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Guias e Dicas
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Amar Verbo Intransitivo, Notas de estudo de Administração Empresarial

Literatura Modernista - Mário de Andrade

Tipologia: Notas de estudo

2010
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Compartilhado em 12/02/2010

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Baixe Amar Verbo Intransitivo e outras Notas de estudo em PDF para Administração Empresarial, somente na Docsity! Mário de Andrade AMAR, VERBO INTRANSITIVO Idílio 16- edição Acompanhada de textos do autor. Estudo e edição revista por TELÊ PORTO ANCONA LOPEZ VILLA RICA EDITORAS REUNIDAS LIMITADA Belo Horizonte —Rio de Janeiro Nota da edição: Ao tirar, em 1944, a 2- edição de Amar, verbo intransitivo, a Livraria Martins Editora esqueceu-se da numeração. A partir de lá, imprimindo novas edições, numerou-as contando a de 1944 como primeira. Restabelecendo a seqüência, esta edição torna-se, portanto, a décima da obra. Seu texto tomou por base a 2- edição. UM ROMANCE QUE RESISTE Amar, verbo intransitivo, o primeiro romance de Mário de Andrade, publicado em 1927 e re-fundido em 1944 para as Obras Completas (Martins), é ainda, infelizmente, pouco procurado pelos leitores. Na década de 20 foi aplaudido com entusiasmo pela crítica modernista e atacado pela vozes passadistas; na década de 40 teve seu valor reconhecido pela nova geração de escritores. Foi traduzido para o inglês, deu ensejo ao belíssimo filme de Eduardo Escorei, Lição de amor e vem sendo objeto de vários estudos universitários. Hoje, apesar de consolidado o interesse pelo modernismo e apesar de Macunaíma ser do conhecimento do grande público, este primeiro romance de Mário de Andrade permanece quieto demais no plano das leituras brasileiras. As razões podem ser diversas e não cabe aqui analisá-las. A verdade é que Macunaíma, projeto moderno e nacionalista levado a um clímax de consciência estrutural e estilística, ultrapassou os limites do Brasil, universalizando-se enquanto representação do homem contemporâneo alienado, servindo ao sistema que reifica e mercantiliza a vida. Macunaíma tornou-se discussão atual que prende, atrai. Porém, a preocupação com a nossa identidade —caráter nacional —o emprego da fala brasileira por parte do narrador e das personagens, a movimentação intensa do foco narrativo, bem como a denúncia firme —e artisticamente irrepreensível —da alienação e da mentalidade colonizada, não são novidades na rapsódia de 1928. Tiveram início já nos Contos de Belazarte e afirmaram-se como partes integrantes de um projeto ,estético e ideológico claro em Amar, verbo intransitivo. Atingirão a estatura de obra- prima em Macunaíma. Quando do aparecimento do livro, Manuel Bandeira justificou o aspecto mais chocante para a época: "A linguagem do romance está toda errada. Errada no sentido portuga da gramática que aprendemos em meninos. Do ponto de vista brasileiro, porém, ela é que está certa, a de todos os outros livros é que está errada. Mário se impõe à sistematização de nossos modismos." Radicalizações da amizade à parte, vê-se que o narrador tão brasileiro de Amar, verbo intransitivo é o legítimo antecessor do rapsodo de Macunaíma. Narrador problemático, satiriza duramente ou esgrime com muita graça o humor; "fala" e, "falando", cria refrãos que ratificam a personagem, como ocorrerá em Macunaíma. E o faz até parodisticamente quando, por exemplo, tratando dos Sousa Costas, pai e filho, arremeda sempre a afirmação polida: "Perfeitamente." Tudo em ordem, previsto, controlado. O burguês sem espaço para o vôo... para o grito. UMA DIFÍCIL CONJUGAÇÃO Telê Porto Ancona Lopez "Os que amam sem amor Não terão o reino dos céus." Carlos Drummond de Andrade Em 1927, às expensas do autor, Antônio Tisi tirava do prelo, em São Paulo, Amar, verbo intransitivo, romance de Mário de Andrade, apresentado na capa como "idílio". Esta classificação, mantida mesmo depois do texto refundido para a segunda edição (1944 —Martins —III —Obras Completas), é de capital importância, pois testemunha a consciência e o exercício efetivo da prosa experimental, vinculando idílio, não apenas ao tema que desenvolve, como à própria estrutura da narrativa escrita entre 1923-24 e terminada em 1926. Quando do lançamento do livro, Mário está trabalhando em Macunaíma, rapsódia, ficção que ambiciona, ser um "canto", dentro das perspectivas do romance moderno, romance aberto à experimentação e à auto-problematização. Na verdade, o escritor já vem procurando esse caminho desde as crônicas de Malazarte na América Brasileira, depois publicadas como contos, dando, aliás, "O besouro e a rosa" como "intermezzo". Amar, verbo intransitivo conta uma lição de amar ou a iniciação amorosa do adolescente Carlos, da burguesia paulistana de novos-ricos, apresentada como burguesia industrial urbana, tipicamente brasileira. A professora de amor —contratada para instrutora de sexo pelo pai do rapaz, Sousa Costa, em combinação que, para ele, excluía a participação de Laura, a esposa -—é Fräulein Elza, governanta alemã, também professora de línguas e piano na família. Sua profissão não a impedia de acalentar, aos 35 anos, um romântico ideal de amor. Não traz e não precisa de sobrenome; Fräulein e Elza, sempre mencionados separadamente, valem como um todo, dando à heroína, ainda que indelevelmente, traços prototípicos. O núcleo da narrativa é o idílio, a história de amor: a descoberta do amor, sua prática pelo jovem aluno e Fräulein revisitando sua pedagogia e seu sonho, afeiçoando-se, mais do que desejava, a Carlos, sem esquecer, entretanto, a intransitividade do verbo amar... O romance, porém, não pretende apenas contar uma história de amor; como texto moderno e modernista que é, tem muitos outros propósitos... Possui, além da heroína muito e pouco heróica, outra personagem "principal", esta não participando diretamente da intriga, mas vivendo os percalços do contar — o Narrador. O Narrador firma com autonomia sua voz, existindo na linha machadiana da perplexidade, tentando entender uma figura singular de mulher, dela se distanciando, ou com ela se solidarizando, admitindo, todavia, que Fräulein lhe escapa —pirandelianamente —e faz com que se questione. Mesmo sendo o único a se referir à heroína pelo nome de batismo —para todas as demais personagens ela será sempre e unicamente "Fräulein", forma de tratamento (senhorita) que, para o alemão, designa habitualmente professora —conseguindo se expressar no feminino ou apoiando-se em teorias para explicar comportamentos e o amor, não fecha sua figura. Ficam pistas, pegadas mais ou menos nítidas, para que o leitor tente, ele também, desvendar Fräulein através dela própria ou dos traços que o Narrador simplesmente registrou e não aprofundou em seu significado. Assim, Mário de Andrade, por meio de Fräulein no exercício de sua profissão —e Maria Luísa Ramos já a comparou à Diótima de Platão — por meio do entrecho ou da expressão do Narrador, vai colocando sua possibilidade de construção do moderno romance brasileiro. UM IDÍLIO À BERNARDINI DE SAINT-PIERRE Manuel Bandeira, escrevendo sobre o livro logo depois de sua publicação¹, apegando-se ao entrecho, considera blague, ironia de Mário de Andrade, declarar, através do Narrador, que o idílio havia sido "imitado do francês de Bernardin de Saint-Pierre. Do francês. De Bernardin de Saint- Pierre." (p. 91)². O poeta se engana quanto à direção da ironia; "imitação" é uma blague de ótimo humor apontando para uma das fontes de inspiração, uma das matrizes geradoras de recriação, e sugerindo semelhanças de projetos literários. Suponho que a leitura de Paul et Virginie tenha feito o modernista brasileiro pensar em pontos para ele de grande importância. Bernardin de Saint-Pierre escreve em uma língua que não é exatamente o francês castiço, ensinado nas escolas ou nas páginas dos monstros sagrados da França do Século XVIII. Fazendo sua narrativa se passar numa possessão francesa distante da Europa, colocando-a na boca de um narrador local, acolhe no texto um bom número de expressões e construções do francês das colônias... sem radicalizações, mas acolhendo! A ironia é, talvez, surgir, num momento de acirrada luta modernista contra a importação de modelos culturais franceses, e logo no livro de Mário de Andrade, tal confissão! Mas, para bom entendedor, Mário está dando seu recado. Está reconhecendo a necessidade de aliar o projeto estético ao projeto lingüístico, para que o modernismo literário se tornasse ideologicamente coerente e eficaz. E delineando sua pesquisa da língua portuguesa falada no Brasil: o Narrador de Amar, verbo intransitivo é o antecessor do rapsodo de Macunaíma, expressando-se na fala brasileira "desgeograficada", cheia de "brasileirismos" de todos os quadrantes do país. Mais adiante, cuidarei particularmente desse aspecto; por ora, basta concluir que nosso escritor teria detectado um projeto de linguagem na tão festejada história de amor do final do Século XVIII. "Do francês. De Bernardin de Saint-Pierre". Continuando a brincadeira, a armadilha é, na verdade, o sério oferecido jocosamente, quando o Narrador separa língua e autor, ou melhor, sugere outras contribuições além da linguagem. É possível que o prefácio de Saint-Pierre em Paul et Virginie, juntamente com o texto de ficção, tenha sublinhado para Mário de Andrade duas preocupações que também eram suas e que podem ser vistas no idílio de Fräulein. Na construção de personagens fica claro a valorização de um novo modo de ser, de compreender o mundo, dimensão de pensar e sentir diversa da européia. O autor quer se livrar de um racionalismo árido, "pintar um solo e uma vegetação diferentes" e mostrar que a liberdade só encontra seu espaço fora do Velho Mundo. Pondo seu par de namorados à sombra de coqueiros, bananeiras e limoeiros em flor—Bernardin de Saint-Pierre declara — conferiu-lhes um novo modo de ver e julgar, em harmonia com a natureza generosa em que viviam. Paulo e Virgínia não pensam como europeus e sabem mostrar sua particularidade; são puros, isentos de ambição; ali, em sua ilha, a fortuna ou a ascensão social não tem sentido para eles. Conseqüentemente —continua a explicação do autor —o "romance", enquanto gênero em moda na Europa, não lhe servira; a trama que arquitetara era simples e pura, capaz apenas de caber "nessa espécie de pastoral", seu texto.3 O prefácio remete então o fazer romanesco à antiga égloga, eivada de lirismo, contando que o autor encontrara 0 caminho certo recortando cenas e quadros e com eles estruturando um "idílio", Paul et Virginie. Além disso, o romancista francês, como bom pré-romântico, avalizou a ingenuidade (naiveté) e marcou o idílio da Île de Bourbon com uma lição de amor. Virgínia fora mandada para a Europa e vivia com sua tia rica e preconceituosa. Paulo, saudoso, conversa com o Velho, seu mestre, confiando-lhe o desejo de ir ao encontro da amada, trabalhar para enriquecer e ter o direito de com ela se casar. O Velho, sábio, faz a defesa do viver simples e coerente, acentuando a decadência da sociedade européia e fazendo —o que é mais importante —a defesa da mulher. No diálogo longo à moda de Platão, diálogo que quebra a monotonia da voz praticamente única do narrador, o Velho diz a Paulo que "as mulheres são falsas nas terras em que os homens são tiranos"; ali, em toda parte, a violência gera os subterfúgios, o fingimento. Paulo, espantado, quer saber como pode alguém ser tirano com as mulheres e a resposta vem pronta e concreta, lembrando a ameaça que pesa sobre Virgínia: "Casando-as sem consultá-las, uma jovem com um segundo, garantindo a sociedade burguesa, vem a propósito da grande preocupação nacionalista de Mário de Andrade —definir nosso caráter, ou, como escreveu em 1926 no lº Prefácio de Macunaíma, descobrir, o mais que pudesse, a "entidade nacional dos brasileiros"8. O caráter nacional do alemão contracena com a "constância cultural brasileira constatada" e ambos possuem traços positivos e traços que são duramente criticados; o alemão é condenado porque tenta amordaçar o sublime e o brasileiro porque não possui consciência, conhecimento de seu modo de ser 9. Como os impressionistas e os expressionistas alemães, Mário condena a burguesia, calcando o giz no grotesco em sua representação. Fixa o instante e a personagem através da hipertrofia do detalhe significativo, do "close" na cena e da pontuação telegráfica. Explorando a simultaneidade, empilha sensações, orquestra momentos. Trabalhando com o grotesco, mais irado ou mais condescendente, não poupa ninguém, nem mesmo Fräulein. Não é maniqueísta, transformando suas personagens em fantoches de denúncia; é capaz, por exemplo, de permitir que o ridículo e o grotesco, depois de atingirem um auge na explosão do cômico, abram vaga para o lirismo, quando, na viagem de trem, depois de uma série de absurdos, Sousa Costa termina por se solidarizar com sua filhinha. Como os expressionistas e seus mestres, Mário está desperto para os sentimentos, a complexidade do mundo interno de cada personagem, para "o sentimento trágico da vida" como declara em carta a Alceu de Amoroso Lima. Como os expressionistas, admite com Freud as forças do inconsciente. Seu Narrador, embora pirandelianamente não obtenha uma compreensão integral da heroína, é sensível às vibrações mais intensas de seu pathos. Esse Narrador é, por assim dizer, um brasileiro "melhor", de olhos abertos, sabendo de si e sabendo dos outros. Sabe que Fräulein não apenas admira a natureza, mas, confunde-se com ela primitivamente. Na seqüência do passeio à mata da Tijuca, Narrador versado em expressionismo, recria literariamente O grito de Munch (quadro tomado como símbolo dessa estética), acompanhando o avassalar das sensações, das emoções de sua heroína. Vale a pena transcrever as passagens mais significativas: "Encontrou Fräulein acabrunhada, com vontade de chorar. A luz delirava, apressada a um vago aviso da tarde. Era tal e tanta que embaçava de ouro a amplidão. Se via tudo longe num halo que divinizava e afastava as coisas mais. Lassitude.(...) "Fräulein botara os braços cruzados no parapeito de pedra, fincara o mento ali, nas carnes rijas. E se perdia. Os olhos dela pouco a pouco se fecharam, cega duma vez. A razão pouco a pouco escampou. Desapareceu por fim, escorraçada pela vida excessiva dos sentidos. Das partes profundas do ser lhe vinham apelos vagos e decretos fracionados. Se misturavam animalidades e invenções geniais. E o orgasmo. Adquirira enfim aquela alma vegetal. E assim perdida, assim vibrando, as narinas se alastraram, os lábios se partiram, contrações, rugas, esgar, numa expressão dolorosa de gozo, ficou feia. "(...) "(...) Tanta sensação forte ignorada... a imponência dos céus imensos... o apelo dos horizontes invisíveis... Abriu os braços. Enervada, ainda pretendeu sorrir. Não pôde mais. O corpo arrebentou. Fräulein deu um grito", (p.110) O eclodir das emoções de Fräulein de forma tão intensa, dionisíaca, faz com que se vá, de pronto, à ligação do idílio com a natureza, à valorização do primitivismo grifada por Nietzsche na Origem da tragédia. Nietzsche, cuja obra foi tão prestigiada pelos expressionistas, ao afirmar que "o sátiro, bem como o pastor de nosso idílio moderno, são ambos resultado de uma aspiração ao estado primitivo e natural", está, na realidade, buscando um modo de ser diverso da existência regida pelo racionalismo rígido. Diante do "tipo primordial do homem", o sátiro; completado pelo pastor, apagam-se as ilusões da civilização. Como se vê, essas idéias não estão distantes das de Gessner.11 O Narrador que capta a cena no que ela tem de essencial, freqüentemente nos faz lembrar a representação cinematográfica: a câmera que segue os passos, foco isento, olhando por detrás, ou foco comprometido que faz as vezes dos olhos da personagem. 12 Narrar cinematográfico de romance moderno combinado com a reflexão literária, machadiana, metalingüística, e com a capacidade do Narrador de se fundir às manifestações do mundo interior de suas personagens. Romance moderno que põe em diálogo vozes várias, diversos modos de ver, misturando-os sem aviso prévio... romance polifônico, se quisermos adotar Bakhtne. E já que se falou em cinema, é bom dizer que o próprio Narrador se encarrega de o lembrar. Está tratando da chegada de Fräulein na mansão da Av. Higienópolis; define-a metonimicamente como o "futuro ponteiro do relógio familiar", dando-lhe por epíteto "Professora."; uma oração, curta, telegráfica, síntese iluminando uma parcela da personalidade. Socialmente ela será a espartana da rotina determinada; agora, entrando para a casa dos Sousa Costas, não pode se admitir como objeto de projeções fantasiosas. O Narrador —câmera de cinema —já registrara, aliás, em uma das cenas de abertura da narrativa, acompanhando os olhos de Elza (que em seu quartinho de pensão e até ser definida como professora, conserva seu nome), as duas direções de seu caminho. No espaço, os dois signos diretores de seu comportamento, ou de seu caráter de alemão: "O retrato de Wagner. O retrato de Bismarck", o "homem-do-sonho" e o "homem-da-vida". Assim, Bismarck, Fräulein precisa mostrar-se sem mistérios, correto ponto final, garantindo para si própria a superioridade quando compara seu modo de ser alemão com a desorganização do latino e do brasileiro. Começando o novo trabalho é uma heroína sem grandeza, desmistificada figura de cena de filme vagabundo: "A gente percebia muito bem as cordas que elevavam a protagonista no ar. O público não aplaudiu." —(Ou: ficção tão desvendada perde a graça! ironiza o Narrador). Fräulein deverá enfrentar com sua definição —produto de clivagem, mas definição —uma clientela que não se preocupa com isso: "Regrava passeios sempre curtos, batia as horas das lições sempre compridas. Como o público podia se interessar por uma fita dessas! Não aplaudiu!", (p. 47) Uma outra referência ao cinema, interessante porque acentua o fazer literário, surge quando de um legítimo corte cinematográfico da cena principal. Passeando os olhos de câmera pela biblioteca e traçando a digressão enquanto Carlos beija Fräulein pela primeira vez —e beijo de cinema! —o Narrador conta: "Das lombadas de couro, os grandes amorosos espiavam, Dante, Camões, Dirceu. Não digo que pro momento fílmico do caso, estes sejam livros exemplares, porém asseguro que eram exemplares virgens. Nem cortados alguns. Não adiantavam nada, pois." (p. 80) Ironia e ambigüidade magistrais no discurso do Narrador; vão crescendo, terminando por fechar satiricamente a digressão: ali, os poetas do amor sentimento elevado, espiritual (entre eles o árcade Dirceu), só poderiam assistir à encenação do amor —cena de cinema; eles também haviam sido comprados pelo novo-rico Sousa Costa. Haviam perdido sua função; "representavam" uma biblioteca e faziam companhia aos viajantes Barlaeus e Rugendas, estrangeiros que vibraram com a paisagem brasileira e cujos desenhos magníficos estão acompanhados de textos penetrantes sobre o Brasil. Ali, porém, eram usados somente para distrair crianças... Lançado na década de 20, Amar, verbo intransitivo é "literatura de circunstância", conceituada na época por Mário de Andrade como o texto voltado para o aqui e o agora, desprezando a perenidade, desejando apenas existir com firmeza em seu momento, oferecendo uma visão crítica a seus contemporâneos. Ser moderno seria, pois, desenvolver a reflexão crítica, admitir a dúvida e exercer a ironia (Lefebvre). Idílio, classificação que pode indicar propósitos à Bernardin de Saint-Pierre, pode também sugerir uma experimentação moderna. Aparece sempre que o Narrador está disposto a confessar o exercício da prosa experimental e avisar que seu texto, embora ficção renovada aberta ao leitor, continua sendo o seu texto: está escrito à sua moda e o entrecho está traduzindo sua concepção. Então, mesmo os garantidos leitores (anda pouco acompanhado aquele que renova!) desdobrando Fräulein em 51 heroínas —"assim é se lhes parece" —existirá que se venha a garimpar, em seu livro, mecanicamente, coincidências como no jogo da memória. O que me interessa é mostrar como, Amar, verbo intransitivo é um romance brasileiro, moderno, que se abeberou criticamente no expressionismo alemão. E talvez, até mais do que isso: por sua estrutura e seu estilo linguagem e ideologia, pelo reconhecimento público da fonte, o romance que pode ser tomado como uma repercussão nossa da estética de O grito. O Narrador empenha-se em ressaltar a presença do expressionismo alemão no entrecho; exibe informação, mas, como também é personagem, faz parte da verossimilhança que o recorta não perceber o quanto Fräulein, na faceta homem-do-sonho, deus encarcerado, representa no livro a ânsia avassaladora expressionista. Registra, mas não mergulha atrás do significado mais fundo. Prefere aplicar-se à faceta homem-da-vida. Assim, vai destacando: Fräulein conhece o expressionismo através de um amigo alemão; passa a ler Der Sturm, voltando sempre, por inclinação, aos clássicos e aos poemas de Wagner. Para ele, Fräulein "seguiu página por página livros e revistas ignorados. Compreendeu e aceitou o expressionismo, que nem alemão medíocre aceita primeiro e depois compreende. Porque existe." (p. 62). No seu modo de analisar, o expressionismo seria para ela a arte que está no papel e que não admite existindo na vida prática, em torno de si. Nesse sentido, o Narrador sabe bastante; sua voz chega a se confundir com os pensamentos de Fräulein, aproveitando porém a oportunidade para mostrar que digeriu as propostas da estética de Walden e deixar implícito que seu texto é regido por elas. Fräulein, quando exasperada com a mentalidade brasileira, com a incapacidade do casal Sousa Costa de conversar e entender logicamente uma iniciação amorosa, mostra-se "indignada", mas se contém, ainda pensando juntamente com o Narrador: "Que diabo! atos da vida não é arte expressionista, que pode ser nebulosa ou sintética. Não percebera bem a claridade latina daquela explicação. O método germanicamente dela e a didática habilidade no agir, não admitiam tal fumarada de palavras desconexas. Aquelas frases sem dicionário nem gramática irritaram-na inda mais. Queria, exigia, sujeito, verbo e complemento." (p. 68). O Narrador gosta de crivar o texto de referências aos expressionistas e seus precursores; fala em Schikele, Werfel, Edschimid, nos "farrapos de papel" de Holweg, coloca idéias do respeitadíssimo Nietzsche, de Rubiner, considerações sobre a multiplicidade do ser, a clivagem no mundo atual, mas, de fato, surpreende-se com sua personagem, apesar da ressalva pirandeliana de que nada tinha a ver com a criação de Fräulein, pois fora ela quem o procurara e "se contara". Sua defesa, no início um primor de paródia do estilo parnasiano ("médiuns dicazes", "vates de segundo grau", "facúndia sonâmbula", etc), afirma a seguir, ainda nas pegadas de Pirandello, que "São os personagens que escolhem seus autores e não estes que constroem suas heroínas." (p. 70). Havendo personalidades concordantes somente no romance psicológico e não sendo sua personagem assim, obviamente ele está fazendo outra coisa que romance desse tipo —romance experimental, expressionista. 13 Esse Narrador que sabe tão bem definir o expressionismo, as "misturas incompletas, assustadoras incoerências", interpreta, todavia, taxativamente Fräulein quando dá maior ênfase à sua parcela alemão-homem-da-vida. Só poderá, conseqüentemente, espantar-se com uma heroína que, embora defendendo um ideal de amor burguês, transcende os parâmetros de seu próprio bom-senso. Uma Fräulein cheia de paixão, que, refutando os equívocos dos Sousa Costas, mistura condenação aos filósofos queridos dos expressionistas, Nietzsche e Schopenhauer, arroubos patrioteiros, racistas e moralistas à defesa da capacidade de amar, saindo-se com uma verdade que soa como incoerência na ficção, certamente desnorteará o sabido contador de sua história. Para ela, o amor é uma pedagogia burguesa, mas é também, naquele instante, o libertar da capacidade de sentir intensamente, profundamente, do deus-encarcerado... para continuar intransitiva. Embora contraditória, cindida, Fräulein, fervorosa, rechaça a Filosofia que invadira o terreno do amor! Verdade, não frase de efeito, deixa todos atônitos: o amor não é uma especulação intelectualizada, científica; é um sentimento! Verdade cujo alcance lhe escapa, carapuça que também lhe serve... Põe o Narrador numa enrascada! mete-se em explicações sobre verossimilhança, mas não compreende que Fräulein não é apenas "senhorinha modesta e um pouco estúpida." (p. 71). A sensibilidade exacerbada, o erotismo, marcam a movimentação de Fräulein por meio de uma quantidade de indícios que o Narrador registra, até comenta, mas não aprofunda enquanto carga expressionista do ser que é marginal em seu modo de ver e sentir. Para o Narrador, a professora fazia caxiasmente sua leitura dos expressionistas, mantendo-se a par do que se escrevia na Alemanha, mas, voltava para Goethe, "sempre Schiller e os poemas de Wagner". Pois é: "sempre Schiller", de cuja Joana d'Arc se lembra num momento em que deseja libertar o deus encarcerado, ser autêntica. E lia Racine, Romain Rolland, "no original". Falsa pista, reforçando o Narrador como personagem de ficção: Fräulein sabe realmente francês! Enquanto isso, o alemão homem-do-sonho não lhe aparece. Entretanto, está ali. impondo-se através dos autores lidos, todos, sem exceção, apologistas da primazia do sentimento. Torna-se assim bastante coerente a fusão do Sturm und Drang, Goethe e Schiller, a Der Sturm. E a Wagner... A heroína sonhando, devaneando, ou simplesmente agindo, não é apenas o "ponto final" que satisfaz o Narrador quando a esquematiza. É personagem revestida de uma coerência artística mais visceral. Seus sonhos e projetos são também idéias e palavras soltas no ar, seus pensamentos, na hora do sofrimento, são "migalhas" e "Simultâneos, brotam da consciência dela desenhos inacabados, isto é, prelúdios de idéias" (o grifo é meu). Seu sonho de amor é quadro de idílio, delicado, frugal, romântico, burguês da Panzschule ou do estudo universitário sobre o apelo da natureza na poesia dos Minnesänger, sonho onde cabem regras para o amor não só dos alemães: "Apenas um pouco mais de verdade prática e menos Wagner". Porém, o marido comprado com seu trabalho, dedica-se a encontrar o apelo da natureza, querendo, portanto, detectá-lo entre os mestres cantores tão severos nos cânones uma arte poética e musical. Fräulein projeta, pois, um desejo inconsciente de liberdade, de primitivismo. Além disso, a figura da morte à Montanha mágica, sugerida pela tosse, a magreza e o corado irregular das faces do companheiro, ronda e solapa o cromo idealizado. Fräulein entregue a sua fantasia possui frases telegráficas, frases sem a organização que a gramática pede. Multiplica-se nas reticências. Seja pontuação é a mesma dos latinos que condena, Com uma diferença, entretanto: eles hesitam nas reticências de quem não sabe o que quer. Fräulein homem-da-vida e homem-do-sonho, alienada ou não, sabe se definir, não gosta de hesitar. Em sua mente as duas facetas se conjugam, se justapõem, se opõem: o ponto final e as reticências, O ponto final marcando tudo o que é prático, mesmo no sonho; soluciona o dia a dia, o garantir da sobrevivência de quem começara a trabalhar em Leipzig e viera fazer América. Fräulein, além de não gostar de sofrer, aprecia comer bem e trajar bons tecidos. O projeto de vida sonhado, as reticências, são sua porta aberta para fugir do discurso masculino de opressão ostensiva, dos Sousa Costas que se impõem através de gritos quando apanhados em falta —pai e filho — do jovem machucador, dos moços que podiam tratá-la com impaciência e grosseria, do julgamento hipócrita dos chefes de família. E porta aberta para se colocar sob um poder masculino mais brando, "sem domínio", pois a professora de amor não discute a supremacia do homem. Não é solidária com as outras mulheres, é sempre severa no julgar Laura, não se apega às meninas. Condena a si própria, moralista, declarando ter "a profissão que uma fraqueza" lhe permitiu exercer. Defende a ordem e a moral estabelecidas —transgride-as para as consolidar e aperfeiçoar —legitima o autoritarismo, exigindo de Sousa Costa que o rompimento da ligação clandestina se processasse com violência. Na cena final do romance, observando Carlos, lembra versos que falam em casamento e recursos financeiros, em amor de burguês em suma, e a condenação homem-do-sonho lhe brota, inconscientemente: "O verso seguinte veio, sem ela querer: Ungerecht bleiben die Männer... repeliu-o.". (Tradução no rodapé: "Os homens são muito injustos...") Prefere entregar-se à fantasia, chegando à Else. Schnitzler, que assumiu a denúncia do vazio das esferas elegantes e abastadas de seu país e a denúncia da situação da mulher, objeto de luxo feito para a satisfação do homem, retratou, com muita coragem, as fraquezas da alma do homem burguês, afetivamente pobre, parco de recursos inferiores. Fräulein Else conta a história da jovem que não nega o seu erotismo, enfrenta preconceitos, vivendo na alta sociedade vienense. Obrigada a vender seu corpo para salvar o pai, enterrado em dívidas, suicida- se. A novela não possui outro narrador além de Else, que em monólogo, tom confessional de diário, "se conta", ou seja, com Schnitzler conseguindo se expressar magnificamente no feminino. Não possui divisões, separações gráficas, nem capítulos. Else está se revivendo para morrer. Unicamente os apelos externos lembrados, as vozes daqueles que a procuraram, interrompem o fio de seu próprio pensar num refrão que a invoca: "Else! Else! ou em corteses e hipócritas frases de saudação, repisando o elegante cumprimento austríaco: "Gusten Abend, Fräulein Else. —Küss' die Hand, griadige Frau." As vozes externas são sempre distinguidas graficamente em itálico. O erotismo é um leit-motif de Schnitzler; passado e presente são traçados pelo discurso de quem resolveu morrer: uma sucessão de imagens, evocação, simultaneidade, situações aparentemente descosidas e o novo realismo do expressionista extremando-se no momento em que Fräulein Else está sucumbindo, depois de uma forte dose de Veronal: "Ich fliege... ich träume... ich schlafe... ich traume —ich flie..." 21 Else toca piano e pode reconhecer, do momento de sua degradação, os acordes do Carnaval de Schumann que partem da sala... Recupera-os, e eles aparecem no livro em notação musical. 22 Creio que uma aproximação não deixa de ser plausível. Mário e o austríaco tomam o cotidiano. Em Amar, verbo intransitivo, no estruturar das cenas, várias vezes surgem diálogos convencionais, em alemão e em português. E, em diversos momentos, o Lied e outras canções alemãs têm seus versos citados, isso sem esquecer Carlos cantando e dançando "Tatu subiu no pau..." Carlos é o herdeiro homem, centro do mundo na Av. Higienópolis, é o adolescente lutando por seu domínio. Seu nome é um refrão que, repetido constantemente, cortando seqüências, o faz onipresente, futuro dono do poder, ocupando seu espaço. " —Mamãe! Mamãe! Olhe Carlos!" e todas as suas variações. Mesmo quando o "idílio" já terminou e Carlos já recebeu sua lição de amor, o refrão permanece irônico destaque final, abrupto, com as reticências aparecendo como o estigma do homem que continuará "machucador"." —Mamãe olhe Carlos!..." (p. 132); Carlos, homem sem maiores dotes de espírito. E... por falar em Arthur Schnitzler pode-se até pensar que o interesse pela psicologia do adolescente que tanto marcaria Mário de Andrade na crítica literária —"Amor e medo" etc. —, tenha sido reforçado pela leitura de Anatol. Mas, já é disparar nas conjeturas... Amar, verbo intransitivo é um romance pró-mulher, o Narrador conquistando a expressão feminina e admitindo a autonomia de sua heroína. Entretanto, como o Narrador é uma personagem acessoriamente "principal", sua presença é também desenhada por suas contradições de voz masculina —Maria Luísa Ramos o chamou mesmo de machista —contradições de voz masculina... progressista. Mostra-se compadecido com a condição de Fräulein, para quem até a morte está no masculino, mas, logo depois é severamente irônico rindo de seu faz de conta de insistência dos patrões para não ter que abandonar o trabalho, e perder oito contos. É assim: trata bem e trata mal sua heroína ao longo do livro. Defende o erotismo, faz a denúncia do poder que transforma o homem num simples "macho", usando textualmente, sem subterfúgios, essa expressão. Condena o poder que permite a mulher se sentir "deliciosamente batida". No romance, o homem, exceção feita ao companheiro sonhado por Fräulein —é "machucador" e "áspero"; somente quando apaixonado, jovem, na fugacidade do amor sincero, poderá se humanizar e se sentir machucado. Ele, Narrador, confirma um traço que Mário de Andrade grifa na sexualidade do brasileiro, traço que será exaustivamente explorado em Macunaíma na fala do rapsodo e comentado em um dos prefácios. Trata-se da verbalização do sexo na coprolalia ou nas palavras e frases de duplo sentido, no cacófaton que provoca a risada. No romance de Fräulein, a sexualidade de Carlos é aproximada à do boi, com vantagem para este, que Mário considerará como símbolo da unidade nacional. A metáfora consolida-se na digressão que mistura o desraçado, Carlos, e as preocupações com raças bovinas selecionadas. Carlos filho de Felisberto Sousa Costa, criador de touros de raça, reprodutores, é um brasileiro da burguesia urbana, incaracterístico, repetidor de padrões, pouco afeito à expressão do afeto, "machucador" de aperto de mão flácido. O amor para ele será o sexo = encargo de macho, touro reprodutor. A digressão do Narrador, enquanto Carlos espera a resposta de Fräulein marcando o primeiro encontro em seu aposento, é um trecho estilística e ideologicamente extraordinário. A paródia e a ambigüidade condenam, nas entrelinhas, a alienação do homem burguês e já anunciam a vivacidade que atingiriam na "Carta pras icamiabas". Assim, o polled-angus "sempre abunda"; no Brasil já entrou o zebu "Entra o durhan também, e já pasta o curraleiro e principalmente o caracu". O tom "moreno rosado", "deliciosa e masculina cor", "Cobre carnes rijas musculosas, afirmo. Apenas estas se disseminam porque a obrigação delas é cobrir", (grifei). O Narrador é intrigante em suas contradições: detém-se no erotismo, na sensualidade de Fräulein, "Potranca na invernada, ema, siriema, passarinho"; detém-se em Carlos; prefere, porém, não focalizar cenas mais ousadas quando o casal está junto. O beijo na biblioteca é um "momento fílmico", mas o Narrador foge de sua descrição, olhando metaforicamente os exemplares "virgens" das estantes. Literariamente, é tento marcado: a metáfora é solução habilíssima, admiravelmente utilizada, sublinhando a verossimilhança desse Narrador-personagem. Da mesma forma que o cinema de sua época, o Narrador não pode mostrar a relação sexual; pode apenas sugeri-la e colocar o erotismo nas metáforas. Carlos entra no quarto de Fräulein pela primeira vez. Corte. Outro, momento, outro espaço. O Narrador possui "razões", que não declara, para não focalizar os amantes. Vai gastar seu "fim de noite" tratando das relações entre estrangeiros: Tanaka, o criado japonês da família, e Fräulein, inimigos de dia e companheiros dialogando na sala, à noite. Já aproximei aqui a escolha do estrangeiro por parte de Mário de Andrade à escolha idêntica no expressionismo. Continuo, lembrando o japonês, ser enigmático em Hugo von Hofmansthal ou O Japonês pintado por Anita Malfatti. Em Amar verbo intransitivo, Tanaka é o estrangeiro, o exilado, figura marginal, turva que, juntamente com Fräulein, falando mal dos patrões e do Brasil, forma o par de tigres, feras do escuro, ameaça latente... mas pouco perigosa. Acossados pela queimada da servidão e da pobreza, resta-lhes a evocação emocionada do passado e a luta de classe do lacaio, a mais miúda e inexpressiva: falar mal. Enquanto Carlos e Fräulein ardem em sua primeira noite de amor, a "Queimada" de Castro Alves, em recriação brasileira moderna, "desgeograficada", admitindo tigres, tem sua eloqüência condoreira parodiada e abre a discussão sobre o estrangeiro, o exílio e nossa nacionalidade incorporadora.23 O Narrador iguala-se a suas personagens no censurar as referências ao ato sexual. Todas as menções que fazem caracterizam-se pelas orações incompletas, abruptamente cortadas em sua parte final, ou seja, no explicitar. Não se trata do eufemismo, que, algumas vezes, se movimenta na esfera lírica, mas da mutilação da idéia a ser comunicada. O Narrador, moralista, está, nesses momentos, tão assustado quanto suas personagens com a transgressão da moral estabelecida. Assemelha-se a uma comadre preconceituosa (e não menos voluptuosa em seu recalcar...). Os exemplos se sucedem: Carlos consigo próprio (narrador "com"), temendo voltar à biblioteca para a aula: "Porém, passar uma hora juntinhos, depois de!... que horror!" (p. 91). Narrador: "Bem que ela desconfiara, na primeira noite, que Carlos já conhecia o.' (p. 92). Sousa Costa e suas aventuras extra-conjugais: "Se lhe telefonassem do clube, avisando que (p. 101), Narrador: "Amoleciam os braços dela pra o enlace e." (p.105); "Carlos entrara no quarto de Fräulein. Mal tivera tempo de." (p. 121); "Não sabe que Fräulein não é a programa da Filarmônica significa, naquele instante, a presença do sentimento amoroso no idealizado programa de vida; o lirismo, a ternura, a confissão apaixonada mesclando-se às aspirações tão concretas do homem- da-vida. Mas, o romance não será um Siegfried-Idill, pois o entrecho não pretende recriar uma grandiosidade à Wagner, a não ser em um único momento, o momento máximo de Fräulein, personagem expressionista entregue totalmente a seus impulsos, sensações e sentimentos mais recônditos —a cena do grito. Munch, Nietzsche, Wagner unidos. Ali, no passeio à floresta da Tijuca, Fräulein comunga com a natureza, arrebatadamente, livrando-se de suas peias de compostura e racionalismo. Vai descobrindo no espaço entidades mitológicas vindas de suas leituras Alberico avança para seu colo a "mão de um cacto" e das águas surge o monstro que conheceu em Hauptmann; Wagner, vinculado ao expressionismo proporciona a associação da heroína de Amar, verbo intransitivo a Brunilda cercada pelo fogo. Associação que o Narrador faz clara e diretamente. Loge, contudo não deve velar o sono da valquíria que perdeu a imortalidade; deverá ao contrário, anular o homem-da-vida, provocando o despertar de Fräulein breve mas intensíssimo, conferindo-lhe um modo de ver e de se expressar totalmente expressionista. Assim como a professora alemã, a natureza está crispada contorcida como num quadro de Soutine: "Numa das voltas, olhando para trás, viu a montanha curvada, com o sol lhe mordendo as ilhargas. Era Loge, deus do incêndio... as montanhas assustadas, grimpando os itatins com gestos de socorro, contorcidas. Loge perseguia as medrosas, lambido de chamas, trinando. Fräulein escutou um xilofone, o tema conhecido. E o encantamento do fogo principiou para Brunilda." (p. 110). Tema do sono de Brunilda: sono - parada do homem-da- vida e sono = encantamento, libertação do homem-do-sonho. Fräulein está apta, conseqüentemente, para manifestar sua ânsia, sua paixão, primitivamente: o grito. Wagner é um dos pólos de Fräulein; calejada conhecedora do desamor, é heroína em cujo comportamento repercutem notas de Siegfried e dos Götter- dammerung25 Reacende sempre sua chama no potencial de amor que o jovem possui; não o amor ligado a convenções alemãs como o marido burguês sonhado, mas o amor completo —ternura e paixão, intenso —e efêmero —como o de Siegfried por Brunilda. Carlos machucador é visto com indulgência por Fräulein que valoriza sua "serena força", "so einfach, nem vaidades nem complicações... atraente." (p. 51). Afastando-se, de costas, é um jovem Siegfried, "Vitorioso, sereno." (p. 60). Entretanto, seu Siegfried brasileiro não irá acordá-la cheio de êxtase e emoção como o filho de Siglinda: " — Erwache! Erwache! Heiliges Weib!".26 É aquele que se embaraça com o poema, que se comove pensando na amada, mas que dorme, perdendo a hora do primeiro encontro, para depois bater, impetuoso e autoritário, até a porta do quarto de Fräulein se abrir. A governanta, machucada em seus sentimentos ou "deliciosamente batida", vai sucumbindo ao assédio de Carlos, assédio que profissionalmente provoca e deseja. Porém, no momento em que consente no encontro noturno pondo fim à etapa namoro, sai "furiosa da biblioteca, uma raiva de Carlos, dos homens, de ser mulher..." (p. 82). Assemelha-se assim à Brunilda zangada consigo própria e com seu destino de mulher: não era mais a valquíria que cavalgava livre nas alturas, mas a mortal que pertencia a um homem, Siegfried. Pode-se ainda ligar Carlos a Siegfried quando este, no primeiro ato da ópera que leva seu nome, é um machucador folgazão e irreverente; mais tarde será o machucador dos sentimentos de Brunilda. 27 No Crepúsculo dos deuses Brunilda deixa-se ficar à espera do companheiro que parte em busca de aventuras; transmitiu-lhe tudo o que sabe e lhe deu seu cavalo. Valquíria castigada, deve aprender a renunciar e ser a mulher machucada, rejeitada e sofrida, sem poder protestar, pois está no mundo do poder masculino. Fräulein ensina a Carlos a necessidade da separação, a renúncia de Hermann e Dorotéia e deve suportar, inclusive, ver sua pedagogia aviltada, tendo que calar os escrúpulos quanto à legitimidade do pagamento combinado, conservando "sempre pelos anos, a sensação logo vencida mas imortal de que tinham lhe passado a perna." (p. 93). No motivo renúncia do amor, Brunilda se apazigua, tornando-se o Hans Sachs dos Mestres cantores, o poeta sapateiro que também ama o mais jovem, mas, cuja juventude e beleza não estacionaram à espera do amor. Sachs renuncia à mão de Eva e age em nome do amor e da generosidade, auxiliando seu rival. Em Amar, verbo intransitivo, Sachs é a opção do bom-senso, a negação de si enquanto regra, confundindo homem-do-sonho e homem-da-vida. Sua figura leva o Narrador à importante conclusão: Fräulein também havia renunciado a se conhecer em maior profundidade, resignando-se a ir vivendo como sabia: "Era verbo ser." (p. 93). Verbo de ligação ao lado do verbo intransitivo, pode-se concluir. Se o recurso da cena estruturando o romance faz pensar em cinema, pode também quando vinculado à música, fazer pensar em ópera. Amar, verbo intransitivo possui três leitmotiv bem nítidos: Carlos homem, centro das preocupações das mulheres de sua casa; Carlos machucador e as mulheres, todas derreadas, machucadas, entregues, batidas. Carlos é o machucador que estraga tudo; sua capacidade de conturbar e machucar é reiterada pelo Narrador e pelas personagens com quem contracena, constituindo dois refrãos (motivos recorrentes):" —Mamãe! Mamãe! Olhe Carlos!" e "Machucador apenas.", com variantes. O primeiro, como se viu, ganha maior destaque aparecendo até mesmo isolado, com valor de cena; musicalmente, se quisermos, será o "tema" de Carlos; combinado com o segundo, seu comentário. Fica interessante então lembrar que os críticos de Wagner informam que seu leit-motif é sempre curto e simples, fácil de ser memorizado ou reconhecido. Além disso, Mário de Andrade em seu Compêndio de História da Música considera que o motivo condutor (traduz) possui um valor dramático lógico, sendo, ao mesmo tempo célula temática da construção sinfônica. Substituída "construção sinfônica" por "estrutura da narrativa" vemos que os motivos homem dono, centro e machucador — mulher submetida, balida se contrapõem, tecendo a trama. A ligação do romance com a música está no projeto do Narrador que vai nos oferecer, muitas vezes, o andamento, o compasso da cena que está registrando, como se pusesse nas mãos do leitor, não a partitura, mas o libreto de uma ópera de Wagner que completa o texto com o movimento musical. Assim, fornece a cena literária musicalmente, e em alemão! Um bom exemplo está no devaneio musical de Fräulein que une Max Reger a um lied de Körner, cantiga de ninar, onde o esclarecimento "Langsam (1)." é acompanhado de nota de rodapé: "Lento. (Aqui o termo vem tomado no sentido de movimento musical)." (p. 65). Como se vê, a presença de elementos musicais enriquece a ficção. Naquela hora, por força da cantiga de ninar e da idéia de plenitude na natureza fica-se pensando novamente no Idílio de Siegfried, a peça de câmara. Para o Narrador é importante criar, ao lado da imagem física e psicológica de cada personagem, sua imagem sonora. As vozes tornam-se então instrumentos: gaita desafinada, xilofone, berimbau, guizos, clave de fá, flautim; as onomatopéias são inúmeras. Ecos dos barulhadores de Russolo? A verdade é que, se, por um lado, tem-se um Narrador erudito, derramando teorias, por outro, recebe-se um texto que se concretiza visual e sonoramente, que transmite, recupera sensações, narrativa nova, moderna. ESCREVER BRASILEIRO Amar, verbo intransitivo possuía originalmente um posfácio tratando, sobretudo, do emprego da língua portuguesa no romance. 28 O autor, porém, preferiu deixá-lo inédito, discutindo o assunto apenas com seus companheiros modernistas. Estes, quando da publicação do idílio, ante a avalanche de censuras ao desrespeito do autor para com a gramática, possuíam bons argumentos para defender publicamente o amigo, valorizando sua pesquisa e seu pioneirismo, atribuindo-lhe inclusive um papel sem paródia), decalcam muito vivamente, ao lado da pesquisa lingüística, uma altíssima consciência estilística. Nada é gratuito, ornamental; tudo serve aos propósitos literários do texto. Assim, por exemplo, é o humor nascendo da aproximação dos contrastes quando "cuité" (cuia no Nordeste) e "monâda-sensitiva" (expressão de Leibnitz) servem para compor a grotesca figura do novo-rico Sousa Costa, e convivem com "graxa", "cheiro" (por perfume), "femeeiro”, palavras do universo da classe baixa. Citando: "Aliás, todo ele era um cuité de brilhantinas simbólicas, uma graxa, mônada sensitiva e cuidadoso de sua pessoa.Não esquecia nunca o cheiro no lenço. Vinha de portugueses. Perfeitamente. E de Camões herdara ser femeeiro irredutível" (p. 47). Completam-se no chavão verbal, —incorporado com intenção de paródia. "Perfeitamente", isolado como está, arremeda cacoete verbal do português, dá espaço para a voz da personagem, —polifoniza. Há realmente muito que estudar no tocante à linguagem de Amar, verbo intransitivo, trabalho para especialista da área, trabalho de fôlego urgente e necessário. Deve ser feito levando em conta o estilo, moderníssimo na obra, buscando nas pegadas do futurismo literário, qualificar sem o adjetivo, por meio de substantivos bem brasileiros. AMAR, VERBO TRANSITIVO: MÁRIO E A CULTURA ALEMÃ Pode-se supor que a exposição de Anita Malfatti em 1917, que mostrou possibilidade de novos caminhos também para os jovens escritores saturados com o parnasianismo, tenha levado Mário de Andrade a se interessar pelas vanguardas européias e, conseqüentemente, a procurar aprender a língua alemã para conhecer o expressionismo, sua arte, sua literatura. Em "Teutos, mas músicos" trata de seus estudos de alemão, oferecendo dados que ajudam a situar a heroína de Amar, verbo intransitivo. Pelo que conta, seus professores foram três e a data do início do estudo —data de que não se lembra muito bem —. Segundo o escritor, sua primeira professora foi uma "senhora musicalíssima", casada com um organista; através dela entrara em contato com uma "vastíssima literatura musical".33 A segunda, moça recém- chegada ao Brasil havia decorado o Dicionário Michaelis para aprender o português! O terceiro "um soldado do exército prussiano, com mentira e tudo". Mário reúne e funde na lembrança as contribuições que recebeu de todos, evoca sua ligação de amizade, sem contudo distinguir pessoas ou épocas: as conversas, os autores favoritos as reuniões com vinho do Reno ou doces típicos e café em que "pingavam uma furtiva lágrima de leite", reuniões em que cantavam em coro canções alemãs, ao som da citara, e onde estava o escultor Harberg.34 O escritor, entretanto, não menciona nomes. Isso faz com que o levantamento de dados sobre seus estudos de alemão tenha que se contentar com a observação de documentos existentes em seu arquivo ou datas de edição de suas leituras. E se contentar com soluções parciais... Assim, pode- se deduzir que os estudos tenham se iniciado antes de 1922: entre os quatro caderninhos que relacionam vocabulário em colunas, conforme se usava para ensinar línguas estrangeiras, três são de inglês e um de alemão, este com letra gótica bem caprichada e a tradução das palavras em francês. Os cadernos de inglês estão datados na primeira página: 1918 e o de alemão traz apenas o número "7.1690" (telefone?) seguido de "Esther Hornstein". Este nome, pelo menos até o momento, não foi encontrado em nenhum outro documento no acervo de Mário de Andrade. Teria sido Esther Hornstein a primeira professora? Ou a "Sra. Else Scholer Eggebert", cujo cartão especificava: "Aulas de alemão, inglez e francez/ cursos primários em portuguez/ Professora diplomada/ Alameda Rocha Azevedo, 23 Teleph. Central 1416/ (Livraria Transatlântica) /São Paulo"? Else Scholer, Como assinava, deu de presente ao aluno dois livros, ambos em edições de 1920, a poesia de Goethe e Mathias Grünewald. 35 Goethe está crivado de anotações marginais destacando estrofes, versos e traduções de palavras Goethe, onde está "Hermann und Dorothea"! E Grünewald, o grande mestre da pintura expressionista. E a eles Else juntou Wagner, a partitura de Tristan und Isolde (Leipzig, Breitkopf & Hartel, s/d), recomendado ao aluno com entusiasmo: "Schones lieben! / In herzlicher Freundschaft. / Else Scholer-Eggebert/ São Paulo, 26.7.21.". A verdade é que o rastro do estudioso do alemão, denotando grande empenho e esforço, sublinhando idéias e traduzindo palavras, começa a aparecer em sua coleção da revista Deutsch Kunsf und Dekoration em números datados de 1919 em diante. É ali que Mário encontra, quem sabe em 1920, o texto de Worringer "Natur und Expressionismus" (nº 5, fev., 1920), cujas idéias sobre o belo na arte e na natureza repercutem no "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia desvairada. E, entre os livros, com as páginas cobertas de anotações testemunhando a leitura demorada e difícil, está a importante antologia de Kurt Pintus, Mancheits Dämmerung: Symphonie Jüngster Dichtung, edição de 1920 (Berlin, Ernst Rewohlt), onde o poeta brasileiro descobre outros que completam seu mestre Whitman. Ao lado da revista e da antologia, autores expressionistas se agrupam, edições de 1918, 1919, 20, 22 (Wadekind, Rubiner, Fritz von Unruh, G. Kaiser, etc); são complementados por um bem antigo livro didático, The German Reader: 3rd. part: Selected German Comedies. Organizado por Emil Otto e publicado em 1878 (Heildelberg, Julius Gros), possui vocabulário traduzido e mereceu de Mário várias anotações de leitura. Não resolve porém a questão: foi realmente Else Scholer quem abriu para nosso modernista o mundo da cultura alemã? Em 1922 Mário de Andrade está escrevendo os poemas que publicará em 1926 sob o título Losango caqui ou afetos militares de mistura com os porquês de eu saber alemão e com a "Advertência" que os classifica como um "diário de três meses". Dedica o volume a sua amiga Anita Malfatti, confessando-lhe terem os poemas nascido de sua paixão por uma "diabinha de alemã". No ano da Semana de Arte Moderna tem-se o primeiro dado concreto a respeito de sua segunda professora de alemão. Käthe Blosen — que no volume Schillers Werke tem seu telefone anotado como "Frl. (Fräulein) Käthe Blosen" —escreve, a 30 de novembro, uma gentil cartinha a seu aluno, combinando o horário das aulas.36 Em fevereiro de 1924 envia- lhe o recibo das aulas do mês de janeiro; esquece-se da assinatura, mas, a letra é idêntica à da carta de 1922. 37 Além disso, dá ao destinatário o mesmo tratamento, entre cerimonioso e bem humorado: "Herr Mario de Andrade !". Teriam aspectos seus, como o gostar de Schiller, passado para a Fräulein do romance? Sobre Käthe Blosen falou sua amiga Lotte Sievers em 1951: "Quando, em março de 1923, conheci Mário de Andrade, ele era para mim apenas um aluno de minha loura colega Kaethe, com quem eu havia alugado uma casinha, onde dávamos parte de nossas aulas e onde reuníamos nosso grupo de amigos, constituído, por falta de nossos conhecimentos da língua portuguesa, na maioria de alemães recém-chegados da Europa. "Kaethe já me havia falado muito nesse seu aluno, interessante, bondoso e delicadíssimo, embora de uma feiúra impressionante, que era poeta moderno e a presenteara com um livro de sua autoria: Paulicéia desvairada. Em sua opinião ele tinha uma coleção de quadros muito esquisita e estava loucamente apaixonado por ela. "Encontrávamos Mário de vez em quando em concertos, sempre amável, sempre disposto a ajudar." 38 Lotte Sievers continua, contando que em 1924 pedira a Mário para lhe traduzir canções alemãs que ia apresentar em um recital, tendo ele lhe provado "que as aulas de alemão, recebidas de Kaethe, haviam sido proveitosas. Naquela época, meus conhecimentos lingüísticos não me permitiram julgar isso, mas, hoje, folheando meus velhos programas, surpreendo-me com a exatidão da tradução, feita de uma língua tão fundamentalmente diferente do português, sem que o texto perdesse seu mais leve sopro poético." Pois bem: fica-se sabendo que, em 1924, a tradução de Mário não era a de um principiante e que conheceu de perto a vida e os sentimentos dos alemães de um certo nível cultural que viviam em São Paulo e, que esse conhecimento alimentou sua criação literária. Unicamente a data 1922, oferecida por ele para início de seus estudos da NOTAS 1 BANDEIRA, Manuel —"Amar, verbo intransitivo". "A Semana. Belém, 23 mar., 1972" (Recorte com indicação de fonte em Nota M. A. —Arquivo Mário de Andrade —IEB- USP) 2 ANDRADE, Mário de —Amar, verbo intransitivo. 10º ed. revista por Telê Porto Ancona Lopez. Belo Horizonte, Itatiaia, 1982. No intuito de facilitar a localização das citações do romance, preferi indicar a presente edição. Como todas as citações pertencem a ela, são seguidas, no próprio texto, pelo número da página em que se encontram, sem que haja necessidade de se repetir em nota a fonte. 3 SAINT-PIERRE, Bernardin de —"Avant-propos". In: SAINT-PIERRE, Bernardin de e GESSNER —Paul et Virginie —La chaumière indienne et le café de Surate —Florian — Galatée, Estelle et ses douze nouvelles —Choix de ses idyttes. Paris, Firmier Didot Frères et Cie., 1836, p. 1. 4 SAINT-PIERRE, Bernardin de e GESSNER —op. cit., p. 41. Traduzi. 5 GESSNER, Salomon —Idytlen mit 11 Radierung von Salomon Gessner und 12 Kupfern von Daniel ChodowiecKi. Berlin, Eigenbröder Verlag, s/d. (ed. fac-similar da edição do autor: Zurich, bei Gessner, 1756 —Biblioteca Mário de Andrade —IEB —USP). 6 IDEM —"An den Lesen". In: op. cit., p. 5-12. Trechos citados traduzidos por Rosemarie Horch. 7 Estudei alguns aspectos da presença do expressionismo em Paulicéia desvairada em "Ar-lequim e modernidade". Revista do IEB, ns 21. São Paulo, 1979, p. 85 -100. 8 ANDRADE, Mário de —"Prefácio inédito escrito imediatamente depois de terminada a primeira versão". In: Macunatma o herói sem nenhum caráter. Edição-crítica de Telê Porto Ancona Lopez. Rio de Janeiro —São Paulo, LTC —SCCT, 1978, p. 219. Aliás, a partir de 1924, nosso modernismo empenha-se diretamente no nacionalismo, surgindo as correntes de tendências diversas. 9 IDEM — "A propósito de 'Amar, verbo intransitivo' ". Jn: Diário Nacional. São Paulo, 4 dez., 1927. (Recortes —Arquivo Mário de Andrade —IEB-USP. Artigo transcrito em BATISTA, Marta Rosseti et al., org. —Brasil: lº tempo modernista —1917-29: Documentação. São Paulo, IEB, 1973, p. 258-88 e nesta edição. 10 FERNANDES, Lygia, org. —71 cartas de Mário de Andrade. Rio de Janeiro, São José, s/d., p. 21. (Carta datada de São Paulo, 23 dez., 1927). 11 "NIETZSCHE, Fréderic —Vorigine de la Tragédie ou Hellénisme et pessimisme. Trad. de Jean Marnold e Jacques Morland. 9º ed. Paris, Mercure de France, s/d., p. 75. (Biblioteca Mário de Andrade —IEB-USP). Traduzi. É interessante perceber, além disso, como essas idéias se casam, de certo modo, com a tese de Keyserling sobre o primitivismo (Le monde qui nait) e com a valorização da preguiça por parte de Mário de Andrade. 12 Em agosto de 1923, escrevendo a Sérgio Milliet, Mário de Andrade classifica o romance que está compondo: "Atualmente escrevo Fräulein —romance. É possível que fique no meio, como todas as grandes empreitadas que tomo. Cinematográfico. (...)" (Carta datada de São Paulo, 2 ago., 1923. "Cartas a Sérgio Milliet". In: DUARTE, Paulo —Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo, EDART, 1971, p. 293). 13 Escrevendo ao amigo Manuel Bandeira a 15 de novembro de 1924 Mário também se refere ao "romance": "escrevo um romance, Manuel. É Fräulein. Está bastante avançado. Todo tempo meu que tenho, dou-o ao novo livro. Estou satisfeito comigo mesmo". (ANDRADE, Mário de —Cartas a Manuel Bandeira. Ed. organizada e anotada por Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Simões, 1958, p. 59 —A ordem cronológica no livro de Bandeira não é rigorosa). 14 RAMOS, Maria Luísa —"O latente manifesto". Ensaios de semiótica,: Cadernos de Lingüística e Teoria da Literatura, n» 2. Belo Horizonte, FALE/UFGM, 1979. 15 Nas artes Plásticas a representação do amor também acolhe o erotismo; basta lembrar O beijo de Munch ou mesmo o de Klimt, Egon Schiele no Abraço. 16 Na biblioteca de Mário de Andrade estão 11 números de Der Sturm (1910 —Berlim) 1923, 9 nos, 1924, 2 nos. Trazem anotações de leitura: destaque de trechos e tradução de palavras. Der Querschitt está também ali presente. (Berlim, 1924-30). 17 ANDRADE, Mário de —Cartas a Manuel Bandeira, ed. cit., p. 55. A carta foi colocada erroneamente em 1924; lendo-a, vê-se que é de 1923. 18 SCHNITZLER, Arthur —"Fräulein Else". In: Casanovas Heimfart. Frankfurt, Fischer, 1950, p. 245-99. Schnitzler, amigo de Kokoschka, expressionista de Viena, bastante conhecido na Europa, tendo recebido várias traduções. Seu romance Reigen, Dialogue serviu de base para o filme de Vadim, La ronde. 19 IDEM —Morir. Trad. de Alberto Fios. Madrid, Biblioteca Nueva, s/d. O prefácio de Fios está datado de 1920. O livro traz, ao lado da novela que lhe dá o nome, o conto "La mujer dei docente": conta a história da mulher adulta que se apaixona por aluno do marido, tentando conquistá-lo quando ele é um adolescente e anos mais tarde. 20 Escrevendo a Alceu Amoroso Lima, Mário revela ter sido Fräulein o título original do livro, afastado depois para evitar erros de pronúncia no Brasil. (Carta datada de São Paulo, 23 dez., 1927; V. nota (10). 21 SCHNITZLER, Arthur —"Fräulein Else". ed. cit., p. 299. Traduzindo: "Eu estou voando... estou sonhando... estou dormindo... estou sonhando-sonhando. voand..." 22 Curiosamente, a tradutora do Amar, verbo intransitivo para o inglês, que adotou título original Fräulein, dentre as várias modificações que fez ao texto (na refeição por exemplo, coloca uma "baiana" servindo a mesa), atribuiu um sobrenome a Ela: Schumann... (New York, Macaulay, 1933). 23 No segundo prefácio para Macunaíma Mário de Andrade explica sua idéia de "desgeograficar": unir, num mesmo espaço, elementos de todas as regiões do Brasil, fundindo-os ou deslocando-os pura servir ao nacionalismo, para ele mais fecundo, do que o regionalismo. (ANDRADE, Mário de —"Prefácio inédito escrito quando foi da impressão do livro". In: Macunaíma o herói sem nenhum caráter, ed. cit., p. 229). 24 A análise musical de Siegfried-Idill devo a Flávia Toni. O idílio, forma musical, consignada em dicionários especializados, tendo sempre seu caráter pastoril ressaltado, seus traços de ternura e paz. J. B. F. Ferreira (Vocabulário musical. Rio de Janeiro, Marcos de Mendonça e Cia., 1921-Biblioteca Mário de Andrade —IEB-USP), René Vannes {Essais de Terminologie Musicale: Dictionnaire Universel. s/l., ed. do A., 1925, p. 165 —Ibidem) e Frei Pedro Sinzig (Dicionário Musical, "a. ed. reimpr. Rio de Janeiro, Cosmos, 1976, p. 297) registram o termo. Percy A. Scholes (The Oxford Companion to Music. 2ª ed. americana. New York, Oxford, 1943) cita como exemplo o Idílio de Siegfried de Wagner. 25 O título de Wagner foi, muito sintomaticamente glosado por Kurt Pintus em sua antologia da poesia expressionista: Macheits Dâmmerung: Symphonie Jüngster Dichtung. Berlin Ernst Rewohlt, 1920. Nietzsche (Origem da tragédia) fala no "crepúsculo dos ídolos". WAGNER, Richard —"Siegfried", In: Das Rheingold Vorabendd zum Bühnenfestspiel Der Ring des Niebelungen; mit Angale de Leitmotive, der führenden Orcherisnstrument nebst den Leitmotiven in Noten ais Anhang. Leipzig, Breitkopf & Hartel, 1882, p.91. Tradução de Rosemarie Horch para os versos citados: "Acorda! Acorda!/ Mulher divina!". A ópera Siegfried ecoaria também em Macunaíma: a luta com a Boiúna, excluindo-se o grotesco e o cômico na cena de Mário, assemelha-se à luta do herói de Wagner com Fafner; através do canto de um passarinho, Siegfried sabe da existência do Anel dos Niebelungen e do Tarnhelm; o uirapuru conta a Macunaíma onde está a muiraquitã. 28 ANDRADE, Mário de—Postfacio. São Paulo, S/d. (Manuscrito inédito —originais — Arquivo Mário de Andrade —IEB-USP). O escritor tinha por hábito destruir os originais da obras que publicava. Este posfácio para Amar, verbo intransitivo encontrava-se no final de um caderno onde terminava o romance. Mário arrancou do caderno e conservou as páginas onde está o posfácio, escrito a lápis (p.296-300). Foi assim obrigado a guardar a última página do romance, pois o posfácio começa em seu verso; rabiscou-a contudo. 29 Rodrigo M. F. de Andrade assim escreveu em 1927: "(...) trabalho sério, penoso, imenso, o que empreendeu. Construir ou cristalizar uma língua é tarefa para um Dante, um Camões e, muito provavelmente, ele não se sentia com o gênio e a força de um, nem de outro." ("Dois livros de Mário de Andrade". Vida literária. ''O Jornal. Rio de Janeiro, 8 maio, 1927". (Indicações em Nota M. A. —Recortes —Arquivo Mário de Andrade —IEB-USP). Manuel Bandeira focaliza também a questão da língua em seu artigo para A Semana (V. nota (1))- ANDRADE, Mário de —Gramatiquinha da fala brasileira. São Paulo, s/d. (Originais — Arquivo Mário de Andrade —IEB-USP). Na época da redação de Amar, verbo intransitivo, Mário já está trabalhando na Gramatiquinha; nas cartas aos amigos faz referências a ela. A marginália de Mário de Andrade é riquíssima. Lendo obras sobre Folclore, Etnografia e textos de ficção, Mário de Andrade sublinhava e depois anotava em fichas termos peculiares do Brasil; assim conhecia o falar de todas as regiões, valendo-se sobretudo da pesquisa dos regionalistas, cujos livros crivava de anotações. Neusa Quirino Simões em sua dissertação de mestrado Estudando a Marginália: Mário de Andrade e a ficção brasileira. (Literatura Brasileira —São Paulo, FFLCH-USP, 1980 — xerox) acompanhou a leitura do pesquisador, destacando seus pontos de interesse. ANDRADE, Mário de —Cartas a Manuel Bandeira. Ed. cit., p. 54 (Carta datada de "10 de outubro", ano (1924) fornecido pelo organizador da edição). 33 ANDRADE, Mário de —"Teutos, mas músicos". In: Música, doce música. São Paulo Martins, 1963, p. 314-18. (VII —Obras Completas). Artigo escrito para O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 dez., 1939. 34 IDEM —Ibidem. 35 O livro de Goethe, Lyrische und Epische Dichtungen (2v. Leipzig, Inserverlag, 1920) foi oferecido com a dedicatória: "Sr. Mário de Andrade/ z. (ur) Erinnerung an/ E. Schóler"("Sr. Mário de Andrade/ como recordação de/E. Schöler"). Em Mathias Grünewald de Hermann L. Mayer (München, Dolphin, 1920), as palavras de oferecimento são exatamente as mesmas. O cartão de Else estava também dentro de_L'inaugurazione delia primavera de Govoni, 9ª ed. de 1920 (Ferrara, A. Taddei e Figli). 36 BLOSEN, Käthe —Carta a Mário de Andrade. "São Paulo, 30 nov., 1922". Carta escrita a tinta azul com notas M. A. a lápis —Correspondência passiva não lacrada —Arquivo Mário de Andrade —loc. cit). Frl. Blosen escreve em português: "São Paulo, 30. IX, 22/ Senhor Mário de Andrade! / Recebi sua carta./ Peço-lhe desculpar me por não ter/respondido antes, mas precisava/falar com meus outros alumnos/ para arranjar suas aulas:/ 2. feira 10-11 3. " 10-11 5. " 10-11 6. " 10-11 Sabbado. 81/2-9 1/2/ Si o senhor não me der outra/ notícia, começo com as aulas/2. feira./ Saudações./ Käthe Blosen". 37 IDEM, Recibo. São Paulo, 1º fev., 1924. (Documentação vária —Arquivo Mário de Andrade —loc. cit.) Texto: "Herrn Mario de Andrade!/ Fur ert (eiten) Unterricht im Monat Januar/80 $ 000". Tradução de Rosemarie Horch: "Sr. Mario de Andrade!/ Por aulas dadas no mês de janeiro/ 80 $ 000". PINTUS, Kurt —Mancheits Dämmerung; Symphonie Jüngster Dichturg. Berlin, brnest Rewohlt, 1920. (Biblioteca M. de A.). PLATÃO - "O banquete". In: Diálogos - v. 1, 5ª ed. Trad. Jorge Paleikat. Porto Alegre. Globo, 1962. RAMOS, Maria Luísa - "O latente manisfesto". Ensaios de Semiótica: Cadernos de Lingüística e Teoria da Literatura, n° 2. Belo Horizonte, FALE/UFMG, 19/y. IDEM — "Presença de Penélope". In: Memorial. Belo Horizonte, UFMG, 1980 (xerox). SAIN-PIERRE Bernardin de e Gessner - Paul et Virginie - La chaumière indienne et te café de Surate - Florian -- Galatée, Estelle et ses douze nouvelles -Choix de ses idylles. Paris, Firmier Didot Frères et Cie., 1836. SCHNITZLER, Arthur —Casanova Heimfart. Frankfurt, Fischer, 1950. IDEM _ Morir. Trad. de Alberto Fios. Madrid, Biblioteca Nueva, s/d. (Biblioteca M. de A.). SIEVERS, Lotte - Depoimento sem título. Alia arriba, ns38, especial sobre Mário de Andrade. São Paulo, 1957, p. 10. SIMÕES, Neusa Quirino - Estudando a Marginália: Mário de Andrade e a ficção brasileira: 1920-1944. São Paulo, FFLCH-USP, 1980. (dissertação de mestrado —xerox). SOUZA, Gilda de Mello e —O tupi e o alaúde: Uma interpretação de Macunaíma. São Paulo, Duas Cidades, 1980. WAGNER, Richard - Das Reingold. Voranbend zum Bühnenfestspiel der Ring des belungen; mít Angabe der Leitmotive, der führenden Orchesterinstrumente inebst den leit- motiven in Noten ais Anhang. Leipzig, Breitkopf & Hartel, 1882. AMAR, VERBO INTRANSITIVO Idílio A meu Irmão A porta do quarto se abriu e eles saíram no corredor. Calçando as luvas Sousa Costa largou por despedida: —Está frio. Ela muito correta e simples: —Estes fins de inverno são perigosos em São Paulo. Lembrando mais uma coisa reteve a mão de adeus que o outro lhe estendia —E, senhor... sua esposa? está avisada? — Não! A senhorita compreende... ela é mãe. Esta nossa educação brasileira... Além do mais com três meninas em casa!... —Peço-lhe que avise sua esposa, senhor. Não posso compreender tantos mistérios. Se é para bem do rapaz. —Mas senhorita... —Desculpe insistir. É preciso avisá-la. Não me agradaria ser tomada por aventureira, sou séria. E tenho 35 anos, senhor. Certamente não irei se sua esposa não souber o que vou fazer lá. Tenho a profissão que uma fraqueza me permitiu exercer, nada mais nada menos. É uma profissão. Falava com a voz mais natural desse mundo, mesmo com certo orgulho que Sousa Costa percebeu sem compreender. Olhou pra ela admirado e, jurando não falar nada à mulher, prometeu. Elza viu ele abrir a porta da pensão, Pâam.., Entrou de novo no quartinho ainda agitado pela presença do estranho. Lhe deu,um olhar de confiança. Tudo foi sossegando pouco a pouco. Penca de livros sobre a escrivaninha, um piano. O retrato de Wagner. O retrato de Bismarck. Terça-feira o táxi parou no portão da Vila Laura. Elza apeou ajeitando o casaco, toda de pardo, enquanto o motorista botava as duas malas, as caixas e embrulhos no chão. Era esperada. Já carregavam as malas pra dentro. Uns olhos de 12 anos em que uma gaforinha americana enroscava a galharia negro-azul apareceu na porta. E no silêncio pomposo do casão o xilofone tiniu: —A governanta está aí! Mamãe! a governanta está aí! —Já sei, menina! Não grite assim! Elza discutia o preço da corrida. —... e com tantas malas, a senhora... —É muito. Aqui estão cinco. Passe bem. Ah, a gorjeta... Deitou quinhentos réis na mão do motorista. Atravessou as roseiras festivas do jardim. Dia primeiro ou dois de setembro, não lembro mais. Porém é fácil de saber por causa da terça-feira. Se rindo do chuvisco dos tapinhas, carregando a irmã no braço esquerdo Carlos ofereceu a mão livre à moça. Voz paulista, certa de chegar no fim da frase. Olhos francos investigando. —Bom dia. A senhora é a governanta, é? Ela sorriu, escondendo a irritação. —Sou. Mas Aldinha achando de jeito a mão que Carlos trouxera pra resguardo do rosto, mordeu. —Viu só! Mamãe! Aldinha me deu uma dentada! —Meu Deus! inda enlouqueço com essas crianças! —Tirou sangue! Olhe aí o que você fez, sua gatinha! —Carlos, você não me ouve! Olhem que eu subo! Dona Laura nunca subiria a escada outra vez. —Mamãe... foi ele que me machucou! já chorosa. —Vocês não ouvem sua mãe chamar! Desçam já! Era a clave de fá de Sousa Costa. Barítono enfarado, de quem não gosta de se amolar nem passar pitos. Elza consolava a pecurrucha, com meriguice emprestada Não sabia ter meiguice. Mais questão de temperamento que de raça, não me venham dizer que os alemães são ríspidos. Tolice! conheci. Carlos descia a escada rindo. Se explicava. Limpava o sangue na outra mão, esfregando a mordida. Era exagero só pra evitar pito maior. Elza viu ele descer equilibrado, brincando com os degraus. Aquele "A senhora é a governanta...” Percebeu que o menino era um forte. Machucador apenas. Ali pela boca da noite o viver da casa já estava reorganizado e velho, mesma coisa de antes resvalando para a mesma coisa de em seguida. Isto não sei se é bem se é mal, mas a culpa é toda de Elza. Isto sei e afirmo. Se não fosse a moça, dona Laura levaria um dilúvio de manhãs pra se acomodar com a situação nova. Sousa Costa inda por vinte jantas teria a surpresa desagradável duma intrometida lhe roubando as anedotas de família. Elza porém desde o primeiro instante se apresentara tão conhecida, tão trilhada e de ontem! O desembaraço era premeditado não tem dúvida, mas lhe saía natural e discreto. Isto se descontaria dentre as facilidades das raças superiores... Porém tal razão é assuntar apenas a epiderme da experiência. Antes, estou disposto a reconhecer nela essa faculdade prática de adaptação dos alemães em terra estranha. Imediatamente se apossara dos deveres próprios e se colocara na posição exata. O começo dela é de quem recomeça. Você repare no filho, na mulher que voltam dos quinze dias de fazenda ou Caxambu. Abraços, forrobodó festivo, admiração premeditada. "Você está bem mais gordo!" Alegrias. Depois a gente troca as novidades. Depois a mesma coisa recomeça, o polvo readquire o tentáculo que faltava. Com a mesma naturalidade quotidiana pratica o destino dele: prover e vogar. Sobe à tona da vida ou desce porta a dentro, na profundeza marinha. Profundeza eminentemente respeitável e secreta. Quanto à tona da vida, já se conhece bem a fotografia: A mãe está sentada com a família menorzinha no colo. O pai de pé descansa protetoramente no ombro dela a mão honrada. Em torno se arranjaram os barrigudinhos. A disposição pode variar, mas o conceito continua o mesmo. Vária disposição demonstra unicamente o progresso que nestes tempos de agora fizeram os fotógrafos norte-americanos. Elza é filho chegando do sítio ou mãe que volta de Caxambu. Membro que faltava e de novo cresce. Começara como quem recomeça e a tranqüilidade aplainou logo a existência dos Sousa Costas, extraindo as últimas lascas da desordem, polindo os engruvinhamentos do imprevisto. Mesmo para as meninas, três: Maria Luísa com doze anos, Laurita com sete, Aldinha com cinco, Elza já dera completo conhecimento de si estrangulando a curiosidade delas. Já determinara as horas de lição de Maria Luísa e Carlos. Já dispusera os vestidos, os chapéus e os sapatos na guarda- roupa. No jardim, fizera as meninas pronunciarem muitas vezes Fräulein. Assim deviam lhe chamar. "Fräulein" era pras pequenas a definição daquela moça... antipática? Não. Nem antipática nem simpática: elemento. Mecanismo novo da casa. Mal imaginam por enquanto que será o ponteiro do relógio familiar. Fräulein... nome esquisito! nunca vi! Que bonitas assombrações havia de gerar na imaginação das crianças! Era só deixar ele descansar um pouco na ramaria baralhada, mesmo inda com poucas folhas, das associações infantis, que nem semente que dorme os primeiros tempos e espera. Então espigaria em brotos fantásticos, floradas maravilhosas como nunca ninguém viu. Porém as crianças nada mais enxergariam entre as asas daquela mosca azul... Elza lhes fizera repetir muitas vezes, vezes por demais a palavra! Metodicamente a dissecara. "Fräulein" significava só isto e não outra coisa. E elas perderam todo gosto com a repetição. A mosca sucumbira, rota, nojenta, vil. E baça. Talqual o substantivo, Elza se mostrara no seu eu visível e possível. No seu eu passível de entendimento infantil. Que infantil! humano universal devo escrever. Malvada! Cerceara os galopes da criação imaginativa, iluminara de sol cru as sombras do mistério. Que-dê os elfos da Floresta Negra? as ondinas sonorosas do Vater Rhein? A gente percebia muito bem as cordas que elevavam a protagonista no ar. O público não aplaudiu. As crianças lhe chamariam sempre Fräulein... Fräulein queria dizer moça? Qual moça nem virgem! Fräulein era Elza. Elza era a governanta Professora. Regrava passeios sempre curtos, batia as horas das lições sempre compridas. Como é que o público podia se interessar por uma fita dessas! Não aplaudiu. Com outras palavras mais bonitas, assim pensou mais tarde Maria Luísa Sousa Costa, herdeira de fazendas, grave. —Como ela está ficando parecida com a senhora, dona Laura! —Acha!... Mas não tem dúvida: isto da vida continuar igualzinha, embora nova e diversa, é um mal. Mal de alemães. O alemão não tem escapadas nem imprevistos. A surpresa, o inédito da vida é pra ele uma continuidade a continuar. Diante da natureza não é assim. Diante da vida é assim. Decisão. Viajaremos hoje. O latino falará: Viajaremos hoje! O alemão fala: Viajaremos hoje. Ponto final. Pontos-de-exclamação... É preciso exclamar pra que a realidade não canse... Sousa Costa usava bigodes onde a brilhantina indiscreta suava negrores nítidos. Aliás todo ele era um cuité de brilhantinas simbólicas, uma graxa mônada sensitiva e cuidadoso de sua pessoa. Não esquecia nunca o cheiro no lenço. Vinha de portugueses. Perfeitamente. E de Camões herdara ser femeeiro irredutível. Em tempos de calorão surgiam nos cabelos negros de dona Laura uma; ondulações suspeitas. Usava penteadores e vestidos de seda muito largos Apenas um gesto e aqueles panos e rendas e vidrilhos despencavam pra uma banda afligindo a gente. Meia malacabada. Era maior que o marido, era. Lhe permitira aumentar as fabricas de tecidos no Brás e se dedicar por desfastio à criação do gado caracu. Nas noites espaçadas em que Sousa Costa se aproximava da mulher, ele tomava sempre o cuidado de não mostrar jeitos e sabenças adquiridos lá em baixo no vale. No vale do Anhangabaú? É. Dona Laura comprazia com prazer o marido. Com prazer? Cansada. Entre ambos se firmara tacitamente e bem cedo uma convenção honesta: nunca jamais ele trouxera do vale um fio louro no paletó nem aromas que já não fossem pessoais. Ou então aromas cívicos. Dona Laura por sua vez fingia ignorar as navegações do Pedro Álvares Cabral. Convenção honesta se quiserem... Não seria talvez a precisão interior de sossego?... Parece que sim. Afirmo que não. Ah! ninguém o saberá jamais!.. 1 E quem diria que Sousa Costa não era bom marido? era sim. Fora tão nu de preconceitos até casar sem por reparo nas ondas suspeitas dos cabelos da noiva. E bem me lembro que ficaram noivos em tempo de calorão... Dona Laura retribuía a confiança do marido, esquecendo por sua vez que bigodes abastosos e brilhantinados tão suspeitos Se não fosse a luz excessiva, diríamos a Betsabê, de Rembrandt. Não a do banho que traz bracelete e colar, a outra, a da Toilette, mais magrinha, traços mais regulares. Não é clássico nem perfeito o corpo da minha Fräulein. Pouco maior que a média dos corpos de mulher. E cheio nas suas partes. Isso o torna pesado e bastante sensual. Longe porém daquele peso divino dos nus renascentes italianos ou daquela sensualidade das figuras de Scopas e Leucipo. Isso: Rembrandt quase Cranach. Nenhuma espiritualidade. Indiferente burguesice. Casasse com ela mais cedo, o marido veria no fim da vida a terra e os cobres repartidos entre 21 generaizinhos infelizes. Disse 21 porque me lembrei agora da filharada de João Sebastião Bach. Generaizinhos porque me lembrei do fim de Alexandre Magno. E infelizes! Ora porque qualifiquei os 21 generaizinhos de infelizes!... pessimismo! amargura! ah... Isso do corpo de Fräulein não ser perfeito, em nada enfraquece a história. Lhe dá mesmo certa honestidade espiritual e não provoca sonhos. E aliás, se renascente e perfeito, o idílio seria o mesmo. Fräulein não é bonita, não. Porém traços muito regulares, coloridos de cor real. E agora que se veste, a gente pode olhar com mais franqueza isso que fica de fora e ao mundo pertence, agrada, não, não agrada? Não se pinta, quase nem usa pó-de-arroz. A pele estica, discretamente polida com os arrancos da carne sã. O embate é cruento. Resiste a pele, o sangue se alastra pelo interior e Fräulein toda se roseia agradavelmente. O que mais atrai nela são os beiços, curtos, bastante largos, sempre encarnados. E inda bem que sabem rir: entremostram apenas os dentinhos dum amarelo sadio mas sem frescor. Olhos castanhos, pouco fundos. Se abrem grandes, muito claros, verdadeiramente sem expressão. Por isso duma calma quase religiosa, puros. Que cabelos mudáveis! ora louros, ora sombrios, dum pardo em fogo interior. Ela tem esse jeito de os arranjar, que estão sempre pedindo arranjo outra vez. As vezes as madeixas de Fräulein se apresentam embaraçadas, soltas de forma tal, que as luzes penetram nelas e se cruzam, como numa plantação nova de eucaliptos. Ora é a mecha mais loura que Fräulein prende e cem vezes torna a cair... O menino aluado como sempre. Fixava com insistência um pouco de viés... Seria a orelha dela? Mais pro lado, fora dela, atrás. Fräulein se volta. Não vê nada. Apenas o batalhão dos livros, na ordem de sempre. Então era nela, talvez a nuca. Não se desagradou do culto. Porém Carlos com o movimento da professora viu que ela percebera a insistência do olhar dele. Carecia explicar. Criou coragem mas encabulou, encafifado de estar penetrando intimidades femininas. Não foi sem comoção, que venceu a própria castidade e avisou: —Fräulein, seu grampo cai. O gesto dela foi natural porque o despeito se disfarçou. Porém Fräulein se fecha duma vez. Quinze dias já e nem mostras do mais leve interesse, arre! Será que não consegue nada!... Isso lhe parece impossível, estava trabalhando bem... Que nem das outras vezes. Até melhor, porque o menino lhe interessava, era muito... muito... simpatia? a inocência verdadeiramente esportiva? talvez a ingenuidade... A serena força... Und so einfach1, nem vaidades nem complicações... atraente. Fräulein principiara com mais entusiasmo que das outras vezes. E nada. Veremos, ganhava pra isso e paciência não falta a alemão. Agora porém está fechada por despeito, dentro dela não penetra mais ninguém. 1. E tão simples. Fräulein se sentiu logo perfeitamente bem dentro daquela família imóvel mas feliz. Apenas a saúde de Maria Luísa perturbava um tanto o cansaço de dona Laura e a calma prudencial de Sousa Costa. Servia de assunto possível nos dias em que, depois da janta, Sousa Costa queimava o charuto no hol, como que tradicionalmente revivendo a cerimônia tupi. Depois se escovava, pigarreando circunspecto. Vinha dar o beijo na mulher. —Adeus papai! —Até logo. —Até logo papai! —Boa noite. Dona Laura ficava ali, mazonza, numa quebreira gostosa, quase deitada na poltrona de vime, balanceando manso uma perna sobre a outra. Isso quando não tinham frisa, segundas e quintas no Cine República. Folheava o jornal. Os olhos dela, descendo pela coluna termométrica dos falecimentos e natalícios, vinham descansar no clima temperado do folhetim. Às vezes ela acordava um romance da biblioteca morta, mas os livros têm tantas páginas... Folhetim a gente acaba sem sentir, nem cansa a vista. Como Fräulein lê!... As crianças foram dormir. Vida pára. Os estralos espaçados dos vimes assombram o cochilar de dona Laura. Qual! Fräulein não podia se sentir a gosto com aquela gente! Podia porque era bem alemã. Tinha esse poder de adaptação exterior dos alemães, que é mesmo a maior razão do progresso deles. No filho da Alemanha tem dois seres: o alemão propriamente dito, homem-do-sonho; e o homem-da-vida, espécie prática do homem-do-mundo que Sócrates se dizia. O alemão propriamente dito é o cujo que sonha, trapalhão, obscuro, nostalgicamente filósofo, religioso, idealista incorrigível, muito sério, agarrado com a pátria, com a família, sincero e 120 quilos. Vestindo o tal, aparece outro sujeito, homem-da-vida, fortemente visível, esperto, hábil e europeiamente bonitão. Em princípio se pode dizer que é matéria sem forma, dútil H²O se amoldando a todas as quartinhas. Não tem nenhuma hipocrisia nisso, nem máscara. Se adapta o homem-da-vida, faz muito bem. Eu se pudesse fazia o mesmo, e você, leitor. Porém o homem-do-sonho permanece intacto. Nas horas silenciosas da contemplação, se escuta o suspiro dele, gemido espiritual um pouco doce por demais, que escapa dentre as molas flexíveis do homem-da-vida, que nem o queixume dum deus paciente encarcerado. O homem-da-vida é que a gente vê. Ele criou no negócio dele artigo tão bom como o do inglês. Cobra caro. Mas não vê que um comprador saiu com as mãos abanando por causa do preço. Adapta-se o homem-da-vida. No dia seguinte o freguês encontra artigo quase igual ao outro, com o mesmo aspecto faceiro e de preço alcançável. Sai com os bolsos vazios e as mãos cheias. O anglo da fábrica vizinha, ali mesmo, só atravessar um estirão de água zangada, não vendeu o artigo dele. Não vendeu nem venderá. E continuará sempre fazendo-o muito bom. Eu admirava mais o inglês se só este conseguisse manipular a mercadoria excelente, porém o alemão homem-da-vida também melhora as coisas até a excelência. Apenas carece que alguém vá na frente primeiro. Isso o próprio Walter de Rathenau observou, grande homem!... Homem-do- sonho. Os outros que inventem. O alemão pega na descoberta da gente e a desenvolve e melhora. E a piora também, estabelecendo uma tabela de preços a que podem abordar bolsas de todos os calados. Daí, aos poucos, todo o mundo ir preferindo o comerciante alemão. Os países de exportação industrial viam o fenômeno, de cara feia. O homem-da-vida observava a raiva da vizinhança... E se lá nas trevas interiores, onde se reúnem as assombrações familiares, o homem-do-sonho também cantava o seu "Home, sweet home" que a nenhuma raça pertence e é desejo universal, o homem-da-vida se adaptava ainda. Construía canhões pelas mãos brandas duma viúva. Armazenava gases asfixiantes, afiava lamparinas pra cortar futuramente os imaginários bracinhos de quanto Haensel e quanta Gretel imaginários e franceses produz o susto razoável de Chantecler. Bárbaro tedesco, infra terno germano infraterno! Aceitemos mesmo que engordasse a idéia multissecular, universal e secreta, da posse do mundo... Não culpe-se por ela o homem-do-sonho. O da-vida é que se observando vitorioso no mundo concluía que era muito justo lhe caber a posse do tal. Quem que errou forte e incorrigivelmente? Só Coral. Têm boa voz e cantam. Solistas? Só cantam em coro. Gesellschaft. Porém isso é para alemães, e prós outros? Sim: quase o mesmo ...Apenas um pouco mais de verdade prática e menos Wagner. E o serviço dela entende só da formação dos homens. O homem tem de ser apegado ao lar. Dirige o sossego do lar. Manda. Porém sem domínio. Prove. É certo que a mulher o ajudará. O ajudará muito, dando algumas lições de línguas, servindo de acompanhadora pra ensaios na Panzschuele, fazendo a comida, preparando doces, regando as flores, pastoreando os gansos alvos no prado, enfeitando os lindos cabelos com margaridinhas... Fräulein engole quase um remorso porque se apanha a divagar. Queixumes do deus encarcerado. O homem-da-vida quer apagar tantas nuvens e afirma ríspido que não trata-se de nada disso: a profissão dela se resume a ensinar primeiros passos, a abrir olhos, de modo a prevenir os inexperientes da cilada das mãos rapaces. E evitar as doenças, que tanto infelicitam o casal futuro. Profilaxia. Aqui o homem-do-sonho corcoveia, se revolta contra a aspereza do bom senso e berra: Profilaxia, não! Mas porém deverá parolar, quando mais chegadinho o convívio, sobre essas "meretrizes"que chupam o sangue do corpo sadio. O sangue deve ser puro. Vejam por exemplo a Alemanha, que-dê raça mais forte? Nenhuma. E justamente porque mais forte e indestrutível neles o conceito da família. Os filhos nascem robustos As mulheres são grandes e claras. São fecundas. O nobre destino do homem é se conservar sadio e procurar esposa prodigiosamente sadia. De raça superior, como ela, Fräulein. Os negros são de raça inferior. Os índios também. Os portugueses também. Mas esta última verdade Fräulein não fala aos alunos. Foi decreto lido a vez em que um trabalho de Reimer lhe passou pelas mãos: afirmava a inferioridade dos latinos. Legítima verdade, pois quem é Reimer? Reimer é um grande sábio alemão. Os portugueses fazem parte duma raça inferior. E então os brasileiros misturados? Também isso Fräulein não podia falar. Por adaptação. Só quando entre amigos de segredo, e alemães. Porém os índios, os negros quem negará sejam raças inferiores? Como é belo o destino do casal superior. Sossego e trabalho. Os quatro ombros trabalham sossegadamente, ela no lar, o marido fora do lar. Pela boca da noite ele chega da cidade escura... Vai botar os livros na escrivaninha. Depois vem lhe dar o beijo na testa... Beijo calmo... Beijo preceptivo... Todo de preto, com o alfinete de ouro na gravata. Nariz longo, quase diáfano bem raçado... Todo ele é claro, transparente... Tossiria, arranhando o óculos sem aro... Tossia sempre... E a mancha irregular do sangue nas maçãs... Jantariam quase sem dizer nada... Como passara?... Assim, e ele?... Talvez mais três meses e termina o segundo volume de O Apelo da Natureza na Poesia dos Minnesänger... Lhe davam o lugar na Universidade... A janta acabava... Ele atirava-se ao estudo... Ela arranja de novo a toalha sobre a mesa... Temos concerto da Filarmônica amanhã. Diga o programa. Abertura de Spohr, a Pastoral de Beethoven, Strauss, Hino ao Sol de Mascagni e Wagner. A Pastoral? A Pastoral. Que bom. E de Wagner? Siegfried-Idill e Götterdãmmerung. Siegfried-Idill? Siegfried-Idill. Ah! podiam dar a Heróica... Já ouvimos cinco vezes a Pastoral, este ano... podiam levar a Heróica... Mas a Heróica... Napoleão... Em todo caso a gente não pode negar: Napoleão foi um grande general... Morreu preso em Santa Helena. Aqui Fräulein repara que aos poucos o homem-do-sonho se substituíra de novo ao homem-da-vida. É porque este aparece unicamente quando trata- se de viver mover agir. O outro é interior, eu já falei. Ora, pois o pensamento é interior, nem sequer é volição, que participa já do ato. O homem-da-vida age não pensa. Fräulein está pensando. Nem o homem-da-vida, propriamente, lhe disse que ela ensina apenas os primeiros passos do amor, dá a entender isso apenas, pela maneira com que obstinada e mudamente se comporta. Franqueza: o que pratica é isso e apenas isso. Porém vão falar a um alemão que ele traz consigo tal homem-da-vida... Energicamente negará, nunca morou nesta casa. E com razão. Reconhece o homem-do-sonho porque este pensa e sonha. Ora de verdadeiro, pro idealista só o que é metafísico. As matérias são mudas, as almas pensam e falam. Tratando-se pois de amor-tese, teoria do amor, amorologia, é o prisioneiro paciente quem amassa o miolo de pão, esculpe e colore cestinhas lindas, pra enfeite do apartamento arranjado e limpo que Fräulein tem no pensamento. A consciência, porém, que não é nem da vida nem do sonho e a Deus pertence, lhe mostra como atuou o homem-da-vida. Unicamente ensinou primeiros passos, abriu olhos. Foi prático. Foi excelente. Porém pra Fräulein tal virtude não basta, e a conseqüência é um remorso. Porém remorsico vago, muito esgarçado. E ela continuara divagando, divagando, açucaradamente divagando em seu pequeno pensamento. Assim enfeita os gestos do homem-da-vida com o sonho sério severo e simples, pra usar unicamente esses. E sonoro. Wiegenlied, de Max Reger, opus 76. Langsam.¹ Lento. (Aqui o termo vem tomado como indicação de movimento musical.) ... O quartinho é escuro. Maria embala no bercinho pobre o filho recém- nascido. Janelas abertas, dando para a grande noite azulada, facilmente mística. Nascem do chão, saem pelas janelas as duas colunas inclinadas do luar. Verão. Silêncio. Murmúrio em baixo, longe, das águas sagradas do Reno. Respira-se possante, fecundo, imortal, o aroma do ventre de Erda. A canção é para criancinhas. E, como na cisma tudo é mistura e associação, à melodia de Reger vem continuar o Lied, de Körner: "Geht zur Ruh'! Schlisst die müden Augen zu! Stille wird es auf den Strassen Nur den Wächter hört man blasen, Und die Nacht ruft allen zu: Geht zur Ruh'!.. " Ide dormir! Fechai os olhos cansados! Nas ruas silenciosas Só se ouve o apito do guarda, E a noite a todos adverte: Ide dormir! (Trad. de Manuel Bandeira) A canção não é pra criancinhas? É. Soa severa, honesta, popular... A consciência de Fräulein adormece. É coisa que se ensine o amor? Creio que não. Ela crê que sim. Por isso não foi no jardim, deve se guardar. Quer mostrar que o dever supera os prazeres da carne, supera. Carlos desfolha uma rosa. Sob as glicínias da pérgola braceja de tal jeito que o chão todo se pontilha de lilá. —Ih! vou contar pra mamãe que você está estragando as plantas! —Não me amole! —Amolo, pronto! Mamãe! Mamãe! Me largue! Feio! Mamãe! —Me dá um beijo! —Não dou! —Dá! —Mamãe! olhe Car-los! ai!... Aldinha aos berros pela casa. Ele não fez por mal, quis beijar e machucou. Aldinha chora. A culpa é de quem? De Carlos. Carlos é um menino mau. Fräulein fazia Maria Luísa estudar no piano pequenos Lieder populares dum livro em quarto com figuras coloridas. Lhe dava também pecinhas de Schubert e alegros de Haydn. Pra divertir, fez ela decorar uma transcrição fácil da "Canção da Estrela", do Tanhäuser. As crianças já cantavam em uníssono o "Tannenbaum" e um cantar-de-estrada mais recente, que pretendia ser alegre mas era pândego. Fräulein fazia a segunda voz. E falava sempre que não deviam cantar maxixes nem foxtrotes. Não entendia aquele o outro, apoiado na mesa, descansando quebrado em curvas de braço e joelho, tinha uma graça e doçura mesmo femínea, jovialidade! De repente entregou os olhos à moça. Trouxe-os de novo para a brincadeira da folha e da mão. Fräulein sabia apreciar tanta meninice pura e tão sadia. Felizes ambos nessa intimidade. —Vou trocar de roupa! Na verdade ele fugia. Não tinha ainda a ciência de prolongar as venturas, talvez nem soubesse que estava feliz. Fräulein sorriu pra ele, inclinando de leve a cabeça bruna manchada de sol. Carlos se afastou com passo marinheiro balançando, bem apoiado no chão. A cabeça bem plantada na touceira do suéter. Entrou na casa sem olhar pra trás. Mas Fräulein o enxerga por muito tempo ainda, se afastando. Vitorioso sereno. Como um jovem Siegfried. Depois do almoço as crianças foram na matinê do Royal. Estou falando brasileiro. Fräulein acompanhou-as. Carlos acompanhou. Acompanhou quem? —E! Você nunca vinha na matinê e agora vem só pra amolar os outros! Vá pro seu futebol que é melhor! Ninguém carece da sua companhia... —Que tem, Maria, eu ir também! —Olhe o automóvel como está! Machuca todo o vestido da gente! Com efeito o automóvel alugado é pequeno pra cinco pessoas, se apertaram um pouco. E como são juntinhas as cadeiras do Royal!. Carlos não repara que tem entreatos nos quais os rapazotes saem queimar o cigarro, engolir o refresco. Se ele não fuma... Mas não tem rapazote que não goste de passar em revista as meninetas. Carlos não fuma. Se deixa ficar bem sentadinho, pouco mexe. Olha sempre pra diante fixo. Vermelho. Distraído. Isso: quebrado pelos calores de dezembro, nada mais razoável. O espantoso é perceber que ela derrubou o programa, ergue-o com servilidade possante. —Está gostando, Fräulein? Ao gesto de calor que ela apenas esboça, faz questão de guardar sobre os joelhos o jérsei verde. Tudo com masculina proteção. Isso a derreia. Como está quente! O certo é que o corpo dela ultrapassa as bordas da cadeira todo o mundo se queixa das cadeiras do Royal. Há, talvez me engane, um contato. Dura pouco? Dura muito? Dura toda a matinê, vida feliz foge tão rápida!.. Principalmente quando a gente acompanha uma senhora e três meninas. De repente Carlos quase abraça Fräulein, debruçando pra ver se do outro lado dela as irmãzinhas, portem-se bem, heim!... Compra balas. Ajuda as meninas a descer do automóvel na volta, e tão depressa que ainda paga o motorista antes de Fräulein, eu que pago! Subindo a escada, por que arroubos de ternura não sei, abraça de repente Maria Luísa, lhe afunda uns lábios sem beijo nos cabelos. —Ai, Carlos! Não faça assim! Você me machuca! Desta vez ele não machucou- Machucou sim - Porém nas epidermes da vaidade, que Maria Luísa se pensa mocinha e se quer tratada com distinção. Porém o menino já esta longe e agora havemos de segui-lo até o fim, entrou no quarto. Mais se deixou cair, sem escolha, numa cadeira qualquer, a boca movendo numa expressão de angustia divina. Quereria sorrir... Quereria, quem sabe um pouco de pranto, o pranto abandonado faz vários anos, talvez agora lhe fizesse bem. Nada disso. O romancista é que esta complicando o estado de alma do rapaz. Carlos apenas assunta sem ver o quadrado vazio do céu. Uma final sublime, estranha sensação... Que avança, aumenta... Sorri bobo no ar. Pra não estar mais assim esfregando lentamente, fortemente, as palmas das mãos, uma na outra, aperta os braços entre as pernas encolhidas, musculosas. Não pode mais, faltou-lhe o ar. Todo o corpo se retesou numa explosão e pensou que morria. Pra se salvar murmura: —Fräulein! Baixam rápidos do Empíreo os anjos do Senhor, asas, muitas asas. Tatalam produzindo brisa fria que refrigera as carnes exasperadas do menino. As massagens das mãos angélicas pouco a pouco lhe relaxam os músculos espetados, Carlos se larga todo em beata prostração. Os anjos roçam pela epiderme dele esponjas celestiais. Essas esponjas apagam tudo, sensações estranhas, ardências e mesmo qualquer prova de delito. Na alma e no corpo. Ele não faz por mal! são coisas que acontecem. Porém, apesar de sozinho, Carlos encafifou. Acham muita nisso os anjos, lhe passando nos olhos aquela pomada que deixa seres e vida tal-e-qual a gente quer. São Rafael nos céus escreve: Nº 9.877.524.953.407: Carlos Alberto Sousa Costa. Nacionalidade: Brasileiro. Estado social: Solteiro. Idade: Quinze (15) anos. Profissão: (um tracinho). Intenções: (um tracinho). Observações extraordinárias: (um tracinho). "REGISTRO DO AMOR SINCERO". Outro dia Fräulein voltou duma dessas reuniões na casa da amiga, com um maço de revistas e alguns livros. Um médico recém-chegado da Alemanha convicto de Expressionismo, lhe emprestara uma coleção de Der Sturm e obra de Schikele, Franz Werfel e Casimiro Edschmid. Fräulein quase nada sabia do Expressionismo nem de modernistas. Li; Goethe, sempre Schiller e os poemas de Wagner. Principalmente. Lia também bastante Shakespeare traduzido. Heine. Porém Heine caçoara da Alemanha, lhe desagradava que nem Schopenhauer, só as canções. Preferia Nietzsche mas um pouquinho só, era maluco, diziam. Em todo caso Fräulein acreditava em Nietzsche. Dos franceses, admitia Racine e Romain Rolland. Lidos no original Seguiu página por página livros e revistas ignorados. Compreendeu e aceitou o Expressionismo, que nem alemão medíocre aceita primeiro e depois compreende. O que existe deve ser tomado a sério. Porque existe. Aquela procissão de imagens afastadíssimas, e contínuo adejar por alturas filosóficas metafísicas, aquela eterna grandiloqüência sentimental... E a síntese, a palavra solta desvirtuando o arrastar natural da linguagem... De repente a mancha realista, ver um bombo pam! de chofre... Eram assim. Leu tudo. E voltou ao seu Goethe e sempre Schiller. Se lhe dessem nova coleção de algum mensário inovador, mais livros, leria tudo página por página. Aceitaria tudo. Compreenderia tudo? Aceitaria tudo. Para voltar de novo a Goethe. E sempre Schiller. O caso evolucionava com rapidez. Muita rapidez, pensava Fräulein. Mas Carlos era ardido, tinha pressa. Por outra: não é que tivesse pressa exatamente, porém não sabia somar. A aritmética nunca foi propícia aos brasileiros. Nós não somamos coisa nenhuma. Das quatro operações, unicamente uma nos atrai, a multiplicação, justo a que mais raro freqüenta os sucessos deste mundo vagarento. De resto, nós já sabemos que Carlos estragava tudo. Castigos da multiplicação. Ele compreendeu enfim, devido aquele fato lamentável apagado pela esponja dos arcanjos, que gostava mesmo de Fräulein. Principiou não querendo mais sair de casa. De primeiro era o dia inteirinho na rua, futebol, lições de inglês, de geografia, de não-sei-que-mais e natação, tarde com os camaradas e inda por cima, depois da janta, cinema. Agora? Vive na saia de Fräulein. Sempre desapontado, que dúvida! mas porém na saia de Fräulein. Sorri aquele sorriso enjeitado, geralmente de olhos baixos, cheio de mãos. De repente fixa a moça na cara destemido pedindo. Pedindo o que? Vencendo. Fräulein se irrita: sem-vergonha! mesmo. Estes brasileiros?!... Uma preguiça de estudar!... Qual de vocês seria capaz de decorar, que nem eu, página por página, o dicionário de Michaelis pra vir para o Brasil? não vê! Porém quando careciam de saber, sabiam. Adivinhavam. Olhe agora: Que podia Carlos entender, se ignorava o sentido de muitas daquelas palavras? Ríspida: —Então diga o que é. O menino, meio enfiado, vai vivendo: É que eles ficaram sentados na praia, de mãos dadas muito juntinhos. Depois ele deitou a cabeça no ombro dela. (Carlos abaixava a dele e já não ria.) Depois... (lhe deu aquela vergonha de saber o que não sabia. Ficou muito azaranzado). A segunda estrofe não entendo nada. Vertraust... que que é vertraust!... Mas depois o coração deles principiou fazendo que nem o mar... —Deles não, Carlos. Dele só. —Deles! Ganz: todos! Aqui quer dizer dos dois, dela também! —Você está adivinhando, Carlos! Mein Herz, o coração dele parecia com o mar. Ganz gleicht: parecia, era como, tal-e-qual. —Hmm... Desconsolado. Sensação de pobreza, isolamento... —Não sei mais! Ela, muito suave, extasiada: —Você está falando certo, Carlos! Continue! —O coração dele estava tal-e-qual o mar... Em tempestade... E de repente transfigurado, numa confissão de olhos úmidos, arrebatou todos os símbolos murmurando: —Mas ele tinha muitas péloras no coração! Queria dizer pérolas porém saiu péloras, o que que a gente há de fazer com a comoção! Fräulein ríspida: —Escreva agora. Ríspida, porque de outro jeito não se salvava mesmo. Careceria pra abafar o... desejo? desejo, tampar o peito com a cabeça dele. Pampampam... acelerado. Lhe beijar os cabelos os olhos, os olhos a testa muito, muito muito... Sempre! Ficarem assim!... Sempre... Depois ele voltava do trabalho na cidade escura... Depunha os livros na escrivaninha... Ela trazia a janta... Talvez mais três meses, pronto o livro sobre O Apelo da Natureza na Obra dos Minnesänger... Comeriam quase em silêncio... Carlos também estava escrevendo letras muito alheias. Era uma angústia cada vez mais forte, intolerável já. Como respirar? Pérolas... Pra que pérolas!... que idéia de Heine! A hora ia acabar... As letras se desenhavam mais lentas, sem gosto, prolongando a miséria e a felicidade. A fala de Fräulein, seca, riscava as palavras do ditado em explosões ácidas navalhando a entressombra. Acabava desoladamente: —... Tiefe ruht. Se levantou libertada. Porém no papel surgia em letras infelizes "tiefe ruht", e deu-se então que Fräulein não pôde mais consigo. Se despejou sobre o menino, com o pretexto de corrigir: —Vou escrever com a mão de você mesmo, disfarçou. O rosto se apoiou nos cabelos dele. Os lábios quase que, é natural, sim: tocaram na orelha dele. Tocaram por acaso, questão de posição. Os seios pousaram sobre um ombro largo, musculoso, agora impassível escutando. Chuvarada de ouro sobre a abandonada barca de Dânae... Carlos... êta arroubo interior, medo? vergonha? aterrorizado! indizível doçura... Carlos que nem Pedra. Fräulein com a mão dele escreveu em letras palhaças: "Tiefe ruht". Não tinham mais nada pra se falar, não tinham. Quando saíram da biblioteca, pela primeira vez, uma desesperada felicidade de acabar com aquilo. Porém só Carlos desta vez é que não sabia bem direito o que era o "aquilo". Pancadas na porta de Fräulein. Virou assustada, resguardando o peito. Abotoava a blusa: —Quem é? —Sou eu, Fräulein. Queria lhe falar. Abriu a porta e dona Laura entrou. —Queria lhe falar. Um pouco... —Estou às suas ordens, minha senhora. Esperou. Dona Laura respirava muito nervosa, não sabendo principiar. —É por causa do Carlos... —Ah... Sente-se. —Não vê que eu vinha lhe pedir, Fräulein, pra deixar a nossa casa. Acredite: isto me custa muito porque já estava muito acostumada com você e não faço má idéia de si, não pense! mas... Creio que já percebeu o jeito de Carlos... ele é tão criança!... Pelo seu lado, Fräulein, fico inteiramente descansada... Porém esses rapazes... Carlos... —Já vejo que o senhor seu marido não lhe disse o que vim fazer aqui. Dona Laura teve uma tontona, escancarou olhos parados: —Não! —É lamentável, minha senhora, o procedimento do senhor seu marido, evitaria esta explicação desagradável. Pra mim. Creio que pra senhora também. Mas é melhor chamar o seu marido. Ou quer que desçamos pro hol? Foram encontrar Sousa Costa na biblioteca. Ele tirou os olhos da carta, ergueu a caneta, vendo elas entrarem. —O senhor me prometeu contar a sua esposa a razão da minha presença aqui. Lamento profundamente que o não tenha feito, senhor Sousa Costa. Sousa Costa encafifou, desacochado por se ver colhido em falta. Riscou uma desculpa sem inteligência: —Queira desculpar, Fräulein. Vivo tão atribulado com os meus negócios! Demais: isso é uma coisa de tão pouca importância!... Laura, Fräulein tem o meu consentimento. Você sabe: hoje esses mocinhos... é tão perigoso! Podem cair nas mãos de alguma exploradora! A cidade... é uma invasão de aventureiras agora! Como nunca teve!. COMO NUNCA TEVE, Laura... Depois isso de principiar... é tão perigoso! Você compreende: uma pessoa especial evita muitas coisas. E viciadas! Não é só bebida não! Hoje não tem mulher-da-vida que não seja eterômana, usam morfina... E os moços imitam! Depois as doenças!... Você vive na sua casa, não sabe... é um horror! Em pouco tempo Carlos estava sifilítico e outras coisas horríveis, um perdido! É o que eu te digo, Laura, um perdido! Você compreende... meu dever é salvar o nosso filho... Por isso! Fräulein prepara o rapaz. E evitamos quem sabe? até um desastre!... UM DESASTRE! Repetia o "desastre" satisfeito por ter chegado ao fim da explicação. Passeava de canto a canto. Assim se fingem as cóleras, e os machos se impõem, enganando a própria vergonha. Dona Laura sentara numa poltrona, maravilhada. Compreendia! Porém não juro que compreendesse tudo não. Aliás isso nem convinha pra que pudesse ceder logo. Fräulein é que estava indignada. Que diabo! atos da vida não é arte expressionista, que pode ser nebulosa ou sintética. Não percebera bem a claridade latina daquela explicação. O método germanicamente dela e didática habilidade no agir, não admitiam tal fumarada de palavras desconexas. Aquelas frases sem dicionário nem gramática irritaram-na inda mais. Queria, exigia sujeito verbo e complemento. Só uma coisa julgara perceber naquele ingranzéu, e, engraçado! Justamente o que Sousa Costa pensava, mas não tivera a intenção de falar: pagavam só pra que ela se sujeitasse às primeiras fomes amorosas do rapaz. Este circunlóquio das "fomes amorosas" fica muito bem aqui. Evita o "libido" da nomenclatura psicanalista, antipático, vago masculino, e de duvidosa compreensão leitoril. As fomes amorosas são muito mais expressivas e não fazem mal pra ninguém. Isto é: vir na casa de Sousa Costa unicamente pra se sujeitar às tais de Carlos, o homem-do-sonho de dentro de Fräulein vê nisso um insulto, dá uns urros e principia chorando. Sem um desses senhores, Darwin estivera escrevendo coisas prós leitores inteligentes do tal de globo terráqueo e desde então se começou falando em seleção e outras espertezas que permitiram este saborosíssimo cisma em seres imperfeitos machos e fêmeas imperfeitas. Que invento admirável o cisma! Pouco depois da Origem das espécies, nasceu na Alemanha uma criancinha. Mamava que nem as outras, berrava sonoramente e trocava os dias pelas noites pra dormir. Como desse em seguida pra escrever coisas espantosas, os alemães principiaram lhe chamando Herr Professor Freud. Pois não é que essa criancinha ainda veio fortificar mais as escrituras de Fliess, de Kraff-Ebbing, sobre a nossa imperfeita bizarria! Afirmou que uma certa porção de hermafroditismo anatômico é ainda normal na gente! Incrível! Incrível e desagradável. A tanta ciência e tão pouca anatomia, eu prefiro aquela idéia contada pelo padre Pernetty: "Les femmes sont plus de pituite et les hommes plus de bile... Certains philosophes ne craindraient pas d'afirmer que les femmes ne sont femmes que par un défaut de chaleur". E se quiserem coisa ainda mais grata, é lembrar a fábula discreta contada por Platão no Banquete... Porém o que importa são as afirmativas daqueles alemães sapientíssimos, aqui evocados para validar a minha asserção e lhe dar carranca científico- experimental: NÃO EXISTE MAIS UMA ÚNICA PESSOA INTEIRA NESTE MUNDO E NADA MAIS SOMOS QUE DISCÓRDIA E COMPLICAÇÃO. O que chama-se vulgarmente personalidade é um complexo e não um completo. Uma personalidade concordante, milagre! Pra criar tais milagres o romance psicológico apareceu. De então, começaram a pulular os figurinos mecânicos. Figurinos, membros, cérebros, fígados de latão, que, por serem de latão, se moveram com a vulgaridade e a gelidez prevista do latão. Oh! positivistas da fantasia! oh ficções monótonas e resultados já sabidos!... Fräulein é senhorinha modesta e um pouco estúpida. Não é dama nem padre de Bourget. Pois uma vez em defesa própria afirmou: "Hoje a filosofia invadiu o terreno do amor", que surpresa pra nós! Ninguém esperava por isso, não é verdade? Daí uma sensação de discordância, eminentemente realista. Eu sempre verifiquei que nós todos, os do excelente mundo e os da ficção quando excelente, temos os nossos gestos e idéias geniais... Pois tomemos essa frase de Fräulein por uma idéia genial que ela teve. E tanto assim que produziu uma surpresa nos leitores e outra em Sousa Costa e dona Laura. De tal força que os abateu. Estão, faz quase um minuto, mudos e parados. Sousa Costa olha o chão. Dona Laura olha o teto. Ah! criaturas, criaturas de Deus, quão díspares sois! As Lauras olharão sempre o céu. Os Felisbertos sempre o chão. Alma feminina ascensional... E o macho apegado às imundícies terrenas. Ponhamos imundícies terráqueas. —Mas Laura você devia ter falado comigo primeiro! —Mas quando é que eu havia de imaginar!... A culpa foi de você também! —Ora essa é boa! eu fiz o que devia! E agora ela vai-se embora! A lembrança de que Fräulein partia, lhes deu o sossego desejado. O mal foi dona Laura acentuar: —E ele é tão criança! —Tão criança? você não vê como ele está! Sousa Costa não vira quase nada ou coisa nenhuma, o argumento porém —era fortíssimo. — Pois eu lamento profundamente que Fräulein vá embora, Carlos me preocupa... Está aí o filho do Oliveira! E tantos!... Eu não queria que Carlos se perdesse assim! Viram imediatamente o menino mais que trêmulo, empalamado, bêbedo e jogador. Rodeavam-no, ponhamos, três amantes. Uma era morfinômana, outra eterômana, outra cocainômana, os dois cônjuges tremendo horrorizados. Carlos desencabeçara duma vez. Nojento e cachorro. E o imenso amor verdadeiro por aquele primogênito adorado, cresceu dentro deles estrepitosamente Dona Laura abaladíssima desafogava as memórias: —Você não imagina... passa o dia inteiro junto de Fräulein. Dela não me queixo não... se porta muito discretamente. Eu seria incapaz de adivinhar!... As crianças têm progredido muito... Maria Luísa já fala bem o alemão... Pois até elas já perceberam! Você sabe o que são essas crianças de hoje! toda hora mandam Carlos ir bulir com Fräulein! Sousa Costa gostou da inteligência das filhas. —É!... Pestinhas! Depois se assustou. Crianças não devem saber dessas coisas principalmente meninas. Lembrou remédio decisivo: —Você proíba elas de falarem isso! ah, também agora Fräulein parte - Acaba-se com isto! Suspirou. A idéia de que Fräulein partia lhes deu o desassossego. —A história é Carlos... —Eu também tenho medo... —Laura, as coisas hoje têm de ser assim, a gente não pode mais proceder como no nosso tempo, o mundo está perdido... Olhe: contam tantas desses rapazes... Não se sabe de nenhum que não tenha amante! E vivem nos lupanares! Jogadores! isso então? não tem um que não seja jogador!... Eu também não digo que não se jogue... afinal... Um pouco... de noite... depois do jantar... não faz mal. E quando se tem dinheiro, note-se! E juízo. Essa gente de hoje?!... Depois dão na morfina, é o que acontece! Veja a cor do filho do Oliveira! aquilo é morfina! —Carlos... Sousa Costa se extasiando com o discurso: —Fräulein preparava ele. Depois isso não tem conseqüência... Quem me indicou, Fräulein foi o Mesquita. O Zezé Mesquita, você conhece, ora! aquele um que mudou-se pro Rio o ano passado... —Sei. —Se utilizaram dela, creio que pro filho mais velho. E o pior perigo é a amante! São criançolas, levam a sério essas tolices, principiam dando dinheiro por demais... e com isso vêm os vícios! O perigo são os vícios! E as doenças! Porque que esses moços andam todos desmerecidos, moles?... Por causa das amantes! e depois você pensa que Carlos, se não tivesse Fräulein, não aprendia essas coisas da mesma forma? aprendia sim senhora! Se já não aprendeu!... E com quem! Bom! o melhor é não se falar mais nisso, até me dá dor de cabeça. Está acabado e pronto. Porém agora os dois convencidíssimos de que aquilo não devia acabar assim. Aliás, a convicção se firmara desde que Sousa Costa empregara, por reminiscências românticas, a palavra "lupanar". Eu já falei que toda a gente tem idéias geniais. Careciam de Fräulein. Pra sossego deles, Fräulein devia ficar. —Quem sabe... você falando com ela... ela ficava... —Eu acho melhor, Laura. Francamente: acho. Fräulein falava tudo pra ele, abria os olhos dele e ficávamos descansados, ela é tão instruída! Depois pregávamos um bom susto nele. (Se ria.) Ficava curado e avisado. Ao menos eu salvava a minha responsabilidade. Depois não é barato não! tratei Fräulein por oito contos! Sim senhora: oito contos, fora a mensalidade. Naturalmente não barateei. Mais caro que o Caxambu que me custou seis e já deu um lote de novilhas estupendas. Mas isso não tem importância, o importante é o nosso descanso. Pausa. —Você proíba as crianças de falarem mais nisso... —Pois é. Talvez ela fique... Você fala com ela amanhã... Se ergueram. Entraram no hol. Mas aquilo continuar... Era bem melhor que Fräulein partisse. E depois, ora! ele que se arrume! boa educação tivera, exemplos bons em casa... E o mundo não era tão feio como parecia. Nem Carlos nenhum arara... E as crianças já tinham percebido... que espertas! E devia se calar. Se acaso se propunha a algum chefe de família a recusa vinha logo... Ríspida. Falta de entendimento e de prática... Deste povo inteiro. E era sempre aquilo: no outro dia a dona da casa vinha muito sáxea e..., Mas mesmo possível que uma pessoa olhe prós outros de cima, altivamente?... Só porque tinha dinheiro?... Lhe entregava o envelope com a mensalidade Isso quando não descontavam as lições que inda faltava dar... Agora os meninos iam descansar um pouco; mais tarde, quando fosse pra recomeçar, avisariam' Pra que mentir?... Preciso comprar meias brancas. Como eram complicados os latinos. Cansativos. Fräulein achava desnecessária tanta mentirada, e bobo tanto preconceito De primeiro isso irritava bastante o deus encarcerado, e era um berreiro d' atordoar dentro do corpo dela. Achava que o ideal da honra era repetir aquela frase que Schiller botara na boca de Joana D'Arc: "Não posso aparecer sem minha bandeira", ser sincera. Mas qual, as mães brasileiras, quando se tratava dos filhos, eram pouco patriotas, Fräulein fora obrigada a guardar a bandeira. E não sei se o deus encarcerado acabou se adaptando também, sei é que não fez mais chinfrim. Só ficou aquele pensamento de que podia ser bem mais sincera na Europa. E na Alemanha então?... Porém sofria-se muito agora lá, e Fräulein não gostava de sofrer. As notícias chegavam cada vez mais tristes. A última carta do irmão eram dois braços implorantes pra América... América desilusória. Afinal nem tanto assim, não se morria de fome, trajava boas fazendas. Sobretudo comia bem. Fräulein começou arranjando com mais atenção os vestidos. Porém sabia que chegando a hora de descansar, so lhe seria possível o sossego na pátria alemã. —Patrão está chamando. Esperança! Onde estava Sousa Costa? Correu pra porta. —Tanaka... Ninguém mais no corredor. —Pöbel.1 1 Aqui equivale a "Ordinário!" Se apressou diante do espelho, deu um toque nos cabelos, concertou a blusa. Sousa Costa, que estava esperando no hol, fez ela entrar na biblioteca. —Fräulein... antes eu tenho de lhe apresentar as nossas desculpas. Laura não sabia de nada e foi precipitada. Ela é mãe, Fräulein... Mas está muito arrependida do que fez. —Não tem dúvida, senhor Sousa Costa. O mal foi o senhor... É verdade que o senhor se esqueceu. —Esqueci, Fräulein... esqueci. Tantos negócios! É impossível a gente se lembrar de tudo mas Laura fez mal. Fräulein... há de concordar comigo... o que passou, passou, não é assim? Laura está convencida de que a senhora... Deve abandonar a idéia de ontem, Fräulein. Eu... nós lhe pedimos que fique. —Mas senhor Sousa Costa... Esperou. Sousa Costa também esperou. Daí nascer um silêncio. Aproveitemo-lo pra observar o seguinte: Fräulein não hesitava, como fez parecer, queria ficar. Estava certa de ficar. Então porque hesitou? Porque é de praxe se fazer de rogada a pessoa vulgar. E uma prática boa de honestidade não voltar atrás sem muita insistência dos outros. Se compreende pois o abandono em que vive a bandeira de Joana D'Arc. E porque Sousa Costa esperou? Porque a hesitação da moça lhe dava esperança nova, se ela recusasse... Que bom! acabava-se com aquilo! Que eram oito contos pra ele! Nada. Por isso não insistiu, esperou. Porém ela foi mais forte. Ascendência de raça superior. Sousa Costa principiou tendo vergonha do silêncio. Ascendência de boa educação. Insistiu: —Desista de partir, Fräulein. —É que... Agora Sousa Costa se calou duma vez, cumprira com o dever. Assim ela não se dobrasse às razões que ele dera!... Fräulein não percebeu isso, mas ficou com medo de hesitar mais, ele podia aceitar aquilo como recusa. E devemos ser francos nesta vida, sempre fora simples e franca. Se aceitava, devia falar que aceitava e deixar-se de candongas. Sempre fora como a Joana de Schiller que não podia aparecer sem a bandeira dela. Emendou logo: —Bom, senhor Sousa Costa. Como o senhor e sua esposa insistem, eu fico. Ora, Fräulein, vá saindo! ninguém insistiu tanto assim. Não, é certo que Sousa Costa e dona Laura insistiram, esta com o marido e ele com Fräulein. Mas porque insistiram, se não queriam? Ninguém o saberá jamais. Insistiram, simplesmente. Fräulein é que ficará por causa da insistência. Por causa disso. Será melhor dizer que por adaptação. Isso: por adaptação. Também se pode pensar no desejo vigiando... sensualidades... Vamos pra diante. Como tombam as expectativas! A alma espera. A postura da espera é estar suspensa, e a alma parece então um pinheiro do Paraná, todos os ramos em corimbo, erguidos pra cima. Os ramos se sustentam muito bem, ascendendo pro alto, expectantes. Enrija-os a seiva da esperança, que é forte. Mas eis que falha a expectativa. O pinheiro do Paraná vira pinheiro da Suécia. E os ramos descendentes, uns nos outros se apoiando, até que os mais de baixo se arrimam no chão. O pinheiro da Suécia volta macambúzio pro quarto conjugai. Dona Laura, pinheiro do Paraná: —Recusou?. —Aceitou. Dona Laura, pinheiro da Suécia. Sousa Costa suspira e: —Assim é melhor, Laura. —Muito melhor, Felisberto. Os dois agora estão convencidos de que o caso resolveu-se bem. Se Carlos se perdesse... Mas agora se salvará pois Fräulein fica. Os dois cônjuges se sentem descansadamente satisfeitos. Vão se vestir, vão viver. Que sossego esta vida boa!... E que gostosura liquidar um caso! Quase todos conservam a impressão de ter vencido. Susto. Os temores entram saem pelas portas fechadas. Chiuiiii... ventinho apreensivo. Grandes olhos espantados de Aldinha e Laurita. Porta bate. Mau agouro? Não... Pláaa... Brancos mantos... E ilusão. Não deixe essa porta bater! Que sombras grandes no hol... Por ques? tocaiando nos espelhos, nas janelas com vidros fechados... que vazias. Chiuiii... Olhe o silêncio. Grave. Ninguém o escuta. Existe. Mana Luisa procura, toda ouvidos ao zunzum dos criados. Porque falam tão baixo os criados? Não sabem. Espreitam. Que que espreitam? Esperam. Que que esperam?... Carlos soturno. Esta dorzinha no estômago... O inverno vai chegar... Ninguém sabe de nada. Se ninguém não escutou nada! Mas a vida esta suspensa nesse dia. —Fräulein... que foi que houve, heim! E ficou rubro rubro da coragem. —Quando, Carlos? Ele envergonhadíssimo. E ela não ajudava, esperando... Por último inda repetiu, escangalhando o menino: —Quando? Ele mentiu: —Pensei que você estava doente. Não me deu lição ontem... —Estive doente, Carlos. —Já sarou!... —Já. Continue a lição, não houve nada. Futuro: Pra se esconder. Fräulein sufocou-o contra o peito, com os seus braços enrolados. Quando ele sentiu sobre os cabelos uma respiração quente de noroeste, principiou a imaginar e criticar. Criticar é comparar. Que gosto que teriam esses beijos do cinema? ergueu a cara. E, pois que era de novo o mais forte, beijou Fräulein na boca. Das lombadas de couro, os grandes amorosos espiavam, Dante, Camões, Dirceu. Não digo que pro momento fílmico do caso, estes sejam livros exemplares, porém asseguro que eram exemplares virgens. Nem cortados alguns. Não adiantavam nada, pois. O caso é que Sousa Costa, escutando um amigo bibliófilo gabar exemplares caros, falara pra ele: —Olha, Magalhães, veja se me arranja uns desses pra minha biblioteca. Por isso é que possuía aquele Camões tão grande, aquela Vita Nuova em pergaminho, um Barlaeus e um Rugendas bom pra distrair as crianças, dia de chuva. Ahn... ia me esquecendo de avisar que este idílio é imitado do francês de Bernardin de Saint-Pierre. Do francês. De Bernardin de Saint-Pierre. Carlos esses três dias viveu? Eu não sei se alcançar a felicidade máxima, extasiar-se aí, e sentir que ela, apesar de superlativa, inda cresce, e reparar que inda pode crescer mais... isso é viver? A felicidade é tão oposta à vida que, estando nela, a gente esquece que vive. Depois quando acaba, dure pouco, dure muito, fica apenas aquela impressão do segundo. Nem isso, impressão de hiato, de defeito de sintaxe logo corrigido, vertigem em que ninguém dá tento de si. E fica mais essa idéia que retomasse de novo a vida, que das portas do Paraíso Terrestre em diante é sofrer e impedimento só. Estou convencido: Carlos não viveu esses três dias. Três, porque no quarto dia os arroubos se espevitaram tão alarmantemente que não puderam mais sujeitar-se ao âmbito social da biblioteca e na mesquinha nora de lição. Pra ele talvez tempo e ambiente pouco importassem, porém nós já sabemos que Fräulein tinha o gosto das metodizações, ali não. Carlos deitando a mania dela, assim gemeu: — Fräulein... eu queria te falar uma coisa... Sem vergonha, sorria. E fechou os olhos encabulado. Se aninhara nos braços dela, pra com mais eficácia ordenar. —Pois fale, Carlos. —Aqui não!... Estes paulistas falam muito devagar, escuta só como ele arrasta a voz: —Aqui não ...De repente a lição acaba e a gente carece de sair... Podem desconfiar!... Fräulein muda. Certas coisas são muito difíceis de falar, quando a gente tem uma quinzena de anos, não pensa nas conseqüências e a querida espera, muda. Carlos era inocente por demais para supor que Fräulein já. Senão desembuxava, qual desembuxava! agia. Porém como nada supunha, não teve coragem pra. Alçou o braço, puxou a cabeça dela, deu o beijo. —Uhmm... suspirou. E emudeceu. Silêncio. Principiou brincando com os dedos dela e muito baixo: —Sim?... —Sim o que, Carlos? —Ora! De repente, se apertando nos braços dela: —Ah, vamos! diga se eu posso ir falar com você!... —Mas falar o que, Carlos? —Ahn... Riu. Depois, cantando numa gaita desafinada: —Você já sabe, agora!... Fräulein teve uma dor toda machucada, teve raiva, empurrou Carlos. —Vamos embora. —Não!... —Me largue. A hora já acabou. —Mais um poucadinho! —Não me aperte assim! —Dá um beijo! —Que men... —Só um... último! Vencida. —Hoje?... —Não me amole! —Hoje, ouviu. Estava combinado.A dificuldade sempre parece maior do que é. Imagino que esta máxima deve ser da maior imoralidade, paciência. Tem crápulas ordinaríssimos que namoram a mulher do próximo. Tem também estudantes dignos de elogio, que pretendem aprender a língua japonesa. Ora eu falo pra esse estudante: Irmãozinho, principie e siga corajoso. A dificuldade sempre parece maior do que é. A gente chega ao fim, ora se chega! Fräulein é que saiu furiosa da biblioteca, uma raiva de Carlos, dos homens, de ser mulher... Principalmente de Carlos, objeto, ser que ocupa lugar no espaço. Lhe machucara o deus encarcerado. Aliás eu já preveni que Carlos era machucador. Carlos era machucador. Porém não fazia por mal. Atrapalhava tudo, nunca tinha intenção de atrapalhar coisa nenhuma. Repare nesse menino que passa. É grandalhão, é. Mesmo pesado. Muitos afirmam que ele é magro... A culpa não é tanto das carnes, que são rijas e abundantes. Come bem. Dorme bem. Passa vida regalada. E é escandalosamente sadio, nem sequer a faringite crônica de oitocentos mil paulistanos. Mas então porque é magro? Já falei que não é magro, desraçado, apenas isso. O que sucede com as raças muito apuradas? A carne é bem cotada no Mercado, por ser muito mais macia. Pra conservar tais excelências a Inglaterra proíbe a intromissão do boi zebu nas marombas dela. Toda gente sabe também que o gado abatido lá na grande Argentina, que do polled- angus albion sempre abunda, atinge tipo elevado na cotação dos importadores europeus. Ora no Brasil entrou o boi zebu. Entra o dunham também, e já pasta o curraleiro e principalmente o caracu. Porém inda não se apurou coisa que valha. Será falta de carne nestes membros possantes? Nem tanto, os ossos é que ainda não diminuíram. Delírios da seleção! fundam o Herd-Book Caracu. O muchirão vai progredindo e já orgulha bastante o Estado de São Paulo. Porém essas coisas não se fazem num dia, carece tempo, muito experiência... E aos poucos, devido à clarividência dos criadores, os chifres diminuem, o focinho se torna uniformemente róseo,cascos róseos, e as malhas apanteradas alindam o pêlo arroz-doce do bicho. Bem claro inda não está... Mas lindo assim mesmo, não acha? Moreno rosado... terá mais deliciosa e masculina cor! Cobre carnes rijas, musculosas, afirmo. Apenas estas se disseminam porque a obrigação delas é cobrir. Então cobrem esses ossos de pouca ou nenhuma seleção, grandalhudos e grandes. Veja os braços, por exemplo. O menino até anda meio recurvado. E as mãos são grosseiras, porém isso já tem causa muito diferente, a culpa é toda dos esportes, futebol, principalmente natação e remo. Agora o boxe está na moda e Carlos boxa. Nos momentos, felizmente mais raros, de consciência de si mesmo, ele se falsifica por completo. Afirma que gosta muito de pugilismo (é mentira) e toma os ares do forte que já não chora como os índios de Gonçalves Dias. Mas de fato, pra meu gosto pessoal, Carlos é um bocado longínquo. Isso não quer dizer falta de coração, significa somente esquecimento do coração, A posição incômoda acordou Carlos. Espreguiçou, empurrando com as mãos a dor do corpo, sentado por que? ah! lembrança viva enxota qualquer sono. Hora e meia! Desejo furioso subiu. Sem reflexão, sem vergonha H fraqueza, corre pra porta de Fräulein. Fechada! Bate. Bate forte com risco de acordar os outros, bate até a porta se abrir, entra... Aqui devem se trocar naturalmente umas primeiras frases de explicação — se ele der espaço para tanto entre os dois! —porém obedeço a várias razões que obrigam-me a não contar a cena do quarto. Mas como nos será impossível dormir, ao leitor e a mim, ambos naquela torcida pelo triunfo de Carlos, vamos gastar este resto de noite resolvendo uma questão pançuda: Quais eram de fato as relações entre Fräulein e o criado japonês? Inimigos? Quem me falou que ele se entendem?... Pois é. Castro Alves cantava que na última contingência da calamidade, quando a queimada galopa destruindo matos, sacudindo as trombas curtas de fogo no ar, a corça e o tigre vão se unir na mesma rocha. Não sei em que país do mundo Castro Alves viu a "Queimada" dele... Talvez nalgum Éden bíblico ou nas bíblicas proximidades da moradia de Tamandaré, depois do dilúvio. O certo é que tinha lá promíscuo farrancho, um tigre, uma corça, além de iaras e cascavéis. Não esqueçamos também o perdigueiro. Porém essa fauna panterrestre não tem importância nenhuma pra este idílio, pois não trata-se de corça nem de tigre, estou falando de Fräulein e do criado japonês. Mas da relação íntima que possa existir entre os quatro inda me resta o que falar. Não sei porém como igualar Fräulein a uma corça... A comparação tomava assim uns ares insinuantes de pureza que não ficam bem, pois nós todos já sabemos que. O japonês então, gente guerreira aquela! é que de todo não pode ser a tímida veadinha... De mais a mais confesso que não vejo entre os brutos escolhidos por Castro Alves para o mesmo habitat conciliatório, mais que antítese inócua, nem são tão opostos assim! Mais inimigos ainda, mais muito mais! são o tigre e o tigre. Agora sim a metáfora pode convir. São tigres pois, no sentido que mais convier a cada um, a governanta e o criado japonês dos Sousa Costas. Esta analogia vai surgir muito evidente, agora que me disponho a explicar porque lembrei o verso de Castro Alves. Em que companhia horrorosa a gente Sousa Costa foi se meter! Porém no Brasil é assim mesmo e nada se pode melhorar mais! Os empregos brasileiros rareiam, brasileiro só serve pra empregado-público. Aqui o copeiro é sebastianista quando não é sectário de Mussolini. Porém os italianos preferem guiar automóveis, fazer a barba da gente, ou vender jornais. Se é que não partiram pro interior em busca de fazenda por colonizar. Depois compram um lote nos latifúndios tradicionais, desmembrados em fazendas e estas em sítios de dez mil pés. Um belo dia surgem com automovelão na porta do palacete luís-dezesseis na Avenida Paulista. Quem é, heim? É o ricaço Salom Qualquer-Coisa, que não é nome italiano mas, como verdade, é também duma exatidão serena. Porém se o copeiro não é fascista, a arrumadeira de quarto é belga. Muitas vezes, suíça. O encerador é polaco. Outros dias é russo, príncipe russo. E assim aos poucos o Brasil fica pertencendo aos brasileiros, graças a Deus! dona Maria Wight Blavatsky, dona Carlotinha não-sei-que-lá Manolo. Quando tem doença em casa, vem o dr. Sarapião de Lucca. O engenheiro do bangalô neo-colonial (Ásia e duas Américas! Pois não: Chandernagor, Bay Shore e Tabatingüera) é o snr. Peri Sternheim. Nas mansões tradicionalistas só as cozinheiras continuam ainda mulatas ou cafusas, gordas e pachorrentas negras da minha mocidade!... Brasil, ai, Brasil! Falemos dos trigres. O japonês arripiou logo o pelame elétrico e grunhiu zangadíssimo. Mais uma estrangeira na casa que ele pretendia conquistar, ele só... O tigre alemão, se reconhecendo muito superior tanto na hierarquia solarenga como na instrução ocidental, lhe secundou ao grunhido com o muxoxo desdenhoso. O tigre japonês curvou a cabeça, muito servilmente. Porém toda casta de picuinha fazia pro outro. Quando era para dar um recado, batia na porta do outro e: —Senhora está chamando e não dava o recado. O tigre alemão tinha que descer as escadas e ir saber o que dona Laura queria. Na mesa, muita vezes o nipônico deixava de servir o tedesco ou esbarrava nele com peso e malvadez. Mas o tigre alemão se vingava, e o senhor ou a senhora Sousa Costa ali, ordenava ao inimigo tal serviço, o tigre japonês obedecia servilmente. Era na alma que rosnava tiririca. E assim os dois tigres se odiavam. Viviam se arranhando em contínua rivalidade. Cada um se acreditava o dono daquela família, o conquistador da casa e do jardim, o quem sabe? futuro possuidor do Estado e próximo rei da terra brasileira toda do Amazonas ao Prata. Odiavam? que estou falando! Quando os Sousa Costas grandes iam no teatro ou no baile, Fräulein deitava as pequenas. Depois entrava no quarto. Não sei se lhe pesava a solidão, descia, sentava-se no hol e abria um livro sem vontade. Virava pouco a pouco as folhas secas que ringiam machucadas no chão frio. Devia de estar alguma fera no arredor... O luar coava solitário da alta rama das árvores. De repente os cipós se entreabriam. Dois olhos espantados relam-peavam na escureza e a carantonha chata do tigre japonês aparecia, glabra, polida pelo reflexo lunar. Com o passo enluvado, cauteloso, ele rondava à espera dum carinho. E o carinho chegava fatalmente. Fräulein, fingindo indiferença, fechava o livro. —Muito serviço, Tanaka? —Nem tanto, senhora, êêê... na terra era pior. —Você é de Tóquio? —Êê... senhora, não. Se aproximava. Vinha felinamente estacar em frente do tigre germânico. Então eles conversavam. Falavam longamente. Comovidamente. Se contavam as mágoas passadas. Confiantes, solitários. Doloridos. Se contavam as mágoas exteriores. As infâncias passavam lindas, inocentes, brinquedos, primavera, mamãe... Algumas vezes mesmo uma lágrima iluminava tanta recordação, tanta alegria. Tanta infelicidade. Batia sobre eles o luar, e os santos óleos da lua como que lhes redimiam as maldades pequeninas. Se olhavam comovidos. O tigre alemão, longo, desgracioso, espiritual, ver um Schongauer. O tigre japonês, chato, contorcido, ver um Chuntai. Depois das recordações, vinham as esperanças. E das esperanças, tão lentas de realizar! derivavam os exasperos e as revoltas. Até calúnias, tão eficientes para consolar. A roupa suja da família se quotidianizava ali. Os defeitos da pátria emprestada eram repassados com exagero. Principalmente o nipônico falava, que o alemão tinha as pernas mais altas do estudo para se rojar no lamedo. Porém se percebia que escutava com prazer. E os dois tigres se aproximavam, olhos úmidos, eram irmãos. Se a distância lhes impedia pra sempre o beijo sem desejo, insexual mas físico de irmãos, eles se davam, não tem dúvida, aquele beijo consolador, espiritual, redentor e reunidor da almas desinfelizes exiladas. Apalermados pela miséria, batidos pelo mesmo anseio de salvação, sofre-nados pelo fogaréu do egoísmo e da inveja, na mesma rocha vão trêmulos se unir. A queimada esbraveja em torno. Os guarantãs se lascam em risadas chocarreiras de reco-recos. A cascavel chocalha. A suçuarana prisca. As labaredas lambem a rocha. Pula uma irará, que susto! Peroba tomba. O repuxo das fagulhas dançarinas vidrilha de ouro o fumo lancetado pelas cuquiadas dos guaribas. Os dois tigres ofegam. Falta de ar. Sufocam, meu Deus! Deus? Porém que deus? Odin de drama lírico, sáxeo Budá no contraforte das cavernas? Mas porém sobre a queimada, Tupã retumba inda mais mucudo, de lá dos araxás de Tapuirama. Por enquanto. Creio mesmo que vencerá. Os dois tigres acabarão por desaparecer assimilados. Mesmo o japonês? Homem, não sei. Avisto Gobineau fraudulento a estudar o facies de Tupã. Odin e Budá inda Tupã podia vencer, que em brigas Porém passar uma hora juntinhos, depois de!... que horror! Carlos respondeu com a voz mais natural deste mundo. —Estava me vestindo. Entraram mecânicos, sem vontade. Porta fecha. Ele caiu sobre ela, choveu-lhe beijos pelo corpo, mastigou-a em abraços ardentes. —Como vão os estudos de japonês, irmãozinho! — Muito bem! Ora! já não morria de fome em Nagasáqui! A dificuldade sempre parece maior do que é. —Mamãe! venha ver Carlos! —Mas que será que sucedeu pra esse menino, hoje... Não tem parada! Você carece passar um pito nele, Felisberto! está impossível da gente aturar! Vieram correndo em busca dos amantes, os tempos de intimidade. A gente nem respira e a vida já fica tão de ontem! É esquisito: o amor realizado se torna logo parecido com amizade. Carlos já senta-se e cruza as pernas. Se fumasse, fumaria. E sempre o mesmo ardente, o mesmo entusiasmado... Mas porém cruza as pernas, que é sintoma de amizade. Talvez mesmo pra evitarem o excesso de camaradagem, que traz os dizque e conta os casos desimportantes do dia, eles falam unicamente de amor. Não é por isso não. Fräulein tem de ensinar e ensina, Carlos até pouco fala. Geralmente ele apenas termina os raciocínios da sábia e se deita na sombra mansa das ilações. Carece aprender e aprende. Que diabo! não acha muito cedo pra ensinar o ciúme da mulher, Fräulein? Porém a professora não se vence mais. Curiosidade? Antes aflição. Por isso ela se fala: Chegou o momento de ensinar o ciúme da mulher. E porque chegou, lhe sobra ocasião pra se certificar de. Arranca desabrida: —É. Como as outras que você já teve. E as que há de ter. Que método, Virgem! Veja como espantou o menino! está roxo de vergonha. Porém a resposta é pura e firme: —Nunca tive ninguém! Fräulein não deve insistir. Pois ela, esta cultura do sofrimento! ela imediatamente: —Ninguém? Você não me engana, Carlos. Então hei de acreditar que fui a primeira? —Você foi a primeira! a Única! — Não minta, Carlos. Então você nunca esteve com ninguém?... Está vendo?... Responda! Ele ergue a cara, ardendo em verdades magníficas. Quanta franqueza linda! E responde. Responde certo: —Estar não é gostar, Fräulein! Não tem dúvida: o método socrático de perguntas e respostas dá no vinte, quase sempre. Ao menos quando escrito assim em cima do papel, seja por Platão ou mesmo por mim. A resposta de Carlos falava lindíssima verdade. Porém quando as verdades saltam do coração, nós homens intelectuais lhes damos o nome-feio de confissões. Carlos confessara apenas, não aprendera nada com a verdade que dissera. Só quando do peito passa pro cérebro, a confissão se transforma em verdade. Dessa excursão o professor é o tapejara. Tínhamos chegado no momento da necessaríssima distinção entre amor e posse que, quando pra mais não sirva, serve pra sossego dos Sousa Costas pais. Carlos chegaria à certeza boa, se Fräulein dirigisse bem o diálogo. Bem que ela desconfiara na primeira noite, Carlos já conhecia o. Agora sabia disso, pois continuasse a lição! Qual o quê! A curiosidade corre num motociclo, o dever anda de bicicleta, veículo atrasado, quem vencerá? A gente já sabe que, só nas fábulas o jabuti ganha da candimba, nem sou capcioso Platão que prepara os diálogos por amor de cobrir de glórias o mestre dele. Por estas duas razões acontece que o motociclo ganha a corrida e Fräulein, em vez de ensinar, insiste. Faz perguntas, fingindo um ciúme aliás muito verdadeiro. Carlos, refugando sempre, enojado, desembucha tudo afinal. Fora com uma qualquer, rua Ipiranga, porém que tinha isso! tão natural... E uma vez só! uma vez só! Fräulein te juro!... nem tive prazer... e levado por companheiros... se soubesse que você vinha!... E era só, unicamente dela! nunca serei de mais ninguém!... e, juro! foram os companheiros que me levaram, senão não ia! —Fräulein, embora nada grega, acreditava que os esportes eram alambiques de pureza. Porém não tinha vagar bastante agora, pra defender a ilusão escangalhada. O fato de Carlos não lhe ter dado a inocência, preocupava-a. Sejamos sinceros: aquilo machucou-lhe o orgulho profissional. Mais do que esse sentimento inútil, logo seqüestrado, Fräulein discutia se os oito contos lhe escapavam ou não, certo que não! Porém lhe faltava descanso agora, pra provar o não, Carlos estava ali. Só não cruzava as pernas mais, queixo nas mãos, cotovelos nos joelhos. O caso parecia grave. Bolas! preferia os beijos, Fräulein repeliu-o. E porque chorou! Ninguém o saberá jamais, chorou sinceramente. Aproveitou as lágrimas pra continuar a lição. E aos poucos, entre perguntas e desalentos, mordida pelos soluços, tirava do aterrorizado as múltiplas verdades da sua teoria lá dela: qual o procedimento dum homem que não enciúma às cunhas, quais os gestos que dão firme e duradouro consolo à amante, desculpe: esposa enfraquecida pela dúvida, etc. Carlos, que menino inteligente! foi apressado, foi dominador, sincero. Tanto mesmo que ao partir, compartilhava os ciúmes de Fräulein, satisfeito. A tal farra com os camaradas... um crime. Só não se amaldiçoou, não amaldiçoou os companheiros e a perdida, só não chorou nem monologou porque não tinha inclinação pro gênero dramático. E aquilo teria mesmo tanta importância assim. Não sabe. Sente que não. Quer sofrer mas não pode, está sublime de felicidade: uma mulher chorou por causa dele! puxa que gozo! Ele até dá um soluço. De gozo. Fräulein, pelos dias adiante, pensou duas vezes longamente no caso. Seriamente. Foi honesta. Resolveu ficar bem quieta e aceitar os oitos contos. A missão dela não consistia em dirigir um ato: ensinava o amor integral, tão desnaturado nos tempos de agora!... Amor calmo, etc. Com a freqüência do ideal escrito pelo deus encarcerado, com certeza discípulo de Hans Sachs, Fräulein pouco a pouco mecanizara a sua concepção pobre do amor. Ali o homem-da-vida e o homem-do-sonho vinham se confundir na pregação duma verdade só e, bem mais engraçado ainda, na visão do mesmo quadro. Professora de amor... porém não nascera pra isso, sabia. As circunstâncias é que tinham feito dela a professora de amor, se adaptara. Nem discutia se era feliz, não percebia a própria infelicidade. Era, verbo ser. Insensivelmente porém a teoria que ensinava aos alunos vinha se embrenhar no que ela desejava ser. E o alemão de dentro de Fräulein repisa insaciável, incansável, a suave cena, sinfonia Pastoral cinco vezes por ano e perpétua visão: Boca-da-noite... Uma cidade escura milenar... Ele entraria do trabalho... Ela se deixava beijar... Durante a janta saberia dos bilhetes pra Filarmônica, no dia seguinte... E quando a noite viesse, ambos dormiriam sono grande sem gestos nem sonhar. Pra isso também inconscientemente Fräulein dirigia os alunos. Sem inveja acreditava que os já ensinados reproduziam, breve reproduziriam a visagem gostosa. Agora dirigia Carlos para o mesmo fim. Porém que uma outra tivesse movido o menino a primeira vez... lhe desagradava. Conservaria sempre pelos anos a sensação logo vencida mas imortal de que tinham lhe passado a perna. —Sua mãe tem governanta em casa? —Não, por que? —Nada. — Sua mãe tem governanta em casa? —Não, por que? —Não é janta, Carlos! é almoço! —Chi! que almoço mais porcaria! —Eu chamo mamãe! —Pode chamar! Também não careço de comer isso!... Capim... só burro que come capim! —Não é capim t'aí, é grama! —É capim. —Saia daqui! —Não saio! —Largue disso, Carlos! —Carlos! —Largue! —Mamãe! —Pronto! —Ah!... minha comidinha!... Tudo em pandarecos pelo chão, desilusoriamente. As meninas têm uma tristura enorme. Entram em lagrimas na casa. Carlos conhece o argumento: finge uma raiva. —Bem feito, mamãe! elas não queriam que eu brincasse também! —Mas você não é mais criança, Carlos! —E Maria Luísa, então? Eu também posso brincar, ora essa! É! fizeram uma porcariada no jardim! Arrancaram todas as rosas, diz que pra fazer comidinha, a senhora vá ver! —Oôôôô... mentiroso! —Bom. O melhor é virem todos pra dentro. A tarde está fria e Maria Luísa pode ficar doente. Eu imagino que Carlos está desapontado por dentro. Imagino mais que desta vez ele fez mal. As crianças guardam a louça, a mobília e as bonecas. Os soluços de Laurita cortam a friagem da tarde e o meu coração. A gente nunca deve desmanchar a comidinha das crianças. No dia seguinte o pessoalzinho não fez questão de sair da cama, até acordou mais cedo. Tanto assim não carecia. Só as aulas matinais têm de ser mais curtas. Afobação. —O almoço está na mesa! Fräulein, sempre a primeira a ficar pronta, parará no meio do hol. Batia com a mão nos lábios, impaciente. Carlos de mansinho se aproxima dela. Pensa que Aldinha não deve escutar a pergunta e mal sussurra: —Achou? —Inda não. É... ná! não há nada que me irrite mais do que isso. Dona Laura vem descendo com a pressa aflitiva das gordas: —Vamos! Maria Luísa! você não está pronta ainda!... Precisamos andar depressa! —Que-dê Maria Luísa, Laura? —Já vem. Está com um pouco de dor de cabeça. —Quem sabe se é melhor ela não ir... Fräulein ficava com ela... —Ah, papai! deixe Maria Luísa ir com a gente, coitadinha! —Eu falei, Felisberto, principiou a chorar... Diz que quer ir, não se pode contrariar ela, é pior!... isso passa. Maria Luísa! o almoço está pronto! Maria Luísa desce. Desmerecida, um pouco lenta. Mas sorri. Assim pálida está ver uma rainha brancarana, de olhos negros muito rasgados e cabelos crespos demais. É que teve rainhas nas cinco partes do mundo. Almoçaram num átimo. Visitar a nova chácara comprada por Sousa Costa adiante de Jundiaí... E no automóvel novo... que gostosura! Entusiasmo das meninas. Carlos quase feliz. Os pais se sentem bons. —Tem alguma coisa, Fräulein? Ela meio que ri: — Não é... (hesita. Afinal conta:) Mas acontece cada uma. Nós hoje encontramos uma palavra na lição... Sabemos como é em português, porém não há meios de lembrar. Parece incrível, palavra tão comum... E nem eu nem Carlos! —Mas porque não viu no dicionário? —Aí é que está: hei de me lembrar. Pois se nós sabemos. (E, como que disfarçando o constrangimento sem motivo:) Não se lembra mesmo, Carlos? —Naam... Olhou-o, estava branco branco! Ficara aterrorizado, escutando ela contar o caso. Não sabia porque se amedrontava assim, porém tinha medo, medo terrível. Lhe parecia que a mãe, o pai, as irmãs, os criados, todo o universo conheciam as relações dele com Fräulein... O pobre! falou um "não" empalamado, enquanto se gelava todo. —Qual é a palavra? —Você não sabe, Maria Luísa! —Porque não hei de saber! Se até já falo melhor que você, agora!... —Você! uma crila... —Carlos, diga a palavra pra sua irmã! —Mas... papai... ela não sabe! —Diga a palavra, vamos! —Nn... não sei mais... —É Geheimnis, Maria Luísa. —Geheimnis... já escutei essa palavra... —Está vendo! não sabe! —Mas podia saber muito bem! —Está bom: deixem de briga e comam! Apesar de salvo, permanecera em Carlos um eco perto de terror. Se sente mal. Se o pai fosse procurar a palavra no dicionário... tudo perdido! E a vontade por Fräulein, mais do que isso, o desespero por ela cresceu. Se aboletaram no torpedo. Desta vez Carlos não brigou com Maria Luísa por causa do lugar da frente. Deixou ela sentar-se ao lado do pai que dirigia. —Não. Ela está com dor de cabeça, pode ficar aí mais no claro. Mamãe! assim você vai muito apertada... Deixe, eu sento no meio. Dona Laura, seca, acertando o decote da blusa, com rompante: —Fique nesse lugar. Está bem assim. Carlos não insiste. Porém carinhosamente passa o braço pelas costas da mãe, e a resguarda. Do que? Do vento. Vento impertinente, gelado. —Minha filha, agasalhe-se bem. Você devia não ter vindo... —Ah, mamãe! já estou boa! Ia me esquecendo... A mão de Carlos roça pelas fazendas de Fräulein, além. Pois o passeio foi lindo, apesar da friagem. O chacreiro gostava de rosas. Tanta flor já! O buquê oferecido à patroa é sensacional. —Olhe esta, Felisberto! —Em janeiro havemos de vir comer uvas! —É chupar que se fala, papai! —Mamãe! posso comer mais uma laranja, posso, heim! —Poode! O ó sai tão aberto que dá idéia do mais farto e eterno indicativo presente de todos os tempos. Que pai-de-família bom é Sousa Costa! A gente é forçado a reconhecer que Sousa Costa é um excelente pai-de-família. Pater famílias. Dona Laura porém prevê melhor, como a progenitoras convém: —Mas Felisberto, ela já comeu duas! —Ora que tem, Laura! deixe a menina! —Mamãe! só mais uma!... só mais esta uminha!... —Você facilita, depois fica doente, minha filha! —Papai! olhe Carlos! Aldinha vem de carreira. O se agarra em Sousa Costa. —Ele pegou um bicho tamanho e quer botar na gente! —Que-dê ele, heim,! me mostre! —Esse menino... —Mas papai!... a gente não pode nem brincar, essa linguaruda vem fazer queixa já! Que enjoamento, puxa! —Fique sossegado aí! —Também não vim aqui pra ficar sossegado! O chacreiro interrompe: —Senhor Costa, o pedreiro falou que carece dizer adonde que o senhor quer as cocheiras. —Papai vai ter bois aqui!
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