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Guias e Dicas
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Augusto comte e o positivismo, Notas de estudo de História

AUGUSTO COMTE E O POSITIVISMO

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 08/04/2010

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Baixe Augusto comte e o positivismo e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! 319 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 34, p. 319-343, out. 2009 Gustavo Biscaia de Lacerda AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS Recebido em 11 de agosto de 2009. Aprovado em 30 de agosto de 2009. I. INTRODUÇÃO É mais ou menos consensual no âmbito das Ciências Sociais que a palavra “Positivismo” tem um significado negativo, assim como que já pos- suiu um significado positivo. Acompanhar a mu- dança de valoração dessa palavra é historiar uma parte importante da história das Ciências Sociais no Brasil e no mundo ao longo do século XX e início do século XXI. Por outro lado, o conteúdo desse “Positivismo” não é algo consensual nem muito menos preciso, variando desde a equiva- lência à reação política da burguesia (com Lênin) até à razão instrumental que desumaniza (com a Escola de Frankfurt); no Brasil, também são fre- qüentes as afirmações de que “os positivistas” estiveram na raiz do regime militar de 1964. De lambujem, afirma-se que o Positivismo Jurídico, o Comportamentalismo psicológico, o Positivismo na História são variações, ou melhor, aplicações do Positivismo original, vinculado à Filosofia e à Sociologia. Em quaisquer dessas hipóteses, a origem do “Positivismo” é atribuída ao francês Augusto Comte (1798-1857), autor dos famosos Système Neste ensaio abordamos algumas pesquisas que, nos últimos dez anos ou mais, têm recuperado a obra do fundador do Positivismo, Augusto Comte. Essa recuperação consiste em perceber os trabalhos de Comte em sua inteireza e a partir de sua lógica interna, enfatizando em particular a sua segunda grande obra, o Système de politique positive (1851-1854), e as suas contribuições para a reflexão social e política contem- porânea. A fim de tornar inteligível a novidade dessas novas pesquisas, apresentamos uma das narrativas- padrão a respeito de Comte e do Positivismo – no caso, a partir dos escritos de Anthony Giddens –; além disso, fazemos uma discussão sobre o significado da palavra “Positivismo” e as várias correntes teóricas subsumidas em tal expressão. PALAVRAS-CHAVE: Positivismo; Augusto Comte; Système de politique positive; Anthony Giddens; Círculo de Viena. FÉDI, Laurent. 2008. Comte. São Paulo: Estação Liberdade. GRANGE, Juliette. 1996. La philosophie d’Auguste Comte. Science, politique, religion. Paris : PUF. TISKI, Sérgio. 2007. A questão da moral em Augusto Comte. Londrina: UEL. de philosophie positive (1830-1842) e Cathéchisme positiviste (1852) e dos menos famosos Système de politique positive (1851-1854), Appel aux conservateurs (1855) e Synthèse subjective (1856), além de algumas outras publicações menores e de extensa correspondência. A relação que se esta- belece entre a filosofia do francês Comte – cha- mada de “filosofia positiva” ou “Positivismo” – e as várias correntes denominadas de “Positivismo” baseia-se em diversas possibilidades: a primeira, claro, é a identidade de nome em diversas situa- ções; em seguida, alguns vínculos históricos (te- óricos e políticos) entre eles; por fim, mera ex- tensão ou ampliação de sentido. Além disso, a crer em alguns abalizados pesquisadores da história da Sociologia – pensamos em Anthony Giddens –, há mais continuidades que rupturas entre uma forma e outra, sendo possível caracterizar o se- gundo como um prenúncio do primeiro. Essa caracterização é tanto mais incorreta quanto a influência exercida pelo “Positivismo” “filosófico” no Brasil foi enorme: basta pensar na constante referência ao lema da bandeira nacio- nal, o “Ordem e Progresso”. Ora, passar de uma influência tal que permitiu a inscrição no pavilhão 320 AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS nacional do lema do “Positivismo” “filosófico” para a confusão corrente e a subsunção dessa “varie- dade” de “Positivismo” ao “intelectual” revela muito não apenas dos hábitos intelectuais brasilei- ros quanto indica os descaminhos da história das Ciências Sociais e da História das Idéias, de modo geral, ao longo do século XX. As vinculações indicadas acima constituem uma sugestão teórica – uma hipótese de pesquisa –, que começaria com a leitura do texto original de Comte e avançaria pelas diversas correntes auto ou heterodenominadas de “positivistas”, passan- do pelos críticos do “Positivismo”. Esse percur- so não apresenta nenhuma grande inovação metodológica, consistindo apenas no exame das perspectivas teóricas e metodológicas de uma extensa literatura filosófica e sociológica: todavia, é curioso que ele não seja realizado, sendo mes- mo desprezado. Um passar de olhos em parte importante da literatura teórica das Ciências Soci- ais contenta-se 1) em estabelecer a relação entre Comte e os demais “positivismos” a partir da co- incidência de nomes e 2) em repetir lugares-co- muns a respeito do “Positivismo” (em particular com um juízo de valor negativo). Embora tais relatos, de boa ou de má-fé, pos- sam multiplicar-se bastante, é digno de nota que diversos pesquisadores, em vários países, têm investigado diretamente a obra de Comte e chega- do à conclusão simples de que a maior parte das relações entre o Positivismo comtiano e os “positivismos” atuais consiste apenas em coinci- dência terminológica. Neste ensaio bibliográfico trataremos de algu- mas das mais representativas dessas pesquisas que recuperam o pensamento original de Comte: de Laurent Fédi, Comte (2008); de Juliette Grange, La philosophie d’Auguste Comte. Science, politique, religion (1996), e, de Sérgio Tiski, A questão da religião em Augusto Comte (2008). Preocupados com questões diversas mas coinci- dindo em aspectos importantes, esses livros ca- racterizam-se pelo fato de tomarem como objeto de análise o pensamento de Comte em si mesmo, sem deixarem de apresentar diálogos com ques- tões atuais e sem deixarem de lado perspectivas “críticas”. “Recuperar” o pensamento de Comte é impor- tante por outro motivo, além de fazer justiça ao fundador da Sociologia em pesquisas de Teoria Política e Social. Considerando que o grande arquiinimigo de várias das principais correntes teóricas nas Ciências Sociais é, precisamente, o “Positivismo”, recuperar e discutir o pensamento do próprio Comte é participar de maneira mais adequada, porque mais qualificada, das polêmi- cas teórico-metodológicas e políticas contempo- râneas. Além disso, retirada a extensa camada crí- tica sobreposta à obra comtiana, é possível per- ceber que, de fato, essa obra apresenta elementos efetivos para os debates teóricos, metodológicos e políticos atuais. Dessa forma, antes de discutirmos os livros indicados acima, é necessário examinarmos duas outras questões, intimamente relacionadas: 1) quais e o que são os “positivismos”? 2) Do que o “Positivismo” é acusado? Essas questões não são secundárias; considerando que desde há algumas décadas o “Positivismo” é “outro” teórico contra o qual por assim dizer todos batem-se, variados sentidos do “Positivismo” produzem variadas im- plicações. Este artigo terá a seguinte estrutura. Como o presente tema é a recuperação da obra de Comte, em um primeiro momento examinaremos algumas formas usuais de abordá-lo nas Ciências Sociais – em particular, na obra de Anthony Giddens, que apresenta um caráter paradigmático a respeito. O exame das exposições de Giddens servirá como fio condutor para uma outra discussão: o exame das variedades do “Positivismo”, ou seja, a deter- minação do que se entende por essa palavra nos debates das Ciências Sociais. Esse procedimento facilitará a compreensão e a avaliação de algumas das recentes obras que têm recuperado o pensa- mento comtiano; por fim, faremos alguns con- clusões gerais. II. UM ANTIPOSITIVISTA PARADIGMÁTICO: GIDDENS Como indicamos acima, não é novidade que a palavra “Positivismo” atualmente carrega um va- lor semântico bastante negativo. Entre a confu- são terminológica a respeito da palavra “Positivismo” e a crítica mais ou menos informa- da a respeito de Comte, várias são as correntes teóricas que se encarrega(ra)m de combatê-lo, a partir das mais variadas perspectivas, entre as quais podemos citar o marxismo, o pós-modernismo, a Sociologia Compreensiva. Como é evidente, cada uma delas mobiliza diferentes pressupostos filo- 323 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009 Philosophie foi redigida em um estilo sóbrio e al- tamente impessoal, embora a vida pessoal e pro- fissional de Comte estivesse profundamente atri- bulada, a Politique foi redigida de maneira pesso- al e “apaixonada”, indicando uma grande altera- ção pessoal e profissional e, do ponto de vista te- órico, uma inflexão importante (GIDDENS, 2000, p. 223). O curioso, quase chocante, é que essa indicação notável é uma exceção em um artigo profundamente antipático; mas como ninguém é obrigado a ter simpatia por ninguém, a questão importante é outra: a antipatia de Giddens é “justificada” por deturpações e más-interpretações reiteradas. Comecemos por um mito bastante difundido: a “loucura” de Comte. Giddens fala em “vida des- regrada” (idem, p. 217), “períodos de loucura” (no plural) (idem, p. 218), “estranhos excessos” da Politique (idem, p. 221), “decadência melan- cólica de um grande intelecto” (ao referir-se no- vamente à Politique) (Stuart Mill apud GIDDENS, 2000, p. 223). Essas quatro observações – devi- damente feitas sem referências bibliográficas – causam a profunda impressão de que a obra de Comte, em particular a de sua fase mais madura, foi o resultado da especulação de um lunático. Isso é um recurso retórico próximo ao sofisma ad hominem, em que a argumentação teórica e empírica é substituída pela crítica ao autor; além disso, esse procedimento é particularmente espe- cioso, porquanto inúmeros pensadores e teóricos das Ciências Sociais foram “loucos”, “desregra- dos”, mau-caracteres ou simplesmente tiveram sérios problemas emocionais e psicológicos. Ve- jamos alguns: o atualmente tão festejado Friedrich Nietzsche era louco ou catatônico, alternando fa- ses mais ou menos lúcidas a longos períodos anor- mais; Karl Marx tinha esposa e amante e estupra- va ambas, além de difundir mentiras a respeito de seus inimigos políticos para desmoralizá-los7; Max Weber teve um colapso nervoso e desde cerca de 1900 até sua morte, em 1920, esteve incapaz de lecionar oficialmente (embora extra-oficialmente tenha lecionado em diversas instituições do mun- do germanófono); John Stuart Mill passou por uma severa depressão no meio de sua carreira intelec- tual; foram suicidas ou homicidas Roland Barthes, Nicos Poulantzas e Louis Althusser; Georg Lukács abjurou inúmeras vezes perante Stálin e sua cor- te; Sartre fazia da promiscuidade sexual e intelec- tual um valor moral e político; last but not the least, não podemos esquecer os nazistas Carl Schmidt e Martin Heidegger, que, após a queda do III Reich, encerraram-se em silêncios obse- quiosos mas sem jamais renegarem os passados nacional-socialistas. Esses dados biográficos cos- tumam aparecer apenas a título de introdução bi- ográfica quando tratamos de cada um dos auto- res em questão, mas um exame aprofundado das condições de sanidade dos teóricos sociais ainda está por ser feito – exame que, como se pode perceber, não é nem um pouco ocioso, tal a inci- dência de problemas ou distúrbios psicológicos ou emocionais. A despeito dos problemas de to- dos esses autores, os comentadores, exegetas e discípulos de variados estilos não costumam le- var em consideração tais aspectos biográficos, pois assumem que não interferem na produção teórica ou até mesmo que, se interferirem, não têm im- portância negativa para a sua validade intelectual. Assim, apresenta-se com clareza a seguinte ques- tão: por que a gritante duplicidade de critérios em que se considera que a “loucura” de Comte é pre- judicial mas os sérios problemas emocionais e psicológicos de todos os demais autores não o é? Parece-nos que a resposta é simples: além de sim- ples hipocrisia, trata-se do recurso sistemático ao já citado sofisma ad hominem como estratégica retórica para desqualificar o pensamento de Augusto Comte8. Mas, a despeito de sua irrelevância para a prá- tica intelectual, é importante considerar a tese da loucura em si mesma, pelo que ela revela e devido às clivagens que surgem a partir dela na avaliação da obra de Comte; para isso, é necessário apre- sentarmos um pequeno resumo biográfico do pen- sador francês. 7 Referências úteis sobre a biografia de Marx podem ser encontradas nas obras dos anarquistas, adversários políti- cos e teóricos de Marx quando este vivia; cf., por exemplo, Bakunin (2001). 8 Talvez a observação acima cause espanto ou estranheza. Mas, parece-nos, isso é mais devido a uma sistemática ausência de uma Sociologia das Ciências Sociais que por qualquer outro motivo. De qualquer forma, tal empreendi- mento não seria difícil de realizar: do ponto de vista teóri- co-metodológico, uma combinação entre alguns estudos de Pierre Bourdieu (2004) e de Quentin Skinner (2002, espe- cialmente cap. 2-6) permitiriam um excelente ponto de partida. 324 AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS Tendo nascido em 1798 em Montpellier, no Sul da França, Augusto Comte foi sozinho para Paris durante a adolescência para estudar na École Polytechnique. Devido a problemas políticos, foi expulso desse estabelecimento, voltou por um curto período para Montpellier e fixou residência, afinal, em Paris em 1816. Para manter-se, lecio- nava Matemática como professor particular e, durante alguns anos, foi secretário de Saint-Simon; ainda assim, sua vida era financeiramente austera e sua disciplina intelectual, bastante rigorosa. Eis que, em 1825, casou-se com Carolina Massin; essa moça, inteligente e um pouco mais jovem que o próprio Comte, era uma prostituta a quem o pen- sador, solitário em Paris, resolveu auxiliar via ca- samento (em caso contrário, ela seria presa devi- do às suas atividades profissionais), esperando uma retribuição na forma de companheirismo e, claro, fidelidade. É perfeitamente possível afirmar que tal ação foi um excesso romântico: mas, em- bora o procedimento de Comte tenha sido eviden- temente ingênuo, em si não foi ruim, ou melhor, não representou demência, loucura ou desequili- bro mental, mas simples inexperiência de vida, além de indicar generosidade pessoal. Carolina Massin, todavia, não correspondeu aos anseios de Comte, pois que sistematicamente o traía, retornando aos seus hábitos profissionais anteriores; da mesma forma, ela insistia em que Comte deveria usar seus talentos intelectuais para ganhar dinheiro, sem maiores preocupações com o projeto intelectual que ele desenvolvia. Essa situação tornou-se in- sustentável e, em meados de 1826, a combinação da penúria material com o descaso intelectual e as traições da esposa, além dos esforços intelectuais próprios – em 1826 Comte deu início à apresen- tação oral e pública do seu Curso de filosofia po- sitiva –, resultaram em um sério esgotamento ner- voso, que chegou ao ponto de uma tentativa de suicídio. Nos dois anos seguintes Comte recupe- rou-se paulatinamente desse episódio, retomou suas atividades e, em 1830, iniciou a publicação da Philosophie, projeto que só se completou em 1842, quando se separou de Carolina Massin (em- bora restrita à separação de corpos e mantendo uma pensão vitalícia). Ao longo da década de 1840, Comte estava sozinho e com suas dificuldades financeiras, ao mesmo tempo que se preparando para avançar em suas elaborações intelectuais. Enquanto descan- sava e refletia para o que seria a sua Politique, conheceu a irmã de um de seus alunos em 1844: Clotilde de Vaux. Essa moça, com cerca de 30 anos de idade, tinha uma situação marital seme- lhante à de Comte, pois que fora abandonada por um marido devedor e caloteiro – e, assim, fugiti- vo da polícia. Comte apaixonou-se por ela, man- tendo um relacionamento platônico a partir de 1845; ela, de início assustada, paulatinamente pas- sou a respeitar e até a corresponder ao afeto. Com tuberculose, em 1846 Clotilde de Vaux faleceu. Esse breve e intenso relacionamento marcou uma inflexão fundamental na obra de Comte, que a partir dali passou a enfatizar mais os sentimentos e me- nos a inteligência; ou melhor, subordinou a inteli- gência aos estímulos afetivos (altruístas ou ego- ístas). Não somente ocorreu um redirecionamento teórico como a própria produção de Comte inten- sificou-se: em 1848 ele redigiu dois livros, Discours sur l’esprit positive (COMTE, 1990) e o Discours sur l’ensemble du Positivisme (COMTE, 1957)9; depois, entre 1851 e 1854 redigiria os quatro vo- lumes da Politique (COMTE, 1890); em 1853, o Cathéchisme positiviste (COMTE, 1934); em 1855, o Appel aux conservateurs (COMTE, 1899) e, em 1856, o volume I e único dos quatro planejados da Synthèse subjective (2000b), além de sua ex- tensa correspondência. Essa fase marca a afir- mação do “método subjetivo” e da criação da Re- ligião da Humanidade. A passagem do Positivismo “filosófico” para o “religioso” produziu dissensões ou “deserções”, como a indicada por Giddens a respeito de Stuart Mill (apud GIDDENS, 2001, p. 223): “decadên- cia melancólica de um grande intelecto”. Comte morreu prematuramente em 1857, deixando seus bens (aí incluídos os direitos autorais de suas obras) para um grupo de 13 executores- testamenteiros. Logo em seguida, a viúva, Caroli- na Massin, procurou leiloar todos os bens de Comte e anular o testamento, o que iniciou um processo judicial que se estendeu até 1870. Esse processo visava a permitir que Massin editasse as obras de Comte, retirando as várias referências elogiosas a Clotilde de Vaux e as referências nega- tivas a ela própria; além disso, em associação com o ex-discípulo de Comte, o dicionarista Littré, pretendia permitir a publicação apenas do que fora escrito durante a convivência conjugal (essenci- almente a Philosophie), classificando, não por 9 O Discours sur l’ensemble seria incorporado ao volu- me I da Politique, a título de “Prefácio geral”, em 1851. 325 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009 acaso, de “produto de loucura” tudo aquilo que foi escrito depois da separação conjugal. O resul- tado desse longo litígio foi que, com base em lau- dos médicos, em testemunhos e na análise do tes- tamento, a Justiça da França deu ganho de causa aos executores-testamenteiros, recusando assim a tese da loucura (cf. LACERDA NETO, 2004, p. 211-219). Retomando a discussão anterior: o que Giddens (2001) faz, ao retomar o tema da loucura de Comte, é adotar um discurso que visa a desqualificar de maneira rápida e superficial a obra religiosa de Comte, pois que não a examina em momento algum, e reduzindo o corpus comtiano à Philosophie – e, ainda por cima, a partir de um relato sórdido10. II.3. Filosofia das Ciências Vimos acima que várias das opiniões atribuí- das por Giddens a Comte não procedem; essas opiniões supostamente se refeririam à obra valo- rizada com a acusação de loucura, ou seja, refe- rem-se à Philosophie. Em que consistiu essa vo- lumosa obra escrita em 12 anos e seis volumes? Em um exame sistemático das ciências abstratas constituídas até então, de acordo com a “escala enciclopédica” de Comte; a seqüência seria a se- guinte: Matemática, Astronomia, Física, Química e Biologia. Esse exame das ciências não era um fim em si mesmo, mas um meio para um fim ambicioso: a constituição da ciência da socieda- de, inicialmente chamada de “Física Social” e de- pois renomeada para “Sociologia”. Os três pri- meiros volumes foram dedicados a essa progres- são de ciências preliminares; já os três últimos trataram da definição do objeto e do método da nova ciência, incluindo aí as tentativas anteriores e as principais questões teóricas (especificamen- te, a Estática e a Dinâmica sociais). Convém notarmos que, a propósito da mudan- ça de nome da Sociologia, Giddens afirma que foi devida ao projeto de estatística social de Quetélet, vista por Comte “com desdém” (GIDDENS, 2001, p. 222). A referência à proposta de matematização da sociedade é correta, mas o “desdém” afirmado por Giddens sugere algo como ciúme profissio- nal, ou seja, uma motivação mesquinha, além de intelectual e teoricamente pobre. Essa insinuação é incorreta: ao insistir em seu projeto específico de ciência da sociedade, a preocupação de Comte era preservar a especificidade teórico-metodológica da Sociologia, indicando que ela é irredutível às demais ciências tanto em termos de objeto quanto de método – o que, no caso da proposta de Quételet, a intenção era evitar que a ciência social fosse reduzida, desde o início, à sociometria. Mais ainda: em vez de a Sociologia (e, por extensão, as Ciências Humanas) dever subordinar-se às Ciên- cias Naturais, seriam estas que deveriam subordi- nar-se teoricamente à Sociologia, a partir de uma perspectiva que hoje chamaríamos de transdisciplinar, radicalmente humanista (esse é o sentido da “síntese subjetiva” de Comte). A Politique assume que a Sociologia já foi cri- ada e, a partir disso, consiste em um aprofundamento sistemático dessa perspectiva humanista (COMTE, 1890, v. I, Préface; v. III, Préface), por assim dizer “subjetivista” e “qualitativista”, das teorias sociológicas. Tal aprofundamento considera, por um lado, as insti- tuições comuns a todas as sociedades humanas (religião, família, linguagem, propriedade, gover- no) – é a Estática Social, apresentada no volume II – e as mudanças por que essas instituições pas- saram ao longo da história e suas inúmeras interações (“reflexivas”, para usar o jargão de Giddens) – é a Dinâmica Social, do volume III da Politique. O volume I da Politique apresenta, em suma, considerações epistemológicas diversas; já o volume IV apresenta um quadro geral do que seria a sociedade ideal, em que o ser humano pode realizar-se ao máximo de acordo com as suas potencialidades reveladas historicamente: é, lite- ralmente, a utopia positivista. Nesses livros Comte discute concepções de justiça social, de liberda- des públicas e assim por diante (cf., por exemplo, LACERDA, 2004; 2008a; 2008b; 2009a). Essa digressão foi necessária para indicar qual o sentido dos relatos de Giddens: é afirmar um Augusto Comte “cientificista”, “naturalista”, mes- mo “quantitativista”. Veremos em detalhes na pró- xima seção que, para Giddens, qualquer “Positivismo” tem necessariamente tais caracte- rísticas; aqui ainda importa contrapor algumas das 10 Pode parecer estranho o uso de expressões como “sór- dido” em um artigo científico de Teoria Social; entretanto, não apenas não é possível qualificar de outra forma o epi- sódio como, por outro lado, o próprio Comte afirmava que não se pode conhecer a realidade social sem a referência a valores (COMTE, 1890, v. II, cap. 1, 4); por fim, a com- preensão das várias fases da carreira comtiana não é possí- vel sem a adoção de juízos de valor (como mesmo Giddens implicitamente admite). 328 AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS 6. Positivism6 is a theory of knowledge according to which the natural science of sociology consists of the collection and statistical analysis of quantitative data about society (Durkheim). 7. Positivism7 is a theory of meaning, combining phenomenalism and logicistic method, and captured by the principle of verifiability, according to which the meaning of a proposition consists in its method of verification (logical positivism1). 8. Positivism8 is a programme for the unification of sciences both syntactically and semantically (logical positivism2). 9. Positivism9 is a theory of knowledge according to which science consists of a corpus of interrelated, true, simple, precise and wide-ranging universal laws that are central to explanation and prediction in the manner described in the D-N [deductive- nomological] schema (Hempel). 10. Positivism10 is a theory of knowledge according to which science consists of a corpus of causal laws on the basis of which phenomena are explained and predicted. 11. Positivism11 is a theory of scientific method according to which science progresses by inducting laws from observational and ex- perimental evidence (Bacon). 12. Positivism12 is a theory of scientific method according to which science progresses by conjecturing hypotheses and attempting to refute them, so that false conjectures are eliminated and corroborated ones retained (Popper)” (idem, p. 114-115; sem grifos no original)12. A relação acima é bastante esclarecedora; em- bora apresente alguns problemas sérios13, Halfpenny esclarece que há inúmeras formas de “Positivismo” que não se referem (diretamente) a Augusto Comte – no caso, oito em 12, isto é, dois terços. Além dos sentidos 1 a 4, poderíamos tam- bém incluir na rubrica comtiana o nono, relativo às leis naturais. Parece claro que a relação acima está longe de esgotar o assunto; além dos sentidos habituais re- lativos à Sociologia e à Filosofia das Ciências, po- demos incluir alguns outros. Nesse sentido, é ne- 12 No original, essa relação consiste de apenas um único e longo parágrafo, que dividimos para facilitar a compreen- são. Tradução livre: “O Positivismo 1 é uma teoria da his- tória em que os desenvolvimentos do conhecimento são tanto o motor da história quanto a fonte da estabilidade social (Comte 1). O Positivismo 2 é uma teoria do conheci- mento de acordo com a qual o único tipo são de conheci- mento disponível para a humanidade é o da ciência baseada na observação (Comte 2). O Positivismo 3 é uma tese da unidade da ciência segunda a qual todas as ciências podem ser integradas em um único sistema natural (Comte 3). O Positivismo 4 é uma religião secular da Humanidade devo- tada à veneração da sociedade (Comte 4). O Positivismo 5 é uma teoria da história em que o motor do progresso que garante o surgimento de formas superiores de sociedade é a competição entre indivíduos crescentemente diferenciados (Spencer). O Positivismo 6 é uma teoria do conhecimento de acordo com a qual a ciência natural da Sociologia consis- te na coleção e na análise estatística de dados quantitativos sobre a sociedade (Durkheim). O Positivismo 7 é uma teo- ria do significado, combinando métodos fenomenológicos e lógicos e obtida pelo princípio da verificabilidade, de acor- do com o qual o significado de uma proposição consiste em seu método de verificação (Positivismo Lógico 1). O Positivismo 8 é um programa para a unificação das ciênci- as, tanto sintática quanto semanticamente (Positivismo Lógico 2). O Positivismo 9 é uma teoria do conhecimento de acordo com a qual a ciência consiste em um corpus de leis universais interrelacionadas, verdadeiras, simples, pre- cisas e de amplo alcance que são centrais para a explicação e para a previsão, à maneira descrita pelo esquema DN [dedutivo-nomológico] (Hempel). O Positivismo 10 é uma teoria do conhecimento de acordo com a qual a ciência consiste em um corpus de leis causais, a partir dos quais os fenômenos são explicados e previstos. O Positivismo 11 é uma teoria do método científico de acordo com a qual a ciência progride por meio de leis indutivas a partir de pro- vas observacionais e experimentais (Bacon). O Positivismo 12 é uma teoria do método científico de acordo com a qual a ciência progride conjecturando hipóteses e tentando refutá- las, de modo que as conjecturas falsas são eliminadas e as corroboradas são retidas (Popper)”. 13 Por exemplo: afirmar que a Sociologia de Durkheim é particularmente quantitativa, o que é verdade em particular para O suicídio, mas deixando de lado todas as demais grandes obras (A divisão do trabalho social, As formas elementares da vida religiosa e mesmo As regras do método sociológico). No que se refere a Comte, podemos indicar o seguinte: na definição 1, o que garante a estabilidade social não é o conhecimento (de uma perspectiva estritamente intelectual), mas os sentimentos (em particular, os altruístas); na definição 3, a escala enciclopédica é concluída pela Sociologia e pela Moral e são elas que devem orientar esse conjunto; na definição 4, o objeto de culto da Religião da Humanidade não é a “sociedade”, mas uma abstração relativa ao conjunto dos seres humanos altruístas, historicamente constituída. 329 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009 cessário distinguirmos duas variedades “discipli- nares” de Positivismo que guardam poucas rela- ções com o que nos interessa aqui; são elas o Positivismo Jurídico e o Histórico. O primeiro, também chamado de “Juspositivismo”, é obra do austríaco Hans Kelsen, que no início do século XX afirmou, grosso modo, que as fontes do Di- reito têm que ser buscadas apenas no próprio Di- reito14, excluindo-se as fontes extrajurídicas, como hábitos e costumes compartilhados, além de valores disseminados socialmente. Sem nos de- termos em uma extensa crítica a seu respeito, im- porta notar que essa perspectiva, se abre a possi- bilidade de uma Sociologia do Direito a partir da consideração do Direito como um sistema fecha- do em si mesmo, em seus próprios termos nega a possibilidade de considerar na prática o Direito como integrante de um sistema maior (o sistema social), que o informe com outros princípios juri- dicamente aplicáveis. Como veremos adiante com maiores detalhes, esse raciocínio não integra o pensamento comtiano, pois que este estava preo- cupado fundamentalmente em constituir um sis- tema de valores socialmente compartilhado capaz de regular as relações sociais e dirimir os confli- tos sociais; secundariamente, convém notar que Augusto Comte simplesmente não tratou do Di- reito e as suas referências aos juristas eram, de modo geral, negativas, devido ao caráter metafísico deles, que negava precisamente as con- siderações sociológicas15. O Positivismo na História seria aquela corren- te iniciada com a obra do historiador alemão Leopold von Ranke, que no século XIX definiu que “os documentos falam por si próprios”, con- sistindo o trabalho do historiador em apresentar os “fatos” indicados pelos documentos. Assim, além de carecer de interpretações e de hipóteses de fundo, essa historiografia caracterizar-se-ia por ser dedicada aos fenômenos políticos, isto é, aos atos dos “grandes líderes” e à vida (política) das nações, sem dúvida aí incluídas as guerras. O Positivismo comtiano afasta-se dessa modalidade em primeiro lugar porque a historiografia por ele sugerida não consiste, metodologicamente, na acumulação de fatos ou na ausência de hipóteses interpretativas; em segundo lugar, porque em ter- mos teóricos a historiografia proposta por Augusto Comte é de caráter sociológico, vinculada a “gran- des durações”: de fato, desde o início da carreira Comte afirmou que é necessário o pensamento social ultrapassar a crônica mais ou menos anedótica da vida política e passar para uma pers- pectiva totalizante da vida social (em que o políti- co não ocupa o nível fundamental) e em que os acontecimentos sociais engendram a si mesmos, continuamente, no método por ele denominado, com precisão, de “filiação histórica” (cf. COMTE, 1890, v. III; 1895; 1972). Nesse sentido, não é difícil de perceber nem de sugerir uma continui- dade teórico-metodológica entre Comte e a Esco- la dos Anais16. Enquanto as duas variedades de Positivismo acima indicadas são disciplinares, uma outra ver- tente é por assim dizer substantiva, isto é, consti- tui uma corrente filosófica, correspondendo aos sentidos 7 e 8 de Halfpenny: é o “Positivismo Ló- gico”, também conhecido por “Neopositivismo”, “Empirismo Lógico” e “Círculo de Viena”. De- marcar a diferença dessa corrente com o Positivismo comtiano exige maiores comentári- os. Antes de mais nada, enquanto a expressão “Cír- culo de Viena” indica a origem dos pensadores agru- pados em torno de um determinado projeto intelec- tual, “Empirismo Lógico” designa com grande pre- cisão o conteúdo desse projeto intelectual; já “Neopositivismo” é uma expressão menos descri- tiva e que apresenta o demérito de ser profunda- mente elusiva para o nosso presente fim. Na ver- dade, mesmo os “neopositivistas” desgostavam dessa expressão, tanto por ser pouco descritiva de suas preocupações intelectuais, como porque as remetia às idéias de Comte – com quem, aliás, não 14 Como o Direito escrito é o chamado “Direito Positivo”, a afirmação de que ele é a única fonte do Direito é o “positivismo jurídico”. 15 A confusão entre os positivismos, no presente caso, surge também por um outro motivo: o juspositivismo bate- se contra as várias escolas de Direito Natural, que são percebidas como ilegítimas e, segundo a terminologia comtiana, como metafísicas, isto é, inválidas. Entretanto, Comte não nega o Direito Natural para reduzir o Direito ao que está escrito: ele informaria pesadamente o Direito com a sua Sociologia e também, nos dias atuais, com a Antropologia. Para uma exposição pormenorizada do Positivismo Jurídico, cf. Bobbio (2001). 16 Para uma distinção mais pormenorizada sobre o Positivismo em História, cf. Reis (2004). 330 AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS mantinham grandes afinidades (cf. HALLER, 1990, p. 47)17. Além disso, o nome “Empirismo Lógico” esclarece as marcadas distâncias entre Comte e o Círculo de Viena, pelo apego deste grupo às ques- tões puramente empíricas somadas à análise lógica das expressões lingüísticas utilizadas no dia-a-dia e na ciência. Mais do que isso: o “Empirismo Lógi- co” esclarece a origem do senso comum acadêmi- co que atribui ao “Positivismo” a pesquisa dos “fa- tos puros”: embora descrever dessa forma o proje- to do Círculo de Viena seja redutor (e, até certo ponto, injusto), chegando ao ponto de constituir o sofisma do espantalho18, o fato é que a exigência de rigorosamente corresponder a toda afirmação um fato empírico é do Círculo de Viena, não de Comte (cf. DUTRA, 2005, seção 2.2). Há pontos de contato entre a obra de Comte e as idéias do Círculo de Viena, o que atrapalha um pouco a diferenciação: por exemplo, os sentidos 3 e 8, ou 2 e 9-12, da relação de Halpenny19. Isso permite que alguns autores – continuemos, para os presentes fins, com Giddens (cf. GIDDENS, 1998, p. 178) – a forçar os argumentos no senti- do de apresentar Comte como neopositivista avant la lettre20 . Nesse sentido, a definição de “Positivista” cos- tuma ser reduzida a algumas características: 1) a rejeição da teologia e da metafísica e 2) a afirma- ção da empiria (o que, em alguns casos ou em algumas versões, é tomada como a referência aos “fatos puros”); 3) como conseqüência das carac- terísticas anteriores, a afirmação da ciência como conhecimento verdadeiro da realidade. Essa defi- nição tripla, bastante comum e popular, na verda- de é superficial e redutora; um exame preliminar indica que, com um mínimo de rigor teórico e metodológico, pode-se englobar nela não apenas os assim chamados “positivistas” como todas aquelas linhas teóricas e metodológicas que valo- rizam a ciência, não se incomodam com a teolo- gia, rejeitam puras entidades abstratas e exigem a referência a “fatos” empíricos: em certo sentido, virtualmente todas as teorias sociológicas. Examinemos as características indicadas aci- ma, começando pela rejeição da teologia e da metafísica. A postura de Comte era de ultrapassar ambas essas formas de interpretar a realidade em favor da científica – ou, sendo mais específico, em favor da interpretação “positiva” da realida- de. Enquanto a teologia e a metafísica são absolu- tas, pesquisando questões inacessíveis ao ser hu- mano (de onde viemos? Para onde vamos? Qual a “essência” da vida e da realidade?), a positividade é relativa, isto é, percebe que tudo é relativo para e ao ser humano e, portanto, pesquisa apenas as relações entre seres e fenômenos: a partir daí, substitui a pesquisa das causas primeiras e finais pelas relações percebidas abstratamente entre fe- nômenos, ou seja, pelas leis. Mas ao advogar o conhecimento positivo da realidade, ao afirmar que a teologia e a metafísica são perspectivas irreais (no sentido de que não permitem um conhecimento da realidade), Comte não deixa de lado a perspec- tiva sociológica, isto é, histórica: para ele, teolo- gia e metafísica foram condições necessárias e, em seu momento, insubstituíveis no desenvolvi- mento do espírito humano; nesse sentido, devem ser respeitadas. Por outro lado, o conhecimento da realidade pode ser analítico ou sintético: pri- meiro analítico, referente a aspectos isolados da realidade, por meio da ciência; em seguida sintéti- 17 A página indicada acima cita uma carta escrita por Otto Neurath – um dos fundadores do Círculo de Viena, tanto em sua versão de 1909 quanto em segunda versão, vinte anos posterior – para Rudolph Carnap em que manifesta seu profundo desagrado com a obra de Comte – e, daí, seu repúdio ao adjetivo “positivista”. 18 O sofisma do espantalho consiste em simplificar ao extremo uma perspectiva filosófica ou um argumento – nesse movimento descaracterizando-o – para “refutá-lo”. 19 Vejamos novamente: 2) teoria do conhecimento, em que o único tipo são de conhecimento é a ciência baseada na observação; 3) tese da unidade da ciência, em que todas as ciências podem ser integradas em um único sistema natu- ral; 8) programa para a unificação das ciências, tanto sintá- tica quanto semanticamente; 9) teoria do conhecimento de acordo em que a ciência consiste em um corpus de leis universais interrelacionadas, segundo o modelo dedutivo- nomológico; 10) teoria do conhecimento, em que a ciência consiste em um corpus de leis causais; 11) teoria do méto- do científico, em que a ciência progride por meio de leis indutivas, com provas observacionais e experimentais; 12) teoria do método científico, em que a ciência progride conjecturando hipóteses e tentando refutá-las. 20 O seguinte comentário de Giddens é esclarecedor, nesse sentido: “Considerarei a influência de Comte apenas sob dois aspectos. As formas pelas quais seus escritos por Durkheim e a extensão em que as concepções de Comte obedeceram intelectualmente ao programa filosófico de- senvolvido pelo positivismo lógico” (GIDDENS, 1998, p. 178; sem grifos no original). Uma autora que segue essas propostas de Giddens é Alcântara (2008). 333 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009 da história como realização do espírito positivo”; 2) “a dissolução final da metafísica, intimamente ligada à idéia de superação da própria filosofia”; 3) “a existência de um claro e definido limite entre o factual, o ‘observável’, e o imaginário, ou o ‘fic- tício’”; 4) “o ‘relativismo’ do conhecimento cien- tífico”; 5) “o vínculo integral entre ciência e mo- ral e progresso material da humanidade” (idem, p. 181-182). Já comentamos, por outras vias, as características 1 a 3; falta tratar das duas últimas. Ao discutir o relativismo, como nos casos an- teriores, Giddens apresenta corretamente as linhas gerais do pensamento comtiano, apenas para torcê-lo nos detalhes, em direção àquilo que ele, Giddens, considera incorreto. Já vimos o sentido do “relativo” comtiano, que está em oposição ao “absoluto”: o ser humano não tem acesso às cau- sas (primeiras e finais) nem a supostas “essênci- as”; a única coisa passível de observação são re- lações entre fenômenos; tais relações são, por definição, as leis naturais. De acordo com Giddens, para Mach as “relações” são (ou devem ser) redutíveis a expressões matemáticas; obtidas es- sas expressões, as teorias são descartáveis, por serem inúteis; “apesar de isso diferir da visão de Comte, isso não está tão longe dela como pode parecer à primeira vista” (idem, p. 183), pois, “No positivismo de Comte, não era possível encontrar um lugar para o sujeito pensante: a psicologia nem mesmo aparecia na hierarquia das ciências e a noção de experiência subjetiva era encarada como uma ficção metafísica” (idem, p. 184). Deixando de lado o reiterado erro de imputar a Comte o projeto de matematização da sociedade e da análi- se sociológica, atribuir a Comte a negação da sub- jetividade humana é uma afirmação recorrente mas nem por isso correta. Comecemos pela lei dos três estados: ela afirma a capacidade humana de interpretar a realidade de acordo com diferentes princípios gerais, historicamente modificáveis; além disso, o conhecimento humano é um contí- nuo e eterno diálogo entre o interior (subjetivo) e o exterior (objetivo). Em termos epistemológicos, isso é um dos temas mais importantes e que, há séculos, oscila entre os objetivistas e os materia- listas, mas que, para Comte, não é possível resol- ver de maneira categórica em que medida a subje- tividade e a objetividade entram no conhecimento humano. Mas talvez seja a teoria da linguagem aquela parte das idéias comtianas que apresentam a refutação mais direta do comentário de Giddens: para Comte, a linguagem são os meios disponí- veis para o ser humano externar aquilo que está presente em seu interior (COMTE, 1890, v. II, cap. III); o que é esse “interior”? São sensações, sentimentos e idéias – em outras palavras, exata- mente aquilo a que se dá o nome de “subjetivida- de”, cuja existência, aliás, não é “metafísica”. Giddens também afirma que tanto Comte des- prezava os “indivíduos” e as capacidades huma- nas que nem chegou a incluir a Psicologia na sua escala enciclopédica, isto é, que a teria concluído na Sociologia. Ora, a escala enciclopédica de Comte não parou na Sociologia, mas avançou mais um degrau: como Giddens considera apenas a Philosophie para seus comentários sobre Comte, ignora a Politique, em cujos volumes II e III Comte afirma não apenas a necessidade de fundar uma ciência dedicada ao ser humano individualmente tomado – nos termos de Comte, a “Moral”, o que equivale, nos dias de hoje, à “Psicologia” –, como cria formalmente essa sétima ciência, acima da Sociologia. Convém notar que, se Comte não in- cluiu (inicialmente) a “Psicologia” na sua escala enciclopédica, foi porque a “Psicologia” de sua época (e mesmo muito do que há ainda hoje) era pura metafísica, a começar pelo “método” psico- lógico, que consistia na pura introspecção – em que o observador observava a si mesmo enquan- to usava suas outras faculdades mentais, de modo que ao mesmo tempo observava e era observado (cf. COMTE, 1972; LAZINIER, 2002)29. Da mes- ma forma, a última obra de Comte, a Synthèse subjective, teria quatro volumes, dos quais o se- gundo e o terceiro tratariam de modo específico do estudo do ser humano individualmente consi- derado: entretanto, Comte morreu após publicar o primeiro desses quatro volumes30. 29 Ainda assim, podemos indicar dois livros brasileiros dedicados à “Psicologia” baseada em Comte: Escobar (1979) e Coelho (1982). Além dessas duas obras teóricas, houve toda uma escola de Psicologia Clínica baseada em Comte, a partir das pesquisas do médico paulista Aníbal da Silveira. 30 Somando o recurso às leis naturais à “ausência” de Psicologia, Giddens conclui que a Sociologia de Comte não apenas não é “reflexiva” como faz um apelo à “desresponsabilização” individual e coletiva, isto é, políti- ca. Nessa tese, Giddens foi seguido por Alcântara (2008): em Lacerda (2009b) apresentamos arrazoados demonstran- do o erro de tais teses. Em todo caso, em Comte (1899, p. 45-60), afirma-se a necessidade de “consagrar para disci- plinar” as forças sociais quaisquer e, para o que nos inte- ressa, o indivíduo. 334 AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS Todavia, é necessário indicar que no capítulo I do volume IV da Politique, Comte distingue de maneira clara os “elementos sociais” (famílias, pátrias, humanidade e grupos intermediários) dos “agentes sociais”. Essa distinção já fora esboçada no capítulo III do volume II, dedicado às famílias como elementos sociológicos, mas no volume IV Comte é formal na distinção entre uns e outros. O que caracteriza os “elementos sociais” é o fato de serem homogêneos em relação às sociedades, ou melhor, serem sociedades em escalas diversas: é por esse motivo que as famílias são a unidade so- ciológica e não os indivíduos. Já os “agentes so- ciais” são os responsáveis pela existência objetiva das sociedades e, mais do que isso, pelas ações concretas; o que caracteriza esses “agentes” é o exercício das suas “vontades” (“volontés”), que, embora livres em si, são submetidas às diversas condições e fatalidades sociológicas, biológicas e cosmológicas. Da mesma forma que nas teorias sociológicas contemporâneas (em que se incluem as do próprio Giddens), esses “agentes” são os indivíduos, com a particularidade de que, para Comte, a ação desses indivíduos deve conjugar a liberdade individual (a que se associa, necessaria- mente, a responsabilidade) e a convergência, isto é, a busca do benefício coletivo, direto ou indire- to (cf. COMTE, 1890, v. IV, p. 30-40). Sem for- çar o argumento, e ao contrário do que afirma Giddens, é possível afirmar que em Comte há ao mesmo tempo a solução para uma forma de dualidade entre “agência” e "estrutura" e a defini- ção de um indivíduo que, capaz de agir autono- mamente, não se define pelo egoísmo, a partir dos modernos conceitos metafísicos (e, portanto, em última análise, teológicos)31. A última característica que Giddens atribui a Comte é a íntima vinculação entre a ciência, por um lado, e o desenvolvimento moral e material da sociedade. Essa é uma mais ou menos elegante de afirmar que Comte foi um “cientificista” e, acima de tudo, um tecnocrata: quanto mais ciência, me- lhor desenvolvida a sociedade e mais “moraliza- da” ela será; a “moralidade” consistirá em varia- das formas de intelectualismo, a serem racional- mente controladas. Vimos anteriormente como, do ponto de vista político, Comte rejeitava o que chamamos atualmente de tecnocracia; contudo, importa aqui desfazer o nó que vincula ciência e desenvolvimento da moralidade. Para isso, cum- pre definir o que é a moralidade, ou melhor, a moral para Comte: é o conjunto de atributos “afetivos” dos seres humanos, voltados para o benefício in- dividual e, acima de tudo, coletivo. De modo mais específico, Comte determina dez “instintos” que originam as ações humanas, sete egoístas (volta- dos para a satisfação individual) e três altruístas (voltados para a colaboração e a satisfação dos outros); esses instintos são ordenados de acordo com sua força decrescente e sua dignidade cres- cente: instintos nutritivo, sexual, materno, destrutivo, construtivo, orgulho e vaidade (como egoístas), apego, veneração e bondade (como al- truístas)32. Para Comte, todo ser humano é um indivíduo e um membro de uma sociedade; cada sociedade, por sua vez, estimula mais alguns ins- tintos e desenvolve menos (ou reprime) outros. O desenvolvimento moral, nesse quadro, consiste no fortalecimento dos instintos altruístas e na com- pressão (e nunca na extinção) dos instintos ego- ístas – ou, nos termos de Comte, no desenvolvi- mento da ternura (altruísmo) e da pureza (com- pressão do egoísmo). Do ponto de vista histórico, o relacionamento entre egoísmo e altruísmo variou. De uma pers- pectiva de longuíssima duração, o desenvolvimen- to material permite que a pressão das necessida- des individuais diminua e, portanto, que o altruís- mo seja desenvolvido. Sem dúvida alguma que a ciência, como conhecimento da realidade, tem um papel central nisso, mas o longo acumular de pro- dutos humanos (materiais, intelectuais, artísticos etc.) é o fator-chave aí, de modo que o desenvol- vimento moral é possível e até se realiza antes de a ciência constituir-se como tal. De acordo com a filosofia da história de Comte, o Ocidente apresenta uma inversão im- 32 Esses dez “instintos” somam-se a cinco funções inte- lectuais e a três da ação prática; esse conjunto de 18 fun- ções cerebrais constitui a “alma”, na teoria comtiana. Note- se que o móvel das ações são os instintos, que visam à sua satisfação; a inteligência (modernamente representada de maneira sintética pela ciência) ocupa um papel apenas ins- trumental aí. Não é difícil de perceber que essa teoria da alma – desenvolvida no longo capítulo III do volume I da Politique (COMTE, 1890, v. I, cap. III) – é uma teoria da agência humana. 31 A respeito da gênese teológico-metafísica do individua- lismo moderno e de seu caráter egoísta, cf. Laffitte (1897, lições 5-6) e Dumont (1992, cap. 2). 335 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009 portante. Após a Grécia ter desenvolvido a inte- ligência (a arte, a filosofia e a ciência), os roma- nos desenvolveram a atividade prática (subordi- nando a inteligência à ação e criando uma vasta civilização pacificada, ao redor do Mediterrâneo), faltava o desenvolvimento da moralidade – o que se realizou na Idade Média, católico-feudal, mais por meio dos hábitos cavalheirescos que por meio do dogma católico. Independentemente das rela- ções estabelecidas entre egoísmo e altruísmo nesse período, é fácil perceber como não houve relação direta entre desenvolvimento científico e desenvolvimento moral no período. Aliás, para Comte – e bem ao contrário do que afirma Giddens –, o período posterior à Idade Média (chamado por Comte de “modernidade”) con- siste em um desenvolvimento contínuo da inteli- gência em reação à moralidade católica; consi- derando que, para Comte, a moral católica é ego- ísta, até certo ponto faz sentido essa reação, mas o combate ao catolicismo tornou-se combate generalizado à moral como um todo. Além disso, inúmeras teorias científicas afirmam o materia- lismo, que é a subordinação de fenômenos mais nobres aos mais grosseiros: além de negarem as particularidades do ser humano (em termos so- ciais e morais), há teóricos que afirmam o cará- ter intrinsecamente egoísta do homem, negando o altruísmo (Hobbes é um bom exemplo, mas também os “economistas políticos”). Dessa for- ma, não há relação causal entre “desenvolvimen- to da ciência” e “desenvolvimento moral” da hu- manidade, no pensamento comtiano. Como se vê, portanto, a argumentação de Giddens é frágil e enviesada; baseado em uma lei- tura superficial de apenas uma obra de Comte (a Philosophie), o conjunto da argumentação de Giddens cria um Augusto Comte cientificista e tecnocrático; caso considerasse com seriedade as outras obras de Comte (em particular, a Politique), seria difícil sustentar tais opiniões: é essa a gran- de virtude dos autores que recuperam Comte, de que trataremos em seguida33. IV. O RECUPERAR DE COMTE Em um artigo que visa a tratar de obras recen- tes sobre Augusto Comte, talvez tenha causado estranheza as longas observações feitas acima. Esse procedimento justifica-se pelo seguinte mo- tivo: enquanto as obras de que trataremos na se- qüência apresentam esse pensamento social (em todo ou em partes), sem considerar as críticas anteriores – mas sabendo que elas existem –, as críticas correntes teriam que ser, em algum mo- mento, enfrentadas. Além disso, o valor da “recu- peração” aumenta quando se tem em mente a en- vergadura da “perda”. Compreender o pensamento de Augusto Comte em si mesmo e em sua inteireza (ainda que sem tratar de todo ele), deixando de lado o rótulo fácil de “positivista”, conforme o senso comum aca- dêmico contemporâneo estabelece, e perceber os elementos que o fundador do Positivismo apre- senta para as questões atuais – em outras pala- vras, não incorrer nos diversos problemas teóri- cos e metodológicos discutidos até aqui: esses são os elementos que unem os livros de Juliette Grange (1996), Sérgio Tiski (2007) e Laurent Fédi (2008). A procedência nacional dessas pesquisas é signi- ficativa: a maior parte delas é francesa (Grange e Fédi), enquanto poucos são brasileiros (Tiski); embora não tratemos de nenhum anglófono aqui, o fato é que autores de língua inglesa ocupam uma posição intermediária34. Evidentemente, esses três livros não esgotam a fortuna crítica relativa a Comte; da segunda metade do século XX para cá poderíamos também indicar diversos pesquisado- res que consideraram o “Positivismo” sem a ca- mada crítica apontada antes: Kremer-Marietti (1980), Aron (1999), Arnaud (1969), Bastide (1990), Lacroix (2003) e, no Brasil, Soares (1999), Ribeiro Jr. (2006) e Trindade (2007). O que dis- tingue dos demais os três livros que nos interes- sam aqui, além das datas de publicação mais re- centes, é a consciência das críticas com que lida- mos há pouco; é tendo essas críticas como pano de fundo que os autores de que nos ocuparemos 33 Embora já tenhamos indicado, na primeira seção deste artigo, que Giddens não é o único autor a criticar de maneira sistemática Augusto Comte, convém realçar aqui tal fato; as críticas elaboradas pela Escola de Frankfurt, em particu- lar as surgidas durante e após a “polêmica do Positivismo na Sociologia alemã”, exigem uma análise toda própria. 34 Podemos incluir no rol anglófono o pequeno mas inte- ressante livro de Mike Gane (2006), que historia as várias formulações da “lei dos três estados”, e as muitas pesqui- sas de Mary Pickering, responsável por uma alentada bio- grafia intelectual de Comte, cujo volume segundo está pres- tes a ser lançada pela editora de Cambridge, embora o volu- me primeiro seja de 1993. 338 AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS dizer burocráticas, mas de exposições vivas, que, por sua própria forma, tornam mais fácil a respos- ta à necessária pergunta a respeito da “atualidade” do pensamento de Comte. Grange considera que o projeto religioso de Comte, em si, é impossível; mas, por outro lado, as críticas que Comte fez ao individualismo, ao racionalismo, ao desregramento científico, ao absolutismo filosófico, assim como a defesa da liberdade de pensamento e de expres- são, da separação entre Igreja e Estado e do prima- do do “social” em relação ao “econômico” são ele- mentos permanentes (GRANGE, 1996, p. 421- 422); mais do que isso, logo no início do livro ela afirma que “[...] em grande medida, vivemos em um mundo quase inteiramente previsto por Comte” (idem, p. 19). Fédi, da sua parte, considera que a obra de Comte deve ser lida “[...] não na esperança irrisória de reabilitar Comte ou de impor dogmaticamente suas soluções, mas simplesmente tendo em vista levar suas reflexões à discussão, com a convicção de que o interesse dessa filosofia pode se renovar à medida que surjam novos pro- blemas” (FÉDI, 2008, p. 168)37. Por fim, o livro do brasileiro Sérgio Tiski (2006) é mais específico, tratando de uma questão cen- tral em Comte: a religião. Esse tema é importante seja a partir do enunciado comtiano da “lei dos três estados” (segundo a qual as concepções hu- manas passam por três fases sucessivas – teoló- gica, metafísica e positiva), seja porque a fase fi- nal de Comte caracterizou-se pela fundação da “Religião da Humanidade”, seja porque são várias as referências à contradição entre a lei dos três estados e a Religião da Humanidade. O procedimento que Tiski adotou foi adequa- do para sua proposta: verificar de que maneira, ao longo de sua carreira, Comte considerou o con- ceito de (e, portanto, a palavra) “religião”, bem como os conceitos associados de “teologia” e “deus”. Examinando do ponto de vista cronológi- co a obra comtiana, Tiski dividiu-a em quatro fa- ses, que passam de uma adesão à fé católica (1798- 1812) à emancipação com respeito à teologia (1817-1848) até a criação da Religião da Humani- dade (1848-1857), de caráter humano; entre o catolicismo e a emancipação, Tiski identifica uma fase intermediária, de oscilação entre a emancipa- ção humanista com o uso de expressões teológi- cas (1812-1817). Ao investigar tanto os livros quanto a extensa correspondência de Augusto Comte (em oito volumes), o autor identificou cada uma das vezes em que o francês usou as expres- sões indicadas acima, determinando o sentido ado- tado; da mesma forma, há grande quantidade de citações diretas de Comte, o que enriquece sobre- maneira o texto. A idéia de religião em Comte, de fato, é cen- tral. Como demonstra Tiski, enquanto em um pri- meiro momento Comte identificava religião e teo- logia, isto é, considerava que a religião é a crença no sobrenatural, em vontades externas ao ser hu- mano que comandariam arbitrária e absolutamen- te a realidade (e a que se oporia a ciência, de cará- ter relativo), em sua fase mais madura Comte per- cebia na religião uma forma de unidade humana. Essa unidade seria ao mesmo tempo “moral” (de caráter individual, em que ocorreria a harmonia afetiva, intelectual e prática) e coletiva (em que os indivíduos e os grupos sociais relacionar-se-iam de maneira construtiva e pacífica) e de que a teo- logia teria sido apenas uma forma de realização, temporária e transitória entre o fetichismo (está- gio inicial do ser humano) e o positivismo (está- gio final). Assim, a religião são é a prática e a instituição sociais que denotam a totalidade da existência humana, no pensamento comtiano. As várias acepções que a “religião” teve no pensamento de Comte são um bom índice das mudanças por que esse pensamento atravessou. Sem esposarmos a tese da ruptura entre essas fases – em particular entre a Philosophie e a Politique –, é possível identificar uma inflexão de um certo “cientificismo” – que, talvez, seja melhor qualifi- cado de “intelectualismo” – para um subjetivismo afetivo baseado no conhecimento científico. Ao realizar tal investigação, Sérgio Tiski é exaustivo e minucioso. Embora isso torne a leitu- ra um tanto cansativa, o resultado é satisfatório, pois tornam-se claros vários elementos: a conti- nuidade na carreira de Comte; as relações teóri- cas, epistemológicas e políticas da “religião”, da teologia e da “positividade”; a possibilidade de um a religião humana e humanista. Há alguns aspectos problemáticos, todavia, no livro de Tiski; esses problemas não comprome- tem a investigação realizada, mas produzem re- 37 Convém notar que Fédi tem participado, juntamente com Catherine Kintzler e outros, dos vivos debates recen- tes sobre a laicidade na França, citando Comte como uma das suas referências. Cf. Fédi (2007) e Kintzler (2008). 339 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009 sultados estranhos na argumentação do autor e, no final das contas, na própria compreensão do pensamento comtiano. Por um lado, há aspectos estilísticos do texto no mínimo desconcertantes, que geram uma dubiedade na interpretação que dificulta a compreensão e a apreensão dos argu- mentos pelos leitores. Essa dubiedade é caracteri- zada pelo uso recorrente de expressões com o símbolo gráfico da barra (“/”) e indicam que o autor não se decidiu a respeito de qual a interpre- tação que adotaria. Exemplos aleatórios e não exaustivos: “Os três últimos volumes (lições 46 a 60) são dedicados à Sociologia/moral/política” (idem, p 160); “[...] supondo a transitividade/ sinonímia entre os dois termos” (idem, p. 194); “E, referindo-se à unidade, harmonia conseguida a partir de sua experiência de amor por Clotilde de Vaux, unidade/harmonia que se tornaram ‘[...] uma das bases [...]’” (idem, p. 226); “[...] ao mesmo tempo a justificação/legitimação da legitimação da humanidade” (idem, p. 246); “[...] são explicitadas as duas funções/finalidades/destinações da religião [...]” (idem, p. 252). Um segundo problema na interpretação de Tiski refere-se à forma como apreende – e, por- tanto, expõe – o conceito de “religião” em Comte, ou seja, refere-se ao próprio objeto de sua inves- tigação; nesse sentido, é um problema mais cen- tral. O conjunto da pesquisa de Tiski é satisfatório no sentido de indicar que Augusto Comte modifi- cou suas concepções a respeito da “religião”, em particular entre as fases da Philosophie e da Politique, que correspondem às terceira e quarta fases identificadas pelo autor38. Enquanto na pri- meira dessas duas Comte adotava como sinôni- mo de “religião” a teologia, na segunda fase pas- sou a distinguir uma coisa da outra, considerando que a religião é um estado de unidade e harmonia moral e social, do indivíduo e dos grupos huma- nos e de que a teologia é apenas uma das modali- dades possíveis (e histórica e logicamente transi- tória). Assim, na fase final de Comte, há a afirma- ção da religião, mas agora humana e humanista: daí o nome de “Religião da Humanidade”. Ora, mesmo considerando que o conceito de “religião” para Comte modificou-se ao longo do tempo e que em sua obra mais madura ele pos- suía uma definição bastante particular e distante do senso comum, é precisamente esse sentido do senso comum (que toma como equivalente de re- ligião a teologia) que norteia a avaliação de Tiski. Basta notar os segintes comentários da investiga- ção: na “Introdução”, o autor afirma de maneira simples, direta e reveladora que “Utilizamos o ter- mo religião no seu significado mais comum, con- forme aparece nos três trechos a seguir”; em se- guida cita três dicionários vernaculares e resume: “Como se pode notar, a pressuposição básica na noção comum de religião é a existência da divin- dade, e a necessidade e a possibilidade de relacio- namento com ela, que explica e decide a sorte do homem. [...] Uma grande porção da humanidade continua, de um modo ou de outro, sendo religio- sa nesse sentido tradicional, isto é, acreditando em divindade sobrenatural e sendo, portanto, sobrenaturalista. O sobrenaturalismo é comum e estamos acostumados a ele” (idem, p. 1-2). Em- bora reconheça logo em seguida (idem, p. 3-5) a confusão que se produz na compreensão de Comte o uso desse sentido de senso comum a respeito da “religião” – e, como vimos, consistin- do exatamente na explicação desses sentidos es- pecíficos o objeto de sua pesquisa –, em outros trechos o autor reafirma o senso comum. Veja- mos uma passagem decisiva, nesse sentido: “É óbvio que com o ‘theos’ humanidade e com a re- ligião da humanidade A. Comte retorna a um teísmo e a uma teologia, além de retornar a uma religião. Do mesmo modo, com a sua ‘filosofia primei- ra’39 esboçada, prometida mas não escrita, ele retorna a uma metafísica. [...] A sua ‘metafísica’, o seu ‘teísmo’ e a sua ‘teologia’ são muito dife- rentes do tradicional, sobretudo pela restrição ao humano, ao natural e ao científico; nesse sentido, o não assumir e o não utilizar tais termos evitou toda a confusão [...]. [...] A sua ‘filosofia pri- meira’ é uma ‘metafísica’, uma espécie de metafísica; o seu humanismo é um ‘teísmo’; e a sua ‘teoria da humanidade’ uma ‘teologia’” (idem, p. 241; sem grifos no original). Por fim, no últi- mo parágrafo do livro: “Teísmo, só que humano: humanismo” (idem, p. 336). 38 As duas primeiras correspondem às da infância e da adolescência, o que, embora biograficamente sejam mais ou menos relevantes, não têm de fato nenhuma importância para a obra filosófica da maturidade. 39 Seguindo uma sugestão de Francis Bacon, a “filosofia primeira” de Comte consiste no conjunto de pressupostos e procedimentos teóricos e epistemológicos do Positivismo (cf. COMTE, 1934, p. 479; cf. também LAFFITTE, 1894; 1928). 340 AUGUSTO COMTE E O “POSITIVISMO” REDESCOBERTOS A insistência de Tiski em adotar o senso senti- do comum para a exposição das idéias de Comte gera confusão e dificulta o entendimento do que ele mesmo, Tiski, pesquisa e expõe. Em um mo- mento, afirma que não se pode compreender Comte a partir do senso comum; em seguida, re- toma o mesmo sentido comum para expor as idéi- as de Comte. Essa hesitação teórica não deixa de ser uma variação, mais profunda, do problema anteriormente indicado, isto é, do uso do sinal gráfico da barra em sua exposição. Por outro lado, não se trata apenas de uma questão terminológica, isto é, de palavras sendo trocadas, mas de con- ceitos sendo misturados: como vimos anterior- mente, e como o próprio Tiski esclarece, a teolo- gia (assim como a metafísica) pressupõe o abso- lutismo filosófico e a pesquisa das causas, en- quanto a positividade requer o relativismo e a busca das regularidades, cada qual com profundas im- plicações sociais (guerra versus pacifismo, con- fusão entre Igreja e Estado versus separação entre Igreja e Estado, escravidão versus trabalho livre etc.). Esse problema – a hesitação teórica – de fato dificulta a compreensão; por outro lado, embora exija do leitor um esforço redobrado para com- preender uma argumentação que, por si só, é den- sa, o conjunto da pesquisa não é comprometido: abstraindo-se dessas dificuldades, o resultado é satisfatório. IV. COMENTÁRIOS FINAIS Em outra ocasião (LACERDA, 2008a) afirma- mos que cumpre recuperar Augusto Comte como um clássico sociológico, de acordo com a defini- ção de Jeffrey Alexander (1996), isto é, como um autor capaz de fornecer quadros mentais, descri- ções sociológicas, juízos de valor e modelos de procedimentos que inspirem e orientem, de ma- neira viva e efetiva, gerações de pesquisadores e pensadores. É corrente afirmar que Augusto Comte é um “clássico” da Sociologia (e, de ma- neira mais ampla, das Ciências Sociais e Huma- nas), mas tal classificação serve mais para incluí- lo em um escaninho estereotipado que para servirmo-nos efetivamente dele. Parafraseando o líder revolucionário francês Georges Danton, Comte afirmava que “só se des- trói o que se substitui” (COMTE, 1899, p. 191): não deixou de ser esse o percurso deste artigo. A fim de indicar as contribuições recentes de pes- quisadores que apresentam um Comte “clássico” (no sentido de Alexander), foi necessário antes comentar vários mitos e interpretações erradas a seu respeito. Como indicamos anteriormente, a escolha de Giddens como autor preferencial para a crítica deve-se ao duplo motivo de ser ele o au- tor da narrativa-padrão atual da história da Socio- logia – narrativa que, a respeito de Comte, apre- senta sérias deformações que, longe de serem ino- centes, produzem um resultado teórico e prático funesto. Mas, sem dúvida, outras tantas observa- ções poderiam ser feitas a propósito de outros críticos e comentadores, de que a Escola de Frank- furt e mesmo alguns marxistas são bons exem- plos. Não se trata de integrar o debate teórico e metodológico próprio às disciplinas científicas, mas, antes, de evitar um senso comum acadêmi- co mais preocupado com a repetição mecânica de estereótipos que com a reflexão séria do pensa- mento de autores – mesmo, e talvez principalmen- te, daqueles de quem se discorda. É claro que muitas das críticas direcionadas a Comte são substantivas e, mesmo sem necessaria- mente concordar com elas, referem-se a diferen- ças reais entre as várias correntes de pensamento social e político; mas não deixa de ser irônico o fato de que, como se pode constatar com os livros de Grange, Fédi e Tiski, muitas das críticas feitas ao pensamento que se atribui a Comte são, na ver- dade, compartilhadas pelo mesmo que é criticado. Dessa forma, o escrutínio dessa discussão é altamente instrutivo; poder-se-ia, quem sabe, fa- lar-se em uma “Sociologia das Ciências Sociais” com um “estudo de caso: Comte e seu(s) legado(s)”. Trata-se não apenas de recuperar um pensamento rico, amplo e sugestivo – literalmente fundamental –, mas também de evitar automatismos mentais, em que a criatividade e a criticidade recuperam o espaço perdido para a rotulação estereotipada das correntes de pensamento. Gustavo Biscaia de Lacerda (gblacerda@ufpr.br) é Doutorando em Sociologia Política pela Universida- de Federal de Santa Catarina (UFSC), Sociólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Editor-Executivo da Revista de Sociologia e Política. 343 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34 : 319-343 OUT. 2009 TORRES, A. 1997. O léxico de Augusto Comte. Criptografia e filosofia. Rio de Janeiro. Dis- sertação (Mestrado em Filosofia). Universida- de Estadual do Rio de Janeiro. TRINDADE, H. 2007. O Positivismo. Teoria e prática. 3ª ed. Porto Alegre : UFRS. WACQUANT, L. J. D. 1996. Positivismo. In : OUTHWAITE, W. & BOTTOMORE, T. (orgs.). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro : J. Zahar. WEBER, M. 1977. A ciência como vocação. In : _____. Ciência e política – duas vocações. 7ª ed. São Paulo : Cultrix. REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34: 347-354 OUT. 2009 ABSTRACTS AUGUSTE COMTE AND “POSITIVISM” REDISCOVERED Gustavo Biscaia de Lacerda In this essay we look at some research that has, within the last ten years, revisited the work of Positivism’s founder, Augusto Comte. This return to his work has consisted of perceiving his work in its entirety and through its own internal logic, placing particular emphasis on his second great work, Système de politique positive (1851-1854), and its contributions for contemporary political and social thought. In order to make the novelty of this new research clearer, we present one of the standard narratives on Comte and Positivism – in this case, through the work of Anthony Giddens – ; we also go on to discuss the meaning of the term “Positivism” and the various theoretical currents that come together under this rubric. Keywords: Positivism; theoretical interpretation; Augusto Comte; Anthony Giddens; Vienna Circle. REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 34: 357-365 OUT. 2009 RÉSUMÉS AUGUSTE COMTE ET LE “POSITIVISME” RÉDÉCOUVERTS Gustavo Biscaia de Lacerda Dans cet essai nous abordons les recherches qui au cours des dix dernières années environ se sont penchées sur l’oeuvre du fondateur du Positivisme, Auguste Comte. Ce retour consiste à comprendre les travaux de Comte dans leur ampleur et à partir de leur logique interne, surtout en ce qui concerne son second ouvrage, le Système de politique positive (1851-1854), et ses contributions pour une réflexion sociale et politique contemporaine. Afin de rendre intelligible la réflexion des nouvelles recherches, nous présentons un des récits-standards concernant Comte et le Positivisme – en l’ocurrence, à partir des écrits d’Anthony Giddens – ; en outre, nous discutons du sens du mot « Positivisme » et des plusieurs courants théoriques sousjacents à cette expression. MOTS-CLÉS : positivismes ; interprétation théorique ; Auguste Comte ; Anthony Giddens ; Cercle de Vienne.
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