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Guias e Dicas
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As Institutas Vol.1, Notas de estudo de Teologia

As Institutas Vol.1

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 19/05/2010

presbiteriana-fundamentalista-7
presbiteriana-fundamentalista-7 🇧🇷

4.6

(16)

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Baixe As Institutas Vol.1 e outras Notas de estudo em PDF para Teologia, somente na Docsity! As Institutas ou Tratado da Religião Cristã vol. 1 Edição clássica (latim) João Calvino 11CARTA AO REI Í N D I C E Prefácio à 1ª edição ................................................................................................................... 17 Prefácio à 2ª edição ................................................................................................................... 21 Carta ao Rei Francisco I ............................................................................................................ 23 Prefácio à edição de 1559 ......................................................................................................... 43 Prefácio à edição francesa de 1541 e subseqüentes, nessa língua ............................................ 45 CAPÍTULO I O CONHECIMENTO DE DEUS E O CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS SÃO COISAS CORRELATAS E SE INTER-RELACIONAM 1. O conhecimento de nós mesmos nos conduz ao conhecimento de Deus ........................................ 47 2. O conhecimento de Deus nos leva ao conhecimento de nós mesmos ............................................. 48 3. O homem ante a majestade divina ................................................................................................ 49 CAPÍTULO II EM QUE CONSISTE CONHECER A DEUS E A QUE FIM LHE TENDE O CONHECIMENTO 1. Piedade é o requisito para se conhecer a Deus ............................................................................... 50 2. Confiança e reverência são fatores do conhecimento de Deus ....................................................... 51 CAPÍTULO III O CONHECIMENTO DE DEUS FOI POR NATUREZA INSTILADO NA MENTE HUMANA 1. Universalidade do sentimento religioso ........................................................................................ 53 2. Religião não é invencionice gratuita ............................................................................................. 54 3. Impossibilidade de ateísmo real .................................................................................................... 55 CAPÍTULO IV ESTE MESMO CONHECIMENTO É SUFOCADO OU CORROMPIDO, EM PARTE PELA IGNORÂNCIA, E EM PARTE PELA DEPRAVAÇÃO 1. Superstição ..................................................................................................................................... 57 2. Apostasia ........................................................................................................................................ 58 3. Idolatria .......................................................................................................................................... 59 4. Hipocrisia ....................................................................................................................................... 59 CAPÍTULO V O CONHECIMENTO DE DEUS FULGE NA OBRA DA CRIAÇÃO DO MUNDO E EM SEU CONTÍNUO GOVERNO 1. Inescusabilidade do homem ........................................................................................................... 61 2. Visibilidade da sabedoria divina ................................................................................................... 62 3. O ser humano é evidência máxima da sabedoria divina ................................................................. 63 4. A ingratidão humana em relação a Deus ....................................................................................... 63 14 LIVRO I 3. Adequação dos termos Trindade e Pessoa à interpretação do conceito bíblico ........................... 129 4. Utilidade dos termos Trindade e Pessoa em relação a conceitos heréticos ................................ 130 5. Sentido e distinção de termos fundamentais, a saber, substância, consubstancial, essência, hipóstase, pessoa e trindade ...................................................................................................... 131 6. Pessoa, essência e subsistência .................................................................................................. 133 7. Deidade do Verbo ...................................................................................................................... 134 8. Eternidade do Verbo .................................................................................................................. 135 9. Evidências veterotestamentárias quanto à divindade de Cristo .................................................. 136 10. O Anjo das teofanias era Cristo ................................................................................................ 137 11. Os apóstolos aplicam a Cristo o que fora dito do Deus eterno .................................................. 139 12. As obras de Cristo atestam sua divindade ................................................................................. 140 13. Os milagres de Cristo e as prerrogativas divinas que lhe são outorgadas atestam sua divindade 141 14. A obra do Espírito Santo atesta sua divindade ......................................................................... 142 15. O Espírito identificado com a Deidade .................................................................................... 143 16. A unidade de Deus à luz do batismo ........................................................................................ 144 17. Três pessoas: distinção, não divisão ......................................................................................... 145 18. Funções distintivas das pessoas da Trindade ........................................................................... 146 19. O relacionamento hipostático e a unidade consubstancial ........................................................ 147 20. O conceito básico do Deus Triúno ........................................................................................... 148 21. A atitude própria em relação a esta doutrina e às heresias que se lhe opõem ........................... 149 22. A obstinação dos antitrinitários, principalmente Serveto .......................................................... 150 23. Há no Filho a mesma divindade do Pai .................................................................................... 152 24. O termo Deus não se aplica exclusivamente ao Pai; ele é igualmente extensivo à Palavra ....... 154 25. A essência única de Deus é comum às três pessoas .................................................................. 156 26. A subordinação do Filho não lhe implica divindade de categoria inferior ................................ 157 27. Irineu está longe de legitimar a tese dos que negam a Deidade de Cristo ................................ 159 28. Nem mais favorável lhes é Tertuliano ....................................................................................... 160 29. O testemunho patrístico em geral confirma a doutrina da Trindade ......................................... 160 CAPÍTULO XIV ATÉ MESMO NA PRÓPRIA CRIAÇÃO DO MUNDO E DE TODAS AS COISAS, COM INCONFUNDÍVEIS MARCAS A ESCRITURA DISTINGUE O DEUS VERDADEIRO DOS FALSOS DEUSES 1. O conhecimento de Deus à base da criação e o despautério da especulatividade ........................ 163 2. A bondosa providência de Deus para com o homem se acha espelhada na obra dos seis dias da criação ........................................................................................................................................ 165 3. Os anjos são criaturas de Deus, que é de tudo o Senhor ............................................................ 165 4. Em matéria de angelologia, deve-se buscar somente o testemunho da Escritura ......................... 167 5. Funções e designativos dos anjos ............................................................................................... 168 6. O ministério dos anjos a velarem de contínuo pela proteção dos crentes ................................... 169 7. Precária é a base para afirmar-se a realidade de anjo da guarda individual ................................ 170 8. Hierarquia, número e forma dos anjos ....................................................................................... 170 9. A realidade pessoal dos anjos ..................................................................................................... 171 10. Improcedência da angelolatria .................................................................................................. 172 11. O ministério dos anjos motivado pela necessidade humana ...................................................... 173 12. Nossos olhos não devem desviar-se de Deus para os anjos ...................................................... 174 13. A luta contra o Diabo e suas hostes .......................................................................................... 175 14. O batalhão demoníaco é vasto ................................................................................................... 175 15CARTA AO REI 15. A malignidade do Diabo ........................................................................................................... 176 16. A degenerescência dos seres diabólicos .................................................................................... 177 17. O poder do Diabo está sujeito à autoridade de Deus ................................................................ 177 18. Limitação do poder satânico sobre os crentes e domínio sobre os incrédulos .......................... 178 19. A realidade pessoal dos seres diabólicos .................................................................................. 180 20. O que a criação nos ensina concernente a Deus ....................................................................... 181 21. A que nos deve conduzir a contemplação das obras de Deus ................................................... 182 22. Deus criou todas as coisas para o bem do homem, daí a gratidão que lhe devemos .................. 183 CAPÍTULO XV COMO O HOMEM FOI CRIADO: ONDE SE TRATA DAS FACULDADES DE SUA ALMA, DA IMAGEM DE DEUS, DO LIVRE-ARBÍTRIO E DA INTEGRIDADE ORIGINAL DE SUA NATUREZA 1. O homem foi criado sem mácula: Deus não é culpado do pecado humano ................................. 185 2. Espiritualidade e imortalidade da alma, contudo distinta do corpo ............................................. 186 3. O homem é imagem e semelhança de Deus ................................................................................ 188 4. A verdadeira natureza da imagem de Deus só determinável à luz da concepção bíblica da regeneração em Cristo ................................................................................................................. 190 5. O emanacionismo dos maniqueus quanto à origem da alma ....................................................... 191 6. Definição e propriedade da alma ................................................................................................ 192 7. Entendimento e vontade: os centros das faculdades da alma ...................................................... 195 8. Livre-arbítrio e responsabilidade de Adão .................................................................................. 195 CAPÍTULO XVI DEUS, POR SEU PODER, SUSTENTA E PRESERVA O MUNDO POR ELE CRIADO, E POR SUA PROVIDÊNCIA ELE REGE CADA UMA DE SUAS PARTES 1. A providência, corolário lógico da criação, razão por que não se separam .................................. 198 2. O que rege o mundo é a providência, não o acaso ou a sorte ...................................................... 199 3. Deus, causa primeira, também a tudo rege em sua providência .................................................. 200 4. Natureza da providência: não envolve presciência; é atual e eficaz, universal e particular ........ 202 5. A providência especial de Deus no âmbito da própria natureza .................................................. 204 6. A providência especial de Deus no âmbito da vida humana ........................................................ 205 7. A providência de Deus no âmbito dos fatos naturais .................................................................. 206 8. A doutrina da providência não é mera crença no destino ou fado, na sorte ou acaso .................. 207 9. A imprevisibilidade e ignorância humanas não discernem a causação divina dos eventos ........... 208 CAPÍTULO XVII ATÉ ONDE E A QUE PROPÓSITO SE DEVE APLICAR ESTA DOUTRINA, PARA QUE SEU PROVEITO SE NOS EVIDENCIE 1. Sentido e alcance da providência ................................................................................................ 211 2. A reverência devida à providencial sabedoria e governo de Deus ............................................... 212 3. A providência não anula a responsabilidade humana .................................................................. 214 4. A providência divina longe está de dispensar todos os meios de proteção e socorro .................. 215 5. A providência divina não nos justifica a iniqüidade ................................................................... 216 6. O conforto que aos crentes propicia a doutrina da providência de Deus .................................... 218 7. A atitude do crente tocado pela visão da providência benigna de Deus ...................................... 219 8. A serenidade que a certeza da providência divina faculta ante as adversidades ........................... 220 ÍNDICE 16 LIVRO I 9. Relevância das causas intermédias ............................................................................................. 221 10. A certeza da providência divina nos sustenta ante os perigos múltiplos que nos ameaçam ....... 222 11. A certeza da providência divina nos propicia jubilosa confiança em Deus e sua operação ........ 223 12. Sentido das passagens que falam de arrependimento por parte de Deus ................................... 225 13. Arrependimento em Deus, antropomorfismo pedagógico ......................................................... 226 14. A condicionalidade dos fatos na perspectiva da soberana providência de Deus ........................ 227 CAPÍTULO XVIII DEUS DE TAL MODO USA AS OBRAS DOS ÍMPIOS E A DISPOSIÇÃO LHES VERGA A EXECUTAR SEUS JUÍZOS, QUE ELE PRÓPRIO PERMANECE LIMPO DE TODA MÁCULA 1. Eficiência, não permissividade, é a relação de Deus para com a ação dos ímpios ....................... 229 2. A eficiência da providência divina na mente e coração de todos ................................................. 231 3. A vontade de Deus é una e soberana ........................................................................................... 233 4. Não é procedente incriminar a Deus pelo fato de fazer uso dos ímpios para seus propósitos magnos ........................................................................................................................................ 235 19CARTA AO REI Muito e a muitos teria de registrar meu profundo agradecimento para que pu- desse levar a cabo esta para mim venturosa empreitada. Primeiramente, a Deus, Pai Amantíssimo, que me conservou com vida e conferiu a capacidade para esta delica- da e morosa tarefa; à Christian Reformed Church o propiciar-me período de estudos que me facultaram o contacto primeiro com o esforço de tradução, bem como o interesse na presente edição, objetivando em valioso subsídio financeiro; ao Dr. Peter de Klerk, bibliotecário do Calvin College, Grand Rapids, Michigan, a valiosa colaboração prestada no uso de obras de seu acervo e informações fornecidas poste- riormente; assim, ao Rev. Júlio Andrade Ferreira que, generosamente, tanto me as- sistiu com livros de que tive necessidade ao longo de todo o demorado labor da tradução; à Unicamp o sólido apoio à iniciativa, expresso na aceitação deste traba- lho como parte dos encargos exigidos dos docentes; ao professor Rodolfo Ilari, colega de docência, a inestimável ajuda na consecução desse apoio; ao Rev. Celsino da Cunha Gama, Diretor Executivo de Luz Para o Caminho, o empenho em fazer com que a obra viesse a lume, assumindo de começo a dura tarefa de publicação; ao presbítero Glaycon Andrade Ferreira, que se desdobrou na revisão primeira da com- posição; ao presbítero Dr. Paulo Breda Filho, Presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, ao presbítero Antonio Ribeiro Soares, Diretor Supe- rintendente da Casa Editora Presbiteriana, e ao Rev. Sabatini Lalli, o interesse em ter a obra publicada sob o patrocínio da Igreja Presbiteriana do Brasil, como sempre desejamos. Ao Rev. Sabatini, ademais, o penoso trabalho de revisão final e as opor- tunas sugestões feitas na parte redacional. À minha nobre esposa, Amélia Stephan Luz, a dedicação e ajuda prestadas de mil e uma formas, sem o que não teria eu tido condições de levar a cabo a árdua empreitada. Aos estudantes do Seminário Presbi- teriano de Campinas e a muitos colegas o generoso estímulo, demonstrado vezes tantas e de tantas maneiras. De reconhecimento especial, finalmente, é credora a Comissão Calvino, constituída de ilustres irmãos do Norte, centralizados no Recife, que me respaldaram o esforço com sugestões preciosas, certa ajuda financeira até que assumi a docência com tempo integral na Universidade, leal incentivo e muita oração. Que lhes recompense a todos a nobreza de alma o grande Senhor Nosso. E que seja este esforço, fruto de intenso labor e especial carinho, ricamente abençoado por Deus de sorte que dele possam muitos auferir grande proveito espiritual e muito estímulo para testemunhar eficazmente de Cristo e seu Evangelho. Campinas, junho de 1984 Waldyr Carvalho Luz PREFÁCIO À 1ª ED ÇÃO 20 LIVRO I 21CARTA AO REI P R E F Á C I O À 2ª E D I Ç Ã O É fato assaz auspicioso que a primeira edição das Institutas em nossa língua portu- guesa haja sido toda vendida em pouco mais de uma década de sua publicação. Por um lado, demonstra que nosso meio cultural, apesar de tantas limitações e carências, se esmera em cultivar e aprofundar seus conhecimentos teológicos, não desdenhando uma obra que, embora produzida no século 16, é de imensa atualidade, não somente porque representa a magnum opus da Reforma Protestante, documento histórico de real grandeza, mas também porque é uma sistematização da doutrina bíblica de invul- gar profundidade e acuracidade hermenêutica irretorquível, fundamento essencial do pensamento protestante clássico. Por outro lado, revela uma visão compreensiva e ampla do mundo teológico, o mais das vezes afeito a vultos e obras ditas modernas, modismos efêmeros e superficiais, de pouca duração e mesmo raízes. A presente edição difere da anterior em que não mais se aduzem as repetidas notas de rodapé que registravam variantes comparativas de tradução verificadas em duas versões do inglês, da alemã, da espanhola e, mesmo, da francesa. Também, a critério dos editores, retiram-se os colchetes que assinalavam termos e formas que, não en- contradas no texto latino original, o tradutor inseriu para efeitos de clareza e expres- são, como é o caso dos artigos definido e indefinido e do pronome da terceira pessoa, ausentes na língua latina, que nós, falantes luso-brasileiros adaptamos do demonstra- tivo ille, illã, illud, em sua forma acusativa. Tais aduções bem que poderiam aparecer em itálico ou negrito. Tratando-se de documento de tal vulto, ao traduzirmo-lo, procu- ramos, sem sermos literais, ater-nos ao estilo e terminologia de Calvino o mais possí- vel, pelo que nem sempre a tradução é clara e fluente como seria de desejar-se. Os editores, para tornar o texto mais lúcido e acessível, tomaram a liberdade de fazer certos ajustes e alterações, registrando, porém, em nota de rodapé a forma integral da tradução de nossa lavra na primeira edição. É preciso que o leitor tenha em mãos exatamente o que o teólogo de Genebra escreveu, sem deturpações ou falseamento do teor, exatidão necessária em documento desse jaez e importância. Congratulamo-nos com a Editora Cultura Cristã pela arrojada, mas oportuna, iniciativa de reeditar as Institutas e alegramo-nos em poder continuar facultando ao estudioso Calvino falado em nosso idioma. Abençoe o Senhor este nobre empreendimento. Campinas, setembro de 2003 Waldyr Carvalho Luz 24 LIVRO I haver acusado, que nenhuma inocência haverá de subsistir, nem nas palavras, nem nas ações. Se no interesse de suscitar ódio, porventura alguém alegue que esta doutrina, da qual estou tentando dar-te a razão, já por muitos tem sido condenada pelo veredicto de todos os Estados, solapada por muitas sentenças peremptivas dos tribunais, outra coisa não estará a dizer senão que, em parte, ela tem sido violentamente pisoteada pela facciosidade e prepotência dos adversários; em parte, insidiosa e fraudulenta- mente oprimida por suas falsidades, invencionices e calúnias. Constitui arbitrariedade o fato de que, não facultada oportunidade de defesa a uma causa, contra ela se passem sanguinárias sentenças; é dolo que, à parte de qualquer delito, ela seja acusada de fomentar sedições e promover malefícios. Para que não pense alguém que estamos a queixar-nos dessas coisas injusta- mente, tu mesmo, ó Rei nobilíssimo, podes ser-nos testemunha de com que mentiro- sas calúnias ela é diariamente trazida diante de ti, como se a outro fim não disponha senão arrebatar das mãos dos reis os cetros, pôr por terra todos os tribunais e normas judiciárias, subverter a todas as instituições e estruturas político-administrativas, perturbar a paz e a tranqüilidade públicas, anular todas as leis, desmantelar domíni- os e posses, enfim, promover total ruína de tudo. E, no entanto, o que ouves é ape- nas uma parcela mínima. Pois que certas coisas horrendas se espalham entre o povo, coisas que, se fossem verdadeiras, deveria o mundo inteiro, com merecida razão, julgá-la digna, juntamente com seus autores, de mil fogueiras e cruzes. Quem a esta altura haveria de surpreender-se de que, onde se dá crédito a essas civilizações profundamente iníquas, contra ela se tem inflamado o ódio público? Eis por que todas as suas classes, de comum acordo, concordam e cooperam em nossa condenação, bem como de nossa doutrina, arrebatados por esta paixão, quan- tos se assentam nos tribunais para exercer o juízo, em lugar de sentenças reais, pronunciam os preconceitos que trouxeram de casa. E julgam haver-se criteriosa- mente desincumbido de suas funções, se a ninguém ordenam que seja levado ao suplício, a não ser que seja incriminado por confissão direta ou por sólidos teste- munhos. Mas, de que crime? Dessa doutrina condenada, dizem-no. Mas, em bases de que direito foi ela condenada? Ora, isto deveria ser a essência da defesa, a saber, não repudiar a própria doutrina, ao contrário, havê-la por verdadeira. Aqui, no entanto, nos é vedado até mesmo o direito de falar em surdina! 3. APELO EM FAVOR DOS FIÉIS OPRIMIDOS E assim, não sem justa razão, ó Rei invictíssimo, rogo-te que empreendas cabal investigação desta causa, causa que até agora tem sido tratada desordenadamente, 25CARTA AO REI quando não de todo tumultuada, e sem nenhuma sistemática de direito, e mais sob a agitação do impulso de seriedade condigna do judiciário. Nem julgues que estou aqui arquitetando minha defesa pessoal, mercê da qual me resulte seguro regresso à pátria, da qual, embora a ame tanto quanto é próprio do sentimento humano, no pé em que estão as coisas atualmente não deploro profunda- mente estar dela distanciado. Antes, estou a abraçar a causa comum de todos os piedosos, que outra não é senão a própria causa de Cristo que, de todos os modos, jaz hoje em teu reino lacerada e espezinhada, dir-se-ia reduzida a desesperada con- dição, isto, por certo, mais em decorrência da tirania de certos fariseus do que de teu querer. Aqui, porém, a nada leva denunciar como isso acontece. O certo é que esta causa está sofrendo dura opressão. Isto, pois, os ímpios têm conseguido: que a verdade de Cristo, se não é aniquilada como que em debandada e destroço, por certo que será ostentada como que enxovalhada e vilipendiada. E a pobrezinha da Igreja está ou devastada por cruéis morticínios, ou arruinada por banimentos, ou ralada por ameaças e terrores, que nem sequer ousa alçar a voz. E, ainda agora, com a costumeira insânia e ferocidade, investem desabusados contra a muralha que já está a desmoronar-se, e prontos a levar a plena consumação a devastação a que se acos- tumaram. Entrementes, ninguém vem à frente para opor-se, em sua proteção, a tais explosões de violência. E se alguns há que desejam ser tidos como a favorecer especialmente a verdade, são eles de parecer que se devam ignorar o erro e a impru- dência de homens incultos. Assim, pois, falam homens comedidos, chamando de erro e imprudência o que sabem ser a plena verdade de Deus; e chamando de ho- mens incultos, aqueles cuja inteligência vêem não ter sido, de modo algum, despre- zível a Cristo, uma vez que ele os teve por dignos dos mistérios de sua celestial sabedoria! A tal ponto, todos se envergonham do evangelho! Cumprir-te-á, portanto, ó Rei sereníssimo, não apartares os ouvidos, nem a mente de tão justa defesa, mormente quando está em jogo questão de tão alta importância, a saber: como se fará patente na terra o caráter intocável da glória de Deus, como sua dignidade retenha a verdade de Deus, como entre nós o reino de Cristo perma- necerá íntegro e inabalável. Matéria essa digna de tua atenção, digna de teu conhe- cimento, digna de teu juízo! Com efeito, certamente esta consideração faz o verdadeiro rei: reconhecer-se um ministro de Deus na gestão do reino. Aquele que assim não reina para o serviço da glória de Deus não exerce o reino; ao contrário, exerce a usurpação. Ademais, muito se engana quem espera a prosperidade diária do reino que não é regido pelo cetro de Deus, isto é, por sua santa Palavra, quando não pode falhar o oráculo celes- te em que se proclamou, a saber, onde haja faltado a profecia, haverá de espalhar-se o povo [Pv 29.18]. 26 LIVRO I Tampouco deve privar-te desse esforço o menosprezo de nossa humildade. De quão insignificantes somos, e abjetos homúnculos, na verdade disso estamos hones- tamente cônscios. Sim, diante de Deus, míseros pecadores; à vista dos homens, absolutamente desprezíveis, escória e lixo do mundo; se o queres, ou qualquer outra coisa que de mais vil se possa, porventura, referir. De sorte que nada resta de que nos possamos gloriar diante de Deus, senão tão-somente de sua misericórdia [2Co 10.17, 18], mercê da qual, à parte de qualquer mérito nosso [Tt 3.5], fomos admiti- dos à esperança da eterna salvação, nem mesmo diante dos homens nos sobra senão nossa impotência [2Co 11.30; 12.5, 9], o que, a mera admissão, sequer com um aceno, é entre eles suprema ignomínia. Nossa doutrina, porém, sublime acima de toda glória do mundo, invicta acima de todo poder, importa que seja enaltecida, pois não é nossa, mas do Deus vivo e de seu Cristo, a quem o Pai constituiu Rei, para que domine de mar a mar e desde os rios até os confins do orbe das terras [Sl 72.8]. E de tal forma, em verdade, deve ele imperar, que, percutida só pela vara de sua boca, a terra toda, com seu poder de ferro e bronze, com seu resplendor de ouro e prata, ele a despedaçará como se outra coisa não fosse senão diminutos vasos de oleiro, na exata medida em que os profetas vaticinam acerca da magnificência de seu reino [Dn 2.34; Is 11.4; Sl 2.9]. Nossos adversários, é verdade, vociferam em contrário que nos servimos alei- vosamente da Palavra de Deus, da qual, a seu ver, seríamos os mais depravados corruptores. Esta, na verdade, não só é uma calúnia por demais maldosa, mas ainda é um deslavado despudoramento; tu próprio, ao leres esta nossa confissão, em virtu- de da prudência que te assiste, o poderás julgar. Aqui também será bom dizer algu- ma coisa, a qual te provoque ou desejo e atenção, ou pelo menos te abra algum caminho para lê-la.1 Quando Paulo quis que toda profecia fosse conformada à analogia da fé (Rm 12.6), estabeleceu uma regra extremamente segura, pela qual deva ser testada a interpretação da Escritura. Portanto, se a doutrina nos é esquadrinhada à base desta regra de fé, nas mãos nos está a vitória. Pois, que melhor se coaduna com a fé e mais convenientemente do que reconhecer que somos despidos de toda virtude, para que sejamos vestidos por Deus; vazios de todo bem, para que sejamos por ele plenifica- dos; escravos do pecado, para que sejamos por ele libertados; cegos, para que seja- mos por ele iluminados; coxos, para que sejamos por ele restaurados; fracos, para que sejamos por ele sustentados; despojando-nos de todo motivo de glória pessoal, para que somente ele seja glorioso e nós nele nos gloriemos? [1Co 1.31; 2Co 10.17]. Quando dizemos estas e outras coisas desta espécie, interrompem-nos eles e 1. Primeira edição: “Contudo, algo se impõe ainda aqui dizer que à própria leitura ou te desperte o desejo e a atenção, ou, certamente, o caminho [para isso te] aplane.” 29CARTA AO REI 6. DE FATO É DOUTRINA RECENTE OU NOVA? Em primeiro lugar, que a tacham de nova, fazem sério agravo a Deus, cuja Sagrada Palavra não merecia ser rotulada de novidade. Por certo que estou bem longe de duvidar que seja nova àqueles a quem Cristo tanto é novo quanto novo é o evangelho. Quantos, porém, sabem ser antiga essa proclamação de Paulo, a saber, que Jesus Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação [Rm 4.25], entre nós não encontrarão nada novo. Que ela, por tão longo tempo, ficou desconhecida e confinada, que esteve obscurecida, é culpa da impiedade hu- mana. Agora, quando pela bondade de Deus, ela nos é restaurada, se deveria reco- nhecer a antigüidade, ao menos por direito pós-liminar. Da mesma fonte de ignorância a têm por duvidosa e incerta. É precisamente isso o de que se queixa o Senhor por meio de seu Profeta: Que o boi conhece seu possuidor e o jumento, o estábulo de seus donos; ele, porém, não é conhecido de seu povo [Is 1.3]. Em verdade, por mais que motejem da incerteza de nossa doutrina, se tivessem de selar sua doutrina com o próprio sangue e às expensas da própria vida, seria oportuno ver de quanto valor ela haja de ser estimada! Muito outra é nossa confiança, a qual não teme nem os terrores da morte, nem mesmo o próprio tribunal de Deus. 7. FUNÇÕES DOS MILAGRES O fato de exigirem de nós milagres, agem de má fé. Ora, não estamos a forjar algum evangelho novo; ao contrário, retemos aquele mesmo à confirmação de cuja verdade servem todos os milagres que outrora operaram assim Cristo como os após- tolos. Acima de nós, eles têm isto de singular, que podem confirmar sua fé mediante constantes milagres até o presente dia! Contudo, o fato é que estão antes a invocar milagres que se prestam a perturbar o espírito doutra sorte inteiramente sereno, a tal ponto são eles ou frívolos e ridículos, ou fúteis e falsos! Todavia, nem mesmo se esses alegados milagres fossem mui prodigiosos, certamente que não seriam contra a verdade de Deus, quando importa que o nome de Deus por toda parte e a todo tempo seja santificado, quer através de portentos, quer mediante a ordem natural das coisas. Talvez mais deslumbrante poderia ser esse aparente matiz, não fora que a Escri- tura nos adverte quanto ao legítimo propósito e uso dos milagres. Ora, os sinais que acompanharam a pregação dos apóstolos, no-lo ensina Marcos [16.20], foram ope- rados para sua confirmação. De igual modo, também Lucas narra que o Senhor deu testemunho da palavra de sua graça, quando foram operados sinais e portentos pelas mãos dos apóstolos [At 14.13]. Ao que se torna muito semelhante esta palavra do Apóstolo: Anunciado o evangelho, a salvação foi confirmada, testemunhando jun- 30 LIVRO I tamente com eles o Senhor, mediante sinais, portentos e muitos atos de poder [Hb 2.4; Rm 15.18, 19]. Quando, pois, ouvimos que eles constituem marcas do evangelho, porventura os converteremos em destruição da autoridade do evangelho? Quando ouvimos que foram destinados simplesmente à autenticação da verdade, porventura os acomoda- remos à confirmação de mentiras? Portanto, é conveniente examinar e investigar, em primeiro lugar, a doutrina, a qual o evangelista diz ter precedência sobre os milagres; doutrina que, se for aprovada, só então deve, por fim, de direito, receber a confirmação dos milagres. Entretanto, a marca distintiva da boa doutrina, da qual o autor é Cristo, é esta: ela não se inclina a buscar a glória dos homens, mas a de Deus [Jo 7.18; 8.50]. Quando Cristo declara que esta é a comprovação da doutrina, os milagres são visu- alizados em falsa luz, os quais são levados a outro propósito que não é o de glorifi- car o nome do Deus único. E convém que tenhamos sempre em mente que Satanás tem seus milagres, os quais, embora sejam falazes prestidigitações, antes que genu- ínos prodígios, entretanto são de tal natureza, que podem seduzir os desavisados e simplórios [2Ts 2.9, 10]. Mágicos e encantadores sempre se destacaram por seus milagres. A idolatria sempre foi nutrida por milagres de causar pasmo. Contudo, eles não legitimam nossa superstição, nem dos magos, nem dos idólatras. E com este aríete, os donatistas, outrora, abusavam da simplicidade da popu- lação, de que eram poderosos em milagres. Portanto, agora respondemos a nossos adversários, o mesmo que Agostinho respondeu então aos donatistas: o Senhor nos acautelou contra esses milagreiros quando predisse que haveriam de vir fal- sos profetas, os quais, em virtude de sinais mentirosos e prodígios vários, induziri- am os eleitos ao erro, se isso pudesse acontecer [Mt 24.24]. E Paulo advertiu que o reino do Anticristo haverá de vir com todo poder, e sinais, e prodígios enganosos [2Ts 2.9]. Mas, insistem eles, esses milagres não são operados por ídolos, nem por mistifi- cadores, nem por falsos profetas, mas pelos santos. Como se na verdade não soubés- semos que esta é a artimanha de Satanás: transformar-se em anjo de luz [2Co 11.14]. Em tempos idos, os egípcios cultuaram a Jeremias, sepultado em seu meio, com sacrifícios e outras honras divinas. Porventura não estavam abusando do santo pro- feta de Deus para os fins de sua idolatria? E no entanto com tal veneração de seu sepulcro chegavam ao ponto de pensar que, como justa recompensa disso, eram curados da picada de serpentes! Que diremos, senão que sempre foi esta, e haverá de sempre ser, a mui justa punição de Deus: enviar a eficácia do erro àqueles que não têm recebido o amor da verdade, para que creiam na mentira [2Ts 2.11]? Portanto, de modo nenhum nos faltam milagres, e esses não são passíveis de dúvida, nem suscetíveis a zombarias. Aqueles, porém, aos quais eles apelam em seu 31CARTA AO REI abono, são meros embustes de Satanás, uma vez que desviam o povo do verdadeiro culto de seu Deus para o engano. 8. O TESTEMUNHO DOS PATRÍSTICOS Além disso, os patrísticos se nos opõem cavilosamente (refiro-me aos escritores antigos e, além disso, de uma era melhor), como se os tivessem por sufragadores de sua impiedade, por cuja autoridade a contenda pudesse ser dirimida e se nos inclina- ria, para falar até com extremada modéstia, a melhor parte da vitória. De fato, ainda que muitas coisas tenham sido escritas por esses patrísticos, com admirável descortino e reconhecida excelência, em certos casos, contudo tem-lhes acontecido o que só costuma acontecer aos homens, isto é, estes filhos piedosos, com a agudeza de espírito, de discernimento e de compreensão, com que são dota- dos, deles só cultuam os lapsos e erros. Aquilo, entretanto, que com acerto disse- ram, ou não o observam, ou o dissimulam, ou o deturpam, de sorte de possas dizer que sua única preocupação tem sido catar esterco em meio ao ouro. Então, contra nós investem com ímpios brados como sendo nós desprezadores e inimigos dos patrísticos. Nós, porém, tão longe estamos de desprezá-los que, se fosse esse nosso presente propósito, de nenhuma dificuldade me seria possível com- provar-lhes com as próprias opiniões a maior parte daquilo que estamos hoje afir- mando. Contudo, em tais moldes lhes versamos os escritos que temos de ter sempre isto em mente [1Co 3.21-23]: tudo é nosso para servir-nos, não para dominar sobre nós, e nós somos de um, Cristo, a quem se deve, sem exceção, em tudo obedecer. Quem não observa esta distinção, na fé nada terá de sólido, uma vez que muita coisa ignoraram estes santos varões, não raro discreparam entre si, por vezes até a si mesmos se contradisseram. Não sem razão, frisam eles que somos admoestados por Salomão [Pv 22.28] a não ultrapassarmos os marcos antigos que nossos pais estabeleceram. Mas, a norma não é a mesma em se tratando de limites de glebas e em questão de obediência da fé. Mais apropriada é esta que se estabelece nestes termos: “esqueça seu povo e a casa de seu pai” [Sl 45.10]. Se, porém, com tanto ardor se regozijam em avllhgorei/n [^ll@G(r#'n – alegorizar], por que não adotem os apóstolos como pais, antes que a qualquer outro, cujos termos prescritos não é lícito remover? Ora, assim interpretou Jerônimo, cujas palavras eles inseriram em seus cânones. E se querem que sejam fixos os limites destes a quem entendem por pais, por que eles próprios tão impie- dosamente os ultrapassam, quantas vezes lhes apraz? Do elenco dos patrísticos eram aqueles dos quais um disse que nosso Deus não come, nem bebe, e assim não tem necessidade de cálices, nem de pratos; outro, que os ritos sagrados não requerem ouro, nem com ouro se fazem aceitáveis as coisas 34 LIVRO I limites, se eu quisesse passar em revista quão petulantemente estes sacodem de sobre si o jugo dos patrísticos, de quem desejam parecer filhos obedientes. Não me seriam suficientes meses, realmente anos até. E, não obstante, eles são de tão desabusada e deplorável impudência, que ou- sam invectivar-nos de que não hesitamos em transgredir os limites antigos! 9. O VALOR DO COSTUME Ora, se nos evocam o costume, certamente que nada conseguem, pois se agiria mui injustamente conosco se tivéssemos que ceder ao costume. Sem dúvida que, se os juízes dos homens fossem retos, se fazia necessário buscar o costume dos bons. Contudo, não poucas vezes costuma acontecer mui diferentemente, pois o que se vê praticado por muitos logo adquire o foro de costume. Além disso, dificilmente em algum tempo as coisas humanas estejam tão bem que o melhor agrade à maioria. Portanto, o erro público quase sempre resultou dos vícios particulares de muitos, ou, melhor, o consenso comum dos vícios, que agora estes bons varões querem que seja tido por lei. Que aqueles que têm olhos vejam que não apenas um oceano de males tem inundado o orbe, que numerosas pestes ameaçadoras o têm invadido, que tudo se precipita à ruína, de tal sorte que, ou haverá de desesperar-se inteiramente quanto à situação humana, ou fazer frente a tão grandes males que às vezes é preciso aplicar a força. E o remédio é rejeitado não por outra razão, mas porque já de muito nos acostumamos aos males. Todavia, ainda que o erro público tenha lugar na sociedade dos homens, no reino de Deus, contudo, o que se ouve e se observa é só sua eterna verdade, à qual não se pode impor a injunção de alguma extensão de tempo, de algum costume, de alguma conjuração. Assim, outrora ensinava Isaías aos eleitos de Deus que não dissessem: Conspiração, em referência a tudo aquilo em que o povo dizia: Conspi- ração [Is 8.12]. Isto é, que eles próprios não conspirassem compartilhando do senti- mento ímpio do povo, nem temessem deles o que temiam, nem se espantassem, mas, ao contrário, se santificassem ao Senhor dos Exércitos e este fosse para eles o temor e espanto. Agora, pois, que lancem eles exemplos diante de nós, como queiram, não ape- nas os séculos sucessivos, mas ainda os tempos atuais. Se santificarmos o Senhor dos Exércitos, não seremos grandemente espantados. Ora, ainda que muitos séculos tenham anuído à mesma impiedade, poderoso é aquele que exerce vingança até a terceira e quarta geração [Ex 20.5; Nm 14.18; Dt 5.9]; ainda que, a um só tempo, o orbe inteiro conspire na mesma maldade perversa, pela experiência ele nos ensinaram qual seja o fim daqueles que transgridem com a multidão, quando a todo o gênero 35CARTA AO REI humano destruiu pelo dilúvio, preservando apenas Noé com sua reduzida família, o qual, por sua fé, e esta de um só, condenasse ao mundo todo [Hb 11.7; Gn 7.1]. Afinal, o mau costume outra coisa não é senão uma como que peste pública, em que não menos sucumbem quantos tombam na multidão. Ademais, conviria que ponderasse o que em certo lugar diz Cipriano: Aqueles que pecam por ignorância, embora não podem ser eximidos de toda culpa, contudo podem parecer de certo modo escusáveis. Aqueles, porém, que obstinadamente rejeitam a verdade oferecida pela benevolência de Deus nada têm que possam pretextar. 10. CONCEPÇÕES ERRÔNEAS QUANTO À NATUREZA DA IGREJA Com seu dilema, não tão prementemente nos arrocham que nos forcem a con- fessar, ou que a Igreja esteve por algum tempo semimorta, ou que agora estejamos nós em conflito com a Igreja. A Igreja de Cristo certamente tem estado viva, e viva continuará por quanto tempo Cristo reinar à destra do Pai, por cuja mão é ela sus- tentada, por cuja proteção é guardada, por cujo poder ela retém sua intangibilidade. Pois ele cumprirá, indubitavelmente, o que uma vez prometera, a saber, que haverá de estar com os seus até a consumação do mundo [Mt 28.20]. No momento não sustentamos contra ela nenhuma luta, uma vez que, em pleno consenso com todo o corpo dos fiéis, cultuamos e adoramos ao Deus único e a Cristo, o Senhor [1Co 8.6], nos moldes em que tem sido sempre adorado por todos os piedosos. Entretanto, eles não se desviam pouco da verdade, quando não reconhecem nenhuma Igreja senão aquela que descortinam pela visão natural e a tentam circunscrever aos limites a que, de modo algum, foi ela confinada. A controvérsia gira nestes gonzos: primeiro, que eles contendem dizendo que a forma da Igreja é sempre concreta e visível; segundo, que identificam a própria forma com a sé da igreja romana e a ordem de seus prelados. Nós afirmamos, em contrário, não só que a Igreja pode subsistir sem nenhuma expressão visível, nem que ela contém a forma nesse esplendor externo que estultamente admiram, mas, em marca bem diferente, a saber, na pregação pura da Palavra de Deus e na legítima administração dos sacramentos. Eles se exasperam quando nem sempre podem apontar a Igreja com o dedo. Quão freqüentemente, porém, aconteceu de ela deformar-se ante o povo judeu a tal ponto que não podia ser distinguida por nenhuma aparência? Que forma pensamos haver ela refulgido, quando Elias deplorava por ter ficado sozinho? [1Rs 19.14]. Quanto tempo, desde a vinda de Cristo, ela ficou obscura e sem forma? Quantas vezes, desde essa época, ela foi de tal modo oprimida por guerras, por revoltas, por heresias, que em parte alguma fosse contemplada com esplendor? Se porventura tivessem vivido nesse tempo, teriam crido existir então alguma Igreja? Elias, po- 36 LIVRO I rém, ouviu que foram conservados sete mil homens que não tinham dobrado os joelhos diante de Baal [1Rs 19.18]. Tampouco nos deve pairar alguma dúvida de que Cristo sempre reinou na terra, desde que subiu ao céu. Com efeito, se então os piedosos houvessem requerido alguma forma perceptível aos olhos, porventura não teriam prontamente cedido ao desânimo? Aliás, já em seu século, Hilário havia considerado ser um mal superlativo que, tomados de estulta admiração pela dignidade episcopal, não se apercebiam que se ocultava por debaixo dessa máscara mortífera e sinistra, porque assim fala contra Auxêncio: “De uma coisa vos advirto: Guardai-vos do Anticristo! Pois é mal que de vós se haja apoderado o amor às paredes, mal que venerais a Igreja de Deus em tetos e edifícios, mal que sob essas coisas introduzis o nome de paz. Porventura é passí- vel de dúvida que nestes o Anticristo haverá de assentar-se? A mim mais seguros são as montanhas, as florestas, os lagos, os cárceres e as furnas. Pois nestes, profetiza o Profeta, ou habitam, ou são lançados.” Entretanto, o que hoje o mundo venera em seus bispos cornudos, senão que presume serem santos prelados da religião aqueles a quem vê presidirem às cidades de maior renome? Fora, portanto, com tão estulta admiração! Antes, pelo contrário, uma vez que só ele sabe quem são os seus [2Tm 2.19], permitamos ao Senhor isto: às vezes ele até mesmo priva a visão dos homens da percepção exterior de sua Igreja. Confesso que isso é o que merece a impiedade dos homens; por que porfiamos nós em opor- nos à justa vingança de Deus? Em moldes como esses, o Senhor puniu em tempos idos a ingratidão dos homens. Ora, visto que não quiseram obedecer-lhe à verdade, e sua luz extinguiram, quis ele que, tornando-se cegos em seu entendimento, não só fossem enganados por falsidades absurdas, mas ainda imersos em trevas profundas, de tal sorte que não se evidenciasse nenhuma expressão exterior da verdadeira Igre- ja. Contudo, em todo o tempo em que ela foi extinta, ele preservou os seus, ainda que não só dispersos, mas até mesmo submersos em meio aos erros e às trevas. Nem é de admirar, pois, que soube preservá-los tanto na própria confusão de Babilônia, quanto na chama da fornalha ardente. Entretanto, o fato de quererem julgar a forma da Igreja em função de não sei que vã pompa, o quanto isso é perigoso, e para que a exposição não se prolongue desme- didamente, o indicarei em poucas palavras, em vez de tecer-lhe longa consideração. O pontífice, insistem, que ocupa a sé apostólica, e quantos foram por ele ungi- dos e consagrados sacerdotes, uma vez que sejam assinalados por suas mitras e báculos, representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja. Por isso eles não podem errar. Por quê? Porque são pastores da Igreja e consagrados ao Senhor. E porventura Arão e os demais guias de Israel não eram pastores? Contudo Arão e seus filhos, já investidos sacerdotes, no entanto erraram quando forjaram o bezer- 39CARTA AO REI baldado, se dermos ouvidos ao Senhor como nosso monitor, o qual, há muito, não só nos pôs a descoberto suas artimanhas, para que não nos viesse a apanhar despreve- nidos, mas ainda nos armou com defesas bastante sólidas contra todas as suas má- quinas de guerra. Além disso, quão desmedida é a perversidade de assacar o ódio contra a própria Palavra de Deus, seja das sedições que contra ela atiçam os réprobos e rebeldes, seja das seitas que engendram os impostores! Todavia, isso não é novidade! Interro- gado foi Elias, se porventura não era ele aquele que perturbava a Israel [1Rs 18.17]. Para os judeus, Cristo era um sedicioso [Lc 23.5; Jo 19.7]. Aos apóstolos impingi- ram o crime de sublevação do povo [At 24.5-9]. Que outra coisa estão a fazer aque- les que hoje nos imputam todos os distúrbios, tumultos e contendas que contra nós efervescem? Ora, Elias nos ensinou a resposta que se deva dar a tais acusadores [1Rs 18.17, 18]: não somos nós que semeamos os erros ou incitamos os tumultos; ao contrário, são os mesmos que lutam contra o poder de Deus! Aliás, uma vez que baste esta resposta para conter-lhes a temeridade, assim, por outro lado, será suficiente para ir ao encontro da obtusidade de outros, que não raro acontece que se deixem abalar com tais escândalos e assim fiquem perturbados, cedendo à vacilação. Portanto, para que com esta confusão não percam eles o âni- mo, e não sejam alijados do pedestal em que se firmam, saibam esses que as mesmas coisas que hoje nos sobrevêm, os apóstolos as experimentaram em seu próprio tem- po. Havia indoutos e inconstantes que, para sua própria perdição, como no-lo diz Pedro [2Pe 3.16], corrompiam o que fora divinamente escrito por Paulo. Havia des- prezadores de Deus que, em ouvindo haver proliferado o pecado para que a graça superabundasse, de imediato postulavam: “Permaneçamos no pecado para que a graça se enriqueça” [Rm 6.1]; em ouvindo que os fiéis não estão debaixo da lei, de pronto vociferavam: “Pequemos, porquanto não estamos debaixo da lei, mas sob a graça” [Rm 6.15]. Havia aqueles que o acusavam de instigador do mal. Infiltravam- se muitos falsos apóstolos para destruir as igrejas que ele edificara [1Co 1.10-13; 2Co 11.3, 4; 12, 13; Gl 1.6, 7]. Alguns pregavam o evangelho por inveja e porfia, não em sinceridade [Fp 1.15]; até mesmo por espírito de contenda, pensando agra- var-lhe a pressão dos grilhões [Fp 1.17]. Em outras partes, não era muito o progres- so do evangelho. Todos buscavam o próprio proveito, não o de Jesus Cristo [Fp 2.21]. Outros voltavam atrás como cães a seu vômito e porcos a seu espojadouro de lama [2Pe 2.22]. Muitos pervertiam a liberdade do Espírito em licença da carne [2Pe 2.18, 19]. Falsos irmãos se insinuavam, dos quais, mais tarde, ameaçavam os piedosos com perigos [2Co 11.3, 4]. Entre os próprios irmãos suscitavam-se varia- dos desencontros. Nessas circunstâncias, que haveriam os apóstolos de fazer? Porventura não de- veriam ter dissimulado por um tempo, ou, antes, posto de parte e renegado esse 40 LIVRO I evangelho que viam ser a sementeira de tantos litígios, motivo de tantos perigos, ocasião de tantos escândalos? Mas, em meio a tribulações dessa ordem, vinha-lhes à lembrança que Cristo era uma pedra de tropeço e rocha de escândalo [Rm 9.33; 1Pe 28; Is 8.14], posto para a queda e soerguimento de muitos e por sinal de contra- dição a outros [Lc 2.34]. Armados desta certeza, avançavam ousadamente por entre todos os riscos de tumultos e agravos. Com o mesmo pensamento convém também que nos fortaleçamos, uma vez que Paulo testifica ser este o perpétuo gênio do evangelho: que seja aroma de morte para morte aos que perecem [2Co 2.16], embora ele nos tenha sido destinado antes a este propósito: que fosse o aroma de vida para a vida e o poder de Deus para a salvação dos fiéis [Rm 1.16]. Isso mesmo é o que também certamente experimentaríamos, se não corrompêssemos com nossa ingratidão este benefício de Deus tão singular, e para nossa ruína pervertêssemos o que nos deveria ser nossa única garantia de sal- vação. 12. CONCLUSÃO Mas, volvo-me a ti, ó Rei. Em nada te movam essas vãs cavilações com que nossos adversários porfiam por infundir-te pavor, a saber, que, mercê deste novel evangelho, pois assim o chamam, não se procura nem se busca outra coisa, senão ocasião para tumultos e impunidade para todos os desmandos. Pois, tampouco nos- so Deus é autor de divisão, mas de paz [1Co 14.33]; nem o Filho de Deus, que veio para destruir as obras do diabo [1Jo 3.8], é ministro do pecado [Gl 2.17]. E nós estamos sendo imerecidamente acusados de tais intenções, das quais, cer- tamente, jamais temos dado sequer a mínima razão de suspeita. Se tais fôssemos nós, como dizem, que premeditamos a subversão de reinos, nós de quem nenhuma palavra facciosa jamais se ouviu, e cuja vida, a todo tempo que vivíamos sob teu cetro, foi sempre conhecida como pacata e singela, e que ainda agora, escorraçados de nossos lares, contudo não cessaríamos de suplicar em oração toda prosperidade a ti e a teu reino. Nós que afoitos buscamos desenfreada liberdade para toda sorte de desregramentos; nós de quem, ainda que nos costumes muitas coisas possam ser censuradas, entretanto nada há digno de tão veemente censura. Nem tão insatisfató- rio progresso temos, pela graça de Deus, experimentando no evangelho, que a esses detratores não possa nossa vida ser exemplo de castidade, de generosidade, de mise- ricórdia, de moderação, de paciência, de sobriedade e de toda e qualquer virtude. Que de fato tememos e adoramos a Deus com sinceridade é coisa de si mesma perfeitamente evidente, uma vez que buscamos que seu nome lhe seja santificado, quer através de nossa vida, quer através de nossa morte [Fp 1.20]. E da inocência e da integridade cívica, o próprio ódio tem sido obrigado a dar testemunho em favor 41CARTA AO REI de alguns de nós, em quem se punia de morte exatamente o que se deveria revestir de singular louvor. Ora, se há quem, sob pretexto do evangelho, promove distúrbio, até aqui não se verificou que esses existem em teu reino; se há quem acoberta a permissividade de seus desregramentos com a liberdade da graça de Deus, muitíssimos dos quais co- nheço, há leis e penalidades legais com que devam ser severamente reprimidos, conforme o que merecem. Entrementes, de modo algum o evangelho de Deus não tenha mau nome por causa da maldade de homens degenerados. Tens, ó Rei, sobejamente exposta, em farta cópia de exemplos, a virulenta ini- qüidade de nossos caluniadores, para que a suas cavilações não te inclines com ouvido desmedidamente crédulo. Arreceio-me até de haver-me estendido excessi- vamente, uma vez que este prefácio já se avizinha da escala de quase completa apologia, com que, no entanto, não diligenciei por tecer uma defesa, mas simples- mente predispor-te o espírito, a que dês ouvidos à própria apresentação de nossa causa, espírito, na verdade, ora de nós averso e alienado, acrescento-o, até inflama- do, cuja graça, não obstante, confiamos poder reaver, se esta nossa confissão, que desejamos seja diante de tua majestade nossa defesa, sereno e desapaixonado, uma vez a leres. Se deveras, ao contrário, a tal ponto os sussurros dos malévolos te ocupam os ouvidos, que aos acusados nenhuma ocasião sucede, além de tudo, de falarem em seu próprio favor, mercê de tua conivência estejam sempre essas fúrias intratáveis a exercer sua sanha pertinaz, mediante encarceramentos, flagelações, torturas, muti- lações, fogueiras, então nos veremos reduzidos ao extremo máximo. Todavia, assim será que em nossa paciência possuamos nossas almas [Lc 21.19] e na forte mão de Deus esperemos, mão que, fora de dúvida, a seu tempo se manifestará, e armada se estenderá, tanto para livrar aos pobres de sua aflição, quanto ainda para punir os desprezadores que, com tão segura confiança, estão agora a exultar. O Senhor, Rei dos reis, te firme o trono na justiça [Pv 25.5] e o solidifique na eqüidade, ó mui ilustre Rei. Em Basiléia, 1o de Agosto do ano de 1536 44 LIVRO I Quando esta nota já estava no prelo de Augsburgo, onde se reunia a Dieta Impe- rial, recebi notícias confirmadas de que se havia espalhado o boato de meu retorno às hostes papais, e de que nos paços dos príncipes fora esse boato recebido com bem maior favor do que devera. Esta é, em verdade, a recompensa que me outorgam aqueles a quem, por certo, não são desconhecidas as múltiplas evidências de minha constância, evidências que, assim como repelem calúnia tão vil, dela também deve- riam me ter defendido diante de todos os juízes probos e humanos. Engana-se, po- rém, o Diabo com toda sua caterva se pensa que, com investir contra mim com pútridas mentiras, haver-me-ei de tornar, por causa dessa vilania, mais quebrantado ou mais moroso, porquanto confio que Deus, em sua imensa bondade, haver-me-á de conceder que persevere no curso de sua santa vocação com paciência constante, de que nova mostra exijo aos leitores piedosos na presente edição. Ademais, neste labor, este tem sido meu propósito: preparar e instruir de tal modo os candidatos à sagrada teologia, para a leitura da divina Palavra, que não só lhe tenham fácil acesso, mas ainda possam nesta escalada avançar sem tropeços. Ora, estou ciente que a tal ponto abrangi, em todas as suas partes, a suma da reli- gião, e também em tal ordem a dispus, que, se alguém a haja aprendido de forma correta, não será difícil ajuizá-lo não só o que especialmente buscar na Escritura, mas ainda a que fim deva atribuir tudo quanto nela se contém. Portanto, aplanado, por assim dizer, este caminho, se vier eu mais tarde a publi- car quaisquer exposições da Escritura, uma vez que não terei necessidade de elabo- rar extensas discussões acerca de assuntos doutrinários e fazer longas divagações em torno de lugares comuns, sempre com parcimônia as haverei de condensar. Por essa razão, aliviado será o leitor piedoso de grande aborrecimento e enfado, se à Escritura se achega premunido do conhecimento da presente obra como de um ins- trumento necessário. Uma vez, porém, o conteúdo deste tratado, como em espelhos, em tantos comentários meus claramente se reflete, prefiro declarar qual seja esse propósito mediante o próprio conteúdo, a proclamá-lo em palavras. Felicidades, leitor amigo, e se destes meus labores colheres algum fruto, ajuda- me com tuas preces diante de Deus, nosso Pai. Genebra, 1 de agosto do ano 1559 * * * Aqueles cuja intenção fora com modesto livreto defender, Vultoso volume o fizeram com seu esforço de aprender. * * * Agostinho, Epístola VII: “Eu me confesso ser do número daqueles que, apren- dendo, escrevem; e aprendem, escrevendo.” 45CARTA AO REI P R E F Á C I O À E D I Ç Ã O F R A N C E S A D E 1 5 4 1 E S U B S E Q Ü E N T E S, N E S S A L Í N G U A PROPÓSITO DESTA OBRA Para que possam os leitores auferir maior proveito da presente obra, dir-lhes-ei, em poucas palavras, qual o benefício que lhes advirá do uso deste livro. Porquanto, ao proceder assim, mostrar-lhes-ei qual o propósito ao qual se deverão ater e ao qual dirigir a atenção ao lê-lo. Embora a Santa Escritura contenha uma doutrina perfeita, à qual nada se pode acrescentar, porque aprouve a nosso Senhor nela revelar os infinitos tesouros de sua sabedoria, entretanto a pessoa que não for bastante experi- mentada em seu manuseio e entendimento necessita de certa orientação e ajuda, para saber o que deva nela buscar a fim de não vaguear incerta, antes alcance rota segura que lhe faculte atingir sempre o fim a que a convoca o Santo Espírito. É que o dever daqueles que têm recebido mais ampla iluminação de Deus que os outros é vir em socorro dos símplices neste particular e que lhes dêem a mão para os conduzir e os ajudar a encontrar a plenitude do que Deus nos quis ensinar em sua Palavra. Ora, isso melhor não se pode fazer que mediante as Escrituras, focalizan- do-se os temas principais e conseqüentes que são compreendidos na filosofia cristã. Pois quem desses conhecimentos se assenhoreia estará em condições de aproveitar na escola de Deus mais em um dia do que outro em três meses, na medida em que sabe, com relativa precisão, a que reportar cada sentença e é possuidor dessa regra para dispor com acerto tudo quanto se lhe apresenta. Vendo, pois, quão grande era a necessidade de assim assistir àqueles que ansei- am por ser instruídos na doutrina da salvação, esforcei-me, segundo a capacidade que me tem dado o Senhor, por dedicar-me a este mister. E para este fim escrevi a presente obra. Redigi-a primeiramente em latim, para que pudesse servir a todos os estudiosos, de qualquer país que fossem, então, em seguida, almejando comunicar o que daí poderia advir de proveito à nossa gente francesa, traduzi-a também para nossa língua. Não ouso arrogar-lhe testemunho demasiado lisonjeiro, nem pronunciar-me quanto a quão proveitosa lhe possa ser a leitura, temendo parecer que à minha obra atribuo valor excessivo. Todavia, posso bem prometer que poderá isto ser como que uma chave e entrada que a todos os filhos de Deus outorgue acesso a correta e cabal compreensão da Santa Escritura. 46 LIVRO I Daí, se a partir de agora e para o futuro, conceder-me o Senhor meios e oportu- nidades para escrever alguns comentários, serei o mais sucinto possível, porquanto não se farão necessárias longas digressões, visto que, nesta obra, já focalizei exten- samente quase todos os artigos que dizem respeito à fé cristã. E já que forçoso nos é reconhecer que de Deus procedem toda verdade e sã doutrina, ousarei, um tanto presunçosamente, afirmar, com singeleza, a opinião que nutro desta obra: é ela mais de Deus que de mim próprio. Portanto, se algum louvor houver ela de suscitar, a Deus se deve ela render. Exorto, pois, a todos quantos nutrem reverência para com a Palavra do Senhor, a que a leiam e, com diligência, a entesourem na mente; se almejam possuir, primei- ro, um sumário da doutrina cristã, em segundo lugar, um meio de fruir real proveito da leitura tanto do Antigo quanto do Novo Testamentos. Quando assim o tiverem feito, saberão por experiência que não os tenho tentado seduzir mediante palavrea- do improcedente. Se alguém não lhe puder alcançar todo o conteúdo, não se deses- pere por isso; prossiga, sem arrefecimento, na segura expectativa de que uma passa- gem lhe haja de projetar mais luzes sobre a outra. Acima de tudo, insistiria nesta recomendação: importa em tudo quanto exponho recorrer ao testemunho da Escri- tura, que evoco para ajuizar da procedência e justeza do que afirmo. 49CAPÍTULO I logo como plena iniqüidade se enxovalhará; aquilo que mirificamente se impunha sob o título de sabedoria exalará como extremada estultícia; aquilo que se mascara- va de poder se argüirá ser a mais deplorável fraqueza. Portanto, longe está de conformar-se à divina pureza o que em nós se afigura como que absolutamente perfeito. 3. O HOMEM ANTE A MAJESTADE DIVINA Daqui esse horror e espanto com que, a cada passo, apregoa a Escritura terem os santos sido tocados e afligidos, sempre que sentiam a presença de Deus. Quando, pois, vemos aqueles que, não lhe considerando a presença, seguros e firmes se mos- travam, mas, em manifestando ele sua glória, tão abalados e aterrados se quedavam, como se fossem prostrados pelo pavor da morte, mais até, a tragá-los, e quase ani- quilados, deve concluir-se daí que o homem não é jamais tangido e afetado sufici- entemente pelo senso de sua indignidade, senão depois de comparar-se com a ma- jestade de Deus. E desta consternação temos numerosos exemplos, tanto em Juízes quanto nos Profetas. Tanto assim, que essa expressão veio a tornar-se costumeira entre o povo de Deus: “Morreremos, pois que nos apareceu o Senhor.” De igual modo, também a história de Jó, com o fito de quebrantar os homens pelo reconhecimento de sua estultícia, fraqueza e corrupção, sempre o argumento mais importante é extraído da descrição da divina sabedoria, poder e pureza [Jó 38.1–40.5]. E não sem razão, pois vemos como Abraão melhor se reconhece como sendo terra e pó desde que se che- gou mais próximo à contemplação da glória do Senhor [Gn 18.27]; como Elias não ousa, de face descoberta, atentar para a manifestação [1Rs 19.13], tanto a presença divina o moveu de terror! E que haja de fazer o homem, podridão [Jó 13.28] e verme que é [Jó 4.7; Sl 22.6], quando até mesmo os próprios querubins deviam cobrir o rosto, movidos desse pavor? [Is 6.2]. É isto com efeito o que diz o Profeta Isaías: “Enrubescer-se-á o sol e confundir-se-á a lua, quando o Senhor dos Exércitos vier a reinar” [Is 24.23], isto é, quando revelar seu fulgor, e mais perto o trouxer, diante dele se cobrirá de trevas tudo quanto de mais esplêndido exista [Is 2.10, 19]. 50 LIVRO I C A P Í T U L O II EM QUE CONSISTE CONHECER A DEUS E A QUE FIM LHE TENDE O CONHECIMENTO 1. PIEDADE É O REQUISITO PARA SE CONHECER A DEUS Portanto, de fato entendo como conhecimento de Deus aquele em virtude do qual não apenas concebemos que Deus existe, mas ainda apreendemos o que nos importa dele conhecer, o que lhe é relevante à glória, enfim, o que é proveitoso saber a seu respeito. Ora, falando com propriedade, nem diremos que Deus é conhecido onde nenhuma religiosidade há, nem piedade. E aqui ainda não abordo essa modalidade de conhecimento pela qual os homens, em si perdidos e malditos, apreendem a Deus como Redentor, em Cristo, o Mediador. Ao contrário, estou falando apenas desse conhecimento primário e singelo, a que nos conduziria a própria ordem da natureza, se Adão se conservasse íntegro. Ora, se bem que nesta ruinosa situação do gênero humano já ninguém sentirá a Deus, seja como Pai, seja como autor da salvação, seja como de qualquer maneira propício, até que Cristo se interponha como agente mediador para apaziguá-lo em relação a nós, todavia uma coisa é sentirmos que Deus, como nosso Criador, nos sustenta com seu poder, nos governa em sua providência, nos provê em sua bondade e nos cumula de toda sorte de bênçãos; outra, porém, é abraçarmos a graça da recon- ciliação que nos é proposta em Cristo. Portanto, uma vez que o Senhor se mostra, em primeiro lugar, tanto na estrutura do mundo, quanto no ensino geral da Escritura, simplesmente como Criador, e então na face de Cristo [2Co 4.6] como Redentor, daí emerge dele duplo conhecimento, de que se nos impõe tratar agora do primeiro. O outro se seguirá, na devida ordem. Mas, embora nossa mente não possa apreender a Deus sem que lhe renda algu- ma expressão cultual, não bastará, contudo, simplesmente sustentar que ele é um e único, a quem importa ser de todos cultuado e adorado, se não estamos também persuadidos de que ele é a fonte de todo bem, para que nada busquemos de outra parte senão nele. Eu o recebo nestes termos: não só que uma vez ele criou este mundo, e de tal forma o sustém por seu imenso poder; o regula por sua sabedoria; o preserva por sua bondade; rege com sua justiça e eqüidade especialmente ao gênero humano; suporta-o em sua misericórdia; guarda-o em sua proteção; mas, ainda que em parte 51CAPÍTULO II alguma se achará uma gota ou de sabedoria e de luz, ou de justiça, ou de poder, ou de retidão, ou de genuína verdade, que dele não emane e de que não seja ele próprio a causa; de sorte que aprendamos a realmente dele esperar e nele buscar todas essas coisas; e, após recebidas, a atribuir-lhas com ação de graças. Ora, este senso dos poderes de Deus nos é mestre idôneo da piedade, da qual nasce a religião. Chamo piedade à reverência associada com o amor de Deus que nos faculta o conhecimento de seus benefícios. Pois, até que os homens sintam que tudo devem a Deus, que são assistidos por seu paternal cuidado, que é ele o autor de todas as coisas boas, daí nada se deve buscar fora dele, jamais se lhe sujeitarão em obediência voluntária. Mais ainda: a não ser que ponham nele sua plena felicidade, verdadeiramente e de coração nunca se lhe renderão por inteiro. 2. CONFIANÇA E REVERÊNCIA SÃO FATORES DO CONHECIMENTO DE DEUS Portanto, simplesmente se recreiam em frívolas especulações quantos se pro- põem insistir nesta pergunta: Que é Deus? quando devemos antes interessar saber qual é sua natureza e o que lhe convém à natureza. Pois, de que vale, segundo Epicuro, confessar um Deus que, pondo de parte o cuidado do mundo, só se apraz no ócio? Afinal, que ajuda traz conhecer a um Deus com quem nada temos a ver? Antes, pelo contrário, seu conhecimento nos deve valer, em primeiro lugar, que nos induza ao temor e à reverencia; segundo, tendo-o por guia e mestre, aprendamos a buscar nele todo o bem e, em recebendo-o, a ele tudo creditar. Ora, como pode subir-te à mente o pensamento de Deus, sem que, ao mesmo tempo, logo reflitas: uma vez que és feitura dele, pelo próprio direito de criação foste sujeitado e vinculado a seu domínio, que lhe deves a vida, que convém atri- buir-lhe tudo quanto fazes? Se assim é, então segue-se necessariamente, uma vez que sua vontade nos deve ser a lei do viver, que inexoravelmente a vida te é corrompida, se não a pões ao serviço dele. Por outro lado, nem o podes visualizar com clareza, sem que reconhe- ças ser ele a fonte e origem de todas as coisas boas, donde deveria nascer não só o desejo de se apegar a ele, mas ainda de depositar nele sua confiança, se o homem não desviasse sua mente da reta investigação para sua depravação. Ora, para começar, a mente piedosa não sonha para si um Deus qualquer; ao contrário, contempla somente o Deus único e verdadeiro; nem lhe atribui coisa al- guma que lhe ocorra à imaginação, mas se contenta com tê-lo tal qual ele mesmo se manifesta, e com a máxima diligência sempre se acautela, para que não venha, mer- cê de ousada temeridade, a vaguear sem rumo, indo além dos limites de sua vontade. Conhecido Deus desta forma, visto saber que ele a tudo governa, confia ser ele 54 LIVRO I se quebrantem, as quais, desta forma, na realidade se quebrantam quando, de seu arbítrio, o homem desce daquela altivez natural às coisas mais inferiores para que assim possa adorar a Deus. 2. RELIGIÃO NÃO É INVENCIONICE GRATUITA Isto posto, é inteiramente gratuito o que se ouve de alguns, isto é, que a religião foi engendrada pela sutileza e argúcia de uns poucos, para com esta artimanha man- terem em sujeição o populacho simplório, ao mesmo tempo em que, entretanto, nem os mesmos que foram os inventores da adoração de Deus para os outros creriam existir algum Deus! Sem dúvida confesso que, a fim de manterem o espírito mais obediente a si, homens astutos têm inventado muita coisa em matéria de religião, para com isso infundirem reverência ao poviléu e inculcar-lhe temor. Isso, no entanto, em parte alguma teriam conseguido não fosse que já antes a mente humana tivesse sido im- buída dessa firme convicção acerca de Deus, da qual, como de uma semente, emer- ge a propensão para a religião. E por certo não é de crer-se que tenham carecido totalmente do conhecimento de Deus os mesmos que, sob pretexto de religião, habilidosamente exploravam aos menos esclarecidos. Pois, ainda que no passado tenham existido alguns, e hoje eles não são poucos, que neguem existir Deus, contudo, queiram ou não queiram, de quando em quando acode-lhes certo sentimento daquilo que desejam ignorar. Em parte alguma se lê de ter existido um desprezo mais incontido ou desenfre- ado pela divindade do que em Gaio Calígula. Entretanto, ninguém tremeu mais miseravelmente sempre que se patenteava alguma manifestação da ira divina. Desse modo, malgrado seu, fremia de pavor diante de Deus, a quem publicamente porfia- va por desprezar. Isso, aqui e ali, se sobrevem também aos que lhe fazem páreo; portanto, quem é mais petulante em desprezar a Deus, de fato também, ao mero ruído de uma folha que cai, desmedidamente se perturba [Lv 26.36]. Donde vem isso senão da ação vingadora da divina majestade, que tanto mais cruciantemente lhes espicaça a consciência, à media que dele mais tentam fugir? É verdade que volvem-se para todos os esconderijos em que procuram ocultar- se da presença do Senhor, e de novo da memória a apagam, contudo, quer queiram, quer não queiram, nela sempre se conservam enredilhados. E por mais que por vezes pareça desvanecer-se por algum momento, no entanto logo depois surge, e com novo ímpeto irrompe, de sorte que, se porventura têm eles alívio dessa ansie- dade da consciência, não será ela muito diferente do sono dos ébrios ou dos frenéti- cos, os quais na verdade, mesmo dormindo, não repousam tranqüilamente, visto que são continuamente acossados por sonhos terríveis e apavorantes. 55CAPÍTULO III Portanto, até os próprios ímpios são exemplos de que vigora sempre na alma de todos os homens alguma noção de Deus. 3. IMPOSSIBILIDADE DE ATEÍSMO REAL Isto, sem dúvida, será sempre evidente aos que julgam com acerto, ou, seja, que está gravado na mente humana um senso da divindade que jamais se pode apagar. Mais: esta convicção de que há algum Deus não só é a todos ingênita por natureza, mas ainda que lhes está encravada no íntimo, como que na própria medula, que a contumácia dos ímpios é testemunha qualificada, a saber, lutando furiosamente, contudo não conseguem desvencilhar-se do medo de Deus. Ainda que Diágoras, e tantos como ele, através de todos os séculos, zombeteira- mente motejem de tudo quanto diz respeito à religião, e como Dionísio tem ridicu- larizado o juízo celeste, esse não passa de um riso sardônico, pois que em seu inte- rior o verme da consciência rói mais pungente que todos os cautérios. Não digo o que Cícero dizia, que com o correr do tempo os erros se tornam obsoletos; enquanto que, com o passar dos dias, mais cresce e melhor se faz a reli- gião. Ora, o mundo, como pouco adiante se haverá de dizer, tenta quanto está em seu poder alijar para bem longe o conhecimento de Deus, e de todos os modos corrompe-lhe o culto. Afirmo simplesmente isto: enquanto na mente se lhes enlan- guesce essa obstinada dureza que os ímpios avidamente evocam para repudiarem a Deus, no entanto cobra viço, e por vezes medra vigoroso, esse senso da divindade que, tão ardentemente, desejariam fosse ele extinto. Donde concluímos que esta não é uma doutrina que se aprende na escola, mas que cada um, desde o ventre materno, deve ser mestre dela para si próprio, e da qual a própria natureza não permite que alguém esqueça, ainda que muitos há que põem todo seu empenho nessa tarefa.4 Portanto, se todos nascem e vivem com essa disposição de conhecer a Deus, e o conhecimento de Deus, se não chega até onde eu disse, é caduco e fútil, é claro que todos aqueles que não dirigem quanto pensam e fazem a esta meta, degeneram e se apartam do fim para o qual foram criados.5 Isto não foi desconhecido nem aos pró- prios filósofos. Ora, Platão6 não quis dizer outra coisa, visto que amiúde ensinou que o sumo bem da alma é semelhança com Deus, quando, apreendido o conheci- 4. Primeira edição: “Donde concluímos que não é matéria que se haja primeiro de aprender nas escolas, mas de que desde o ventre cada um é mestre a si [próprio] e de que não sofre a própria natureza alguém se esqueça, inda que, com todas as forças, muitos isso intentem.” 5. Primeira edição: “Logo, se todos foram nascidos e vivem nesta condição, [isto é,] para conhecerem a Deus, mas, a não ser que a este ponto hajam [ele] de chegar, difuso e evanescente é o conhecimento de Deus, é evidente que da lei de sua criação aberram todos estes que a este escopo não destinam os pensamentos e ações todos de sua vida.” 6. Fedon e Tecleto. 56 LIVRO I mento dele, toda nele se transforma. Daí, muito a propósito, nos escritos de Plutarco arrazoa também Grilo, quando afirma que os homens, uma vez que a religião lhes seja ausente da vida, não só em nada excedem aos animais, mas até em muitos aspectos lhes são muito mais dignos de lástima, porquanto, sujeitos a tantas espéci- es de males, levam de contínuo uma vida tumultuária e desassossegada. Portanto, o que os faz superiores é tão-somente o culto de Deus, mediante o qual se aspira à imortalidade. 59CAPÍTULO IV 3. IDOLATRIA Assim rui desmantelada essa frívola defesa com que muitos costumam acober- tar a própria superstição. Pois pensam que é bastante nutrir mero zelo pela religião, seja qual for sua natureza e por mais falsa que seja. Não levam em conta, porém, que a verdadeira religião deve ser conformada ao arbítrio de Deus como a uma norma perpétua: que Deus, em verdade, permanece sempre imutável em seu ser; que ele não é um espectro ou fantasma, que se transmuda ao talante de cada um. E pode-se ver meridianamente de quão enganosas aparências a superstição zomba de Deus enquanto intenta render-lhe preito aprazível. Pois, apegando-se quase exclusiva- mente àquelas coisas que Deus tem testificado não serem de seu interesse, a supers- tição ou tem com desdém ou então não rejeita dissimuladamente aquelas que ele prescreve e ensina que lhe são do agrado. Portanto, a seus próprios delírios cultuam e adoram quantos a Deus alçam seus ritos inventados, pois de modo algum assim ousariam gracejar com Deus, se já antes não tivessem moldado um Deus congruente com os absurdos de suas ridicula- rias. E assim o Apóstolo sentencia ser ignorância de Deus essa vaga e errônea opi- nião com respeito à divindade: “Quando desconhecíeis a Deus”, diz ele, “servíeis aos que por natureza não eram deuses” [Gl 4.8]. E, em outro lugar [Ef 2.12], ensina que os efésios haviam vivido sem Deus durante o tempo em que se achavam distan- ciados do reto conhecimento do Deus único. Tampouco vem muito ao caso, pelo menos neste ponto, se porventura concebes a um só Deus ou a muitos, porque sem- pre te apartas do Deus verdadeiro e dele careces quando, deixado ele de parte, nada te resta senão um ídolo execrável. Portanto, com Lactâncio nos impõe concluir que nenhuma religião genuína existe, a menos que esteja em harmonia com a verdade. 4. HIPOCRISIA Acresce ainda um segundo pecado, a saber: que jamais tomam a Deus em consi- deração, a não ser que a isso sejam constrangidos; nem dele se aproximam até que, a despeito de sua resistência, sejam até ele arrastados. Nem ainda então se imbuem do temor espontâneo que emana da reverência à divina majestade, mas apenas de um temor servil e forçado que lhes arranca o juízo de Deus, do qual, já que dele não podem fugir, sentem alarmante pavor, e inclusive até chegam a abominá-lo. Com efeito, o que diz Eustáquio, poeta pagão, se aplica muito bem à impiedade, ou, seja, que o temor foi o primeiro a dar origem aos deuses no mundo.7 Quantos 7. Primeira edição: “Com efeito, à impiedade, e a ela somente, bem se ajusta aquele [dito] de Estáquio de que o medo primeiro deu origem aos deuses no mundo.” 60 LIVRO I têm a mente alienada da justiça de Deus desejam desmesuradamente que seu tribu- nal seja subvertido, os quais sabem que ele subsiste para punir suas transgressões. Com disposição desse gênero pelejam acirradamente contra o Senhor, o qual não pode prescindir do juízo. Enquanto, porém, reconhecem que sobre si paira ameaça- dora a potestade inevitável, já que não a conseguem rechaçar, nem dela fugir, enco- lhem-se diante dela apavorados. E assim, para que por toda parte não pareçam des- prezar aquele cuja majestade os acossa, exercitam algo que tenha a aparência de religião. Não obstante, entrementes não cessam de contaminar-se com toda sorte de vícios e de amontoar abominações sobre abominações, até que de todas as formas violem a santa lei do Senhor e dissipem toda sua justiça. Ou, ao menos, não são a tal ponto contidos por esse pretenso temor de Deus, que deixem de refestelar-se delei- tosamente em seus pecados, e neles se lisonjeiam, e preferem esbaldar-se na intem- perança da própria carne a deixar que o Espírito Santo a coíba com freios. Entretanto, uma vez que esta é uma sombra vã e falaz de religião, que nem sequer merece ser chamada de sombra, outra vez daqui facilmente se infere quanto a piedade difere desse confuso conhecimento de Deus, a qual só nos peitos dos fiéis se instila e da qual exclusivamente nasce a religião. E contudo, por sinuosos rodei- os, os hipócritas se propõem chegar a isto: insinuar que estão perto de Deus, de quem, no entanto, estão a fugir. Pois, quando o teor da obediência lhes deveria ser perpétuo em toda a vida, eles se rebelam acintosamente contra ele em quase todos os atos, diligenciando por aplacá-lo simplesmente por meio de uns paupérrimos sacrifícios; quando o deveriam servir, com santidade de vida e inteireza de coração, engendram ridicularias frívolas e observâncias mesquinhas de nenhum valor, mercê das quais possam conciliá-lo consigo. Pior ainda, confiam poder desincumbir-se de seus deveres meramente através de risíveis atos expiatórios. Daí, quando nele deve- ria estar plantada sua confiança, relegando-o a segundo plano, escondem-se atrás de si próprios ou das criaturas. Afinal, eles se enredilham em tão avultada soma de erros, que o negror da depravação sufoca neles, e por fim extingue, aquelas cente- lhas que fulgiam para visualizar-se a glória de Deus. Permanece, todavia, essa semente que de modo algum se pode erradicar total- mente, a saber, que há uma divindade; semente essa, porém, a tal ponto corrompida que de si nada produz senão os piores frutos. Ainda mais, o que estou presentemente sustentando, a saber, que o senso da divindade está inerentemente gravado nos co- rações humanos, com certeza maior disto se evidencia: que até a necessidade arran- ca confissão forçada até aos próprios réprobos. Quando as coisas lhes transcorrem tranqüilas, motejam acintosamente de Deus; são até mordazes e desabusados em minimizar-lhe o poder. Se, de qualquer forma, os aperta o desespero, os acicata a buscá-lo e lhes dita preces superficiais, do que se patenteia que não são totalmente ignorantes de Deus, porém o que deveria aflorar mais cedo lhes foi reprimido pela obstinação. 61CAPÍTULO IV C A P Í T U L O V O CONHECIMENTO DE DEUS FULGE NA OBRA DA CRIAÇÃO DO MUNDO E EM SEU CONTÍNUO GOVERNO 1. INESCUSABILIDADE DO HOMEM Além de tudo isso, visto que no conhecimento de Deus está posto a finalidade última da vida bem-aventurada, para que a ninguém fosse obstruído o acesso à feli- cidade, não só implantou Deus na mente humana essa semente de religião a que nos temos referido, mas ainda de tal modo se revelou em toda a obra da criação do mundo, e cada dia nitidamente se manifesta, que eles não podem abrir os olhos sem se verem forçados a contemplá-lo. Por certo que sua essência transcende a compre- ensão, de sorte que sua plena divindade escapa totalmente aos sentidos humanos. Entretanto, em todas as suas obras, uma a uma, imprimiu marcas inconfundíveis de sua glória, e na verdade tão claras e notórias, que por mais brutais e obtusos que sejam, tolhida lhes é a alegação de ignorância. Daí, com mui procedente razão exclama o Profeta [Sl 104.2] que ele se veste de luz como de um manto; como se quisesse dizer que a partir de então começara a mostrar-se de forma insigne em ornato visível: desde o instante em que, na criação do mundo, exibiu seus adereços, em virtude dos quais agora, quantas vezes volve- mos os olhos para qualquer lado, sua glória nos é patente. Ainda nesta mesma pas- sagem, com admirável arte, o mesmo Profeta compara os céus, como se acham expandidos, a seu régio pavilhão; diz que nas águas fincou os vigamentos de suas recâmaras; que as nuvens lhe são carruagens; que sobre as asas dos ventos cavalga; que os ventos e os relâmpagos lhe são os mensageiros velozes. E visto que mais plenamente nas alturas lhe refulge o esplendor do poder e da sabedoria, em várias ocasiões o céu é chamado de seu palácio. E, em primeiro lugar, para todo e qualquer rumo a que dirijas os olhos, nenhum recanto há do mundo, por mínimo que seja, em que não se vejam a brilhar ao menos algumas centelhas de sua glória. Nem podes, realmente, de um só relance contem- plar quão amplamente se estende esta vastíssima e formosíssima engrenagem, que não te sintas de todos os lados totalmente esmagado pela imensa intensidade de seu fulgor. Essa é a razão por que, com finura e arte, o autor da Epístola aos Hebreus [11.3] chama aos mundos de expressões visíveis das coisas invisíveis, já que essa ordem 64 LIVRO I íntimo. Na verdade não é preciso que saíam para fora de si mesmos, desde que, não arrogando para si próprios o que lhes foi dado dos céus, não escondam debaixo da terra o que à sua mente reluz para que vejam a Deus claramente. Antes, ainda hoje a terra sustenta muitos espíritos monstruosos que, para apa- gar o nome de Deus, não hesitam em desviar do propósito toda a semente da Deida- de disseminada na natureza humana. Pergunto, pois, quão detestável é esta sandice, que o homem achando a Deus cem vezes em seu próprio corpo e alma, sob este mesmo pretexto de excelência, negue que ele existe? Não dirão que se distinguem dos seres brutos por obra do acaso. Todavia, sobreposto o véu da natureza, a qual lhes é o artífice de todas as coisas, alijam a Deus. Percebem tão refinado lavor em cada um de seus membros, desde a boca e os olhos até a ponta dos pés. Contudo, também aqui no lugar de Deus colocam a natureza. Mas, em especial, tão lestos movimentos da alma, tão preclaras faculdades, tão raros dotes, pressupõem uma Deidade que não permite facilmente ser obscurecida, salvo se os epicureus, como os ciclopes, dessa altura movessem mais insolentemente guerra contra Deus. Por isso, para governar um vermezinho de cinco pés de estatura serão indispen- sáveis todos os tesouros da celeste sabedoria? E desta prerrogativa carecerá a tota- lidade do universo? Em primeiro plano, reconhecer algo orgânico na alma que lhe corresponda a cada uma das partes, afinal em nada contribui para toldar a glória de Deus, pois, ao contrário, a ilumina! Que responda Epicuro, dizendo que o concurso de átomos, a cozinhar o que se come e bebe, o digere, parte em resíduos, parte em sangue, e de tal modo opera, que cada membro tenha tão admirável proficiência para realizar sua função, como se tantas almas quantos membros regessem de comum acordo o corpo a um só corpo?8 5. CONFUSÃO DE CRIATURA E CRIADOR Entretanto, por ora não vou tratar desse atoleiro de suínos. Ataco antes esses que, entregues a sutilezas contraditórias, de maneira oblíqua, invocariam delibera- damente esse insípido parecer de Aristóteles, tanto para anular a imortalidade da alma, quanto para arrebatar seu direito a Deus. Ora, dado que tenha a alma faculda- des orgânicas, com esse pretexto a ligam ao corpo de tal modo que sem este aquela não subsiste. Ademais, com seus louvores à natureza, suprimem o nome de Deus quanto lhes é possível. Entretanto, longe está que os poderes da alma se confinem às funções que servem ao corpo. 8. Primeira edição: “Responda Epicuro quê concurso de átomos, a cozinhar o que se come e bebe, [o] digere, parte em resíduos, parte em sangue, e [de tal modo] opera, que cada membro tenha tão admirável proficiência para realizar [sua] função, como se, em comum consenso, a um só corpo tantas almas regessem?” 65CAPÍTULO V Que tem isto a ver com o corpo – que meças o céu, contes o número de estrelas, determines a grandeza de cada uma, saibas quanto distam entre si, com que celeri- dade ou lentidão completam seus cursos, quantos graus se inclinam para cá ou para lá? Indubitavelmente confesso que, se o estudo dos astros é de algum proveito, contudo estou apenas mostrando que nesta investigação tão elevada das coisas ce- lestes não existe correção orgânica; ao contrário, a alma tem suas propriedades dis- tintas do corpo. Propus apenas um exemplo, do qual aos leitores será fácil deduzir os demais. Indubitavelmente, a multiforme agilidade da alma, com que perscruta o céu e a terra, liga as coisas passadas às que estão por vir, retém em lembrança as coisas que há muito ouviu, até mesmo para si pinta o que bem lhe apraz, assim também a habilidade com que imagina coisas incríveis, e que é a matriz de tantas invenções admiráveis, são seguros sinais da Deidade no homem. Por que, enquanto a pessoa está dormindo, a alma não só vagueia e divaga em redor, mas ainda concebe muitas coisas úteis, cogita acerca de muitas questões, até adivinha fatos futuros? O que aqui se haverá de dizer senão que não se podem apagar os sinais da imortalidade que foram impressos no homem? Ora, que razão admitirá que o homem seja divino e contudo não reconheça seu Criador? Com efei- to, nós, em função da capacidade judicatória que nos foi outorgada, faremos distin- ção entre o justo e o injusto, porém nenhum juiz no céu haverá? A nós, até mesmo durante o sono, nos remanescerá certo resíduo de entendimento; Deus nenhum, po- rém, estará de vigia a reger o mundo? De tantas artes e coisas úteis nos julgaremos inventores em moldes tais que Deus seja defraudado de seu louvor, quando, entre- tanto, a experiência suficientemente ensina que, em modos desiguais, o que temos nos é distribuído oriundo de outra procedência? Quanto, porém, ao que alegam certos indivíduos acerca de uma inspiração se- creta que anima a todo o universo, não só é destituído de consistência, mas inclusive é totalmente profano. Agradam-lhes as celebradas palavras de Vergílio: “Primeiramente, céu e terra e os campos de água fluentes, E o fulgente globo lunar, e as estrelas titânias, Um espírito interiormente os alimenta, e, pelos membros infusa, A toda a massa uma mente movimenta, e ao grande corpo se mistura. Daí a raça de homens e animais, e o alento dos seres voláteis, E os monstros que o mar produz sob a marmórea superfície; De fogo lhes é o alento e celeste a origem” etc.9 9. A Eneida, livro VI. 66 LIVRO I Na realidade, assim é que o universo, que foi criado para manifestação da glória de Deus, é seu próprio criador! Ora, em outro lugar, seguindo a noção comum a gregos e latinos, assim decanta o mesmo autor: “Têm as abelhas, disseram, uma porção da mente divina, E haustos etéreos. Pois, por toda a terra Deus se estende, E pelas vastidões do oceano, e pelo céu profundo. Daqui os rebanhos, os armentos, os homens, toda espécie de feras, Cada um, ao nascer, tênue da vida a si aufere. Isto é, a seguir, tudo aí retorna e, desfeito, se reintegra; Nem lugar há à morte, mas, vivos, evolam Às hostes sidéreas e ascendem do céu às alturas.”10 Eis a que vale para gerar e fomentar a piedade no coração do homem essa infru- tífera especulação acerca da mente universal que anima e vivifica ao mundo! Isso até transparece melhor das sacrílegas palavras desse cão impuro, Lucrécio, que fo- ram deduzidas desse princípio. Isto, afinal, é forjar uma deidade fantasma, de sorte que o Deus verdadeira para longe se afaste, a quem devíamos temer e adorar. Certamente confesso que isto pode ser dito com reverência, desde que proceda de um espírito piedoso: que a natureza é Deus. Contudo, visto ser uma expressão dura e imprópria, já que a natureza é antes a ordem prescrita por Deus, em questões de tão grande peso e em que se deve especial reverência, é prejudicial envolver a Deus ambiguamente com o curso inferior de suas obras. 6. A SOBERANIA DE DEUS SOBRE A CRIAÇÃO Lembremo-nos, portanto, sempre que cada um de nós atenta à sua própria natu- reza, de que há um Deus, que de tal modo governa a todas as naturezas, que quer que volvamos para ele os olhos; que quer que para ele dirijamos nossa fé; que quer que o adoremos e o invoquemos como nosso Senhor, porquanto nada há mais contrário do que desfrutar de tão excelentes dádivas, as quais em nosso íntimo comprovam a Deidade, e negligenciarmos o Autor que no-las prodigaliza à mera súplica. Quanto ao seu poder, de quão cristalinos exemplos sua consideração nos arreba- ta! Salvo se, porventura, nos possa ser desconhecido de quanto poder se faz neces- sário para, só por sua palavra, sustentar esta infinita massa de céu e terra; por seu simples arbítrio, ora a abalar o céu com o fragor dos trovões, abrasar de raios tudo quanto lhe apraza, riscar o ar com relâmpagos; ora a conturbá-lo com variadas for- 10. Geórgicas, IV. 69CAPÍTULO V e, ao contrário, quando os humildes são elevados do pó; os necessitados, do esterco [Sl 113.7];13 de angústias extremas são arrancados os oprimidos e aflitos; a boa esperança é restaurada aos desolados; sobre os bem armados, os desprovidos de armas arrebatam a vitória; os poucos, sobre os muitos; os fracos, sobre os fortes. Também a sabedoria, na verdade, manifestamente excede quando, na melhor ocasião, dispensa a cada coisa, uma a uma, confunde a toda e qualquer sutileza do mundo [1Co 1.20], apanha os astutos em sua astúcia [1Co 3.19]; e finalmente orde- na todas as coisas conforme a melhor ordem possível.14 9. DEUS MELHOR VISUALIZADO EM SUAS OBRAS DO QUE EM ESPECULAÇÕES DA RAZÃO Vemos não ser necessário longa nem laboriosa demonstração para descobrir evidências que servem para ilustrar e afirmar a divina majestade, uma vez que, das poucas que havemos ligeiramente experimentado, para onde quer que te voltes, claro se faz que são tão imediatamente óbvias, que podem facilmente ser com os olhos divisadas e com os dedos apontadas. E aqui, uma vez mais, deve observar-se que somos convidados ao conhecimento de Deus, não àquele que haverá de ser sólido e frutuoso, se é por nós retamente perce- bido e estabelecido no coração. Ora, o Senhor se manifesta por meio de seus poderes, e uma vez que sentimos sua força dentro de nós, e usufruímos de seus benefícios, necessário é que sejamos muito mais vividamente afetados por esse conhecimento do que se imaginássemos um Deus de quem nenhum senso chegasse a nós. Do que compreendemos ser esta a via mais direta de buscar a Deus e o processo mais apropriado de conhecê-lo: que não tentemos, através de ousada curiosidade, penetrar à investigação de sua essência, a qual é antes para ser adorada do que para ser meticulosamente inquirida; ao contrário, que o contemplemos em suas obras, em virtude das quais ele se nos torna próximo e familiar, e de algum modo se nos comunica. Ao que o Apóstolo contemplava quando dizia [At 17.27, 28] que ele não deve ser buscado ao longe, uma vez que, por seu poder bem presente, habita em cada um de nós. Por isso Davi [Sl 145], tendo antes confessado sua inenarrável grandeza [v. 3] após descer à menção de suas obras, declara que fará menção dela [vs. 5, 6]. 13. Primeira edição: “[Nem] em nada mais em trevas se [lhe] escondem, seja o poder, seja a sabedoria, dos quais aquele claramente se alteia, quando a sanha dos ímpios, na opinião de todos insuperável, em um momento se reprime, a arrogância se [lhes] doma, os mais fortes baluartes se [lhes] derruem, em frangalhos se [lhes] fazem os dardos e as armaduras, quebrantam-se[-lhes] as forças, as maquinações se subvertem e cedem ao próprio peso, a audácia que acima dos céus se alçava até o centro da terra se prosterna [e], em contrário, do pó se erguem os humildes e os necessitados se levantam do monturo.” 14. Primeira edição: “nada, enfim, dispõe que [o] não [seja] pela melhor razão [possível]. 70 LIVRO I Portanto, também a nós se nos impõe que nos apliquemos a essa investigação de Deus, a qual de tal modo nos mantenha o espírito suspenso de admiração, e ao mesmo tempo nos deixemos ser profundamente tocados com eficaz sentimento. E como, em certo lugar, ensina Agostinho,15 já que, como que a desfalecer sob sua grandeza, não o podemos apreender, convém que atentemos bem para suas obras, para que nos recreemos em sua bondade. 10. PROPÓSITO DESTE CONHECIMENTO Daí, conhecimento como este deve não só incitar-nos à adoração de Deus, mas ainda despertar-nos e alçar-nos à esperança da vida futura. Quando, porém, atenta- mos para o fato de que os exemplos que o Senhor oferece, tanto de sua clemência, quanto de sua severidade, são meramente rudimentares e incompletos, convém que reputemos, não dubiamente, que ele assim preludia coisas ainda maiores, cuja ma- nifestação e plena exibição são deferidas à outra existência. Por outro lado, quando vemos os piedosos acossados pelas aflições provenien- tes dos ímpios, espicaçados de injúrias, oprimidos de calúnias, lacerados de insultos e vitupérios, enquanto, em contrário, os iníquos florescem, prosperam, alcançam lazer com dignidade, e isso impunemente, conclui-se imediatamente que haverá outra vida na qual lhes está reservada não só a punição pela iniqüidade, mas ainda a recompensa pela justiça. Ademais, quando observamos que os fiéis são quase sem- pre castigados pelas varas do Senhor, sem dúvida, com certeza ainda maior, nos é necessário estabelecer que muito menos haverão os ímpios um dia de escapar de seus látegos. Ora, conhecido é este dito de Agostinho:16 “Se agora fosse todo pecado punido por castigo público, poder-se-ia pensar que nada fica reservado ao Juízo Final. Por outro lado, se Deus não punisse agora claramente a nenhum pecado, poder-se-ia crer que não existe nenhuma providência divina.” Portanto, é preciso confessar que nas obras de Deus, uma a uma, de modo espe- cial, porém em sua totalidade, estão estampados, como que em painéis, os poderes operativos de Deus, mercê dos quais seu conhecimento, e daí a verdadeira e plena felicidade, é convidado e atraído todo o gênero humano. E ainda que as virtudes de Deus estejam retratadas ao vivo e se mostrem em todo o mundo, só entendemos ao que elas tendem, quanto valem e para que servem, quando penetramos em nós mes- mos e consideramos os caminhos e modos em que o Senhor descerra para nós sua vida, sabedoria e virtude, e exerce em nós sua justiça, bondade e clemência.17 15. Sobre o Salmo 144. 16. A Cidade de Deus, livro I, capítulo 8. 17. Primeira edição: “Por lucidíssimos que aí se evidenciem [os poderes de Deus], contudo, a que princi- palmente propendem, a que se prestem, a que fim devam ser de nós reputados, então, por fim, apreendemos quando descemos a nós mesmos e consideramos de que modos o Senhor revela em nós Sua vida, sabedoria, poder [e] para conosco exerce Sua justiça, bondade, clemência.” 71CAPÍTULO V Ora, ainda que, com justiça, se queixa Davi [Sl 92.5, 6] de que os incrédulos se mostram destituídos de entendimento, já que não ponderam os desígnios profun- dos de Deus no governo do gênero humano, contudo mui verdadeiro é o que, em outro lugar [Sl 40.12], diz o mesmo Davi, a saber, a admirável sabedoria de Deus neste ponto excede aos cabelos de nossa cabeça. Como, porém, se haverá de tratar deste argumento mais adiante e de maneira pormenorizada, no devido lugar, deixo de fazê-lo agora. 11. CEGUEIRA HUMANA ANTE A EVIDÊNCIA DE DEUS NA CRIAÇÃO Ainda que no espelho de suas obras o Senhor se represente com tão grande clareza, não apenas a si próprio, mas também a seu reino imortal, entretanto, como é nossa obtusidade, sempre nos revelamos lerdos em relação a evidências tão claras, elas se nos tornam sem qualquer proveito. Ora, quanto respeita à estrutura e dispo- sição do universo, tão formosas, quem de nós, ao erguer os olhos para o céu ou ao estendê-los para as diversas regiões da terra, se lembra do Criador e não se põe a contemplar suas obras, sem fazer caso dele?18 Aliás, no que diz respeito àquelas coisas que se processam diariamente além da ordem do curso natural, quantos não imaginam que os homens são antes rodopiados e voluteados pelo cego capricho do acaso, do que governados pela providência de Deus? Pois, se por vezes, mediante a condução e direção dessas coisas, somos levados à consideração de Deus, o que necessariamente a todos acontece, entretanto, quan- do, de forma fortuita, concebemos o senso de alguma divindade, prontamente deca- ímos outra vez nos delírios ou insanos desvarios de nossa carne e, mercê de nossa fatuidade, corrompemos a pura verdade de Deus. Sem dúvida, nisto somos todos diferentes, a saber, em que cada um, por sua vez, suscita para si algum erro peculiar; todavia, nisto são muito semelhantes, a saber, em que à uma, por meio de absurdas ridicularias, todos nos desgarramos do Deus único e verdadeiro. Desta enfermidade são afetados, não apenas os espíritos vulga- res e obtusos, mas ainda os mais ilustres e dotados de outra sorte de habilidade singular. Neste particular, quão prodigamente toda a ordem dos filósofos tem sua fatuida- de e inépcia! Ora, para que poupemos aos demais, os quais muito mais absurdamen- te engendram despautérios, Platão, entre todos o mais religioso e particularmente sóbrio, também ele próprio se perde em seu globo esférico. E que não haveria de 18. Primeira edição: “Ora, quanto respeita à estrutura e formosíssima disposição do universo, quão pou- cos há dentre nós que, ou em volvendo os olhos para o céu, ou em [os] circunvagando pelas variadas regiões da terra, volte a mente à lembrança do Criador e não antes, preterido o autor, ocioso se assente à contempla- ção das obras?” 74 LIVRO I 13. AO ESPÍRITO SANTO É ABOMINÁVEL TODA E QUALQUER RELIGIÃO DE PRO- CEDÊNCIA HUMANA Ora, é preciso advertir também que todos quantos se afastam do Deus único adulteram a religião pura, como necessariamente sucede a quantos se entregam à sua própria opinião. É verdade que se jactarão dizendo ter em mente coisa muito diversa; mas pouco importa o que têm em mira, ou do que se persuadem, uma vez que o Espírito Santo pronuncia serem apóstatas todos quantos, em virtude da ce- gueira da própria mente, colocam os demônios no lugar de Deus [1Co 10.20]. Por esta razão, Paulo sentencia [Ef 2.12] que os efésios estiveram sem Deus até que aprendessem do evangelho o que seria adorar ao Deus verdadeiro. Nem se deve restringir isso a uma só nação, visto que, em outro lugar [Rm 1.21], ele afirma em termos generalizados que, depois que a majestade do Criador lhes fora manifesta na própria estrutura do universo, todos os mortais se fizeram fúteis em suas cogitações. E, por isso, para dar lugar ao Deus verdadeiro e único, a Escritura [Hc 2.18-20] condena como sendo falsidade e mentira tudo quanto à Divindade foi outrora cele- brado entre os povos, nem deixa qualquer outra deidade senão no Monte Sião, onde florescia o conhecimento peculiar de Deus. Sem dúvida, dentre os gentios do tempo de Cristo, os samaritanos pareceram achegar-se bem próximo à verdadeira piedade. Entretanto, ouvimos da boca de Cristo [Jo 4.22] que eles não sabiam o que adoravam. Donde se segue que haviam eles sido enganados por erro fútil. Afinal, mesmo que nem todos hajam laborado em vícios crassos, ou resvalado a idolatrias francas, nem ainda assim houve alguma religião pura e aprovada que se fundamentasse apenas no senso comum. Pois ainda que uns poucos não tenham cedido à insânia do vulgo, no entanto permanece firme o ensino de Paulo [1Co 2.8], a saber, que a sabedoria de Deus não foi apreendida pelos príncipes deste mundo. Ora, se até os mais excelentes viveram todos em trevas, que se haverá de dizer da própria escória? Portanto, não surpreende se o Espírito Santo repudie como degenerescências a todos os cultos inventados pelo arbítrio dos homens, porque, em se tratando dos mistérios celestes, a opinião humanamente concebida, ainda que nem sempre en- gendre farto amontoado de erros, não obstante é a mãe do erro. E quando nada pior acontece, contudo isto não é falta leve: adorar, ao acaso, a um Deus desconhecido [At 17.23]. Entretanto, nessa culpa incidem, segundo o sentencia o próprio Cristo [Jo 4.22], todos quantos não foram ensinados pela lei que é a Deus que importa cultuar. E na verdade aqueles que têm sido os mais sublimados legisladores, não têm avançado além disto: que a religião teria se fundamentado no consenso público. 75CAPÍTULO V Assim é que, em Xenofonte, Sócrates louva a resposta de Apolo pela qual precei- tuou que cada um adorasse aos deuses à maneira dos antepassados e conforme o costume da própria cidade. Mas, que direito têm os mortais de definir com base em sua própria autoridade o que ultrapassa ao mundo em grande medida? Ou, quem poderia a tal grau aquiescer às determinações dos ancestrais ou às ordenanças do povo, que, sem hesitação, receba a um deus que lhes é impingido em bases pura- mente humanas? Antes de sujeitar-se à opinião alheia, cada um deve persistir em seu próprio parecer. Portanto, uma vez que, para seguir-se a adoração de Deus, nimiamente fraco e frágil vínculo da piedade é a praxe da cidade, ou o consenso da antigüidade, resta que o próprio Deus forneça do céu testemunho de si mesmo. 14. INSUFICIÊNCIA DA MANIFESTAÇÃO DE DEUS NA ORDEM NATURAL Em vão, pois, nos resplendem na obra da criação do mundo tantas lâmpadas acesas para enaltecer a glória do Autor, as quais de todos os lados nos cercam de sua efulgência em moldes tais que, não obstante, de modo algum podem por si só con- duzir ao reto caminho. Sem dúvida que emitem algumas centelhas, todavia elas são sufocadas antes que emitam mais pleno fulgor. Razão pela qual o Apóstolo, no mes- mo lugar em que chamou aos mundos de sinais das coisas invisíveis [Hb 11.1-3], diz também que pela fé se entende que os mesmos foram formados pela Palavra de Deus, significando com isso que de fato em tais manifestações externas se represen- ta a divindade invisível, todavia que não temos olhos para contemplá-la, salvo se, mercê da revelação interior de Deus, mediante a fé, eles sejam iluminados. Tampouco Paulo, onde ensina [Rm 1.19] que o que se deve conhecer de Deus se faz patente na criação do mundo, se refere a uma manifestação que se pode apreen- der pela perspicácia dos homens, senão que mostra, antes, que ela não está tão afas- tada, que os torne indesculpáveis. O mesmo Apóstolo também, embora em outro lugar [At 17.27] negue que Deus deva ser buscado ao longe, visto que habita dentro de nós, no entanto ensina, em outra passagem [At 14.16, 17], algo que se aproxima disto: “O qual nos tempos passados deixou que todas as nações andassem em seus próprios caminhos. E contudo não se deixou a si mesmo sem testemunho, benefici- ando-vos lá do céu, dando-vos chuvas e tempos frutíferos, enchendo vossos cora- ções de mantimento e de alegria.” E assim, conquanto o Senhor não careça de testemunho, enquanto, mercê de sua imensa e variada benignidade, brandamente atrai os homens ao seu conhecimento, contudo, a despeito disso, não deixam de seguir seus próprios caminhos, ou, seja, seus erros fatais. 76 LIVRO I 15. INESCUSABILIDADE FINAL DO HOMEM Mas, embora careçamos de capacidade natural para podermos chegar ao puro e líquido conhecimento de Deus, entretanto, porque o defeito dessa obtusidade está dentro de nós, somos impedidos de toda e qualquer escusa. Pois não temos direito a tergiversação, nem justificativa alguma, porque não podemos pretender tal ignorân- cia sem que nossa própria consciência nos convença de negligência e ingratidão.22 Uma defesa sem dúvida digna de admitir-se seria esta: se o homem alega que lhe faltaram ouvidos para ouvir a verdade, quando para declará-la às criaturas mu- das sobejam vozes mais do que canoras; se pleiteia que com os olhos não pode ver o que lhe mostram as criaturas não dotadas de visão; se como escusa evoca a defici- ência do entendimento, quando o ensinam todas as criaturas destituídas de razão! Daí com razão sermos sumariamente excluídos de toda escusa, visto que, sem rumo e desgarrados, nos extraviamos, quando todas as coisas nos apontam a trilha certa. Entretanto, por mais que se deva imputar à depravação dos homens o fato de que depressa corrompem a semente do conhecimento de Deus instilada em sua mente pela admirável operação da natureza, de sorte que não alcance ela a boa e pura frutificação, contudo é mui verdadeiro que, de modo algum, somos nós suficiente- mente instruídos por essa testificação clara e singela que é magnificantemente atri- buída pelas criaturas à glória de Deus. Pois, no mesmo instante em que, da contem- plação do universo, degustamos ligeiro sorvo da Deidade, preterindo o Deus verda- deiro, erigimos-lhe em lugar os sonhos e fantasias de nosso cérebro, e da própria fonte transferimos para alguém ou para algo o louvor da justiça, da sabedoria, da bondade, do poder. Ademais, seus feitos diários de tal modo os obscurecemos ou os invertemos mediante juízo pervertido, que não só lhes arrebatamos a glória que é dele, mas ainda o louvor que se deve a seu autor. 22. Primeira edição: “Pois, nem se [nos] permite ignorância assim pretextar que nos não esteja sempre a convencer tanto de indolência quanto de ingratidão até a própria consciência.” 79CAPÍTULO VI verdade foi especialmente outorgada a Moisés e a todos os profetas a incumbência de ensinar o modo de reconciliação entre Deus e os homens, donde também Paulo chama Cristo o fim da lei (Rm 10.4). Contudo, outra vez o reitero, além da doutrina apropriada da fé e do arrependimento, que apresenta Cristo como o Mediador, a Escritura adorna de marcas e sinais inconfundíveis ao Deus único e verdadeiro, porquanto criou o mundo e o governa, para que ele não se misture com a espúria multidão de divindades. Portanto, por mais que ao homem, com sério propósito, convenha volver os olhos a considerar as obras de Deus, uma vez que foi colocado neste esplendíssimo teatro para que fosse seu espectador, todavia, para que fruísse maior proveito, convém-lhe, sobretudo, inclinar os ouvidos à Palavra. E por isso não é de admirar que, mais e mais, em sua insensibilidade se façam empedernidos aqueles que nasceram nas trevas, por- quanto pouquíssimos se curvam dóceis à Palavra de Deus, de sorte que se contenham dentro de seus limites; ao contrário, antes exultam em sua futilidade. Mas, para que nos reluza a verdadeira religião, é preciso considerar isto: que ela tenha a doutrina celeste como seu ponto de partida; nem pode alguém provar sequer o mais leve gosto da reta e sã doutrina, a não ser aquele que se faz discípulo da Escritura. Donde também provém o princípio do verdadeiro entendimento: quando abraçamos reverentemente o que Deus quis testificar nela acerca de si mesmo. Ora, não só a fé consumada, ou completada em todos os seus aspectos, mas ainda todo reto conhecimento de Deus nascem da obediência à Palavra. E, fora de toda dúvida, neste aspecto, com singular providência, Deus em todos os tempos teve em conside- ração os mortais. 3. A BÍBLIA É O ÚNICO ESCUDO A PROTEGER DO ERRO Com efeito, se refletirmos bem quão acentuada é a tendência da mente humana para com o esquecimento de Deus; quão grande sua inclinação para com toda sorte de erro; quão pronunciado o gosto de a cada instante forjar novas e fantasiosas religiões, poder-se-á perceber quão necessária foi tal autenticação escrita da doutri- na celestial, para que não desvanecesse pelo ouvido, ou se dissipasse pelo erro, ou fosse corrompida pela petulância dos homens. Como sobejamente assim se evidencia, Deus proveu o subsídio da Palavra a todos aqueles a quem quis, a qualquer tempo, instruir eficientemente, porque ante- via ser pouco eficaz sua efígie impressa na formosíssima estrutura do universo. Portanto, necessário se nos faz trilhar por esta reta vereda, caso aspiremos, com seriedade, à genuína contemplação de Deus. Afirmo que importa achegar-se à Palavra onde, de modo real e ao vivo, Deus nos é descrito em função de suas obras, enquanto essas próprias obras aí se apre- ciam, não conforme a depravação de nosso julgar, mas segundo a norma da verdade 80 LIVRO I eterna. Se dela nos desviamos, como há pouco frisei, ainda que nos esforcemos com extrema celeridade, entretanto, uma vez que a corrida será fora da pista, jamais conseguirá ela atingir a meta. Pois assim se deve pensar: o resplendor da face divi- na, o qual o Apóstolo proclama ser inacessível [1Tm 6.16], nos é inextricável labi- rinto, a não ser que pelo Senhor sejamos dirigidos através dele pelo fio da Palavra, visto ser preferível claudicar ao longo desta vereda a correr a toda brida fora dela. Assim é que, não poucas vezes [Sl 93, 96, 97, 99 e afins], ensinando que impor- ta alijar do mundo as superstições para que floresça a religião pura, Davi representa Deus a reinar, significando pelo termo reinar não o poder do qual Deus se acha investido e o qual exerce no governo universal da natureza, mas a doutrina pela qual para si reivindica soberania legítima, porquanto os erros jamais podem ser arranca- dos do coração humano, enquanto não for nele implantado o verdadeiro conheci- mento de Deus. 4. A SUPERIORIDADE REVELACIONAL DA BÍBLIA SOBRE A CRIAÇÃO Por isso, o mesmo Profeta, onde trouxe à lembrança que a glória de Deus é proclamada pelos céus, que as obras de suas mãos são anunciadas pelo firmamento, que sua majestade é apregoada pela seqüência regular dos dias e das noites [Sl 19.1, 2], em seguida desce à menção da Palavra: “A lei do Senhor” diz ele, “é sem defeito, reanimando as almas; o testemunho do Senhor é fiel, dando sabedoria aos pequeni- nos; os atos de justiça do Senhor são retos, alegrando os corações; o preceito do Senhor é límpido, iluminando os olhos” [Sl 19.7, 8]. Ora, embora ele inclua ainda outros usos da lei, contudo assinala, de modo geral, porquanto em vão Deus convida a si a todos os povos pela contemplação do céu e da terra, afirmando que esta é a escola especial dos filhos de Deus: a Escritura. Idêntica é a perspectiva do Salmo 29, no qual o Profeta, após discursar a respei- to da voz terrível de Deus, a qual sacode a terra com trovões, ventanias, chuvas, furacões e tempestades, faz tremer as montanhas, despedaça os cedros, contudo no final acrescenta que seus louvores são entoados no santuário, porquanto os incrédu- los são surdos a todas as vozes de Deus que ressoam nos ares. De igual modo, assim ele conclui em outro dos Salmos, onde descreveu as ondas espantosas do mar: “Mui fiéis são teus testemunhos; a santidade convém a tua casa, para sempre” [Sl 93.5] Daqui também promana aquilo que Cristo dizia à mulher samaritana [Jo 4.22]: que seu povo e todos os demais povos adoravam o que desconheciam; e que somente os judeus exibiam o culto verdadeiro de Deus. Ora, já que, em razão de sua obtusidade, de modo algum a mente humana pode chegar a Deus, salvo se for assistida e sustentada por sua Santa Palavra, então todos os mortais – excetuados os judeus –, visto que buscavam a Deus sem a Palavra, lhes foi inevitável que vagassem na futilidade e no erro. 81CAPÍTULO VI C A P Í T U L O VII POR QUE É NECESSÁRIO QUE SE ESTABELEÇA O TESTEMUNHO EM PROL DA ESCRITURA PARA QUE SUA AUTORIDADE SEJA INDUBITÁVEL: EVIDENTEMENTE, DO ESPÍRITO. DAÍ SER ÍMPIA FALSIDADE SUSTENTAR QUE SUA CREDIBILIDADE DEPENDE DO ARBÍTRIO DA IGREJA 1. A AUTORIDADE DA BÍBLIA PROVÉM DE DEUS, NÃO DA IGREJA Antes, porém, que se avance mais, é conveniente inserir certas considerações quanto à autoridade da Escritura, considerações que não só preparem os espíritos à sua reverência, mas também que dissipem toda dúvida. Ora, quando o que se propõe é a Palavra de Deus, é evidente que ninguém demonstrará petulância tão deplorável que ouse abolir a fé naquele que nela fala, salvo se, talvez, for destituído não só de bom senso, mas até mesmo da própria humanidade. Como, porém, não se outorguem oráculos dos céus quotidianamente, e só sub- sistem as Escrituras, na qual aprouve ao Senhor consagrar sua verdade e perpétua lembrança, elas granjeiam entre os fiéis plena autoridade, não por outro direito se- não aquele que emana do céu onde foram promulgadas, e, como sendo vivas, nelas se ouvem as próprias palavras de Deus. Certamente que esta é matéria mui digna não só que seja tratada mais a fundo, mas que seja ponderada ainda mais precisamente. Que me perdoem, porém, os lei- tores, se atento mais para o que dita o propósito da obra encetada do que para o que requer a amplitude deste assunto. Entre a maioria, entretanto, tem prevalecido o erro perniciosíssimo de que o valor que assiste à Escritura é apenas até onde os alvitres da Igreja concedem. Como se de fato a eterna e inviolável verdade de Deus se apoiasse no arbítrio dos homens! Pois, com grande escárnio do Espírito Santo, assim indagam: “Quem porventura nos pode fazer crer que essas coisas provieram de Deus?” Quem, por acaso, nos pode atestar que elas chegaram até nossos dias inteiras e intatas? Quem, afinal, nos pode persuadir de que este livro deve ser recebido reverentemente, excluindo um outro de seu número, a não ser que a Igreja prescrevesse a norma infalível de todas essas coisas?” Depende, portanto, da determinação da Igreja, dizem, não só que se deve reve- rência à Escritura, como também que livros devam ser arrolados em seu cânon. E 84 LIVRO I Por outro lado, não estou negando que, não raro, no empenho de afirmar a auto- ridade da Escritura, a qual esses tais repudiavam, pressiona aos maniqueus com o consenso da Igreja inteira. Donde aquela sua exprobração contra Fausto, visto que ele não se submetia à verdade do evangelho, que era tão firme, tão sólida, celebrada com glória tão imensa e recomendada por sólidas sucessões desde o tempo dos apóstolos. Mas, em lugar algum ele pretendia ensinar que a autoridade que deferi- mos às Escrituras deva depender da definição ou do decreto de homens. Apenas traz à baila o parecer universal da Igreja, em que levava manifesta vantagem sobre os adversários, porque no caso muito lhe valia. Se alguém deseja uma comprovação mais plena disto, leia seu livreto A Utilida- de do Crer, onde verificarás que ele não recomenda nenhuma outra disposição de crer, senão unicamente aquela que nos faculte acesso e seja oportuno começo da investigação, como ele próprio o diz, contudo, que não se deve aquiescer à mera opinião, mas arrimar-se na segura e sólida verdade. 4. O TESTEMUNHO INTERIOR DO ESPÍRITO É SUPERIOR A TODA PROVA É necessário reafirmar o que referi pouco atrás: a credibilidade da doutrina não se firma antes que ela nos persuada além de toda dúvida de que seu autor é Deus. Daí, a suprema prova da Escritura se estabelece reiteradamente da pessoa de Deus falando nela. Os profetas e os apóstolos não alardeiam, seja sua habilidade, sejam quaisquer elementos que granjeiam credibilidade aos que falam, nem insistem em razões, mas invocam o sagrado nome de Deus, mediante o qual todo mundo seja compelido à obediência. Cumpre, pois, agora ver como se poderá discernir, e não por uma opinião aparente, mas pela verdade, que o nome de Deus não seja usurpado temerariamente, nem com astúcia e engano.28 Ora, se almejamos o que seja melhor para as consciências, para que não venha a ser perpetuamente levadas em derredor pela dúvida instável, ou cedam à vacilação, para que nem ainda hesitem diante de quaisquer questiúnculas de somenos importância, deve-se buscar esta convicção para além das razões, dos juízos, ou das conjeturas humanas, ou, seja, do testemu- nho íntimo do Espírito. É sem dúvida verdadeiro que, se quiséssemos continuar à base de argumentos, muitas coisas poderiam ser trazidas à consideração, aquelas que evidenciam facil- mente que, se há algum Deus no céu, a lei, as profecias e o evangelho dimanaram dele. Ademais, ainda que se insurjam contra homens doutos e possuídos de profun- díssimo discernimento e nesta disputa apliquem e ostentem todos os poderes da inteligência, contudo, a não ser que se endureçam despudorada e extremamente, 28. Primeira edição: “Cumpre ver-se agora como não de opinião apenas provável, mas de líquida verdade, o nome de Deus se evidencia ser invocado não temerária, nem enganosamente.” 85CAPÍTULO VII esta confissão lhes será arrancada: que sinais de Deus se verão manifestados na Escritura, a falarem nela, dos quais se patenteia que a doutrina aí contida é de teor celestial. E, pouco adiante, veremos que todos os livros da Sagrada Escritura em muito excedem a quaisquer outros escritos. Logo, se volvermos para eles olhos puros e sentidos íntegros, a majestade de Deus prontamente nos será manifesta, à qual, subjugada nossa ousadia de contraditá-la, somos compelidos à obediência. Entretanto, às avessas agem quantos porfiam por firmar a sólida credibilidade da Escritura através de discussões. De minha parte, já que não me destaco nem pela sublimada aptidão, nem pela eloqüência, entretanto, se houvesse de travar luta com os mais ardilosos desprezadores de Deus, um a um, os quais anseiam por mostrar-se solertes e refinados em sua depreciação da Escritura, confio que não me seria difícil calar-lhes as vozes estridentes. E, se fosse proveitoso o trabalho de refutar suas vãs cavilações, não haveria grande dificuldade em lhes pulverizar as jactanciosas ex- postulações que em surdina murmuram pelos cantos. Contudo, se alguém desvenci- lha a Sagrada Palavra de Deus das depreciações dos homens, nem ainda assim lhes será infundida, imediatamente no coração, a certeza que a piedade busca. Uma vez que aos homens profanos a religião parece firmar-se apenas na opi- nião, para que estulta ou levianamente não creiam em algo, desejam e requerem que lhes seja provado pela razão que Moisés e os profetas falaram movidos por Deus. Não obstante respondo que o testemunho do Espírito é superior a toda razão. Ora, assim como só Deus é idônea testemunha de si mesmo em sua Palavra, também assim a Palavra não logrará fé nos corações humanos antes que seja neles selada pelo testemunho interior do Espírito. Portanto, é necessário que o mesmo Espírito que falou pela boca dos profetas penetre em nosso coração, para que nos persuada de que eles proclamaram fielmente o que lhes fora divinamente ordenado. E esta correlação é expressa com muita propriedade por Isaías, nestas palavras: “Meu Es- pírito que está em ti e as palavras que pus em tua boca e na de tua progênie jamais falharão” [Is 59.21]. Certos espíritos nobres se deixam apoquentar de que não há à mão comprova- ção clara, enquanto os ímpios vociferarem impunemente contra a Palavra de Deus. Na verdade, é como se o Espírito não fosse chamado, respectivamente, selo e pe- nhor [1Co 1.22] para com isso confirmar a fé aos piedosos; porquanto, até que ele ilumine as mentes, elas sempre flutuam em meio a muitas incertezas! 5. A BÍBLIA É AUTENTICADA PELO ESPÍRITO Portanto, que se tome isto por estabelecido: aqueles a quem o Espírito Santo interiormente ensinou aquiescem firmemente à Escritura, e esta é indubitavelmente auvto,piston [^%T(P]sT(n – autenticada por si mesma]; nem é justo que ela se sujeite 86 LIVRO I a demonstração e arrazoados, porquanto a certeza que ela merece de nossa parte a obtemos do testemunho do Espírito. Pois, ainda que, de sua própria majestade, evoque espontaneamente reverência para si, todavia por fim nos afeta seriamente, visto que nos foi selada no coração através do Espírito. Portanto, iluminados por seu poder, já não cremos que a Escritura procede de Deus por nosso próprio juízo, ou pelo juízo de outros; ao contrário, com a máxima certeza, não menos se contemplás- semos nela a majestade do próprio Deus, concluímos, acima do juízo humano, que ela nos emanou diretamente da boca de Deus, através do ministério humano. Não buscamos argumentos, nem evidências comprobatórias, sobre os quais se firme nosso critério. Pelo contrário, sujeitamos-lhe nosso juízo e entendimento como algo que está além do processo aleatório do juízo. Isto certamente o fazemos, não da maneira como às vezes alguns costumam sofregamente agarrar uma coisa desco- nhecida, a qual, tão logo examinada a fundo, acaba lhes desagradando, mas porque somos plenamente cônscios de que estamos diante da verdade inexpugnável. Nem tampouco à maneira como certos homens dignos de lástima costumam fazer à men- te cativa de superstições; ao contrário, porque sentimos que aí medra e respira o poder indubitável da divina majestade, pelo qual somos atraídos e inflamados a obedecer, na verdade, cônscia e deliberadamente, contudo mais vívida e efetiva- mente que por força, seja da vontade, seja do saber humano. E assim, com mui procedente razão Deus proclama, pela instrumentalidade de Isaías [43.10], que os profetas, juntamente com todo o povo, eram suas testemu- nhas, porque, instruídos por predições, sustentavam com plena certeza que, sem engano ou ambigüidade, Deus havia falado. Portanto, aqui está uma convicção que não requer razões; um conhecimento ao qual assiste a mais sublimada razão; na verdade, no qual a mente descansa mais firme e constantemente que em quaisquer razões; enfim, um sentimento que não pode nascer senão de revelação celestial. Não estou falando de outra coisa senão do que em si experimenta cada um dos fiéis, exceto que as palavras ficam muito abaixo de uma justa explicação da matéria. Deixo, por ora, de mencionar mais coisas, porquanto em outra parte se oferece- rá lugar para tratar-se novamente deste assunto. Por ora saibamos apenas que, afi- nal, fé verdadeira é aquela que o Espírito de Deus sela em nosso coração. Simples- mente com esta razão, entretanto, o leitor despretensioso e dócil se contentará: Isa- ías [54.13] promete que discípulos de Deus haverão de ser todos filhos da Igreja renovada. Nisto, Deus julga dignos de privilégio singular unicamente os eleitos, aos quais assim distingue da humanidade como um todo. Com efeito, qual é o princípio da verdadeira doutrina senão a pronta disposição de ouvir a voz de Deus? Assim é que, pela boca de Moisés, Deus requer ser ouvido, segundo foi escrito: “Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu?, ou: Quem 89CAPÍTULO VIII quando, não se apoiando em suportes alheios, por si só ela própria é suficiente para suster-se. Quão peculiar, porém, é esse poder à Escritura, transparece claramente disto: que dos escritos humanos, por maior que seja a arte com que são burilados, nenhum sequer nos consegue impressionar de igual modo. Basta ler a Demóstenes ou a Cí- cero; a Platão ou a Aristóteles, ou a quaisquer outros desse plantel: em grau admirá- vel, reconheço-o, são atraentes, deleitosos, comoventes, arrebatadores. Contudo, se te transportares dali para esta sagrada leitura, queiras ou não, tão vividamente te afetará, a tal ponto te penetrará o coração, de tal modo se te fixará na medula, que, ante a força de tal emoção, aquela impressividade dos retóricos e filósofos quase que se desvanece totalmente, de sorte que é fácil perceber que as Sagradas Escritu- ras, que em tão ampla escala superam a todos os dotes e graças da indústria humana, respiram algo de divino. 2. BELEZA ESTILÍSTICA DE CERTAS PORÇÕES DA BÍBLIA Com efeito confesso que alguns profetas têm um modo de dizer elegante e poli- do, até mesmo esplendoroso, de modo que sua eloqüência não é inferior à dos escri- tores profanos. E, com tais exemplos, o Espírito Santo quis mostrar que não lhe faltava eloqüência, enquanto em outros lugares fez uso de um estilo não burilado, nem pomposo. Entretanto, quer leias Davi, Isaías e outros, a quem a palavra flui suave e aprazível; quer Amós, um vaqueiro, Jeremias e Zacarias, cuja linguagem, mais áspera, tem o sabor da rusticidade, por toda parte se evidenciará essa majesta- de do Espírito a que me referi. Nem me passa despercebido que Satanás é em muitos aspectos um imitador de Deus, a fim de, mediante enganosa similaridade, melhor insinuar-se à mente dos simplórios. Daí, com um linguajar desataviado e quase bárbaro, semeou ele habili- dosamente erros ímpios, com os quais enganava míseras criaturas humanas, e não raro fez uso até de formas obsoletas de discurso, para, sob esta máscara, encobrir suas imposturas. Todavia, todos quantos são dotados mesmo de discernimento me- diato percebem quão vazia e repulsiva afetação é essa. Quanto, porém, respeita à Sagrada Escritura, ainda que, muitas vezes, indivídu- os petulantes a tentem corroer, entretanto se faz claro que ela está repleta de idéias que não poderiam ser concebidas em bases estritamente humanas. Tenha-se em vis- ta a cada um dos profetas: não se achará sequer um que não haja excedido em muito à capacidade humana, de forma que, todos os que não acham sua doutrina saborosa, são homens que perderam o paladar e são totalmente néscios.29 29. Primeira edição: “assim que se devem considerar a de todo carecerem de paladar [aqueles] a quem insípido lhes é o ensino.” 90 LIVRO I 3. A ANTIGÜIDADE DA BÍBLIA Outros já trataram deste assunto de forma mui exaustiva, resultando disso que, no presente, é bastante abordar apenas de leve uns poucos pontos que contribuam de modo especial à síntese de toda a matéria. Além daqueles aspectos que já abordei, não é de pouco peso que desfruta a própria antigüidade da Escritura. Ora, por mais que os escritores gregos falem muitas coisas a respeito da teologia egípcia, contudo não sub- siste nenhum registro de qualquer religião que não seja muito posterior à era de Moisés. Nem está Moisés a inventar um novo Deus. Ao contrário, apenas menciona o que, transmitido pelos patriarcas, como que de mão em mão, no longo decurso dos tempos, haviam os israelitas recebido a respeito do Deus eterno. Pois, que outra coisa faz, senão reencaminhá-los ao pacto iniciado com Abraão [Gn 17.7]? Ora, se ele houvesse apresentado coisa inaudita, nenhuma aceitação haveria. Entretanto, teria sido um fato a todos conhecido e corriqueiro o livramento da servidão em que estavam sendo retidos, de sorte que, ao ouvir-lhe a menção, de pronto levantaria o ânimo de todos. Ademais, não é menos provável que houvessem sido por ele instru- ídos quanto ao término dos quatrocentos anos [Gn 15.13; Ex 12.40; Gl 3.17]. Ora, se Moisés, que entretanto ele próprio supera por espaço tão grande de tem- pos a todos os outros escritores, reivindica a transmissão de seu ensino desde um começo tão remoto, é preciso considerar quanto a Sagrada Escritura sobressai em antigüidade entre todas as demais. 4. A FIDEDIGNIDADE DE MOISÉS A não ser que, porventura, se queira dar crédito aos egípcios, os quais crêem que sua antigüidade se estende até seis mil anos antes de ser o mundo criado! No entan- to, uma vez que sua bazófia tem sido sempre motivo de chacota até mesmo a todos os escritores profanos, não há por que me dê ao trabalho de refutá-la. Além disso, Josefo cita, contra Ápion, de escritores antiqüíssimos, testemunhos dignos de ser lembrados, dos quais se pode concluir que desde os séculos mais extremos a doutri- na da lei foi renomada no consenso de todos os povos, ainda que ela não tenha sido nem lida e nem realmente conhecida. Ora, para que não só não se suscitasse suspeita entre os maldosos, mas ainda nem os ímpios tivessem pretexto de cavilar, com ótimos remédios Deus recorreu a um e outro desses perigos. Enquanto Moisés menciona [Gn 49.5-9] que, por celeste inspiração, Jacó, quase trezentos anos antes, pronunciara acerca de seus descenden- tes, como engrandece ele sua tribo? Na verdade a estigmatiza com perene infâmia na pessoa de Levi, dizendo: “Simão e Levi são vasos de iniqüidade: que minha alma não entre em seu conselho, nem minha língua em seu lugar secreto” [Gn 49.5, 6]. Por certo que teria podido passar em silêncio essa ignomínia, não só para que pou- 91CAPÍTULO VIII passe a seu pai, mas ainda para que não conspurcasse a si próprio e toda sua família com parte da mesma ignomínia. Como poderá ser suspeito quem, pregando que o primeiro genitor da família de que era oriundo fora de todo abominável ao oráculo do Espírito Santo, nem consulta a seus próprios interesses particulares, nem recusa sofrer ressentimento entre os de sua parentela, a quem, sem dúvida alguma, isto era molesto? Quando, também, recorda o ímpio murmurar de Arão, seu irmão íntimo, e de Miriã, sua irmã [Nm 12.1], porventura diremos que ele fala segundo o sentimento de sua carne, ou em obediência ao imperativo do Espírito Santo? Além disso, quando sua autoridade era suprema, por que a seus filhos não deixa ao menos o direito do sumo sacerdócio, ao contrário, os relega ao último lugar? Dentre muitos, escolho apenas uns poucos exemplos. Entretanto, na própria lei, aqui e ali, muitas provas ocorrerão que vindiquem plena certeza de que Moisés se adianta, incontestavelmente, como um anjo de Deus vindo do céu. 5. OS MILAGRES REFORÇAM A AUTORIDADE DE MOISÉS, O MENSAGEIRO DIVINO Então, na verdade tantos e tão insignes milagres que Moisés menciona são ou- tros tantos endossos da lei por ele próprio outorgada e da doutrina por ele comuni- cada. Ora, visto que foi ele conduzido ao monte em uma nuvem; que aí esteve segre- gado do convívio humano até o quadragésimo dia [Ex 24.18]; que na própria pro- mulgação da lei a face lhe brilhava como se com raios solares [Ex 34.29]; que, de todos os lados, relâmpagos refulgiam; trovões e estrondos se faziam ouvir por todo o ar; até uma trombeta ressoava soprada por nenhuma boca humana [Ex 19.16]; que a entrada do tabernáculo se mantinha vedada à vista do povo, mercê da nuvem que se lhe antepunha [Ex 40.34]; que, pelo horrendo fim de Coré, Datã e Abirão, e de toda a ímpia facção, a autoridade lhe foi tão mirifacamente vindicada [Nm 16.1-35]; que a rocha golpeada pela vara de pronto lançou de si um rio [Nm 20.10, 11; Ex 17.6; 1Co 10.4]; que, ante sua oração, o maná choveu do céu [Nm 11.9; Ex 16.13; 1Co 10.3] – porventura Deus não estava a recomendar do céu precisamente a este homem como seu indubitável Profeta? Se porventura alguém objeta dizendo que estou assumindo como fatos admidos coisas que não são passíveis de controvérsia, é fácil a solução para esta cavilação. Ora, uma vez que Moisés proclamou todas essas coisas perante a congregação, que ocasião houve para simulação diante das próprias testemunhas oculares dos eventos que ele realiza? Isto é, Moisés ter-se-ia apresentado no meio deles e, acusando o povo de infidelidade, contumácia, ingratidão e de outros atos incrimináveis, teria se vangloriado de que a doutrina lhe fora autenticada sob seus próprios olhos, por esses milagres que eles mesmos jamais haviam contemplado! 94 LIVRO I a liberdade, porventura não se impõe que a língua lhe fora governada pelo Espírito de Deus? Não seria grande descaramento negar que a autoridade dos profetas foi confir- mada com tais testemunhos, e que de fato se cumpriu o que eles afirmam, para que se desse crédito às suas palavras, a saber:32 “Eis que as primeiras coisas já se cum- priram, e as novas eu vos anuncio, e, antes que venham à luz, vo-las faço ouvir” [Is 42.9]? Deixo de considerar o fato de que Jeremias e Ezequiel, embora estivessem sepa- rados por tão grande distância, contudo profetizando na mesma época, em tudo que diziam concordavam exatamente, como se, mutuamente, um houvesse ditado as palavras ao outro! Que dizer de Daniel? Porventura não tece assim profecias quanto às coisas futu- ras, coisas que se estendiam quase por seiscentos anos, como se estivesse a escrever uma história acerca de fatos passados e por toda parte conhecidos? Se os homens piedosos meditarem devidamente essas coisas, estarão sobeja- mente equipados para conter os ladridos dos homens ímpios, pois esta demonstra- ção é clara demais para que seja suscetível a quaisquer cavilações. 9. PRESERVAÇÃO E TRANSMISSÃO DA LEI Sei o que certos biltres vociferam pelas esquinas, com o fito de ostentar a capa- cidade de sua genialidade em investir contra a verdade de Deus. Perguntam, pois, quem nos terá dado certeza de que essas coisas que sob seus nomes se lêem foram escritas por Moisés e pelos profetas? Ademais, ousam até levantar a questão, se porventura algum Moisés teria realmente existido. Mas, se alguém puser em dúvida que jamais existiu um Platão, ou um Aristóteles, ou um Cícero, quem não haverá de dizer que tal insânia deve ser castigada com bofetadas ou com açoites? A lei de Moisés foi maravilhosamente preservada, mais pela providência celes- tial do que pelo cuidado de homens. E, embora por negligência dos sacerdotes ela jazera sepultada por breve período, desde que o piedoso rei Josias a encontrou [2Rs 22.8; 2Cr 34.15] tem sido compulsada entre os homens, através das contínuas su- cessões dos tempos. Na verdade Josias não a levou a público como coisa desconhe- cida ou nova; ao contrário, como algo que havia sido sempre de comum conheci- mento e cuja lembrança então era notória. O volume original fora dedicado ao tem- plo; aos arquivos reais se destinara um exemplar daí copiado. Tinha acontecido apenas isto: que os sacerdotes haviam cessado de proclamar a própria lei, segundo o 32. Primeira edição: “Que de despudoramento será negar confirmada haver sido com tais evidências a autoridade dos Profetas e haver-se, de fato, cumprido [o] que [eles] próprios se arrogam para vindicar credibilidade a suas palavras.” 95CAPÍTULO VIII solene costume, e o próprio povo também lhe havia negligenciado a leitura costu- meira. Por que quase não se passou nenhuma era em que não lhe fora confirmada e renovada a autoridade? Porventura era Moisés desconhecido àqueles que estavam familiarizados com Davi? Para falar de todos a um só tempo, porém, é mais do que certo que os escritos chegaram a seus descendentes não de outra maneira que de mão em mão, transmitidos pelos pais, por assim dizer, em contínua seqüência de anos, os quais em parte ouviam falar deles, em parte aprendiam que foram assim falado por aqueles que, de memória recente, os haviam ouvido. 10. A BÍBLIA FOI MARAVILHOSAMENTE PRESERVADA POR DEUS O que, porém, trazem à baila da história dos Macabeus, com vistas a denegrir da credibilidade da Escritura, é tal que não se pode conceber nada mais relevante para estabelecê-la. Em primeiro lugar, contudo, diluamos o pretexto que apresentam; em seguida, voltaremos contra eles o aríete que assestam contra nós. Uma vez que, dizem eles, Antíoco determinou que fossem queimados todos os livros [1 Macabeus 1.56, 57], donde provieram os exemplares que agora temos? Eu, porém, por minha vez, lhes pergunto: em que escritório poderia tê-los produzido tão imediatamente? Ora, é evidente que continuaram a existir logo após sustada a per- seguição, e que foram reconhecidos sem controvérsia por todos os piedosos, os quais, criados em sua doutrina, os conheciam intimamente. Até pelo contrário, quan- do, quem sabe tramada uma conjuração, tenham todos os ímpio tão desabridamente invectivado aos judeus, ninguém, entretanto, jamais ousou atirar contra eles a pe- cha de forjadores de livros falsos. Ademais, de qualquer natureza que, em sua opi- nião, seja a religião judaica, reconhecem, no entanto, que Moisés é seu autor. Portanto, que outra coisa senão que seu descaramento mais que canino traem esses paroleiros, enquanto acusam mentirosamente de serem espúrios livros cuja sagrada antigüidade é atestada pelo consenso de todas as historias? Mas, para que, ao refutar tão torpes cavilações, não dispenda esforço em vão, além do que se faz necessário, aqui ponderemos, antes, quão grande cuidado exercera o Senhor em conservar sua Palavra, quando, além da expectação de todos, como se por um real incêndio, a livrou da truculência do mais cruel tirano; que revestiu de tão alentada constância a sacerdotes piedosos e a outras pessoas, de sorte que não hesitaram em transmitir este precioso tesouro aos pósteros, redimidos, caso houvesse necessida- de, pelo custo da própria vida; o que frustrou a acérrima busca de tantos dignitários e seus esbirros. Quem não reconhece como insigne e maravilhosa obra de Deus que esses docu- mentos sagrados, os quais os ímpios haviam se convencido de que pereceram in- 96 LIVRO I teiramente, bem logo retornaram, por assim dizer, com direitos readquiridos e certa- mente com dignificação ainda maior? Pois, seguiu-se a tradução grega, que os di- vulgaria por todo o orbe. Nem o milagre se manifestou somente nisto: que Deus livrou as tábuas de sua aliança dos sanguinários editos de Antíoco, mas ainda que, por entre as calamidades tão multíplices do povo judeu, pelas quais foi continua- mente triturado e devastado, bem logo quase reduzido ao extermínio, não obstante essas tábuas permaneceram sãs e salvas. A língua hebraica não só jazia sem lustre ou prestígio, mas até quase desconhecida e havia quase de todo perecido. Quanto, pois, os judeus se haviam desviado do real uso da língua pátria desde o tempo em que retornaram do exílio, transparece dos profetas dessa época, o que é especial- mente proveitoso de se observar, porquanto desta comparação mais claramente se evoca a antigüidade da lei e dos profetas. E através de quem Deus nos preservou a doutrina da salvação compreendida na lei e nos profetas, para que, a seu tempo, Cristo houvesse de manifestar-se? Através dos mais ferozes inimigos do próprio Cristo, os judeus, a quem, por isso, Agostinho merecidamente chama de os bibliotecários da Igreja Cristã, pois que nos subminis- traram leitura de que eles próprios não se servem. 11. SIMPLICIDADE E AUTORIDADE DO NOVO TESTAMENTO Em seguida, se alguém vem ao Novo Testamento, a verdade nele se firma em sólidos sustentáculos! Três evangelistas narram sua história em um estilo singelo e vulgar. Esta singeleza é para muitos indivíduos arrogantes motivo de desdém, eviden- temente porque não atentam para os pontos capitais do ensino, dos quais lhes seria fácil concluir que eles, os evangelistas, estão a dissertar acerca de mistérios celestiais, que pairam acima do alcance humano. Sem dúvida, quem quer que seja dotado de uma simples gota de cândida decência, lido o primeiro capítulo de Lucas, sentir-se-á tomado de vergonha. Já os discursos de Cristo, dos quais a essência é resumida por esses três evangelistas, prontamente eximem os escritos de todo menosprezo. João, porém, a trovejar das alturas, quebranta mais poderosamente do que qual- quer raio a obstinação daqueles a quem não compele à obediência da fé. Saiam ao largo todos esses censores de apurado faro, a quem o supremo prazer é alijar do próprio coração e do coração dos outros a reverência devida à Escritura. Leiam o Evangelho de João: queiram ou não, aí acharão mil afirmações que ao menos lhes hajam de despertar a mente entorpecida, na verdade, que lhes acenda na consciência horrível cautério a coibir-lhes o escárnio. O mesmo se há de dizer de Paulo e de Pedro, em cujos escritos, ainda que a maioria seja cega em relação a eles, contudo a própria majestade celeste neles es- tampada mantém a todos enlaçados, como que amarrados, nela. 99CAPÍTULO VIII C A P Í T U L O IX OS FANÁTICOS QUE, POSTA DE PARTE A ESCRITURA, ULTRAPASSAM A REVELAÇÃO E SUBVERTEM A TODOS OS PRINCÍPIOS DA PIEDADE 1. APELO FANÁTICO AO ESPÍRITO EM DETRIMENTO DA ESCRITURA Ademais, aqueles que, repudiada a Escritura, imaginam não sei que via de acesso a Deus, devem ser considerados não só possuídos pelo erro, mas também exacerba- dos pela loucura. Ora, surgiram em tempos recentes certos desvairados que, arro- gando-se, com extremada presunção, o magistério do Espírito, fazem pouco caso de toda leitura da Bíblia e se riem da simplicidade daqueles que ainda seguem, como eles próprios a chamam, a letra morta e que mata. Eu, porém, gostaria de saber deles que Espírito é esse de cuja inspiração se transportam a alturas tão sublimadas que ousem desprezar como pueril e rasteiro o ensino da Escritura? Ora, se respondem que é o Espírito de Cristo, tal certeza é absurdamente ridícula, se na realidade concedem, segundo penso, que os apóstolos de Cristo, e os demais fiéis na Igreja primitiva, foram iluminados não por outro Espírito. O fato é que nenhum deles daí aprendeu o menosprezo pela Palavra de Deus; ao contrário, cada um foi antes imbuído de maior reverência, como seus es- critos o atestam mui luminosamente. E, na verdade, assim fora predito pela boca de Isaías. Pois o povo antigo não cinge ao ensino externo como se lhe fosse uma cartilha de rudimentos, onde diz: “Meu Espírito que está em ti, e as palavras que te pus na boca, de tua boca não se apartarão, nem da boca de tua descendência, para sempre” [Is 59.21], senão que ensina, antes, haver de ter a nova Igreja, sob o reino de Cristo, esta verdadeira e plena felicidade: que seria regida pela voz de Deus, não menos que pelo Espírito. Do quê concluímos que, em nefando sacrilégio, estes dois elementos que o Profeta uniu por um vínculo inviolável são separados por esses biltres. A isto acresce que Paulo, arrebatado que foi até ao terceiro céu [2Co 12.2], entretanto não deixou de aprofundar-se no ensino da lei e dos profetas, assim como também exorta a Timóteo, mestre de singular proeminência, a que se devotasse a sua leitura [1Tm 4.13]. E digno de ser lembrado é esse elogio com que adorna a Escritura: “é útil para ensinar, admoestar, redargüir, a fim de que os servos de Deus se tornem perfeitos” [2Tm 3.16]. De quão diabólica loucura é imaginar como se fosse transitório ou temporário o uso da Escritura que conduz os filhos de Deus até a meta final! 100 LIVRO I Em seguida, desejaria que também me respondessem isto: porventura beberam de outro Espírito além daquele que o Senhor prometia a seus discípulos? Ainda que se achem possuídos de extrema insânia, contudo não os julgo arrebatados de tão frenético desvario que ousem gabar-se disso. Mas, ao prometê-lo, de que natureza declarava haver de ser esse Espírito? Na verdade, um Espírito que não falaria por si próprio; ao contrário, que lhes sugeriria à mente, e nela instilaria o que ele próprio havia transmitido por meio da Palavra [Jo 16.13]. Logo, não é função do Espírito que nos foi prometido configurar novas e inaudi- tas revelações ou forjar um novo gênero de doutrina, mediante a qual sejamos afas- tados do ensino do evangelho já recebido; ao contrário, sua função é selar-nos na mente aquela mesma doutrina que é recomendada através do evangelho. 2. A BÍBLIA É O ÁRBITRO DO ESPÍRITO Do quê facilmente entendemos isto: se ansiamos por receber algum uso e fruto da parte do Espírito de Deus, imperioso nos é aplicar-nos diligentemente a ler tanto quanto a ouvir a Escritura. Assim é que Pedro até louva [2Pe 1.19] o zelo daqueles que estão atentos ao ensino profético, ensino que, todavia, após resplandecida a luz do evangelho, poderia parecer ter sido cancelado. Muito pelo contrário, se algum espírito, preterida a sabedoria da Palavra de Deus, nos impingir outra doutrina, com justa razão deve o mesmo ser suspeito de fatuidade e mentira [Gl 1.6-9]. E então? Uma vez que Satanás se transfigura em anjo de luz [2Co 11.14], que autoridade terá o Espírito entre nós, a não ser que seja discernido através de sinal de absoluta certeza? E de forma intensamente clara, ele nos tem sido apontado pela voz do Senhor, não fora que, por sua própria vontade, estes infelizes porfiassem por extraviar-se para sua própria ruína, enquanto buscam o Espírito por si próprios e não por ele mesmo. Alegam, com efeito, que é afrontoso que o Espírito de Deus, a quem todas as coisas devem estar sujeitas, seja subordinado à Escritura. Como se, na verdade, isto fosse ignominioso ao Espírito Santo: ser ele por toda parte igual e conforme a si mesmo; permanecer consistente consigo em todas as coisas; em nada variar! De fato, se fosse necessário julgar em conformidade com qualquer norma humana, an- gélica, ou estranha, então deveria considerar-se que o Espírito estaria reduzido a subordinação; aliás, se agradar mais, até mesmo a servidão. Quando, porém, se compara consigo próprio, quando em si mesmo se considera, quem dirá com isso que ele é impingido com ofensa? Com efeito, confesso que, desta forma, o Espírito é submetido a um exame, contudo um exame através do qual ele quis que sua majestade fosse estabelecida entre nós. Ele deve ser plenamente manifesto assim que nos adentra o coração. 101CAPÍTULO IX Entretanto, para que o espírito de Satanás não se insinue sob o nome do Espírito, ele quer ser por nós reconhecido em sua imagem que imprimiu nas Escrituras. Ele é o autor das Escrituras: não pode padecer variação e inconsistência para consigo mes- mo. Portanto, como ali uma vez se manifestou, assim tem ele de permanecer para sempre. Isto não lhe é derrogatório, a não ser, talvez, quando julgamos dever ele abdicar e degenerar sua dignidade. 3. A BÍBLIA E O ESPÍRITO SANTO NÃO SE DISSOCIAM Quando, porém, nos movem acusação, de que nos apegamos demasiadamente à letra que mata, nisto incorrem na pena de desprezarem a Escritura. Ora, salta à vista que Paulo está ali [2Co 3.6] a contender com os falsos apóstolos, os quais, na reali- dade, insistindo na lei à parte de Cristo, alienavam o povo da graça da nova aliança, na qual o Senhor promete que haverá de gravar sua lei nas entranhas dos fiéis e lhas imprimir no coração [Jr 31.33]. Portanto, morta é a letra, e a lei do Senhor mata a seus leitores, quando não só se divorcia da graça de Cristo, mas ainda, não tangido o coração, apenas soa aos ouvidos. Se ela, porém, mediante o Espírito, é eficazmen- te impressa nos corações, se a Cristo manifesta, ela é a palavra da vida [Fp 2.16], a converter as almas, a dar sabedoria aos símplices etc. [Sl 19.7]. Ademais, ainda nessa mesma passagem [2Co 3.8], o Apóstolo chama sua prega- ção de ministério do Espírito, sem dúvida significando que o Espírito Santo de tal modo se junge a sua verdade que expressou nas Escrituras, que manifesta e paten- teia seu poder, onde então, afinal, se rende à Palavra a devida reverência e dignida- de. Tampouco isto contradiz o que foi dito pouco atrás: que a própria Palavra não nos é absolutamente certa, a não ser que seja confirmada pelo testemunho do Espí- rito. Pois o Senhor ligou entre si, como que por mútuo nexo, a certeza de sua Palavra e a certeza de seu Espírito, de sorte que a sólida religião da Palavra se implante em nossa alma quando brilha o Espírito, que nos faz aí contemplar a face de Deus, assim como, reciprocamente, abraçamos ao Espírito, sem nenhum temor de engano, quando o reconhecemos em sua imagem, isto é, na Palavra. De fato assim sucede. Deus não deu a conhecer aos homens a Palavra com vistas a apresentação mo- mentânea para que logo em seguida a abolisse com a vinda de seu Espírito; pelo contrário, enviou o mesmo Espírito, pelo poder de quem havia ministrado a Palavra, para que realizasse sua obra mediante a confirmação eficaz dessa mesma Palavra. Dessa forma, Cristo abriu o entendimento aos dois discípulos de Emaús [Lc 24.27, 45], não para que, postas de parte as Escrituras, se fizessem sábios por si mesmos, mas para que entendessem essas Escrituras. De modo semelhante Paulo, enquanto exorta aos tessalonicenses a que não extingam o Espírito, não os arrebata às alturas 104 LIVRO I jado compreender em forma sumária tudo quanto era próprio ser pelos homens co- nhecido a respeito dele, diz: “Senhor, Senhor, Deus misericordioso e clemente, pa- ciente e de muita compaixão, e veraz, que guardas a misericórdia para com milha- res, que removes a iniqüidade e as transgressões, diante de quem o inocente não será inocente, que aos filhos e netos atribuis a iniqüidade dos pais” [Ex 34.6, 7], onde notamos que se proclamam reiteradamente ser duas vezes magnífico aquele seu nome, a eternidade kaiv auvtousi,an [kaí autousían – e existência própria], então evocam-se suas virtudes, mediante as quais nos é descrito não quem ele é em si, mas, antes, que ele é em relação a nós, de sorte que este conhecimento dele consista mais de viva experiência do que de vazia e leviana especulação. Na verdade, ouvi- mos enumerarem-se aqui suas mesmas virtudes que assinalamos luzirem no céu e na terra: clemência, bondade, misericórdia, justiça, juízo, verdade. Ora, virtude e poder estão contidos no designativo Elohim. Aliás, com estes mesmos epítetos os profetas o caracterizam, quando querem exalçar plenamente seu santo nome. Para que não sejamos compelidos a compendi- ar muitas referências, baste-nos por ora apenas o Salmo 145, no qual se recenseia de modo tão preciso a suma de todas suas virtudes, que nada parece omitir-se. Logo, com a experiência por mestra, sentimos Deus ser tal qual se declara na Palavra. Em Jeremias, onde sentencia em que moldes ele quer ser conhecido por nós, Deus propõe uma descrição não tão completa como essa, entretanto tal que redunda claramente nisto mesmo: “Quem se gloria”, diz ele, “glorie-se nisto: que me conhe- ça como o Senhor, que faço misericórdia, juízo e justiça na terra” [Jr 9.24]. Certa- mente que nos é sobretudo necessário conhecer estas três coisas: a misericórdia, na qual repousa unicamente a salvação de todos; o juízo, o qual exerce quotidianamen- te contra os malfeitores, e, ainda mais severamente, lhes reserva a eterna ruína; a justiça, pela qual os fiéis são preservados e mui benignamente assistidos. Sendo conhecidas estas três coisas, a profecia atesta que tens farta matéria pela qual te possas gloriar em Deus. Contudo, tampouco com isso se omite sua verdade, nem seu poder, nem sua santidade, nem sua bondade. Pois, como se poderia evidenciar o conhecimento que aqui se requer de sua justiça, misericórdia e juízo, a não ser que se calcasse em sua verdade inflexível? E como se poderia crer que ele governa a terra em juízo e justiça, salvo se seu poder for compreendido? Donde, porém, a misericórdia, senão da bondade, se por fim todos os seus caminhos são misericór- dia, juízo e justiça, neles também até sua santidade é evidente. Portanto, o conhecimento de Deus que na Escritura nos é proposto não visa a outro escopo que aquele que refulge gravado nas criaturas, isto é, nos convida, em primeiro lugar, ao temor de Deus; em seguida, à confiança nele, para que, na verda- de, aprendamos a cultuá-lo não só com perfeita inocência de vida, mas ainda com obediência não fingida, e então a dependermos totalmente de sua bondade. 105CAPÍTULO X 3. OS IDÓLATRAS SÃO INESCUSÁVEIS ANTE A NOÇÃO GENERALIZADA DA UNICI- DADE DE DEUS Aqui, porém, o propósito é compendiar uma síntese da doutrina geral. E obser- vem os leitores, primeiramente, que de fato a Escritura, para dirigir-nos ao Deus verdadeiro, exclui e rejeita expressamente a todos os deuses dos povos, pois ao longo de quase todos os séculos a religião foi a cada passo adulterada. Por certo é verdadeiro que tem sido conhecido e celebrado, por toda parte, o nome do Deus único. Ora, mesmo os que adoravam ingente multidão de deuses, quantas vezes têm falado de acordo com o genuíno senso da natureza, têm usado simplesmente o ter- mo Deus, como se um Deus único lhes fosse bastante. E isto assinalou com muita propriedade Justino, o mártir, o qual, a este propósito, compôs um livro, A Monar- quia de Deus, no qual, mediante numerosíssimos testemunhos, mostra ter sido im- pressa no coração de todos a unicidade de Deus. Tertuliano também prova o mesmo à base de linguagem comum. Mas, visto que, em decorrência de sua fatuidade, todos à uma foram ou arrasta- dos ou impelidos a falsas invenções, e com isso se lhes embotaram os sentimentos, tudo quanto em bases naturais sentiram a respeito do Deus único de nada lhes valeu, a não ser que ficassem inescusáveis. Ora, até os mais sábios dentre eles, todos põem à mostra o vaguear sem rumo da própria mente, quando anseiam a que sejam assis- tidos por um Deus, não importa quem seja ele, e dessa sorte invocam em suas preces a deidades incertas. Acrescenta que, ao imaginarem ser múltipla a natureza de Deus, ainda que sentissem menos absurdamente do que o vulgo rude sentia acerca de Júpiter, Mercúrio, Vênus, Minerva, entre outros mais, também eles próprios não foram imunes às enganosas sutilezas de Satanás. E já o dissemos em outro lugar, todos e quaisquer subterfúgios que os filósofos têm argutamente imaginado, não lhes diluem o crime de apostasia, senão que evidenciam que a verdade de Deus foi corrompida por todos eles. Por esta razão, Habacuque, que condenou a todos os ídolos, ordena que bus- quem a Deus em seu templo [2.20], para que os fiéis não admitissem outro Deus senão aquele que se revelara por meio de sua Palavra. 106 LIVRO I C A P Í T U L O XI É UMA ABOMINAÇÃO ATRIBUIR FORMA VISÍVEL A DEUS, E GERALMENTE SE APARTAM DO DEUS VERDADEIRO QUANTOS ESTABELECEM ÍDOLOS PARA SI 1. REPRESENTAR A DEUS ATRAVÉS DE IMAGENS É CORROMPER-LHE A GLÓRIA Como, porém, a Escritura, levando em conta o parvo e tacanho entendimento hu- mano, costuma expressar-se de maneira acessível à mente popular, quando tem em mira distinguir dos falsos o Deus verdadeiro, contrasta-o especialmente com os ídolos, não que, em assim fazendo, aprove o que, mais sutil e elegantemente, ensi- nam os filósofos, mas, antes, para que melhor exiba a estultícia do mundo; mais do que isso, sua completa loucura, enquanto, ao buscar a Deus, a todo tempo cada um se apega a suas próprias especulações. Portanto, essa definição exclusiva, a qual, em referência à unicidade de Deus, por toda parte se manifesta, reduz a nada tudo quanto os homens, segundo a própria cogitação, engendram para si acerca da divindade, porquanto somente Deus é teste- munha idônea de si próprio. Enquanto isso, já que este degradante embrutecimento se apossou de todo o orbe, de tal modo que os homens buscassem representações visíveis de Deus, e por isso forjassem deuses da madeira, da pedra, do ouro, da prata, ou de outro qualquer material inanimado e corruptível, a este princípio temos de apegar-nos: sempre que é lhe atribu- ída qualquer representação, a glória de Deus é corrompida por ímpio engano. E assim na lei, após haver arrogado unicamente para si a glória da Deidade, quando visa a ensinar que gênero de adoração aprova, ou repudia, Deus acrescenta de imediato: ‘Não farás para ti imagem esculpida, nem qualquer semelhança” [Ex 20.4], palavras com as quais nos coíbe o desenfreamento, para que não tentemos representá-lo por meio de qualquer figura visível. E enumera, de maneira sucinta, todas as formas mediante as quais, já desde outrora, a superstição começara a converter sua verdade em mentira. Ora, sabemos que o sol fora adorado pelos persas. Também, tantas quantas es- trelas as pessoas estultas divisavam no céu, outros tantos deuses para si inventavam. Quase não houve animal algum que para os egípcios não se convertesse em repre- sentação de alguma divindade. Os gregos, verdade seja dita, pareceram exceder em sabedoria aos demais, pois adoraram a Deus sob forma humana.34 Entretanto, Deus 34. Maximus Tyrius Platonicus, Ser. 38.
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