partida para mais um plano de controle inflacionário. Estava nascendo o Plano Real. Mais do que isso, ali tam- bém já começava a se desenhar uma alternativa de poder para o período eleitoral que se aproximava. As alianças políticas formadas naquele momento em torno do novo nome deram o tom do novo governo. Tanto assim que a bem-sucedida aliança elegeu sem dificuldades Fernando Henrique Cardoso. O novo presidente, logo após sua posse, resumiu em discurso a ênfase do seu governo: “O meu governo vai virar definitivamente a página da Era Vargas e colocar o Brasil na modernidade” (entrevista coletiva em janeiro 1995). Ou seja, a construção do país mudaria de rumo, não só em termos do seu padrão de financiamento, já moribundo desde a Crise da Dívida. O tripé do crescimento (capital privado nacional, capital estrangeiro e recursos estatais) e as leis trabalhistas seriam desde cedo alvo de mudanças. Mais detalhadamente, se a Constituição impedia certas ações,20 a equipe econômica de então visou, por meio de reformas de caráter microeconômico, transformar a dinâmica da economia e da sociedade brasileira em favor de um modelo de Estado menos intervencionista e mais adequado ao que se dizia ser moderno e eficaz para levar o país ao desenvolvimento.21 Nas palavras do Ministro Eros Grau, 19. Ver Coutinho (1992). 20. A Constituição Federal de 1988 rejeita a economia liberal e o princípio da autorregulação da economia. Trata-se, nitidamente, de uma Carta dirigente. Para isso, ver Grau (2008). 21. Foram muitas as alterações constitucionais com forte impacto econômico e social. Algumas delas, no entanto, merecem destaque: a criação do Fundo Social de Emergência, o fim da restrição sobre a atuação do capital estrangeiro em determinados setores, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a privatização de empresas do Estado e mudanças na lei da previdência. 22 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada [...] desde que tomou posse como Presidente da República, o professor Fernando Henrique Cardoso passou a patrocinar a reforma da Constituição, pretendendo obter o que já havia sido anteriormente objetivado pelo Presidente Fernando Collor de Mello. As propostas de alteração constitucional de um e de outro são muito semelhantes. Ainda que não tenham comprometido as linhas básicas da ordem eco- nômica originariamente contemplada na Constituição de 1988, as emendas cons- titucionais promulgadas a partir de 1995 cedem ao assim chamado neoliberalismo, assinalando o desígnio de abertura da economia brasileira ao mercado e ao capitalismo internacional (GRAU, 2008, p. 176-177, grifo nosso). É importante ter em mente que toda essa engenharia social foi amplamente legi- timada pelo domínio do pensamento neoliberal – reforçado cotidianamente pela mí- dia local – e, também, sustentada na incapacidade do Estado em atender às demandas dos mais pobres e não favorecer a continuidade da acumulação dos mais abastados. Nada disso, porém, é contraditório em relação à história do professor e inte- lectual Fernando Henrique Cardoso (FHC). Talvez isso fique mais claro quando se analisa sua obra em relação ao seu governo.22 Em seus livros, FHC expõe a ne- cessidade de transformar o país, mas também a impossibilidade de fazê-lo dentro de um quadro de dependência. Fica evidente nas entrelinhas, então, que a elite tradicional não seria capaz de mudar o Brasil, exigindo, para que o desenvolvi- mento acontecesse, a promoção do seu enfraquecimento. Nesse sentido, a coerência insuspeita entre obra e governo poderia ser imaginada legítima a longo prazo, quando a tradicional elite brasileira estives- se enfraquecida e outro grupo assumisse o papel de líder do país. Em outras palavras, a elite brasileira, a maior responsável pelo padrão dependente do de- senvolvimento do país, ao ser arrebatada dos braços do Estado e ser obrigada a enfrentar a concorrência internacional, não resistiria e sucumbiria econô- mica e, quiçá, politicamente, estreitando ainda mais os laços de dependência do Brasil. O novo modelo, no entanto, a médio e longo prazo, ensejaria o nascimento de uma nova liderança com profundo espírito capitalista, con- correncial e menos dependente dos afagos do Estado. Ou seja, é provável que o projeto imaginado levasse ao enfraquecimento do grupos dominantes tra- dicionais, ao desenvolvimento associado e, no futuro, à retomada do Estado sem a retrógrada influência das antigas elites. Só então seria possível imaginar um projeto de desenvolvimento factível e diferente dos antigos planejamentos econômicos da Era Vargas.23 22. Para isso, ver Cardoso (1964; 1970). 23. Não é estranho, portanto, caso essa hipótese seja verdadeira, que o primeiro período FHC tenha uma aparência neoliberal e, mais significativo, tenha se aliado a liberais de fato e de retórica. Seria com essa lógica e discurso que as reformas teriam o efeito desejado: expor a velha burguesia, acostumada à proteção do Estado, à concorrência e tecnologia capitalistas internacionais. 25Recuperação Histórica e Desafios Atuais GRÁFICO 4 Balança comercial brasileira (1974-2006) (Em US$ milhões) 0 20.000 19 74 19 76 19 78 19 80 19 82 19 84 19 86 19 88 19 90 19 92 19 94 19 96 19 98 20 00 20 02 20 04 20 06 40.000 60.000 80.000 100.000 120.000 140.000 160.000 180.000 Importações Exportações 2007 = 160.649,1 2007 = 120.619,0 Implantação da moeda real Fim da recessão do Plano Collor Fonte: Banco Central do Brasil. O resultado dessa abertura com câmbio valorizado e a entrada de capitais especulativos foi que, segundo Paulo Baltar (2003), o produto da indústria de transformação brasileira não cresceu ao longo da década de 1990, apresentando apenas uma oscilação. Viu-se, porém, que [...] ocorreu uma expressiva mudança na composição desse produto, com a dimi- nuição do peso dos bens de capital e o aumento da participação dos bens duráveis de consumo. Essa mudança na composição do produto industrial foi acompanhada de muita importação de produtos manufaturados, principalmente bens de capital e componentes dos bens duráveis de consumo, tendo ocorrido uma modernização do conjunto do aparelho de produção, principalmente de bens duráveis, com fortes implicações negativas sobre emprego e valor agregado na indústria de transformação (BALTAR, 2003, p. 116). Ou seja, o resultado desse processo não esteve, portanto, apenas nos saldos negativos da balança comercial, problemáticos por si sós. Foi percebido também no impacto direto sobre os índices de nacionalização da produção, apontando para o gravíssimo problema de fechamento de linhas de produção para trás nas cadeias produtivas e para o enrijecimento da pauta de importações, agora repleta de componentes de produtos eletrônicos. 26 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Esses senões pareciam aliviados após a desvalorização do real em 1999, quando se perceberam alguns movimentos em direção à retomada de saldos posi- tivos na balança comercial e mesmo um readensamento de algumas cadeias pro- dutivas. Com isso, o emprego também reagiu nas cidades e, aparentemente, o primeiro passo para a superação da armadilha havia sido dado. Não obstante, restou a difusão propositada de um mito: a ideia de confiança dos investidores ou de credibilidade internacional. Sua tradução prática foi a adoção da âncora monetária baseada nas metas de inflação como tour de force da política econômica. Porém, esse mito, na verdade, escondia a formação de novo e disfarçado pacto de poder no Brasil, tão ou mais conservador que o anterior. A partir da sua adoção, as taxas de juros reais brasi- leiras tornaram-se imbatíveis em termos internacionais e o crescimento do país muito aquém do vivido por outras nações também periféricas. Pior, a manuten- ção da dívida pública interna, a grande dívida atual, frente a juros tão elevados, tem favorecido o surgimento de novos rentistas, novos ricos e a concentração ainda maior da riqueza na principal praça financeira do país: São Paulo.29 Tudo alimentado por uma carga tributária relativamente elevada,30 principalmente no plano federal, que permite polpudas transferências do erário para os detentores de títulos da dívida pública. É nesse sentido que parece surgir algo novo. Se o pacto político que vigia desde Getúlio Vargas sofreu nos anos 1980 um intenso processo de corrosão, agora há indicações de ter se reorganizado. Hoje, mais do que nunca, a riqueza parece não vir mais da produção e da geração de valor adicionado a cada etapa das cadeias produtivas, mas, sim, da circulação estéril de dinheiro no mundo financeiro. E tal movimento está disponível a qualquer capital líquido disponí- vel, mesmo que este tenha de ser subtraído à esfera industrial. Dessa maneira, as elites ligadas à produção de bens e serviços não financeiros usufruem também da enorme transferência de renda proporcionada pelo Estado endividado que paga, anualmente, volumes extraordinários de juros extraídos de recursos cap- tados por uma carga tributária muito mal distribuída. É nesse ponto que parece se assentar o novo pacto: na divisão entre as elites dos recursos que o Estado disponibiliza na forma de pagamento da dívida pública interna. Talvez um novo formato para um velho fato. 29. Ver Pochmann et al. (2004). 30. Relativamente porque a qualidade dos serviços e bens públicos oferecidos não tem correspondido ao aumento da relação tributos – PIB. 27Recuperação Histórica e Desafios Atuais GRÁFICO 5 Taxa de desemprego total na Região Metropolitana de São Paulo (1984-2005) (Em %) 0 19 84 /1 2 19 85 /0 9 19 86 /0 6 19 87 /0 3 19 87 /1 2 19 88 /0 9 19 89 /0 6 19 90 /0 3 19 90 /1 2 19 91 /0 9 19 92 /0 6 19 93 /0 3 19 93 /1 2 19 94 /0 9 19 95 /0 6 19 96 /0 3 19 96 /1 2 19 97 /0 9 19 98 /0 6 19 99 /0 3 19 99 /1 2 20 00 /0 9 20 01 /0 6 20 02 /0 3 20 02 /1 2 20 03 /0 9 20 04 /0 6 20 05 /0 3 20 05 /1 2 5 10 15 20 25 Taxa de desemprego – RMSP Aberto Oculto por precário Oculto por desalento Desvalorização cambial Troca da moeda (real) Crise do Plano Collor Fonte: Ipeadata, a partir de dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) (Seade/Dieese). Naturalmente, isso tem um custo em investimento, desenvolvimento tecnológico, crescimento e manutenção de infraestrutura e distribuição – indireta31 – da renda. E, pior, tem um custo ainda maior na geração de pos- tos de trabalho e absorção dos jovens ingressantes no mercado de trabalho em empregos tipicamente capitalistas. Nesse mercado, o que aconteceu foi, nas palavras do professor Paulo Baltar, [...] uma desintegração das cadeias de produção e uma racionalização acentuada das empresas com baixa taxa de investimento e lento crescimento do produto [gerando um] efeito devastador sobre o mercado de trabalho assalariado, porque a forte elimi- nação de empregos preexistentes não é compensada pela criação de novos empregos (BALTAR, 2003, p. 112). Diante disso, fica fácil entender o movimento apresentado pelos rendimen- tos do trabalho na década de 1990 e sua tênue recuperação em anos recentes, quando a economia alcança uma melhor taxa de crescimento depois da queda, em 2003, e algumas cadeias produtivas parecem retomar alguns elos perdidos, readensando-se (gráfico 6). 31. Por meio de escolas, hospitais, financiamento cultural etc. 30 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Assim, o episódio recente da história do país parece repetir as antigas mazelas nacionais e apontar para a manutenção de uma sociedade desigual e hierárquica. Mas as brechas abertas pelo capítulo social da Constituição, mais especificamente o da seguridade, são uma grande esperança para a superação da pobreza mais do- lorosa e das ações em favor da redistribuição indireta de renda. Esses avanços serão abordados nos próximos capítulos, nos quais os ganhos e desafios da nova Constituição da República Federativa do Brasil serão avaliados. 31Recuperação Histórica e Desafios Atuais REFERêNCIAS ABREU, Marcelo P. A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BAER, Mônica. O rumo perdido: a crise fiscal e financeira do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. BALTAR, Paulo. 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Por isso, uma análise da Constituição de 1988 precisa começar pelo exame do longo processo de devolução do poder político aos civis, após vinte anos de usurpação pela corporação militar. A restauração do regime democrático anterior ao golpe de 1964 teve início na metade dos anos 1970, com a crise do sistema capitalista internacional, que alterou profundamente o panorama econômico e político mundial. Os militares perceberam, então, a impossibilidade de manter o elevado ritmo de crescimento econômico que funcionava como o grande legitimador da sua ditadura. Essa constatação coincidiu com outra, igualmente preocupante: o risco que a cor- poração corria em razão da autonomia crescente da “comunidade da informação” – corpo de oficiais que tinham “carta branca” para dizimar os grupos da luta armada. Os dois fatores somados deram origem a um plano de retirada para os quar- téis. Seu mentor, o General Golbery do Couto e Silva, talhou-o de modo a fazer da transição um processo “lento, gradual e seguro”. Os governos Geisel e Figueiredo (1974-1978 e 1979-1984) combateram em duas frentes para concretizar essa estratégia. Na frente interna, tiveram de enfrentar os colegas de farda, pois os integrantes da “comunidade da informação” resistiram à ordem de retirada pacífica e buscaram reiteradamente formas de reverter o processo. O embate com os colegas de farda foi vencido pelo General Geisel, com a traumá- tica destituição, em 1975, do comandante do III Exército, sediado em São Paulo – disputa que chegou a pôr em cheque sua manutenção na chefia do governo. * Foi Deputado Constituinte. Atualmente, é Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e Diretor do jornal Correio da Cidadania. 40 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Privadas do apoio dos governadores centristas, as organizações popula- res não tiveram condições de manter a massa popular nas ruas. Faltou-lhes, além disso, o apoio de uma organização política suficientemente forte e lú- cida para radicalizar o processo. O Partido dos Trabalhadores (PT), embora fosse uma agremiação claramente contra a ordem estabelecida, estava ainda em formação e não tinha força suficiente para liderar um processo de ruptura da ordem institucional. Desse modo, a campanha pelas eleições diretas terminou com a vitória de uma nova coligação: a coligação do centro com a direita, cujo objetivo era abrir o regime, com limitações à participação popular. Essa nova coligação sofreu percalços quando as principais lideranças da Arena recusaram-se a apoiar a candidatura presidencial do Deputado Paulo Maluf e aderiram ao movimento de oposição aos militares. Formou-se então a chapa Tancredo Neves (Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB)/José Sarney (ex-Arena), de feição mais centrista, porém, igualmente comprometida com a fórmula da democracia restrita. O ziguezague da burguesia mostra que ela não contava com nenhum parti- do suficientemente forte para imprimir uma direção clara aos embates de recom- posição do poder civil. No outro polo político, o movimento popular, embora aguerrido, também não tinha condições de radicalizar sua pressão, de modo a promover uma ampla democracia. Essa correlação de forças, muito especial, explica o processo consti- tuinte e a característica principal da Constituição de 1988: a ambiguidade. Essa ambiguidade se traduz, por um lado, em reforçar a ordem burguesa, na medida em que constitucionaliza o direito de propriedade, a livre iniciativa, a herança, a livre concorrência – institutos basilares do regime capitalista; e por outro, ao ordenar a essa burguesia que garanta a existência de uma sociedade livre, justa e solidária, capaz de garantir a soberania nacional, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Trata-se, pois, de uma carta social-democrata com tonalidades nacionalistas. 2 A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE 2.1 A instauração da Assembleia Nacional Constituinte No período imediatamente anterior à instauração da Assembleia Nacional Constituinte, o primeiro fato a se considerar é o falecimento do Presidente Tancredo Neves antes da sua posse, o que levou José Sarney à Presidência da República, fortalecendo assim a posição da direita no esquema de poder. Para a direita, o ideal era a convocação de uma assembleia constituinte de fachada, 41Recuperação Histórica e Desafios Atuais que funcionasse por um período breve, no Congresso Nacional, e cuja função se limitasse a legitimar o poder civil mediante a eliminação dos artigos mais truculentos da legislação constitucional da ditadura. Desse modo, atingia-se o objetivo de restaurar a ordem institucional tradicional, a qual sempre se carac- terizou por formas de democracia restrita. Com esse propósito, Sarney nomeou uma comissão de juristas e de cidadãos de notório saber, denominada Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, para redigir um anteprojeto de constituição, destinado a servir de texto-guia aos trabalhos da assembleia constituinte. O elitismo dessa abordagem da tarefa constituinte despertou os movimentos populares para um novo embate, travado em torno de duas propostas excludentes: “Constituinte exclusiva” ou “Constituinte congressual”. A Constituinte exclusiva propunha que a assembleia deveria ser um órgão soberano, acima de todos os poderes constituídos e com plenos poderes para alterar imediatamente, sem qualquer peia, o ordenamento jurídico da Nação. Por sua vez, para a Constituinte congressual, a assembleia seria apenas um apêndice do Congresso Nacional, cuja maioria estava comprometida com a manutenção do establishment e com a não apuração dos crimes cometidos pela repressão durante o período militar. Graças ao decidido apoio de muitas entidades de prestígio, como a Con- ferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e centenas de organizações e movimentos populares, montaram-se rapidamente inúmeros foros de debate so- bre questões constitucionais e fizeram-se vários abaixo-assinados pela convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva. O relator da emenda convocatória da constituinte, Deputado Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, do PMDB, recusou-se a votar pela Consti- tuinte congressual, embora pressionado pelo Deputado Ulysses Guima- rães, então Presidente da Câmara dos Deputados e líder da frente centrista. Tal fato criou uma crise na bancada peemedebista, crise esta que terminou com a destituição de Bierrenbach e a nomeação de um relator dócil ao desejo do Presidente da Câmara. O que realmente estava em jogo nessa disputa era o grau de autonomia da Assembleia Nacional Constituinte. Tratava-se de decidir se ela poderia aprovar leis ordinárias em desacordo com as normas constitucionais vigentes, ditadas pelos militares, ou se a aprovação de leis deveria continuar obedecendo a essas normas até que o novo texto constitucional fosse promulgado. O que a direita visava era dar tempo aos militares – agora enquistados na Casa Militar do 42 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Presidente Sarney – para apagar os fatos mais comprometedores cometidos durante o período autoritário e, desse modo, preservar a corporação de uma intervenção punitiva do poder civil. O PMDB apoiou majoritariamente a Constituinte congressual sob a jus- tificativa de que a abertura ainda não estava consolidada e sua radicalização po- deria levar a novo golpe militar. Na verdade, o que a maioria do PMDB temia é que uma assembleia plenamente soberana ensejasse a perda de controle do establishment burguês sobre a massa da população. 2.2 O processo constituinte A Assembleia Nacional Constituinte instalou-se em 1o de fevereiro de 1987 e o confronto sobre seus poderes ressurgiu imediatamente na comissão nomeada para redigir seu Regimento Interno. Os membros progressistas dessa comissão propuseram um artigo, segundo o qual a Assembleia se autoatribuía o poder de editar, soberanamente, normas de vigência imediata, sem obediência às normas constitucionais outorgadas pelos governos militares. Era um estratagema para recolocar, ainda que sob outra forma, a mesma questão da autonomia da cons- tituinte já decidida na legislatura anterior. A paixão que esse debate despertou provocou fissuras no bloco majoritário e causou a paralisação dos trabalhos por mais de um mês. Novamente, parlamentares de centro e de direita uniram-se e conseguiram manter a vigência das leis da ditadura durante o tempo de prepara- ção do novo texto constitucional. A concentração das atenções na disputa pela definição dos poderes da Constituinte desviou as atenções da direita, possibilitando a aprovação de um procedimento de elaboração do texto constitucional inédito e altamente favorável à participação popular. Em vez de repetir os procedimentos das constituições de 1934 e 1946, em que os constituintes debruçaram-se so- bre textos adrede preparados, o Regimento determinou um procedimento dividido em três etapas: 24 subcomissões redigiriam separadamente partes do futuro texto da constituição; oito comissões temáticas preparariam an- teprojetos dos capítulos constitucionais, com base nos trabalhos das subco- missões; e uma comissão de sistematização (com 93 membros) harmonizaria esses trabalhos e prepararia o texto a ser votado pelo Plenário (integrado por 559 constituintes). A fim de colher elementos para suas propostas, as subcomissões deve- riam realizar audiências públicas, nas quais se ouviriam entidades da socie- dade civil, assim como pessoas de notório saber e experiência em relação ao tema de cada uma delas. Aprovou-se, ainda, uma norma que instituía as 45Recuperação Histórica e Desafios Atuais Essa desarticulação da burguesia contrastava com a mobilização popular. Naquela época, o povo – o mesmo que lotava o recinto da Assembleia – tinha for- ça para colar enormes cartazes com as fotos dos constituintes que votavam contra as emendas populares apontando-os como “traidores do povo”, nas ruas e praças das cidades nas quais recebiam votos. Mas a ofensiva popular não resistiu muito tempo. Quando os textos produzi- dos nas comissões começaram a ser examinados pela Comissão de Sistematização, os setores mais inteligentes do grande capital, temendo sofrer graves derrotas na votação em plenário, resolveram virar o jogo. Para isso, promoveram a formação de um gran- de bloco de constituintes de direita denominado eufemisticamente de “Centrão”. Não há informação detalhada sobre os métodos utilizados para formar este bloco, redigir suas propostas e forçar seus integrantes a comparecer às sessões. Mas sabe-se que toda a estratégia do Centrão foi urdida em reuniões fechadas de lideranças empresariais com os constituintes da direita em um hotel de Brasília. O primeiro ataque desse novo bloco de constituintes dirigiu-se ao Regi- mento Interno, responsabilizado pelas vitórias da esquerda nas subcomissões e comissões. Em clima de grande tensão, os constituintes do Centrão exigiram que Ulysses Guimarães pusesse em votação uma proposta que invertia a regra até então seguida para aprovação de emendas. De acordo com o texto proposto, em vez de o Centrão necessitar maioria de votos para aprovar suas emendas, eram os progressistas que precisariam da maioria de votos para sustentar os textos vitoriosos nas subcomissões e comissões. Com isso, neutralizava-se a vantagem que a esquerda havia adquirido em decorrência das ausências dos constituintes da direita. A nova regra permitiu ao Centrão formular uma tática mortal para a esquerda: seus líderes emendaram os artigos aprovados anteriormente que eram considerados inaceitáveis para a direita. No dia da votação concentravam os li- derados em seus gabinetes, fazendo-os irromper em bloco no Plenário, após a abertura do processo de votação, quando já não havia mais debate e, consequen- temente, o risco de desgaste político era menor. A “manada” entrava, votava sem discutir e voltava correndo para seus gabinetes ou para suas bases eleitorais. Ulysses Guimarães tentou resistir a esse golpe, mas acabou cedendo. Apesar disso, o impacto da presença popular no recinto da Assembleia e nos debates do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte era tão grande que a bancada da esquerda resistiu bravamente à supremacia do Centrão, im- pedindo um retrocesso total. Fruto das idas e vindas desse quadro político instável e ambíguo, o texto constitucional promulgado em 1988 instituía um regime de demo- cracia burguesa com dispositivos que representavam avanços importantes, especialmente no plano social. 46 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada 3 O TEXTO PROMULGADO DA CONSTITUIÇÃO Em 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães promulgou festivamente o texto constitucional, o qual batizou de “Constituição Cidadã”. A nova Carta começou a vigorar em clima de entusiasmo, suscitando importantes reformas no arcabouço do Estado brasileiro. No campo do Poder Judiciário, exemplos disso foram: a rápida remode- lação da estrutura do Ministério Público, facultado pelo novo texto a intervir diretamente no processo constitucional, bem como a instaurar inquérito civil público na defesa de interesses difusos e coletivos – dois importantes avanços democráticos cujos primeiros efeitos já começam a se fazer sentir em nossa so- ciedade. A instituição dos Juizados Especiais e da Defensoria Pública, bem como a ampliação dos sujeitos aptos a propor Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) constituem outros avanços importantes. Além disso, também há de se mencionar os capítulos dos Direitos Sociais; do Meio Ambiente; da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso; dos Índios. Todos eles consagram direitos que protegem os trabalhadores, as minorias, os aposentados, as pessoas que necessitam de serviços públicos de saúde e educação. Entre os artigos que dão proteção social às pessoas de baixa renda, há uma norma que concede aposentadoria no valor de um salário mínimo ao homem ou à mulher de mais de 60 anos que tiver trabalhado em regime de economia familiar ou sem carteira de trabalho. Atualmente, 11 milhões de pessoas recebem este be- nefício e os recursos expendidos no seu pagamento representam 1% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Estudos do Ipea mostraram que o pagamento dessa aposentadoria, iniciada no governo Itamar Franco, foi o que impediu a ocorrência de uma crise de fome aguda durante a seca que assolou o Nordeste brasileiro em 1994. Curiosamente, essa norma de tão grande alcance não provocou reação da di- reita, tendo sido aprovada no bojo do capítulo da seguridade social, praticamente sem discussão. A melhor explicação para este fato é que as lideranças burguesas e o próprio Estado brasileiro não tinham a menor ideia a respeito do número de pessoas que vivem da economia de subsistência no país. O capítulo da Ordem Econômica e Financeira armou o país para con- tinuar o processo de industrialização, sem o qual não é possível construir um Estado Nacional dotado de verdadeira autonomia. As normas relativas à proteção do meio ambiente estabeleceram que o equilíbrio ecológico não poderia ser perturbado em nome de interesses econômicos. Nada disso alte- rava substancialmente a estrutura do Estado brasileiro, mas contribuía para a construção de uma sociedade menos injusta e mais democrática. 47Recuperação Histórica e Desafios Atuais 4 O SISTEMáTICO DESMANTELAMENTO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Caso a burguesia se unificasse e aceitasse o papel subordinado que lhe reservava a nova ordem econômica internacional, dificilmente o texto aprovado em 1988 se manteria intacto. Isso porque tanto os preceitos da Carta que facultavam ao governo a tomada de medidas de proteção à indústria nacional como os que davam garantias à classe trabalhadora eram inadmissíveis no contexto do neoliberalismo, posto que, neste tipo de política econômica, a lex mercatoria está acima das outras leis. O processo de unificação, iniciado por uma burguesia em pânico ante a ame- aça da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno da eleição presidencial de 1989, sofreu logo um grande tropeço. Fernando Collor, um arrivista desprepa- rado, não foi capaz de manter a governabilidade, fazendo que a burguesia perdesse a oportunidade de modificar o texto de 1988 na Revisão Constitucional de 1993, prevista no Artigo 3o das Disposições Transitórias da Constituição. Seguiu-se o interregno Itamar Franco, político de centro e com preocupação social. Durante seu governo, nenhuma das poucas reformas promulgadas muti- lava a Carta de 1988. Somente em 1995, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, a burguesia conseguiu se unificar e reunir condições para iniciar a de- molição sistemática do edifício constitucional – tarefa ainda inconclusa, mas que o Presidente Lula tem se empenhado em completar. Em sua primeira entrevista coletiva como Presidente da República, Fernando Henrique declarou: “O meu governo vai virar definitivamente a página da Era Var- gas” – frase emblemática que sinalizava sua intenção de modificar a Carta de 1988. O primeiro alvo foi o capítulo da Ordem Econômica. A alteração de cinco artigos deste capítulo foi suficiente para desguarnecer o Estado brasileiro e torná-lo impotente para resistir às pressões da nova ordem econômica internacional.2 Abriu- se, assim, o caminho do retrocesso: transitar de uma economia de caráter indus- trial para uma economia de caráter predominantemente primário-exportadora. Essa tendência ganhou força nos anos 1990, em função das seguintes medidas: i) revogou-se o Artigo 171, desfazendo a distinção entre empresa brasileira e empre- sa estrangeira; ii) modificou-se o item IX do parágrafo 1o do Artigo 170, a fim de possibilitar às empresas estrangeiras a exploração do nosso subsolo; iii) deu-se nova redação ao Artigo 178, com o objetivo de acabar com o monopólio da navegação de cabotagem; iv) alterou-se o item IX do Artigo 21, para encerrar o monopólio estatal das telecomunicações; v) refez-se o parágrafo 1o do Artigo 177, para inserir uma cunha no monopólio estatal da exploração do petróleo; e vi) introduziu-se a palavra 2. Tecnicamente, o primeiro ataque ao texto constitucional de 1988 foi o expediente usado pelo Presidente José Sar- ney, imediatamente após a promulgação da Carta, a fim de burlar o espírito do inciso XXVI do Artigo 84, que faculta ao presidente da República a edição de medidas provisórias com força de lei. Mas essa burla foi ditada por motivos diversos daqueles que motivaram as emendas que mutilaram o texto constitucional nos anos seguintes. 50 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada REFERêNCIAS BONAVIDES, Paulo. A globalização e a soberania. Aspectos constitucionais. In: FIOCCA, D.; GRAU, E. R. Debates sobre a Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. CAPÍTULO 2 A CF/88 E AS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS Jorge Abrahão de Castro* José Aparecido Ribeiro** André Gambier Campos** Milko Matijascic*** 1 INTRODUÇÃO Ampliar o conhecimento sobre como os governos formulam e implementam suas políticas públicas, principalmente que opções são escolhidas, por que foram sele- cionadas e quais os caminhos trilhados no processo de sua implementação, além da percepção de quais as consequências imediatas e o legado para o futuro é, sem dúvida, uma agenda central para a gestão pública, para a pesquisa acadêmica e aplicada, bem como para o controle social. Nesse sentido, a preocupação com o acompanhamento e a análise da política social é objetiva: não interessa apenas conhecer quantos são os benefi- ciários e os tipos de benefícios distribuídos, mas, também, conhecer os gastos realizados, os mecanismos pelos quais tais despesas são financiadas, a forma de gestão realizada, como vem ocorrendo a participação da sociedade no processo de implementação. Além disso, é fundamental avaliar os avanços obtidos e os obstáculos vivenciados por tais políticas, em termos da proteção social e das oportunidades geradas para a população. Para tratar do assunto, este texto está organizado em seis partes, além desta introdução e da conclusão. Primeiro, apresenta-se uma rápida discussão sobre as abordagens que são feitas a respeito das políticas sociais. Em seguida, apresenta-se um breve histórico a respeito das políticas sociais no Brasil, desde os anos 1930 até o momento atual. Na sequência, são apresentados os aspectos relativos à abrangên- cia da política social, detalhando-se os benefícios oferecidos e os beneficiários aten- didos pela ação pública. Na seção seguinte, são discutidos os aspectos da gestão e organização das políticas sociais, compreendendo tanto a relação entre os entes fe- derados quanto entre o setor estatal e a área privada. Na seção 6, são consolidados * Diretor da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) do Ipea. E-mail: abrahao.castro@ipea.gov.br. ** Técnicos da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) do Ipea. E-mails: jose.aparecido@ipea.gov.br e andre.campos@ipea.gov.br. *** Assessor da Presidência do Ipea. E-mail: milko@ipea.gov.br. 56 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada os gastos e apresentadas as estruturas de financiamento. Na seção 7, discutem-se alguns dos principais resultados alcançados. Por último, são apresentadas algumas considerações gerais sobre a política social. 2 ABORDAGENS SOBRE A POLÍTICA SOCIAL A literatura sobre a política social é extensa e variada. As concepções em torno da ação estatal na área social, além de serem numerosas, não apresentam consenso conceitual. Marshall (1967, p. 35), diz que: Política Social é um termo largamente usado, mas que não se presta a uma defini- ção precisa. O sentido em que é usado em qualquer contexto particular é em vasta matéria de conveniência ou de convenção [...] e nem uma, nem outra, explicará de que trata realmente a matéria. Outra concepção dada por um investigador politicamente de esquerda, Mishra (1987), admite que “política social pode ser definida em termos relativa- mente estreitos ou largos. Nada existe de intrinsecamente certo ou errado em tais definições, na medida em que sejam apropriadas à tarefa em vista”. Como não existe um consenso para a caracterização de política social, não só pelas razões já citadas, mas também pelo fato de que nenhum modelo teórico se isenta de apresentar problemas, a definição de um conceito único é uma tarefa em grande medida subjetiva e, muitas vezes, impossível. Neste sentido, após uma análise cronológica das principais – e secundárias – abordagens teóricas, Coimbra (1987) conclui que nem [...] sequer uma definição adequada do que é política social existe nas principais abordagens [...], todas as abordagens teóricas ao estudo da política social, por mais diferentes que sejam umas das outras, se igualam na adoção de definições puramen- te somatórias, pobres teoricamente e muito insatisfatórias metodologicamente. Por outro lado, percebe-se que, na ausência de um conceito inequívoco de polí- tica social, as concepções adotadas por pesquisadores e formuladores de políticas não estão preocupadas tanto com aspectos teóricos, mas, sim, com a prática concreta das políticas. Por isso, grande parte das reflexões sobre política social variam conjuntural- mente e são reflexos das condições e dos problemas sociais vigentes em cada país, o que não significa que a discussão sobre o tema torne-se irrelevante em termos teóricos. Até recentemente a bibliografia internacional concentrava-se no entendi- mento e na análise da experiência europeia, em grande parte devido ao elevado grau de desenvolvimento de suas economias e aos avanços, em termos compara- tivos, na discussão da consolidação dos direitos sociais e dos sistemas de proteção social. O debate sobre política social se mistura à discussão dos modelos de Estados de Bem-Estar (Welfare State) e às várias formas do que se entende por sistema de 57Recuperação Histórica e Desafios Atuais proteção social. Isso porque a política social é uma ferramenta primordial utilizada pelo Estado para a maximização do bem-estar social, e as várias formas e possibi- lidades de implementação dessa ação levam a diferentes classificações quanto ao padrão de atuação governamental em questões de interesse social. Mais recentemente, o surgimento e o aprimoramento das políticas sociais latino-americanas viabilizaram algumas importantes considerações, mais ajusta- das às realidades de países em desenvolvimento. No Brasil, embora ainda haja carência de referências empíricas e teóricas, também se verificou um crescimento significativo de estudos e pesquisas conexos nos últimos anos, demonstrando um aumento de interesse no debate sobre o papel do sistema de proteção social e das políticas sociais no atendimento às carências e demandas sociais mais prementes, bem como no combate à pobreza e na diminuição da desigualdade. Apesar disso, observa-se que as políticas sociais no Brasil ainda carecem de uma ótica global. Neste sentido é que se percebe a dificuldade de pensar a política social via Estados de Bem-Estar (Welfare State) ou mesmo discutir a validade de tal conceito para enquadrar os esquemas vigentes, pois a literatura nacional ainda é bastante setorializada, por políticas específicas e com predominância em termos metodológicos da análise empírica, voltada apenas para descrever estágios alcan- çados ou deficiências reveladas. Portanto, a baixa densidade teórica tem como de- terminantes a visão fragmentada da questão social e a pouca definição do campo constitutivo das políticas sociais. É um passo fundamental para se efetuar o dimensionamento e análise das políticas sociais adotar um conceito organizador do que será entendido por políti- cas sociais. Esta tarefa é mais complicada do que parece à primeira vista, conside- rando a complexidade da malha formada pelas instituições governamentais, seus respectivos âmbitos de atuação e o aparato jurídico que dá suporte à estruturação das políticas públicas. Um sistema de proteção social apresenta complexos esquemas de distribuição e redistribuição de renda, aplicando significativas parcelas do Produto Interno Bruto (PIB) em ações e programas sociais. Mediante uma intrincada rede de tributos, transferências, provisão de bens e serviços, recursos são distribuídos e redistribuídos em múltiplos sentidos, entre ricos e pobres, jovens e idosos, famílias com e sem crianças, saudáveis e doentes. Em sua trajetória histórica, cada sociedade incorpora o reconhecimento de de- terminados riscos sociais e igualdades desejáveis, exigindo que o Estado assuma a res- ponsabilidade por sua defesa e proteção. Tais processos constituem, em cada país, sis- temas de proteção social com maior ou menor abrangência, mas que são dinâmicos, estando na maior parte do tempo em construção ou em reforma. Compreende-se, a partir daí, por que elaborar uma definição de política social é uma tarefa complexa. 60 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada A heterogeneidade destacada por Draibe, Guimarães e Azeredo (1991, p. 7-8) refere-se ao plano de benefícios. Algumas categorias socioprofissionais possuíam uma gama maior de benefícios em relação a outras. Algumas categorias, como os bancários e, em menor medida, os comerciários, possuíam uma cobertura de benefícios mais generosa, incluindo a aposentadoria ordinária – ou por tempo de serviço – e acesso a atendimento médico-hospitalar, incluindo um auxílio- maternidade. No caso dos bancários, havia, inclusive, assistência farmacêutica e auxílio em casos de detenção – assemelhado ao atual auxílio-reclusão. Em contrapartida, os industriários contavam apenas com pensões por morte, aposentadorias por invalidez e auxílio para as doenças. A uniformização dos planos de benefícios foi efetivada somente com a promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) em 1960. Mas, mesmo com a aprovação da LOPS e a uniformização dos planos de benefícios, segundo Draibe (1990), a marca da política social brasileira até 1966 continuou sendo a diferença em relação à qualidade e o valor dos benefícios. Isso se deve à fragmentação apontada por Draibe, Guimarães e Azeredo (1991). Os Institutos de Aposentadoria e Pensão tinham situações financeiras e bases de arrecadação diferenciadas e isso implicou uma situação financeira heterogênea. Assim, enquanto as finanças se apresentavam equilibradas em alguns casos, como o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) e o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), havia déficit em outros, como o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM) e o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas (IAPTEC). Para Santos (1987), do ponto de vista da constituição da cidadania, antes de se ater a um padrão universalista, a inserção da população moldou-se segundo critérios de inclusão/exclusão seletiva. Além do mais, a política social foi utilizada como recurso de poder. As consequências desse tipo de utilização da política so- cial vão refletir na ampliação do espaço da burocracia estatal e na obstaculização da formação de identidades coletivas por meio de partidos políticos. Em suma, entre 1930 e 1966, não foi firmada uma política social que inte- grasse todos os trabalhadores. As tentativas para unificar a gestão e universalizar os direitos sociais para todos os trabalhadores, como os rurais, autônomos e do- mésticos, foram rechaçadas. Isso se deveu: i) ao temor das burocracias dos IAPs de perder suas prerrogativas; ii) ao risco de aumento da carga contributiva para os segurados cobertos; e, sobretudo, iii) às tradicionais resistências das elites, em geral, e das agrárias, em particular. Por último, a falta de critério para gerenciar os portfolios e a crescente demanda por benefícios, sobretudo em termos de atendi- mento médico-hospitalar, mostrava que o modelo organizado nos anos 1930 não tinha mais condições de operar. 61Recuperação Histórica e Desafios Atuais 3.2 Política social de 1964 até 1988 As transformações da economia e do Estado brasileiro, durante as décadas de 1960 e 1970, acarretaram mudanças sensíveis no que diz respeito ao processo de formação do sistema de proteção social brasileiro. O começo da década de 1960 foi marcado pela crise do populismo, que é dada pela crise da aliança populista e pelo aguçamento do conflito social. A crise desencadeada em 1964 [...] se revelou muito mais aguda que as imediatamente anteriores. Além da cri- se de governo, deu lugar a uma crise do regime e à ruptura do próprio pacto po- lítico que prevalecia desde o pós-guerra. O Estado populista, resultante do com- promisso da elite modernizante de trinta com os setores populares, rompeu-se com a intervenção militar. O sentido mais amplo que se pode extrair do impul- so original do longo processo iniciado em 64 é o da reestruturação do aparelho de intervenção do Estado em todos os seus níveis, do econômico ao político (TAVARES, 1990). Desse momento em diante, ocorre uma reestruturação das políticas so- ciais, com a expansão do sistema em busca de uma abrangência nacional e, por outro lado, a montagem de um aparelho estatal centralizado. Amplia-se o grau de racionalidade na implementação das políticas sociais, em um movimento expresso pela definição de novas fontes de financiamento e de seus princípios e mecanismos operacionais. No entanto, esse movimento não significou um abandono completo do perfil anterior. Ocorre, isto sim, uma acentuação dos componentes de ini- quidade do sistema, a despeito da progressiva incorporação de novos grupos sociais, como forma de legitimação de regime. Destaca-se a completa subor- dinação da política social aos imperativos da política econômica, ficando a implementação das decisões privativas da burocracia estatal. Por outro lado, o Estado autoritário tendeu a se relacionar com a sociedade civil pela cooptação de indivíduos e interesses privados do sistema, excluindo a representação cole- tiva na relação entre Estado e sociedade. Além disso, a proteção social estava fortemente baseada na capacidade con- tributiva dos trabalhadores, o que reproduziu as injustiças e desigualdades predo- minantes na sociedade. Os mecanismos corretores das desigualdades e da pobreza geradas pelo sistema de mercado, que deveriam operar por meio das políticas sociais, foram muito frágeis. Isso porque não existia a garantia de direitos sociais básicos a todos os indivíduos, indiferentemente de estes participarem ou não do processo de produção. 62 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Os pactos conservadores (segundo a expressão de Maria da Conceição Tava- res, retomada por Fagnani, 2005) que engendraram esse tipo de configuração de financiamento sempre reservaram o dinheiro dos impostos às prioridades relati- vas ao mundo dos negócios. A superação da precariedade das condições de vida da população, mediante a melhoria dos serviços sociais ou das transferências de renda, não era vista como um determinante para promover o desenvolvimento e incrementar a competitividade via produtividade. Outro princípio fundamental era a autossustentação. As políticas ligadas ao mundo do trabalho deveriam ser financiadas por recursos do próprio mundo do trabalho e os valores das prestações relativas aos benefícios deveriam manter estreita proporcionalidade com o tempo de serviço. Essa situação se aplicou: i) ao Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), passando a congregar as antigas categorias socioprofissionais atendidas pelos IAPs, uniformizando as regras de contribuições e benefícios, incluindo a cobertura por acidentes de trabalho e com um regime financeiro de repartição; e ii) à proteção ao emprego, substituindo a antiga estabilidade no posto por uma Consolidação das Leis do Trabalho modificada que pressupunha a criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), baseado no regime financeiro de capitalização que remuneraria o trabalhador em caso de demissão imotivada, com valor estritamente proporcional ao tempo de serviço. Essa situação teve impacto nas políticas habitacionais, atreladas aos recursos do FGTS e da Caderneta de Poupança. Como a política deveria funcionar segundo a sis- temática bancária, eram clientes preferenciais os trabalhadores com mais rendimentos. Ao conjugar essa situação com a exclusão de importantes segmentos da força de trabalho, como o trabalhador autônomo, doméstico e rural, não é difícil perce- ber que uma parcela ponderável da população economicamente ativa (PEA) teria dificuldades de acesso a crédito, sobretudo em termos de habitação. Todo o quadro resultou na opção pela modernização conservadora, que subordinou as necessidades da política social aos imperativos de uma políti- ca econômica. Isso elevou a heterogeneidade social, pois, em uma socieda- de muito desigual, apenas o imposto redistribui renda e pode diminuir sua concentração, via transferências diretas ou promoção de serviços sociais que possam criar igualdade de acesso às oportunidades. Apesar de submeter o financiamento das políticas sociais aos ditames da política econômica e reforçar os diferenciais de serviços entre os segmentos salariais, a universalização dos direitos sociais e trabalhistas continuou em marcha. Isso representou uma espécie de compensação, para legitimar as op- ções políticas junto aos menos abastados e atenuar a heterogeneidade social decorrente das medidas pós-1964. O quadro 2 descreve as principais mudan- ças legislativas dignas de atenção para o período. 65Recuperação Histórica e Desafios Atuais Distrito Federal e dos municípios, e de contribuições arrecadadas dos empregadores, trabalhadores e sobre as receitas de concursos de prognósticos. Reconheceu a importância da área de educação, ao aumentar a vincula- ção1 de recursos federais para essa política2 e ao manter a contribuição social do salário-educação.3 Além disso, refletiu o espírito descentralizador do período, me- diante o fortalecimento fiscal e financeiro de estados e municípios, e a ampliação de sua autonomia na responsabilidade de gastos em determinadas áreas. O significado desse avanço pode ser avaliado quando se contemplam seus princípios, os quais apontam: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; caráter democrático e descentra- lizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados. O texto constitucional reforçou o caráter distributivo e o aumento da res- ponsabilidade pública na sua regulação, produção e operação. Houve um afrouxa- mento do vínculo contributivo como princípio estruturante do sistema em favor de uma forma mais abrangente de proteção, com a redefinição dos patamares mí- nimos e um maior comprometimento em relação ao financiamento. A universali- dade da cobertura e do atendimento seria garantida, além do acesso aos benefícios para todos os que dele necessitassem, bem como passava a ser possível antever a introdução de um salário-cidadania (DRAIBE, 1990). Os avanços mais significativos se deram na equiparação dos direitos dos tra- balhadores rurais aos urbanos, suprimindo as diferenças existentes nos planos de benefícios da previdência. Além disso, o trabalhador rural passava a ter direito a uma aposentadoria por idade aos 60 anos e, no caso das mulheres, aos 55 anos. Os trabalhadores urbanos precisariam trabalhar cinco anos a mais para ter acesso ao benefício. A introdução do piso de um salário mínimo também foi significativa, 1. O inciso IV do Art. 167 da Constituição Federal veda a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvada a destinação de recursos para as ações e serviços públicos da saúde, para a manutenção e desenvolvimento do ensino e para a realização de atividades da administração tributária e a prestação de garantia às operações de crédito por antecipação de receita. 2. A vinculação de recursos no âmbito da educação representa um caso típico de reserva de determinado percentual arrecadado via impostos, conforme prescreve o Art. 212 da Constituição Federal: “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”. 3. A Lei no 9.424/1996, em seu Art. 15, estabelece a cota de 2,5% sobre a folha de pagamentos dos empregados, sen- do, dos recursos arrecadados, 40% realizados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e os 60% restantes feitos pelo Sistema de Manutenção do Ensino (SME), que representa a forma de arrecadação mais usada pelas empresas. Além disso, a Lei no 9.766/1998, em seu Art. 6o, prevê a possibilidade de aplicação desses recursos no mercado finan- ceiro, cujos rendimentos transformam-se em recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). 66 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada pois quase dobrava a renda dos segurados rurais e dos que recebiam a Renda Mensal Vitalícia (RMV), e aumentava os ganhos dos aposentados e pensionistas urbanos que recebiam valores inferiores ao novo patamar mínimo fixado. A seletividade e distributividade também foram aspectos de destaque na Cons- tituição de 1988, no sentido de dar maior proteção aos grupos de mais baixa renda. Um aspecto essencial a destacar foi a introdução do conceito de seguridade social. Por meio dele, foi prevista a organização em conjunto das políticas de pre- vidência, saúde e assistência no que diz respeito ao financiamento. A equidade na participação estaria contemplada por essas regras, ao fazerem incidir a carga de contribuições sociais de forma mais direcionada sobre os empregadores, que se apropriam de uma parcela maior dos resultados do processo produtivo. O novo conceito determinava a criação de um orçamento exclusivo para a seguridade, dis- tinto do fiscal, que devia ser composto por fontes cativas, ou seja, contribuições sobre a folha salarial de empregados e empregadores, faturamento e lucro líquido, e por recursos fiscais da União, Estados e Municípios. Em caso de necessidade, foi prevista a introdução de novas fontes de financiamento.4 A estrutura jurídico-institucional não apresentou mudanças em relação à situação preexistente. O sistema continuava subdividido no Regime Geral de Previdência Social e nos Regimes Previdenciários dos Servidores Públicos. No primeiro caso, a cobertura atendia a todos os trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, enquanto, no segundo, o público-alvo eram os servidores públicos do governo federal, estadual e municipal que não tivessem contratos pela CLT. A previdência complementar não se modificou em relação à situação existente desde 1977, prevendo a existência de entidades abertas e fechadas de previdência privada. A novidade neste terreno foi a definição de um seguro complementar e facultativo no âmbito da previdência social, a ser custeado por contribuições adi- cionais. Esse regulamento implicava fazer da previdência social uma competidora em potencial dos fundos de pensão, ao oferecer complementação de benefícios.5 A Constituição, refletindo os anseios por maior descentralização, produziu um novo arranjo das relações federativas. A redefinição de funções e de poderes de decisão entre as unidades federadas, que envolveu transferências de recursos da União para estados e municípios, trouxe consequências para a dinâmica do gasto 4. Artigo 195 da Constituição Federal de 1988. 5. A previdência complementar podia adotar planos de benefícios ou de contribuições definidas. Já na previdência complementar pública, a Constituição de 1988, no Artigo 201, determinou: “§ 7o – A Previdência Social manterá seguro coletivo, de caráter complementar e facultativo, custeado por contribuições adicionais.” O seguro nunca foi implementado, embora a Lei no 8.213/1991 determinasse o envio em 180 dias do projeto de lei. Este artigo foi supri- mido pela Emenda Constitucional no 20, de 15 de dezembro. 67Recuperação Histórica e Desafios Atuais social brasileiro no decorrer dos anos 1990. No tocante às receitas, a Constitui- ção aprofundou o movimento de descentralização que já vinha se configurando desde o início da década de 1980. Redistribuiu competências tributárias entre as esferas governamentais, beneficiando os estados e, principalmente, os municípios, além de ampliar transferências constitucionais, que alteraram a repartição da ar- recadação tributária em favor destas esferas. Com isso, aumentava a capacidade de financiamento dos gastos públicos dos entes federados, o que podia significar menor dependência em relação à União na cobertura das políticas sociais. Além disso, a Constituição manteve os percentuais da receita de impostos vinculados à área da educação para estados e municípios. Se, por um lado, a Constituição fez com clareza a distribuição das receitas entre os entes federados, por outro lado, não tratou adequadamente da distri- buição de responsabilidades relativas aos encargos sociais entre estes entes, sub- metendo à legislação ordinária os pontos mais polêmicos. Esse processo gerou desequilíbrios e controvérsias que iriam perdurar durante toda a década de 1990. As reações logo se fizeram notar: alguns analistas viram nesse movimento um aumento do grau de rigidez orçamentária, uma vez que foram definidas maiores vinculações de receitas, incremento das despesas de caráter obrigatório e maio- res transferências constitucionais a estados e municípios. Com isso, grande parte da receita do governo federal ficaria comprometida e a alocação de recursos para atender outras e/ou novas prioridades ficaria restrita. Argumentava-se, ainda, que qualquer ampliação do esforço para aumentar a arrecadação não necessariamente ajudaria no equilíbrio orçamentário e no controle do déficit público, dado que grande parte desses recursos adicionais já teria destinação definida – salvo o caso de recursos adicionais oriundos da criação de novos impostos. 3.4 Política social no pós-Constituição de 1988 No momento seguinte à Constituição, ocorrerá a rearticulação do bloco conser- vador, que se torna ainda mais forte no começo dos anos 1990, com a vitória de Fernando Collor. Essa gestão foi marcada pela implantação de políticas públicas que geraram grave desorganização financeira no país, assim como pela ampla abertura da economia ao mercado internacional. No campo social, a gestão Collor foi caracterizada pelo objetivo de obs- trução dos novos direitos sociais que haviam sido inscritos na Constituição de 1988, aproveitando-se para isso da tramitação da legislação complementar que consolidaria os preceitos constitucionais. Para tanto, de acordo com Fagnani (1999), foram efetuadas várias manobras políticas e administrativas: simples des- cumprimento das regras estabelecidas pela Constituição; veto integral a proje- tos de lei aprovados pelo Congresso; desconsideração dos prazos constitucionais 70 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Apesar dos objetivos declarados do FSE, os resultados não foram satisfatórios para a política social. Algumas áreas perderam recursos, principalmente a educação e as políticas de apoio ao trabalhador, financiadas pelo Fundo de Amparo ao Trabalha- dor (FAT). Além disso, o FSE prejudicou os estados e os municípios, levando-os cada vez mais à dependência político-financeira do governo federal via repasses voluntários de recursos. Ademais, não se conseguiu resolver o problema do déficit público que, em última análise, havia justificado sua criação. Mas esse problema não estava asso- ciado, simplesmente, ao aumento do nível das despesas de custeio da administração federal. Ele era um resultado direto da política econômica praticada pelo governo. Em 1993, foram realizadas novas mudanças de envergadura. A primeira delas foi a criação do Ministério da Previdência Social, que foi dissociado da pasta do Trabalho. A segunda mudança foi o fim dos repasses de contribuições arrecadadas pelo INSS para o atendimento médico-hospitalar, gerenciado pelo Ministério da Saúde desde o início do governo Collor de Mello, além da extinção do INAMPS. O período do governo FHC compreende dois mandatos, sendo a pri- meira gestão de 1995 a 1998; e a segunda, com início em 1999, se estende até 2002. A primeira gestão corresponde ao período da implementação do real até o momento de sua crise. A etapa seguinte corresponde ao período de administração da crise. No primeiro período, o governo FHC caracterizou-se, sobretudo, pela tensa conciliação dos objetivos macroeconômicos da estabilização com as metas de reformas sociais voltadas para a melhoria da eficiência das políticas públicas. Os problemas de agravamento da crise fiscal do Estado, comuns em todo o mun- do na década de 1990, foram entendidos como que causados por gastos públicos sociais significativos, gestados de forma excessiva e desperdiçadora de recursos. Dessa maneira, uma série de reformas para as políticas sociais foi concebida, algu- mas das quais efetivamente implementadas. Como pode ser constatado por meio dos discursos e das campanhas para as eleições presidenciais em 1994 e, em grande medida, em 1998, os males dos programas sociais foram identificados, de uma forma geral, com: i) falta de pla- nejamento e coordenação, com superposições de competências entre os entes da Federação e a indefinição de prioridades; ii) pouca capacidade redistributiva das políticas sociais; e iii) carência de critérios transparentes para a alocação de recur- sos e de mecanismos de fiscalização e controle mais modernos. Para a correção de rumos, previu-se avançar nos processos de descentraliza- ção, focalização e estabelecimento de parcerias com o setor privado, lucrativo ou não. Nesse movimento, em 1995, foi realizada nova mudança, com a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social, extinguindo a Funabem e a LBA. 71Recuperação Histórica e Desafios Atuais Em dezembro de 1995, foram realizadas outras mudanças relevantes.8 A Renda Mensal Vitalícia foi extinta e substituída pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC),9 denominado de amparo assistencial, a ser concedido aos idosos ou deficien- tes físicos com renda familiar per capita inferior a 25% do salário mínimo. Foram extintos o auxílio-natalidade e o auxílio-funeral, eliminando dois dos mais seletivos entre os benefícios. Em contrapartida, a idade mínima para acesso aos benefícios por idade seria reduzida de 70 para 67 anos, em 1997, e para 65, em 2000. Em 1996, foi criado o Simples,10 que passava a incidir sobre o faturamento de pequenas e médias empresas com uma alíquota de 5% a 10% do faturamento, depen- dendo do porte da empresa e da adesão ou não de estados e municípios. Isso permitiu as contribuições do empregador sobre a folha salarial, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).11 No entanto, apesar do discurso reformista,12 o governo de FHC teve de dar se- quência à política de direitos sociais básicos, com algumas restrições, principalmente no campo agrário. Houve alguma retração no campo previdenciário, com a Emenda Constitucional no 20/1998, mas houve avanço na ampliação do acesso ao ensino fundamental com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Funda- mental e de Valorização do Magistério (FUNDEF). A partir de 2000, o sistema de financiamento da saúde ganhou maior estabilidade, com a aprovação da Emenda Constitucional no 27, que estabelece patamares mínimos de aplicação de recursos da União, estados e municípios na manutenção do Sistema Único de Saúde. Por outro lado, o FSE, que havia sido aprovado para vigorar por dois anos (1994 e 1995), foi renovado e renomeado para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), vigorando de 1996 a 1999. A versão desse tipo de estratégia de desvincu- lação de recursos também foi mantida para os anos de 2000 a 2002, com a Des- vinculação das Receitas da União (DRU), que desvincula de órgãos, fundos ou despesas do governo 20% da arrecadação de impostos e contribuições da União. Essa nova medida determinou que não haveria redução na base de cálculo para as transferências de recursos para estados, Distrito Federal e municípios, bem como para fundos constitucionais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Para a reeleição, de maneira geral, o presidente FHC reafirmou os mesmos princípios, apresentando os compromissos anteriores. No entanto, o início do segundo mandato ocorre em meio à crise externa do balanço de pagamentos, 8. Decreto no 1.744, de 18 de dezembro de 1995. 9. O benefício passava a ser regido pela Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispôs sobre a Organização da Assistência Social. 10. O Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuição das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (Simples) foi criado pela Lei no 9.317, de 5 de dezembro de 1996. 11. O tema será detalhado na próxima seção deste capítulo. 12. Por exemplo, na Previdência Social, o governo queria reformar o sistema com vistas a lhe imprimir “sustentabilidade financeira”, centrado conscientemente na diminuição das despesas. 72 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada que é respondida no plano interno com profundo “ajuste fiscal”, monitorado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), colocando em foco a necessidade de restrição, principalmente dos gastos sociais. Mas as salvaguardas jurídicas do sistema de Seguridade Social, da vinculação de impostos para a educação e, depois de 2000, da vinculação da saúde, protegem o gasto público vinculado a direitos sociais, impedindo que este sucumbisse ao ajustamento recessivo. A desaceleração no crescimento dos gastos13 poderia ter sido muito mais intensa, diga-se de passa- gem, se não fosse o formato destes sistemas – Regime Geral da Previdência, SUS, seguro-desemprego, ensino fundamental, Benefícios de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) etc., que gozam da proteção e da segu- rança jurídica contra cortes orçamentários. Contam com recursos vinculados de impostos e das contribuições sociais e têm, no princípio do salário mínimo como piso dos benefícios, uma barreira protetora contra cortes de gastos, para gerar o superávit fiscal acertado com o FMI. Mediante o ataque dos defensores da política econômica de “ajuste fiscal”, esses sistemas da política social sofreram perdas e não puderam avançar em qua- lidade e ampliação do escopo de benefícios. Contudo, devido às salvaguardas constitucionais, essas políticas não sofreram tanto quanto outros programas de iniciativa do governo como a reforma agrária e os investimentos em infraestrutura social – saneamento básico, rede hospitalar, universidades etc., que foram sacrifi- cadas, sobretudo no segundo mandato. O governo Lula, logo em seu início, reconheceu a gravidade dos proble- mas sociais a serem enfrentados pela sociedade brasileira. Entre os desafios que se apresentaram, merecem especial atenção: combate à fome e à miséria; combate ao racismo e às desigualdades raciais; aprofundamento dos avanços na área de saúde e de assistência social; crescimento da taxa de cobertura da previdência social; promoção do desenvolvimento nacional mediante a in- tegração das políticas públicas com o mercado de trabalho; implementação de uma efetiva política de desenvolvimento urbano; e contínua melhoria da qualidade do ensino. Com o intuito de enfrentar esses desafios, o governo Lula desencadeou uma série de políticas, que podem ser agrupadas assim: • Segurança alimentar e nutricional, que tem por objetivo central o com- bate à fome – coordenada pelo Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar (Mesa). 13. De acordo com Castro et al. (2003), houve quebra da tendência a ampliação dos gastos, com decrescimento real dos gastos sociais do governo federal de cerca de 4%, quando comparado os gastos de 1999 com os de 1998. Daí em diante, o gasto não consegue se recuperar durante todo o período, tanto que o gasto social em termos reais, em 2002, correspondeu a apenas 95% daquele valor verificado em 1998. 75Recuperação Histórica e Desafios Atuais Em suma, a análise da legislação que afeta as políticas sociais no período posterior a 1988 permite observar dois movimentos importantes: busca de mecanismos para elevar a arrecadação e equacionar os problemas fiscais e, ao mesmo tempo, ampliação da proteção das populações em situação de fragilidade, como as famílias com renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo. O crescimento das fontes de financiamento da seguridade social se deu com recorrentes elevações nas alíquotas e criação de novas contribuições sociais, contrabalançadas apenas pelo Simples, destinado a micro e pequenas empresas. O foco na acomodação das tensões via ajustes e reformas pontuais começa a revelar seus limites, deixando entrever que reformas de um sentido racionalizador, aliadas a medidas de gestão e associadas a um cuidadoso debate sobre o pacto federativo, devem ser reforçadas no debate público. 4 ABRANGêNCIA DA POLÍTICA SOCIAL BRASILEIRA Após a historicização das políticas sociais no país, a tarefa passa a ser analisá-las com maior detalhe, de modo a revelar suas finalidades e verificar as conexões destas com os fins pretendidos pela sociedade brasileira. Aliás, na metodologia aqui utilizada, é cen- tral a ideia de área de atuação, que orienta o agrupamento das políticas de caráter social segundo o critério de objetivo das políticas. Este é um esforço de promover a melhor aproximação da destinação da ação pública, com seus dispêndios, junto à população beneficiária. Este conceito não se enquadra nas classificações funcionais/programáticas ou institucionais geralmente utilizadas em estudos sobre as políticas sociais, pois a forma de agregação das ações sociais vai além de um mero registro da ação por órgão setorial – critério institucional –, bem como de um simples levantamento das funções ou progra- mas – enfoque funcional/programático. A divisão da política social por áreas de atuação14 procura alocar as ações so- ciais em grupos diferenciados, de acordo com o atendimento às necessidades e aos direitos sociais prevalecentes nas disposições jurídico-institucionais do país e, também, procura facilitar a leitura e a compreensão dos rumos das políticas sociais adotadas. Para fins deste trabalho, as áreas foram assim denominadas: previdência social; assistência social; alimentação e nutrição; saúde; proteção ao trabalhador; e educação. O detalhamento da abrangência de cada área, bem como de seus prin- cipais programas e ações, consta do quadro 4 a seguir. 14. A organização dessas áreas baseou-se na descrição programática examinada em cada unidade orçamentária e, no patamar mais analítico da classificação funcional/programática, na descrição do subtítulo ou projeto/atividade (denominada de ação na nova classificação orçamentária). Salienta-se que a análise do trabalho procura cobrir tanto as ações sociais da administração direta quanto aquelas desenvolvidas e executadas por órgãos da administração indireta que dispõem de recursos próprios. Assim, evitou-se a perda de informações das entidades com atuação social descentralizada da administração. Para mais detalhes, consultar metodologia desenvolvida pela equipe responsável pelo Acompanhamento e Análise dos Gastos Sociais da Diretoria de Estudos Sociais do Ipea. A esse respeito, ver Fer- nandes et al. (1998a), Castro et al. (2002) e Castro et al. (2008). 76 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada QUADRO 4 Abrangência da política social brasileira, por áreas de atuação Área de atuação Abrangência da área de atuação Previdência social Compreende as políticas do Sistema Previdenciário Brasileiro (exclusive a Previdência Complementar e do setor público), compostas basicamente pelo Regime Geral de Previdência Social, diferenciando o urbano do rural. Os gastos que são computados nessa área referem-se aos pagamentos de aposentadorias, pensões e de outros benefícios previdenciários desembolsados pela previdência oficial ou universal. Benefícios a servi- dores federais Compreende as políticas que compõem o Regime Público de Previdência Social. Consolida todas as ações destinadas ao pagamento de aposentadorias e pensões de servidores públicos federais, estaduais e municipais que saíram da ativa (civil e militar), a servidores dos extintos Territórios e Estados custeados com recursos públicos e a funcionários públicos de empresas estatais pagos com recursos federais. São considerados também os gastos relativos a benefícios trabalhistas, como despesas com assistência médica e odontológica, auxílio-transporte, auxílio-refeição etc. Emprego e defesa do trabalhador Consolida as ações das políticas ativas – geração de emprego e renda e qualificação de mão de obra – como as políticas passivas – seguro-desemprego, abono salarial e intermediação de mão de obra. São agregadas ações com atividades normativas e de ordenamento de empregos e salários, de segu- rança e saúde do trabalhador, de seguro desemprego, de geração de emprego e de renda, bem como programas de capacitação de mão de obra e de treinamento de servidores que atuam nessa área etc. O abono do PIS/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor (PASEP) é destacado, pois foi institu- ído para possibilitar a participação dos trabalhadores no desenvolvimento das empresas, promovendo a distribuição dos benefícios entre os empregados. Desenvolvimento agrário Envolve as políticas de desenvolvimento agrário que se desdobram em duas subáreas: i) reforma agrária, cujas principais ações destinam-se à desapropriação e aquisição de terras para o assentamento rural, concessão de crédito-instalação às famílias e investimentos em infraestrutura e assistência técnica nas áreas assentadas; e ii) Apoio ao Pequeno Produtor Rural, em que constam ações de fortalecimento e capacitação técnica de agricultores familiares, bem como de desenvolvimento do cooperativismo e associativismo rural. Assistência social Nessa área são consideradas as ações voltadas à prestação de assistência social a crianças e adolescentes, indígenas, idosos, portador de deficiência e a comunidade. Ressalta-se que a Renda Mensal Vitalícia e o Benefício de Prestação Continuada estão sendo computados nas áreas de Assistência Social e Assistência ao Idoso ou ao Portador de Deficiência, dependendo da finalidade da ação. Alimentação e nutrição Considera ações e programas de suplementação alimentar a populações carentes, merenda escolar para alunos da rede pública de ensino e distribuição emergencial de alimentos. Saúde Destaca as seguintes ações: programas e ações de controle de doenças e agravos, de vigilância sanitária, de produção e distribuição gratuita de remédios, de manutenção de hospitais de ensino e residência médica, de servidores públicos e de agentes privados que trabalham com saúde, de assistência médica ambulatorial e hospitalar com pesquisa etc. – seja efetuada diretamente por hospitais próprios da esfera de governo, seja pela rede conveniada/contratada por estados e municípios, com recursos do Sistema Único de Saúde. Não são considerados, em âmbito federal, gastos de hospitais militares, classificados como benefícios a servidores públicos da esfera federal. Educação Consolida as ações com formulação da política setorial e a manutenção, expansão e melhoria de escolas de diversos níveis e modalidades de ensino (inclui instituições militares de ensino regular – médio e superior – abertas ao ingresso público, mas exclui aquelas voltadas somente para a formação de servidores civis ou militares), estabelecimentos de educação física e desporto e programas de assistência a estudantes. Cultura Formadas por duas modalidades de ações complementares que se apoiam estrategicamente, a saber: a política de eventos e as políticas culturais strictu sensu. Essa área compreende as políticas setoriais voltadas à manutenção, melhorias e/ou expansão do patrimônio histórico, artístico e arqueológico nacional (como museus e bibliotecas), além de programas e ações que estimulem a difusão cultural. Habitação e urbanismo Trata do problema habitacional no âmbito de uma política de desenvolvimento urbano e incorpora também as ações relativas ao planejamento urbano e o transporte urbano de massas. São computadas despesas com o financiamento de habitações urbanas e rurais e com transferência e outras esferas de governo para fins de planejamento urbano, incluindo programas financiados com recursos do FGTS. Não considera despesas de construção e manutenção de residências destinadas ao uso de servidores públicos civis ou militares. Saneamento básico Consolida as políticas que buscam, como objetivo geral, melhorar as condições de vida da população mediante o aumento da cobertura do serviço de água e esgotos. Os gastos nessa área compreendem a implantação e melhoria de sistemas de abastecimento de água e de esgotos. Programas de saneamento financiados com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço fazem parte da soma de dispêndios nessa área. Fonte: Disoc/Ipea. Elaboração dos autores. 77Recuperação Histórica e Desafios Atuais 4.1 Abrangência: tipos de benefícios Definidas as áreas que serão consideradas na análise da ação social, apresentam- se os benefícios (bens ou serviços) que foram distribuídos ao longo do tempo, assim como se dimensiona a população que se beneficia da ação pública. Com isso, pretende-se medir a abrangência que tomou a ação pública na resolução dos problemas sociais brasileiros. Os dados a serem apresentados estão consolidados para as três esferas de governo. No quadro 5, apresenta-se o elenco de benefícios distribuídos ao longo dos últimos vinte anos, que permite verificar quando e que tipos de bens/serviços foram criados no processo de constituição de um sistema de proteção social e geração de oportunidades no país. Por outro lado, o quadro 6 mostra a ampliação do contingente populacional beneficiado por tal proteção/geração. Com a junção de ambas as informações, pode-se mensurar e qualificar a abrangência que o sistema adquiriu ao longo do tempo. Grosso modo, o que os dados de ambos os quadros deixam claro é que, se de um lado cresceu o gasto social desde a promulgação da Constituição em 1988, de outro, também houve um aumento nos benefícios (bens e serviços) sociais oferecidos pelo governo federal, com impactos bastante positivos sobre proteção social/geração de oportunidades no Brasil. QUADRO 5 áreas de atuação e tipos de benefícios concedidos (anos 1980, 1995 e 2007) Áreas de atuação Tipos de benefícios concedidos Anos 1980 (antes da CF/88) 1995 2007 Previdência social Aposentadorias, pensões, auxílios e outros (com perfil basicamente contributivo) Aposentadorias, pensões, auxílios e outros (com perfil contributivo e “não contributivo”) Aposentadorias, pensões, auxílios e outros (com perfil contributivo e “não contributivo”) Benefícios a servidores públicos federais Aposentadorias, pensões, auxílio-creche, assistência médico-odontológica, auxílio transporte, refeição/alimenta- ção, habitação e outros Aposentadorias, pensões, auxílio- creche, assistência médico-odonto- lógica, auxílio transporte, refeição/ alimentação, habitação e outros Aposentadorias, pensões, auxílio- creche, assistência médico-odonto- lógica, auxílio transporte, refeição/ alimentação, habitação e outros Emprego e defesa do trabalhador Seguro-Desemprego (1986), Abono Salarial (a partir de 1989, desde 1970 para contas individuais), Sistema de Intermediação Nacional de Emprego (Sine) (1977) Seguro-Desemprego (1992, também para pescadores artesanais em período de defeso), Abono Salarial, Intermediação/Sine (1977), Qualifi- cação Profissional (1995), e Geração de Emprego e Renda (1995) Seguro-Desemprego (em 2001 tam- bém para trabalhadores domésticos; a partir de 2003 também para traba- lhador resgatado de trabalho forçado), Abono Salarial, Intermediação/Sine (1977), Qualificação Profissional (1995), Geração de Emprego e Renda (1995), Economia Solidária (2003) e Primeiro Emprego (2003) Desenvolvimento agrário Colonização de trabalhadores rurais Assentamento, consolidação e emancipação de trabalhadores rurais. Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF) Assentamento, consolidação e emancipação de trabalhadores rurais. PRONAF Assistência social Renda Mensal Vitalícia. Alguns poucos benefícios distribuídos pela LBA Proteção Social à Pessoa Idosa e Portadora de Deficiência (RMV e BPC/Loas, 1996), Brasil Criança Cidadã, Vale-Gás, Erradicação do Trabalho Infantil Transferência de renda com condicio- nalidades – Bolsa Família, Proteção Social à Pessoa Idosa e Portadora de Deficiência (RMV e BPC/Loas), Erradicação do Trabalho Infantil (Continua) 80 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada determinou que se observasse a uniformidade e a equivalência dos benefícios em todo o território brasileiro. Ou seja, em qualquer região do país, seja urbana, seja rural, os benefícios ofertados pela previdência e pela assistência deveriam ser os mesmos, em quantidade (espécies) e qualidade (valores). Ademais, a Constituição determinou que tais benefícios teriam seus valores preservados ao longo do tempo, por meio de correções periódicas, bem como parte deles teria como piso o valor do salário mínimo nacional – a exemplo das aposentadorias dos trabalhadores na previdência e da RMV/BPC na assistência. E o valor do salário mínimo, desde 1995, aumentou significativamente em termos reais – aproximadamente 110% até o fim de 2007, se considerado o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC-Geral)/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na área de saúde, verificou-se mudança significativa na proteção oferecida à população após a Constituição. Nos anos 1980, essa proteção calcava-se princi- palmente em iniciativas “curativas”, centradas na oferta de serviços ambulatoriais e hospitalares. Poucas ações apresentavam perfis “preventivos”, com outros tipos de serviços de saúde – a exceção a ser mencionada era a vigilância sanitária e epi- demiológica, organizada em algumas regiões do país. Além disso, nesse período, a proteção por meio de serviços ambulatoriais e hospitalares estava direcionada apenas à população que se inseria formalmente no mercado de trabalho urbano. Ou seja, um extenso grupo que se ocupava como assalariados sem carteira, traba- lhadores autônomos ou trabalhadores familiares, por exemplo, só contava com a assistência filantrópica à saúde – com todas as precariedades implicadas. Com a Constituição, este cenário se alterou bastante, pois se definiu a saúde como direito igualitário e universal, seja do ponto de vista “subjetivo” (toda a população – em- pregada ou não, urbana ou não – deve ter o mesmo direito à saúde) ou do ponto de vista “objetivo” (deve haver o mesmo grau de proteção contra todos os tipos de agravos). Mais do que isso, definiu-se que o foco principal das ações de saúde deve ser o “preventivo”, abrindo maior espaço para a oferta de uma série de serviços que não só os ambulatoriais e hospitalares. Aí se incluíram os serviços de vigilân- cia sanitária e epidemiológica, a promoção da atenção básica e a grupos específi- cos da população, além da assistência farmacêutica e a promoção da saúde bucal. Os serviços de vigilância e a atenção básica ganharam cada vez mais importância ao longo dos anos 1990 e dos atuais, bem como a disponibilização de fármacos e a promoção da saúde bucal. Entre os programas envolvidos, destacou-se o Saúde da Família – eixo central da atenção básica –, que apresentou desde o início foco “preventivo” e voltado para toda a população brasileira – e, em particular, para a mais pobre. Em resumo, com novas iniciativas públicas, a proteção da saúde se ampliou bastante após a Constituição, tanto por alcançar uma parcela mais ex- tensa da população, como por promover ativamente a saúde diante de um leque mais diversificado de riscos e agravos. 81Recuperação Histórica e Desafios Atuais Grosso modo, os principais benefícios disponibilizados na área de trabalho são contemporâneos da Constituição – citem-se aí o seguro desemprego (criado em 1986) e o abono salarial (1989). Não obstante, após a Constituição, esses benefícios ganharam nova expressão, alcançando novos grupos de trabalhadores brasileiros. A título de exemplo, apesar de se manter basicamente restrito aos tra- balhadores formais e de manter seu caráter de seguro, no decorrer dos anos 1990 e dos atuais, o seguro-desemprego passou a proteger novos grupos, como os pesca- dores artesanais, os empregados domésticos e os trabalhadores retirados de situa- ções análogas à escravidão. Acrescente-se que a valorização real do salário mínimo, mencionada acima, potencializou a proteção oferecida pelo seguro-desemprego e pelo abono salarial – pois esses programas apresentam o salário mínimo como piso. Seja como for, após 1995, além desses benefícios, os trabalhadores brasileiros pas- saram a contar também com recursos de programas como o Programa de Geração de Emprego, Trabalho e Renda (Proger), destinados ao estímulo de pequenos ne- gócios urbanos e rurais – e, consequentemente, à geração de novas oportunidades de trabalho e renda. Na mesma linha, após 2003, os trabalhadores passaram a contar com recursos de programas de economia solidária, que procuravam desen- volver empreendimentos com perfil solidário – e, também, abrir novas chances de ocupação não relacionadas a emprego, propriamente dito. Por fim, para além dos benefícios e dos recursos assegurados aos trabalhadores e aos estabelecimentos econômicos, a área de trabalho passou a ofertar, após a Constituição, serviços que complementavam os de intermediação de trabalho (realizados desde o fim dos anos 1970, por meio dos Sines). Exemplo disso foram os serviços de qualificação profissional, estruturados em âmbito federal, desde 1995, e reestruturados após 2003. Ou seja, a ação pública na área de trabalho se ampliou e se diversificou após a Constituição (até porque passaram a contar com os recursos do FAT – desde o início dos anos 1990, o principal meio de financiamento das ações de trabalho e renda). Isso significou mais proteção para um maior número de trabalhadores brasileiros, contra riscos e contingências próprios do mercado laboral (como de- semprego e ausência de rendimentos, falta de qualificação adequada, dificuldades para encontro de nova oportunidade de trabalho etc.). Na área de educação, verifica-se que os serviços disponibilizados são relativamente constantes dos anos 1980 até hoje. Ainda que a Constituição tenha inovado, ao prever a obrigatoriedade do ensino fundamental – e, mais recentemente, do ensino básico como um todo –, desde o início dos anos 1980 já estavam estruturados os serviços públicos de alfabetização, educação básica, educação superior e pós-graduação – serviços que se faziam acompa- nhar da distribuição de bens como alimentação e livros/materiais didáticos para alunos de alguns níveis educacionais. O que representou uma novida- de nos anos 1990 e nos atuais foi a montagem de importantes fundos de 82 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada custeio desses serviços e bens, articulando recursos e esforços de diversos entes federados (União, estados e municípios). Entre esses fundos, desta- caram-se o Fundo de Desenvolvimento da Educação Fundamental e, mais recentemente, o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica. Ao lado desses fundos de financiamento, registrou-se a criação de novos mecanismos específicos de viabilização do acesso à educação superior – como o Progra- ma de Financiamento Estudantil. Outra novidade dos anos 1990 e atuais foi o reconhecimento de algumas deficiências no atendimento aos alunos brasileiros, como a locomoção até as escolas – deficiência parcialmente su- prida por meio de programas como o de transporte escolar (PNTE). Outra deficiência foi o acesso a instrumentos eletrônicos de aprendizagem, como a internet – suprida por meio de programas como o Programa Nacional de Informática na Educação, que viabiliza o acesso dos alunos de certos níveis educacionais a computadores e à rede mundial de computadores. Em resu- mo, na área de educação, após a Constituição de 1988, as principais inicia- tivas de ampliação dos serviços educacionais estiveram na criação de fundos de financiamento das políticas públicas, que produziram resultados impor- tantes, especialmente para a população infanto-juvenil. Outras iniciativas, de diversificação dos serviços educacionais, também foram registradas em searas específicas da área, como o acesso a transporte escolar e a instrumentos eletrônicos de aprendizagem. 4.2 Abrangência: quantidade de beneficiários Para complementar a perspectiva analítica aqui exposta, apresenta-se o quadro 6, com o número de bens/serviços disponibilizados pelas políticas públicas, bem como a população por eles beneficiada. Isso mostra outro vetor do sistema, que é a ampliação significativa do contingente de beneficiários que foram incorpo- rados ao sistema de proteção social/geração de oportunidades brasileiro após a Constituição de 1988. QUADRO 6 áreas de atuação e quantidade de benefícios concedidos (anos 1980, 1995 e 2007) Áreas de atuação Principais programas/ ações Tipos de benefício Quantidade de benefícios concedidos Anos 1980 (antes da CF/88) 1995 2007 Previdência social Regime Geral de Previ- dência Social (RGPS) – previdência social para todos os trabalhadores Aposentadorias, pensões, auxílios e outros 7 milhões 14,5 milhões 24 milhões 14 milhões recebem até um salário mínimo Benefícios a servidores públicos federais Regime Público de Pre- vidência Social (RPPS) e demais bens e servi- ços para servidores civis e militares Aposentadorias, pensões, auxílios e outros bens e serviços 482 mil (em 1991) 872 mil 1,044 mil (Continua) 85Recuperação Histórica e Desafios Atuais apenas 724 equipes, com 34,5 mil componentes, em 150 municípios, em 1995, e passou a contar com 27,3 mil equipes, com 211 mil membros, em 5 mil mu- nicipalidades de todo o país em 2007 (um crescimento de 38 vezes, seis vezes e 33 vezes no período, respectivamente). A promoção da saúde bucal, outro eixo da ação pública preventiva na área de saúde, também passou por ampliação: de 3 mil equipes dedicadas a este serviço, em 2001, passou-se a 17 mil em 2007 (um crescimento de quase seis vezes). Ou seja, alguns dos principais eixos da saúde pública após a Constituição expandiram-se por todo o país dos anos 1990 para cá, estendendo a sua proteção para boa parte da população brasileira. A área de trabalho, reestruturada após a Constituição, passou a oferecer mais proteção a um conjunto maior de trabalhadores brasileiros. Isso pôde ser visto, por exemplo, na concessão de seguro-desemprego e abono salarial. Entre 1987 e 2007, o primeiro cresceu nove vezes em termos de benefícios concedidos (de 734 mil para 6,6 milhões ao ano). Já o segundo aumentou 3,5 vezes entre 1990 e 2007 (de 3,9 milhões para 13,8 milhões de benefícios concedidos no ano). Recorde-se que o salário mínimo, que é uma referência fundamental de ambos os benefícios, registrou uma valorização de 110% após 1995, o que significou ainda mais segurança para os trabalhadores formais do país. Em paralelo, a política pública de trabalho disponibilizou recursos em escala cada vez mais ampla por meio do Proger, como estímulo aos pequenos negócios na área urbana e rural – e, assim, à geração de novas oportunidades de trabalho e renda em geral. No ano de 1995, o Proger realizou 92 mil operações de crédito. Doze anos depois, em 2007, foram 3 milhões de operações, de maneira que a ação pública foi cada vez mais incisiva, no sentido de garantir mais proteção aos trabalhadores brasileiros, para além do segmento formal do mercado laboral. Por fim, além de benefícios e recursos, registrou-se no período pós-Constituição uma maior oferta de serviços de intermediação e de capacitação de mão de obra. No que se refere à interme- diação, por exemplo, o número de trabalhadores (re)colocados por meio do Sine passou de 118 mil em 1990 para 980,9 mil ao ano em 2007 – um incremento de 8,5 vezes nos resultados desse serviço. De forma que, após a Constituição de 1988, a política pública de trabalho incluiu mais trabalhadores sob sua proteção, ampliando consideravelmente a oferta de bens e serviços. Na área de educação, os resultados da ação pública são bastante claros, com a inclusão de grupos populacionais cada vez maiores nas escolas e universidades – em condições que, se ainda longe das ideais, mostraram alguma melhora nos últimos anos. Pode-se dizer que, com a ajuda dos fundos já mencionados acima (como o FUNDEF), a matrícula de alunos ampliou-se em todos os níveis educacionais. Na pré- escola, havia 2,4 milhões de crianças matriculadas no fim dos anos 1980, número que passou para 4,2 milhões em 2007. No ensino fundamental, a quantidade de alunos foi de 24,1 milhões para 29,8 milhões. No ensino médio, o número de matrículas 86 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada passou de 2,4 milhões para 7,8 milhões. No ensino de graduação, a quantidade de alunos foi de 585 mil para 1,2 milhão. E, no ensino de pós-graduação, havia meros 33,4 mil alunos matriculados nos anos 1980, número que passou para 98,5 mil em 2007. Em resumo, todos os indicadores de matrículas do período pós-Constituição mostraram grande avanço no Brasil. E, para além das matrículas, aumentou também a oferta de outros bens/serviços educacionais, como a alimentação na escola e a distribuição de livros didáticos. Em 1995, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) garantia refeições a 33,2 milhões de alunos por 140 dias ao ano. Em 2007, esses números se ampliaram para 36,4 milhões de alunos ao longo de 200 dias por ano. Em paralelo, em 1995, a quantidade de livros distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNDL) se restringia a 57 milhões. Doze anos depois, em 2007, este número alcançou 119,3 milhões. Esse conjunto evidencia que, com uma série de iniciativas de ampliação e diversificação de seus serviços – viabilizadas pela estruturação de fundos como o FUNDEF –, a área de educação conseguiu abrir novas oportunidades de instrução, especialmente para a população infanto-juvenil. Enfim, o que os dados apresentados nesta seção mostram é que, se por um lado houve crescimento do gasto social no período após a Constituição, por outro, também houve ampliação dos benefícios (bens e serviços) sociais oferecidos pelo governo federal. Ou seja, a majoração dos gastos permitiu uma maior oferta de programas e ações sociais, proporcionando um leque mais diversificado de proteção social/geração de oportunidades para uma extensa parcela da população. 5 GESTÃO E ORGANIzAÇÃO DA POLÍTICA SOCIAL Não é tarefa fácil empreender uma avaliação, mesmo que preliminar, sobre a gestão e organização das políticas sociais brasileiras nestes últimos vinte anos, não apenas devido à profundidade das mudanças, mas também pelo fato de ainda estarem em curso. Mesmo assim, tendo presente estes fatores limitantes, tentar- se-á proceder a uma avaliação do desenvolvimento desse processo ao longo das décadas. A análise será feita a partir de determinados conceitos e parâmetros con- siderados “chaves”, devido à relevância que assumiram para o debate sobre as diretrizes que deveriam orientar a implementação de políticas públicas e, princi- palmente, das voltadas para o setor social. 5.1 Relação entre os entes federados No âmbito da relação entre os entes federados para a produção da política so- cial, sem dúvida, um dos conceitos importantes e que mais pautou o debate foi o de descentralização. Tema polêmico, apesar da quase unanimidade a seu favor em pelo menos alguma de suas modalidades. A argumentação em torno dos avanços que a descentralização representaria para a gestão da política social fundamenta-se no fato que esse seria um processo gerador de círculos virtuosos. 87Recuperação Histórica e Desafios Atuais Com isso, quer-se dizer que ela otimizaria recursos pela eliminação de atividades- meio; fomentaria uma maior efetividade das políticas, já que transferiria para a ponta do sistema, os beneficiários, a responsabilidade pelo estabelecimento das prioridades a serem atendidas; tornaria o processo mais transparente, pois per- mitiria à população local acompanhar e fiscalizar a devida aplicação dos recursos e prestação dos serviços. Este foi o discurso que legitimou o estabelecimento das novas diretrizes que, ao longo das décadas, foram institucionalizadas para fomentar a descentralização das políticas públicas. Portanto, voltando um pouco no tempo, veremos que o ideário da des- centralização ganhou corpo a partir dos anos 1980, sendo sucessivamente aprofundado nos anos 1990. Há a emergência de um fator, de caráter emi- nentemente político, que foi fundamental para a consecução do processo: a gradual abertura política, a partir do fim dos anos 1970, após duas décadas de regime autoritário sob o controle dos militares. A “abertura” propiciou duas situações, díspares, mas interligadas, que iriam concorrer de forma cabal para o incentivo de iniciativas descentralizadoras. A primeira delas é de caráter mais geral e remete ao fato de as administrações autoritárias, pós-64, terem se caracterizado por uma excessiva centralização, em nível federal, das tomadas de decisões sobre os mais variados setores na gestão do país, como pode ser constatado para as políticas sociais no quadro 7. QUADRO 7 Tipo da gestão/organização das políticas sociais (anos 1980, 1995 e 2007) Áreas de atuação Gestão/organização Anos 1980 (antes da CF/88) 1995 2007 Previdência social Centralizado e fragmentado nas diversas carreiras Centralizado com medidas de redução dos níveis hierárquicos, eliminação de superposições das cadeias de coman- do, e modernização e racionalização dos métodos e processos de trabalho Centralizado com medidas de redução dos níveis hierárquicos, eliminação de superposições das cadeias de comando, e modernização e racionalização dos métodos e processos de trabalho Benefícios a ser- vidores públicos e federais Descentralizado (cada ente federado é respon- sável pelo sistema de seus servidores) Descentralizado (cada ente federa- do é responsável pelo sistema de seus servidores) Descentralizado (cada ente federado é responsável pelo sistema de seus servidores) Emprego e defesa do trabalhador Centralizado Centralizado (seguro e abono); descen- tralizado (intermediação e qualificação – estados) e centralizado nos bancos públicos (geração de emprego e renda) Centralizado (seguro – parte foi descen- tralizado – e abono); descentralizado (intermediação e qualificação – estados e municípios) e centralizado nos bancos públicos (geração de emprego e renda) Desenvolvimento agrário Centralizado Descentralização para estados e municí- pios sob a coordenação dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Susten- tável, seguindo as indicações dos seus respectivos planos. Formalmente, há integração e articulação dos programas – (Continua) 90 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada dos recursos passa a considerar cada vez menos os critérios de fomento à quanti- dade e à qualidade dos serviços prestados e cada vez mais a barganha política, no intuito de fortalecer o bloco governista em nível federal. Essa medida visava, em especial, diminuir o poder dos representantes oposicionistas das esferas estaduais, privando-os de recursos. Em 1984, elege-se, de forma indireta, a coalizão conhecida por Aliança Democrática, que era composta por antigos opositores ao regime militar e por dissidentes do partido governista, que dava sustentação ao regime militar. Vencidas as eleições, após o rateio de pastas ministeriais, algumas pastas sociais, em termos de gestão operacional, são marcadas pela continuidade e aperfeiçoa- mento dos procedimentos e sistemáticas que tinham caracterizado as adminis- trações imediatamente anteriores, nas quais a instrumentalização política dos ministérios era prática corrente. Subsequentemente a esse período, com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, o debate sobre as atribuições específicas a cada instância de po- der ganhou força. A Carta Magna estabeleceu um direcionamento bastante claro de descentralização para as políticas sociais, não descuidando do estabelecimento de ga- rantias de receitas que permitissem aos administradores subnacionais levarem a cabo essas novas incumbências, como veremos no tópico sobre gasto e financiamento. Por exemplo, na gestão da política educacional, a Constituição apontou para a municipalização do ensino fundamental e da educação infantil. Aos estados e à União caberiam, primordialmente, a responsabilidade sobre o ensino médio e supe- rior, respectivamente. Como resultado desses preceitos constitucionais, observa-se, nos anos 1990 e 2000, um aumento do número de matrículas do ensino funda- mental nos municípios, em detrimento dos estados e da União. Na década de 1990, a argumentação em torno dos avanços que a descentra- lização representaria para a gestão da política social fundamentava-se no fato de que este seria um processo gerador de círculos virtuosos. A trajetória do processo descentralizador foi ascendente, desde o começo da década em que imperou o “moderno” discurso que reivindicava a descentralização como medida imprescin- dível para aprimorar a prestação de serviços sociais. Nos períodos seguintes, observam-se iniciativas para que o discurso em favor da descentralização saísse efetivamente do plano discursivo e passasse a nortear a gestão de alguns programas e ações sociais. As alterações, reiterada- mente anunciadas como necessárias, são efetivadas, e o processo de descentrali- zação é aprofundado. Houve continuidade do debate sobre a descentralização, que vinha entrando em pauta desde o início da década, e sequência de algu- mas experiências pioneiras em direção à descentralização da gestão dos progra- mas implementados no período anterior. A partir de 1995, houve um fomento e 91Recuperação Histórica e Desafios Atuais extensão dos processos de descentralização na gestão das políticas sociais brasileiras. Nesse sentido, a centralização, tal como tradicionalmente se entendia, em que o poder central mantinha sob sua responsabilidade todo o processo, desde a formu- lação até a execução, sofreu redução expressiva. A área educacional passou por processos de descentralização, de forma que tanto as normas jurídicas institucionais quanto os gastos foram concordantes em apontar, de maneira geral, os municípios como esfera responsável pela educação infantil e pelo ensino fundamental, os estados pelo ensino médio, e a União pelo ensino superior, considerando o princípio da autonomia. No entanto, a imple- mentação do FUNDEF aprofundará o processo de municipalização da educação. Por outro lado, se esperava que o princípio da interdependência, em que os entes federados cooperam verticalmente estabelecendo o grau de complementariedade necessário para fortificar o sistema federativo, fosse praticado, o que, entretanto, deixou muito a desejar. Além disso, foram estabelecidos novos critérios para a transferência de recursos aos municípios e para as escolas sob sua jurisdição – entre os novos critérios, destaca-se que a repartição dos recursos seria proporcional ao número de alunos matriculados nas respectivas redes de ensino, e que o recebimento dos recursos estaria condicionado à implantação dos conselhos nos municípios.15 Na área de saúde, percebeu-se um esforço em direção ao processo de descen- tralização, que em 1995 ainda não havia se consolidado, o que ficou demonstrado pela participação expressiva da União nos gastos com saúde. Todavia, é inegável o avanço do processo de descentralização do SUS após a aprovação da Norma Operacional Básica 1/96, sobretudo devido aos repasses do Piso de Atenção Bá- sica do governo federal para o custeio da atenção básica dos municípios. Isso per- mite o repasse de recursos automáticos, obedecendo a critérios que contribuíram para o progresso da municipalização, tanto que, atualmente, os municípios são os maiores responsáveis pela execução das ações na área de saúde. Contudo, ainda é necessária a implantação de normas mais claras quanto à repartição de responsa- bilidades e de provisão de recursos na execução dos serviços de saúde entre as três esferas, e, assim, evitar que estados e municípios transfiram suas responsabilida- des, comprometendo a efetivação das ações e serviços públicos desta área. 15. Por exemplo, a descentralização da alimentação escolar (merenda escolar). A despeito de alguns ensaios terem sido realizados no passado, a descentralização tem início, de fato, em 1992. Em sua etapa inicial, até 1994, verificou-se, sobretudo, a estadualização. Ao fim dessa fase, a extinta Fundação de Apoio ao Educando (FAE) já repassava todos os recursos aos estados, encerrando, no plano federal, todas as funções de aquisição e distribuição de gêneros alimentí- cios para a merenda do escolar. A segunda etapa da descentralização, intensificada a partir de 1995, caracterizou-se pela forte adesão dos municípios ao programa. Há, ainda, o formato duplo, com o programa sendo operado simulta- neamente pela prefeitura e pela Secretaria Estadual da Educação, e cada um cuidando de sua própria rede de ensino. Também se verificou, nesses anos, que a política de descentralização da merenda passou a conviver com um novo modelo, introduzido por iniciativa de alguns estados e marcado pela transferência dos recursos diretamente para as escolas. Tal formato corresponde a um reforço da autonomia da unidade escolar e significa, desde logo, uma forte descentralização funcional das redes de serviço, deslocando para a ponta do sistema as responsabilidades e tarefas de compra, armazenamento, preparo e distribuição dos gêneros alimentícios. 92 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada Na área de assistência social, o progresso nas relações intergovernamen- tais foi mais significativo, sendo que o grande destaque foi a estrutura matricial do sistema descentralizado e participativo, que facilitou a articulação das esfe- ras de governo tanto vertical quanto horizontalmente, de forma que o enfoque na elaboração e execução das políticas sociais seja a eficiência, a equidade e a transparência. Portanto, no que diz respeito às ações dos entes federados em políticas de Assistência Social, identificou-se um Estado verdadeiramente fede- ral, em que as decisões são tomadas de maneira coordenada entre os distintos níveis de governo. Assim, a análise realizada até aqui mostra que ocorreram transformações e foram estabelecidas novas tendências quanto à formulação e implementação das ações nas áreas sociais no Brasil. Antes dos anos 1980, as políticas so- ciais foram centralizadas com a intenção de redução dos níveis hierárquicos, a eliminação de superposições das cadeias de comando, a modernização e a racionalização dos métodos e processos de trabalho. No entanto, apesar dessa intenção, observaram-se a fragmentação decisória no aparato central e um processo de forte negociação clientelista e burocrática dos recursos. Nos anos pós-Constituição, observou-se a diminuição das transferências negociadas, que feria o princípio da subsidiariedade, ao permitir práticas clientelistas. Atualmente as transferências são realizadas de forma automática, seguindo critérios preestabelecidos. Também se observou a ampliação expressiva da participação dos municípios em todas as áreas estudadas, o processo de descentralização pelo qual o Estado vem passando desde a promulgação da Constituição de 1988. Mesmo assim, o governo federal ainda cumpre papel importante, não só como indutor de políti- cas sociais, mas também como executor de políticas sociais, revelando o caráter complexo do federalismo brasileiro. Todavia, é importante salientar que um Es- tado verdadeiramente federal consiste em um sistema de governo instável, que necessita, a cada momento, da institucionalização de estruturas e procedimentos contínuos de negociação. Em suma, em um balanço da gestão da política social nesse perío- do pós-Constituição, pode-se destacar positivamente o fato de ter havido avanços no processo de descentralização, sobretudo no que tange aos aspec- tos que envolvem financiamento e execução. No entanto, os mecanismos e processos decisórios, tais como a escassez de canais de participação na for- mulação de políticas por parte dos outros níveis de governo, bem como da sociedade civil e demais atores envolvidos com a problemática social, ainda são elementos que podem acarretar limitações para a melhoria dos bens e serviços no Brasil. 95Recuperação Histórica e Desafios Atuais A verificação de parcerias com o setor privado e o terceiro setor na execução dos programas é importante, pois este é, claramente, um elemento central do novo desenho pensado para a área social nos anos 1990, como uma estratégia de busca por maior eficiência e desoneração fiscal. O terceiro setor no Brasil é uma realidade. Está presente em todas as áreas com uma atuação conjunta ou paralela aos programas sociais do governo. Nas discussões teóricas, muitas vezes ele é interpretado como um tipo de privatização, uma vez que se transfere parte da implementação de políticas públicas ou o fornecimento do bem público ao setor privado. Mas outros teóricos interpretam de maneira diversa, pois atribuem ao terceiro setor uma natureza semipública. Essa é uma discussão vasta e não faz parte da presente análise entrar no mérito da questão, pois aqui apenas se busca o mapeamento e a caracterização dos principais programas federais de política social. O que se observa é que o locus de decisão sobre o estabelecimento ou não dessas parcerias é realizado em nível local e não federal. Por último, como ressalta Draibe (1993, p. 15), deve-se salientar o processo de mudança nos modos de produzir e distribuir os bens e serviços sociais que está ocorrendo na América Latina. O seu significado maior são profundos processos sociais que tendem à alteração das relações entre o Estado e o Mercado; o público e o privado; os sistemas de produção, de um lado, e os de consumo, de outro. As assim chamadas formas alternativas – os mutirões, as diversas experiências de ajuda mútua, práticas comunitárias e de vizinhança (na guarda de crianças, no setor de alimentação, na coleta e processamento do lixo) – são exemplos que se multiplicam e que correspondem a tantos outros, verificados em todo o mundo, de participação dos próprios beneficiários e de envolvimento de associações voluntárias e de redes de ONGs – Organizações Não Governamentais – no encaminhamento das políticas sociais. Ora, esses processos expressam novas formas de sociabilidade, indicando um re-ordenamento das relações destas partes da Sociedade com o Estado e a Economia: ali onde antes predominavam o Estado ou o Mercado (ou os seus vários mix), um espaço passa a ser ocupado por estas novas formas da solidariedade social ou, se quiser, por uma ampliação da autonomia dos setores organizados da sociedade. Finalmente, o que se verifica é a presença de um grupo do terceiro setor atuando na área pública, privatização crescente em algumas das áreas de oferta de bens públicos, principalmente devido a incentivos fiscais. No entanto, esse movimento ainda não conseguiu deslocar a presença do setor estatal na produção, provisão, transferência e regulação dos bens sociais. 96 A Constituição Brasileira de 1988 Revisitada 6 GASTOS E FINANCIAMENTO DA POLÍTICA SOCIAL 6.1 Gasto Público Social (GPS) Em seguida, a tarefa de mensurar e analisar os gastos sociais implica no compromisso com um levantamento de dados e informações que possa transcender a intrincada e opaca contabilidade pública e a já referida complexidade da rede de instituições go- vernamentais. Há de se tentar revelar os fins buscados pelas políticas sociais – e pelo seu respectivo dispêndio – de modo o mais claro e direto possível, que permita uma adequada comunicação com os objetivos pretendidos e defendidos pela sociedade, um diálogo com os estudos e pesquisas existentes e, também, manter certa compara- bilidade das informações e registros com aquelas geradas em outros países.16 Uma definição mais ampla de gasto social incluiria tanto as atividades do setor público quanto as levadas a cabo pelo setor privado da economia, compre- endendo estas o emprego de recursos próprios das famílias, empresas privadas e organizações não governamentais. Para estudar especificamente a atuação do Estado, aplica-se o conceito de Gasto Público Social (GPS), que compreende os recursos financeiros brutos empregados pelo setor público no atendimento de demandas sociais e corresponde ao custo de bens e serviços – inclusive bens de capital – e transferências, sem deduzir o valor de recuperação – depreciação e amortização dos investimentos em estoque ou recuperação do principal de empréstimos anteriormente concedidos. Os dispêndios diretamente efetuados pelo governo federal, bem como a transferência negociada de recursos a outros níveis de governo – estadual e municipal – ou a instituições privadas, referentes a programas e ações desenvolvidos nas áreas de atuação sociais, são denominados Gasto Social Federal (GSF). A consolidação do gasto social das três esferas de governo tem como prin- cipal objetivo medir quantitativamente a participação total do setor público no financiamento dos programas e ações em áreas sociais. A consolidação do Gasto Público Social brasileiro dá noção da importância – relativa e absoluta – da com- plementaridade de estados e municípios na aplicação de recursos para fins sociais. Além disso, embora não seja o propósito deste trabalho, o GPS pode se tornar um indicador que permita correlacionar coerentemente o volume de gasto com a evolução dos indicadores sociais, medindo assim a eficiência das ações sociais da atuação federal, estadual e municipal conjuntamente. É importante ressaltar que os dados apresentados nesta seção são originados de trabalhos distintos, com metodologias também distintas. Mesmo considerando-os com o devido cuidado, percebe-se que eles apontam algumas tendências interessantes. 16. É importante lembrar que a estrutura federativa do Brasil deve ser levada em conta todo o tempo. A análise sobre a atuação da União pode originar conclusões equivocadas se não forem devidamente delimitadas as suas fronteiras com a atuação das outras esferas de governo. 97Recuperação Histórica e Desafios Atuais A crise econômica do início dos anos 1980 e seus respectivos efeitos sobre a política fiscal e as finanças públicas levaram a uma queda no percentual do PIB destinado a políticas sociais. Tal trajetória adquire contornos ainda mais drásticos se lembrarmos que este foi um período de baixo crescimento do PIB – ou seja, a fatia destinada ao social era menor em um bolo também menor. GRÁFICO 1 Gasto público social das três esferas de governo 0 5 10 15 20 25 1980 1985 1990 1995 2005 13,85 13,3 18,96 19,17 21,87 % d o PI B Fonte: Para 1980, 1985 e 1990: Médici e Maciel (1995). Para 1995: Fernandes et al. (1998b). Elaboração dos autores. Os efeitos conjugados da redemocratização e da promulgação da Constituição de 1988 mudaram o patamar de gastos sociais de maneira inequívoca. Já em 1990 – antes de boa parte das políticas previstas na Constituição se tornarem realidade –, os gastos sociais chegavam a 19% do PIB. Logo a seguir, entretanto, conforme destacam vários autores (MÉDICI; MACIEL, 1995; FAGNANI, 2005), as políticas sociais sofreram um contra-ataque violento, que reduziria, por exemplo, o nível de gastos per capita a patamares inferiores aos do início dos anos 1980 – uma década perdida em vários sentidos, portanto. Destarte a mudança de patamar definida pela Constituição de 1988, é flagrante o movimento dos gastos sociais conexo ao ciclo econômico. Nos momentos de recessão, como no início dos anos 1980 e também no início dos 1990, o gasto social sofre restrições à sua manutenção, enfrentando não apenas estagnação, mas inclusive reduções em termos do percentual do PIB. Entre outras razões, isso ocorre, no plano federal, pela implantação de severos regimes fiscais e, no plano estadual, o impacto da desaceleração econômica é avassalador sobre a sua arrecadação, pautada no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS).
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