Baixe Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity! NJ 4 FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
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Comentários sobre a
Primeira Década de Tito Lívio
"Discorsi"
Tradução de Sérgio Bath
3º edição, revista
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UnB
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32 Machiaveili, Niccolo, 1469-1527.
MI4% Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. de
= 690 Sérgio Bath, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1994,
3d.
440 p.
Título original: Discorsi sopra la prima deca di Tito Lívio.
Nos seus “Discorsi”, Maquiavel analisa a história romana em função dos pro-
blemas da Itália do seu tempo. Ao contrário do historiador contemporâneo, Ma-
quiavel não se preocupa em fundamentar afirmativas ou em documentar suas mui-
tas referências. Procura, em vez disso, acontecimentos, ou segúências de eventos,
na história da Roma republicana segundo Tito Lívio, que confirmem suas convic-
ções acerca de qual a política que a Itália — então dividida em várias cidades-
estado e enfrentando graves problemas por causa de conflitos intestinos — deveria
seguir para alcançar a cura dos seus males e para chegar a unificar-se e assim au-
mentar o seu poderio. Não se pode, pois, considerar os “Discorsi” como sendo ape-
nas uma obra acerca de um tema histórico. Os “Discorsi” são uma obra política no
seu enfoque e, na medida em que indicam um curso de ação a ser seguido, são tam-
bém uma obra normativa, à semelhança de “O Príncipe”.
Esta edição dos “Discorsi”, pois, amplia as possibilidades de o leitor brasileiro
se aprofundar na obra de Maquiavel e de apreciar, através do seu estudo, a contri-
buição deste autor para a evolução do pensamento político. A esta, e às obras já pu-
blicadas, seguir-se-ão outras de relevante importância para ciência política, no
marco da Coleção Pensamento Político, da Editora Universidade de Brasília.
12 Maquiavel
convicções acerca do presente, e em especial da política a ser seguida pelas
cidades italianas, imersas em divergências e conflitos.
Na verdade à história romana é a matéria-prima, o modelo e a
fonte de inspiração para um tratado sobre os problemas políticos da sua época.
A pretexto de comentar fatos pretéritos, os Discorsi são uma obra
política, que contém mensagem para Os contemporâneos. Nela o autor faz
filosofia política e psicologia da conduta política, revelando-se por outro lado
republicano, preferência que não se depreende da leitura de O Príncipe —
simples manual prático de operação política, para uso do monarca.
Num período de crise política como a que há tanto tempo estamos
vivendo, é uma boa notícia saber que o público brasileiro continua a demandar
os Discorsi. Eles permitirão uma reflexão profunda sobre a nossa atualidade,
análoga à que fez o secretário Florentino sobre o seu tempo, a partir da história
de Tito Lívio.
Brasília, 1994
Sérgio Bath
Carta de Nicolau Maquiavel a
Zenóbio Buondelmonti e Cosmo Ruccellai
Envio a Vossas Senhorias um presente que, se não corresponde à magnitude
das minhas obrigações, é o que tenho de mais precioso. Trata-se do registro de tudo
o que sei, tudo o que me ensinaram uma longa experiência e o estudo contínuo das
coisas do mundo.
Nem Vossas Senhorias nem qualquer outra pessoa poderiam espeyar de mim
mais do que tenho a oferecer aqui; como não poderiam queixar-se de que não lhes
dei objeto de maior valor. A pobreza do meu espírito poderá aborrecê-los com a
aridez de certos relatos; poderá feri-los a falsidade do meu julgamento, quando en-
contrarem algum erro, no meio da exposição de tantos assuntos. Mas, mesmo neste
caso, não sei quem poderia queixar-se: Vossas Senhorias, por não lhes dar este livro
completa satisfação; ou eu, por ter sido obrigado a desenvolver um tema que jamais
teria escolhido voluntariamente.
Rogo, portanto, que aceitem este presente como tudo o que vem de um amigo
— considerando menos o valor do que é dado do que a intenção de quem o oferece.
Estejam certos de que sinto neste momento uma satisfação genuína ao pensar
que, tendo cometido tantos erros, acertei ao escolher as pessoas a quem ofereço es-
tes “Comentários”. Com tal escolha penso ter demonstrado reconhecimento pelos
Benefícios recebidos, e também ter desprezado o caminho seguido em geral pelos
escritores que dedicam seus livros a algum príncipe, a quem atribuem, com profu-
são de elogios banais, todas as virtudes — cegos à sua ambição e avareza —, quan-
do deveriam fazé-lo corar pelos seus vícios.
Para não cair neste erro comum, escolhi não um príncipe, mas pessoas que
mereceriam sê-lo, pelas suas belas qualidades; não quem me pudesse cumular de ti-
tulos, honrarias e riquezas, mas quem, não podendo fazê-lo, tem pelo menos o de-
sejo de me prodigalizar tais vantagens. Para um julgamento sadio, os homens de-
vem saber discernir entre os que são verdadeiramente generosos e os que têm ape-
nas o poder material de agir com liberalidade; entre os que deveriam dirigir o Esta-
do e os que, sem esta capacitação, se acham às vêzes à testa de um império. Os his-
14 Maquiavel
toriadores sentem mais atração por Hieron, cidadão de Siracusa, do que por Per-
seu, rei da Macedônia, porque o primeiro, para ser príncipe, só precisaria do poder
supremo; mas Perseu tinha só um dos atributos do rei — a realeza.
Aproveitem, portanto, o bem e o mal que Vossas Senhorias mesmas procura-
ram. E se chegarem a aceitar com benevolência os meus comentários, esforçar-me-
ei por continuar esta história, cumprindo assim a promessa que fiz ao começar a
escrevê-la.
Saudações.
LIVRO PRIMEIRO
Introdução
Embora os homens, por natureza invejosos, tenham tornado o descobrimento
de novos métodos e sistemas tão perigoso quanto a descoberta de terras e mares des-
conhecidos — pois se inclinam por essência mais à crítica do que ao elogio —, to-
mei a decisão de seguir uma senda ainda não trilhada, movido pelo natural desejo
que sempre me levou sem receios aos empreendimentos que considero úteis.
Se vier a encontrar dificuldades e aborrecimentos, espero colher também re-
compensa na aprovação dos que lançarem um olhar benevolente aos objetivos deste
esforço. E se a tentativa for falha e de escassa utilidade, devido à pobreza do do
meu espírito, à insuficiente experiência das coisas de hoje ou ao pouco conhecimen-
to do passado, terá ao menos o mérito de abrir caminho a quem, dotado de maior
vigor, elogiência e discernimento, possa alcançar a meta. Enfim, se este trabalho
não me der a glória, também não me servirá de condenação.
Não posso deixar de me espantar — e de queixar-me — quando considero, de
um lado, a veneração que inspiram as coisas antigas (bastaria lembrar como se
compra, a peso do ouro, um fragmento de estátua que se deseja ter junto a si, como
adorno da casa: modelo para os que se deliciam com a sua arte, esforçando-se por
reproduzi-la); de outro, os atos admiráveis de virtude que a história registra, nos
antigos reinos e repúblicas, envolvendo monarcas, capitães, cidadãos, legisladores,
todos os que trabalharam pela grandeza da pátria. Atos mais friamente admirados
do que imitados (longe disto, todos parecem evitar o que sugerem, de modo que é
pouco o que resta da sua antiga virtude).
Com maior espanto ainda vejo que, nas causas que agitam os cidadãos e nos
males que afetam os homens, sempre se recorre aos conselhos e remédios dos anti-
gos. As leis, por exemplo, não são mais do que sentenças dos jurisconsultos pretéri-
tos, as quais, codificadas, orientam os modernos juristas. A própria medicina não
passa da experiência dos médicos de outros tempos, que ajudam os clínicos de hoje
a fazer seus diagnósticos. Contudo, quando se trata de ordenar uma república,
manter um Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra,
ou de distribuir justiça aos cidadãos, não se viu ainda um só príncipe, uma só repú-
blica, um só capitão, ou cidadão, apoiar-se no exemplo da Antiguidade.
Capítulo Segundo
Quantas espécies há de repúblicas, e a qual pertenceu a república
romana.
Vou abster-me de falar das cidades cuja fundação se deve a um outro Estado;
tratarei somente daquelas que surgiram livres de qualquer dependência estrangei-
ra, tendo sido autogovernadas, desde o início, como repúblicas ou como monar-
quias — embora, devido a esta dupla origem, tenham tido leis e constituição dife-
rentes, Algumas receberam legislação de um só homem, no momento da fundação
ou pouco tempo depois — como aconteceu com Licurgo, na Lacedemônia. Em ou-
tras, as leis foram sendo instituídas gradualmente, de acordo com os acontecimen-
tos — como em Roma,
Feliz é a república à qual o destino outorga um legislador prudente, cujas leis
se combinam de modo a assegurar a tranquilidade de todos, sem que seja necessário
reformá-las. É o que se viu em Esparta, onde as leis foram respeitadas durante oito
séculos, sem alteração e sem desordens perigosas.
Infeliz, porém, é a cidade que, não tendo tido um legislador sábio, é obrigada
a restabelecer a ordem no seu seio. Dentre elas, a mais infeliz é a que está mais afas-
tada da ordem; isto é, aquela cujas instituições se apartam do bom caminho que
pode levá-las ao seu objetivo perfeito e verdadeiro — porque é quase impossível
que, nessa situação, ocorra algum acontecimento feliz que lhe restabeleça a boa or-
dem. Contudo, as cidades cuja constituição é imperfeita, mas que têm príncipes
bons, susceptíveis de aprimoramento, podem, de acordo com os acontecimentos,
chegar à perfeição.
Mas não há dúvida de que as reformas serão sempre perigosas, pois a maioria
dos homens não se curva de boa vontade a uma lei inovadora, que estabeleça uma
ordenação nova das coias a que não considerem necessário submeter-se. E como tal
necessidade nunca é imposta sem perigo, pode acontecer facilmente que uma repú-
blica pereça sem que haja atingido a ordem perfeita. Em Florença temos disto uma
demonstração marcante: reorganizada depois da revolta de Arezzo, em 1508, a ci-
dade foi revolucionada outra vez após a tomada de Prato, em 1512.
2 Maquiavel
Para descrever as formas que assumiu o governo de Roma, e o-conjunto de eir-
cunstâncias que o levaram à perfeição, lembrarei (como os que escreveram a respei-
to da organização das repúblicas) que há três espécies de governo: o monárquico, o
aristocrático e o popular; os que pretendem estabelecer a ordem numa fidade de-
vem escolher, dentre estas três espécies, a que melhor convém a seus objetivos.
Outros, segundo a opinião geral, mais esclarecidos, acham que há seis formas
de governo, das quais três são essencialmente más; as três outras são em si boas, mas
degeneram tão facilmente que podem também tornar-se perniciosas. Os bons go-
vernos são os que relacionei anteriormente; os maus, suas derivações. E se parecem
tanto aos primeiros, aos quais correspondem, que podem com facilidade ser con-
fundidos com eles,
Deste modo, a monarquia se transforma em despotismo; a aristocracia, em oli-
garquia; e a democracia em permissividade. Em consegiência, todo legislador que
adota para o Estado que vai fundar uma destas três formas de governo não a man-
tém por muito tempo; não há o que a possa impedir de precipitar -se no tipo contrá-
rio, tal a semelhança entre a forma boa e a má.
Foi por acaso que surgiu esta variedade de governos. No começo do mundo, os
habitantes da terra eram pouco numerosos, e viveram por muito tempo dispersos,
como animais. Com o crescimento da população, os homens se reuniram e, para
melhor se defender, começaram a distinguir os mais robustos e mais corajosos, que
passaram a respeitar como chefes. Chegou-se assim ao conhecimento do que era
útil e honesto, por oposição ao que era pernicioso e ruim. Viu-se que quem prejudi-
cava o seu benfeitor provocava nos homens sentimentos de ira — e de piedade pela
sua vítima. Passou-se a detestar os ingratos, a honrar os que demonstravam grat-
dão; e, pelo temor de sofrer as mesmas injúrias que outros tinham sofrido,
procurou-se erigir a barreira das leis contra os maus, impondo penalidades aos que
tentassem desrespeitá-la. Estas foram as primeiras noções de justiça.
A partir de então, quando houve necessidade de escolher um chefe, deixou-se
de procurar o mais corajoso para buscar o mais sábio, e sobretudo o mais justo;
contudo, como es príncipes vieram a reinar pelo direito de sucessão, e não pela es-
colha do povo, em breve os herdeiros degeneraram; desprezando a virtude,
persuadiam-se de que nada mais tinham a fazer além de exceder seus semelhantes
em luxo, ócio e todos os tipos de volúpia. Desde então, a figura do príncipe come-
çou a provocar ira, que a rodeou de terror; mas não tardou a nascer a tirania, que
transformou 9 medo em agressão.
Estas foram as causas da queda dos príncipes: contra eles foram urdidas conju-
ras, não por homens fracos ou pusilâmines, mas sobretudo pelos que demonstravam
generosidade e grandez d'alma; os que tinham riqueza, fidalguia, e não podiam su-
portar a vida criminosa de tais príncipes.
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 25
Levada pelo exemplo dos grandes, a multidão se armava contra o soberano; e
depois que este era castigado, obedecia àqueles como seus libertadores — estes, que
detestavam até mesmo o título principesco, organizavam entre si um governo. A
princípio, dado o exemplo da tirania precedente, conformavam sua conduta às leis
que haviam promulgado. Preferindo o bem público à vantagem própria, governa-
vam com justiça e zelavam com igual empenho pelos interesses comuns e pelos par-
ticulares,
Mas o poder passou às mãos dos seus filhos, que ignoravam os caprichos da sor-
te; como os infortúnios não os tinham submetido à prova, não queiram respeitar à
igualdade civil; entregando-se à avareza, à ambição e ao desmando, transforma-
ram o governo, que até então fora aristocrático, numa oligarquia que deixou de
Tespeitar os direitos dos cidadãos. Em breve, porém, tiveram a mesma sorte do tira-
no: a multidão, cansada, se fez instrumento de quem quisesse vingá-la dos seus
opressores. Logo surgiu um homem que, com o apoio de povo, os derrubou do po-
der.
A lembrança do príncipe e dos seus ultrajes continuava viva. A oligarquia ti-
nha sido destruída e não se queria restabelecer o poder de uma só pessoa.
Organizou-se assim o Estado popular, no qual a autoridade não recaia nem no
príncipe nem num pequeno número de senhores, Como todo governo, que ao co-
meçar sempre inspira algum respeito, o Estado popular a princípio se manteve —
mas por bem pouco tempo, só até extinguir-se a geração que o havia Posto no po-
der. Não tardou a desenvolver-se uma situação de licença em que não se respeitava
mais Os cidadãos nem as autoridades. Cada um vivia conforme o seu capricho, e a
cada dia ocorriam mil ultrajes. Constrangidos pela necessidade, advertidos pelos
conselhos de um sábio, ou movidos pela fadiga de tal licença, os homens voltaram
ao império de um só, para recair de novo, gradualmente, da mesma maneira e pe-
las mesmas causas, nos horrores da anarquia.
Este é o círculo seguido por todos os Estados que já existiram, e pelos que exis-
tem. Mas raramente se retorna ao ponto exato de partida, pois nenhuma república
tem resistência suficiente para sofrer várias vezes as mesmas vicissitudes. Acontece
muitas vezes que, no meio destes distúrbios, uma república, privada de conselhos e
de força, é tomada por algum Estado vizinho, governado com mais sabedoria. Se is-
to não ocorrer, um império percorrerá por muito tempo o círculo das mesmas revo-
juções. Para mim, todas estas formas de governo são igualmente desvantajosas: as
três primeiras, porque não podem durar; as três outras, pelo princípio de corrup-
ção que contêm. Por isto, todos os legisladores conhecidos pela sua sabedoria evita-
ram empregar exclusivamente qualquer uma delas, reconhecendo o vício de cada
uma. Escolheram sempre um sistema de governo de que participavam todas, por
julgá-lo mais sólido e estável: se o príncipe, os aristocratas e 0 povo governam em
conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente.
26 Maquiavel
Entre os legisladores que elaboraram constituições semelhantes, a mais digno
de encômios é Licurgo. Nas leis que deu à Esparta, soube de tal modo contrabalan-
çar o poder do rei, da aristocracia e do povo que o Estado se manteve em paz du-
rante mais de oitocentos anos, por sua grande glória.
O contrário sucedeu a Sólon, legislador de Atenas; por só se servir do governo
popular, deu-lhe existência tão efêmera que ainda vivia quando eclodiu a girania
de Pisístrato. Embora os herdeiros do tirano tenham sido expulsos quarenta anos
depois, recobrando Atenas a liberdade, como se restabeleceu então o sistema de Só-
lon, este só durou um século, não obstante as emendas feitas para consolidá-lo, e
para reprimir a insolência dos aristocratas e a licença da multidão — dois vícios que
não tinham merecido a atenção de Sólon. Por outro lado, como não participavam
da constituição ateniense nem a autoridade do príncipe nem a aristocrática, a cida-
de teve uma existência muito limitada, em comparação com a Lacedemônia.
Mas, retornemos a Roma. No princípio da sua vida, essa cidade não teve um
Licurgo que lhe desse leis, que estabelecesse ali um governo capaz de conservar a li-
berdade por muito tempo. Contudo, devido aos acontecimentos que fizeram nascer
no seu seio 0 ciúme que sempre separou o povo dos poderosos, Roma conseguiu o
que seu legislador não lhe tinha concedido. Com efeito, se a cidade não se benefi-
ciou da primeira vantagem que indiquei, teve a segunda; e se suas primeiras leis
eram defeituosas, jamais se afastaram do caminho que podia levá-las à perfeição.
Rômulo e os demais reis promulgaram numerosas outras leis, excelentes para
um governo livre. Entretanto, como o seu objetivo principal tinha sido fundar uma
monarquia, e não uma república, quando a cidade recobrou a independência viu-
se que a liberdade reclamava muitas disposições que os reis não haviam pensado es-
tabelecer. E embora estes tivessem perdido a coroa pelas causas € nas circunstâncias
que acima indicamos, os que os expulsaram instituíram dois cônsules para exercer a
função real, de modo que só se baniu de Roma o título, e não a autoridade do rei,
A república, retendo os cônsules e o Senado, representou a princípio a mistura
de duas das três formas mencionadas: a monarquia e a aristocracia. Só faltava in-
troduzir o governo popular. A nobreza romana, pelos motivos que vamos explicar,
tornou-se insolente, despertando O ressentimento do povo: para não perder tudo,
teve que ceder-lhe uma parte da autoridade. De seu lado, tanto o Senado como os
cônsules guardaram bastante desta autoridade para manter a posição que ocupa-
vam no Estado,
Estas foram as causas que originaram os tribunos do povo, instituição que en-
fraqueceu a república porque cada um dos três elementos do governo recebeu uma
porção da sua autoridade. A sorte favoreceu Roma de tal modo que, embora tenha
passado-da monarquia à aristocracia e ao governo popular, seguindo a degradação
provocada pelas causas que estudamos, o poder real não cedeu toda a sua autorida-
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 27
de para os aristocratas, nem o poder destes foi todo transferido para o povo, O
equilíbrio dos três poderes fez assim com que nascesse uma república perfeita. A
fonte desta perfeição, todavia, foi a desunião do povo e do Senado, como demons-
traremos amplamente nos dois capítulos que seguem.
Maquiavel
32 ii
au im di
ã traordinária, e por assim
: mas não é uma conduta ex!
E se alguém perguntar: m É oO
Iva: o, o correr todo o povo a acusar o Senado em altos bra A Senado 2
to, precipi s cidadãos pelas ruas, fechando as lojas e abandona!
Responderei, contudo, que cada Estado deve per costa
à ição, so-
es próprios, por meio dos quais os populares possam satisfazer sua em is o. so
bretudo nas cidades onde os assuntos importantes são decidi os coma Do
5 do povo. Dentre os Estados desta categoria, Roma tinha por hábi Ss popu
Jar : do como o que descrevi,
mportamento extrema
res entregues a um co: a ore
Vcsando e à mobilização para a guerra, quando queriam que a i teme ae um:
Jei. De tal sorte que, para acalmá-los, era necessário satisfazer a 8
ei. .
povo, precipitando-se o
dade? A descrição apavora.
i judi iberdade,
O desejo que sentem os povos de ser livres raramente prejudica a libs e
o imido. E se o povo se engana,
ã mor de ser oprimido. P
a opressão ou do te) : a de
discursos em praça pública existem justamente para retificar suas idéias; a que
moh iscurso o en
um homem de bem levante a voz para demonstrar com um discui o sa ion
esmo. Pois o povo, como disse Cicero, mesmo quando vive mergul do na
Tância, pode compreender a verdade, e à admite com facilidade quando algu
rância, pt
sua confiança sabe indicá-la.
porque nasce d:
avaros de críticas ao governo romano; atentemos para o fa-
melhor produziu esta república provém de aa a
Se os tribunos devem sua origem à desordem, esta dd o en mi os P is
o povo, desta forma, assegurou participação no fem r e nuno
guardiães das liberdades romanas, como veremos no capí gui
Sejamos, portanto,
to de que tudo o que de
Capítulo Quinto
4 quem se pode confiar com mais segurança q defesa da
liberdade: àos aristocratas ou ao povo? Quais são os que têm mais
motivos para instigar desordens: os que querem adquirir ou os que
querem conservar?
Aqueles que agiram com maior tino ao fundar um Estado incluíram entre suas
instituições essenciais a salvaguarda da liberdade; e os cidadãos puderam viver em
liberdade um tempo mais ou menos longo, segundo tal salvaguarda tenha sido mais.
ou menos bem formulada. Como em todos os Estados existem aristocratas e ple-
beus, pode-se bem perguntar em que mãos a liberdade estaria melhor savalguarda-
da.
Em outros tempos, os lacedemônios a confiaram aos nobres, como o fazem em
nossos dias os venezianos: já em Roma, ela estava nas mãos do povo. É necessário,
portanto, examinar qual dessas repúblicas fez melhor escolha. Se considerássemos
&S seus motivos, teríamos muito a dizer em favor de cada lado; examinando os re-
sultados, contudo, dar-se-á a preferência à nobreza, porque em Esparta e em Vene-
za a liberdade teve vida mais longa do que em Roma.
No entanto, para chegar aos motivos, e tomando os romanos como exemplo,
direi que se deve sempre confiar um depósito à quem tem por ele menos avidez. De
fato, se considerarmos o objetivo da aristocracia e do povo, perceberemos na pri-
meira a sede do domínio; no segundo, o desejo de não ser degradado — portanto,
uma vontade mais firme de viver em liberdade, porque o povo pode bem menos do
que os poderosos ter esperança de usurpar a autoridade. Assim, se os plebeus têm o
encargo de zelar pela salvaguarda da liberdade, é razoável esperar que o cumpram
com menos avareza, e que, não podendo apropriar-se do poder, não permitam que
Outros o façam.
Por outro lado, os defensores da ordem estabelecida em Esparta e em Veneza
pretendem que confiar este depósito aos mais poderosos dá ao Estado duas vanta-
gens; a primeira é contemplar, em parte, a ambição dos que exercem importante
influência na república e que, tendo em mãos as armas que protegem o poder, por
34 Maquiavel
isto mesmo têm mais motivos de satisfação com a sua partilha; a segunda é impedir
que o povo, de índole inquieta, use o poder que lhe facultaria o provocar dissensões
e distúrbios capazes de levar a nobreza a algum gesto de desespero, cujos efeitos fu-
estos se fariam sentir um dia.
Cita-se a própria Roma como exemplo, Quando os tribunos foram instituídos,
o povo não se contentou com um cônsul plebeu: quis logo dois. Depois, exigiu a
censura; em seguida a pretoria; mais tarde todas as demais funções de governo.
Mais ainda: movido sempre pela mesma ânsia de poder, veio com o tempo a idola-
trar os homens que considerava capazes de rebaixar a nobreza. Esta foi a origem do
poder de Mário, e da ruína de Roma.
Considerando todos os aspectos desta questão, seria difícil decidir a quem con-
fiar a guarda da liberdade, pois não se pode determinar com clareza que espécie de
homem é mais nociva numa república: a dos que desejam adquirir o que não pos-
suem ou a dos que só querem conservar as vantagens já alcançadas. É possível que
um exame aprofundado nos leve à seguinte conclusão: ou se trata de uma república
que quer adquirir um império — como Roma, por exemplo — ou de uma repúbli-
ca que tem como fim exclusivo à sua própria conservação. No primeiro caso, é pre-
ciso fazer como se fez em Roma; no segundo, pode-se imitar Esparta e Veneza, pe-
los motivos sobre os quais vamos falar no capítulo seguinte, e do modo ali indicado.
Quanto a saber quais as pessoas mais perigosas numa república — as que que-
rem adquirir ou as que não querem perder o que já possuem — lembrarei o caso de
Marco Menênio e de Marco Fúlvio. Tendo sido os dois, plebeus que eram, nomea-
dos para investigar uma conspiração urdida em Cápua contra a república romana,
o povo os investiu também com autoridade para examinar, na capital, a conduta
de todos os que, por meios escusos, ambicionavam apoderar-se do consulado e ou-
tros cargos públicos. Convencida de que este poder delegado ao ditador era dirigido
contra ela, a nobreza difundiu em Roma a notícia de que quem assim agia não
eram os nobres, mas os plebeus; estes, sem confiança na posição familiar ou no pró-
prio mérito, procuravam insinuar-se no governo, usando meios ilegais. Era sobretu-
do ao ditador que os nobres visavam em seus discursos.
Esta acusação influenciou de tal modo o espírito de Menênio que o levou a re-
nunciar à ditadura, após um discurso em que se queixou amargamente das calúnias
dos nobres. Menênio pediu para ser julgado, tendo sido declarado inocente. Nos
debates que precederam o julgamento, considerou-se mais de uma vez quem seria o
mais ambicioso: o que não quer perder ou o que quer adquirir — duas paixões que
podem ser causa dos maiores desastres.
No entanto, as dificuldades são criadas mais frequentemente pelos que já pos-
suem; o temor de perder o que se tem provoca paixão igual à causada pelo desejo de
adquirir. É natural dos homens não se considerarem proprietários tranquilos a não
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 35
ser quando podem acrescentar al
rar, também, que
+ para despojar os inimigos,
Capítulo Sexto
Se seria possível instalar em Roma um governo que extinguisse a
inimizade entre o povo e o Senado.
Expusemos já os efeitos das divergências entre o povo e o Senado. Consideran-
do que elas duraram até o tempo dos Gracos, quando provocaram a perda da liber-
dade, é natural que se creia desejável que Roma tivesse podido realizar seus grandes
feitos sem a perturbação causada por semelhante inimizade.
Contudo, vale-a pena examinar se seria possível fundar em Roma um governo
que evitasse essas dissensões. Naturalmente, para fazer um julgamento seguro, é
preciso passar os olhos sobre as repúblicas que, sem discórdia e inimizade, gozaram
longamente da liberdade; ver qual a forma do seu governo, e se o mesmo poderia
ter sido introduzido em Roma.
Tomemos como exemplos Esparta, entre os antigos, e Veneza entre os moder-
nos, como já tivemos ocasião de fazer.
Esparta foi governada por um reino e um Senado pouco numeroso. Veneza
não dividiu o poder sob denominações diferentes; todos os que dele participavam t-
nham o mesmo título: “Gentiluomini”. É à sorte, mais do que à sabedoria dos seus
legisladores, que Veneza deve esta forma de governo. Com efeito, foi fundada pelos
muitos habitantes expulsos das regiões vizinhas, devido às razões a que anterior-
mente me referi, e que se refugiaram nos escolhos onde hoje está situada. Vendo o
seu número aumentar, os cidadãos formularam leis que lhes permitissem viver em
coletividade. E como se reunissem com frequência para deliberar sobre os assuntos
de interesse da cidade, refletiram que já tinham número suficiente para completar
sua existência política, recusando, a todos que imigrassem depois disto, a faculdade
de participar do governo. Em consegúência, como estes últimos tivessem aumenta-
do consideravelmente, passou-se a chamar “gentiluomini” aos que governavam a
cidade, e aos outros, “popolani”.
Esta forma de governo nasceu e se manteve sem distúrbios porque, original-
mente, todos os habitantes da cidade foram chamados ao poder, de modo que nin-
4“ Maquiavel
do por meios legais, ainda que injustamente, isto pouca ou nenhuma desordem
causa na república, por ter ocorrido a punição sem recurso à força particular, ou
de estrangeiros, causas ordinárias da ruína da liberdade. É uma punição bascada
apenas na força da lei e da ordem pública, cujos limites são conhecidos, e cuja ação
nunca é violenta o bastante para subverter a república.
Para apoiar minha opinião com exemplos, basta-me o de Coriolano, entre os
antigos. Que se considere, com efeito, todos os males que teriam resultado para a
república romana se tivesse ocorrido um massacre, como resultado da comoção po-
pular. Teria havido um crime; ora, o crime provoca o medo; o medo busca meios
de proteção; estes reclamam partidos; e os partidos criam as facções que dividem as
cidades, e originam a ruína dos Estados. Mas se a ação for cometida pela autorida-
de legítima, prevenir-se-á o desenvolvimento de todos os males que poderiam nas-
cer do simples uso da força particular.
Vimos em nosso tempo as inovações introduzidas na república de Florença pe-
la impossibilidade em que se encontrava a multidão de atacar legalmente Frances-
co Valori, cidadão cuja autoridade era semelhante à de um príncipe. A maioria do
povo suspeitava da sua ambição, acusando-o, por sua audácia, de querer elevar-se
acima das leis. A república não tinha outro meio de resistir-lhe senão o de opor-lhe
uma opinião contrária. Mas Valori, que só respeitava os meios extraordinários,
procurou cercar-se de cúmplices que o defendessem. Os que o cambatiam, não po-
dendo dominá-lo pela força das leis, empregaram então meios ilegais, vencendo-o
pelas armas. O método, que obrigava a lutar com recursos que à lei não outorgava,
fez com que Valori arrastasse em sua queda muitos cidadãos dignos.
Estas reflexões adquirem força nova quando se pensa no que sucedeu em Flo-
rença com Pedro Soderini — exclusivamente porque não existia na república um
modo adequado de conter a ambição dos cidadãos que adquiriam excessivo poder.
Pode-se, de fato, considerar adequada a faculdade de acusar um homem poderoso
perante tribunal composto apenas por oito juízes? Os juízes devem ser muitos, por-
que o pequeno número se curva facilmente à vontade dos poderosos. Com efeito, se
o Estado tivesse tido meios de defesa, e se Soderini fosse culpado, os cidadãos teriam
podido satisfazer sua animosidade sem ter que implorar a assistência do exército es-
panhol. Se, ao contrário, sua conduta fosse legítima, não teriam ousado processá-
To, pelo temor de terminarem como réus, E assim se extinguiria o furor deste ressen-
timento que foi causa de tantas desordens.
De onde se conclui que todas as vezes que um dos partidos que dominam uma
cidade pede socorro a forças estrangeiras, deve-se atribuir isto aos defeitos da sua
constituição, e ao fato de não existir no seio daquela república uma instituição que
favoreça a explosão regular dos ressentimentos que agitam com tanta frequência os
indivíduos.
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 43
Seri: ir tais i H
ia possível prevenir tais inconvenientes se se estabelecesse um tribunal b;
as-
tani i
tante numeroso para tomar conhecimento de todas as acusações. Em R«
instituição era tão bem ordenada a apoios
que, no meio de longas dissensã
Senado, nunca um ou outro — m E iso e, a o
em um simples cidadão —
É nsou em
seu socarro forças estrangeiras. Como possuíam em casa o reirê a
tinham necessidade de ir buscá-lo em outra parte
médio para o mal, não
Embor: j !
mei a e exemplos precedentes sejam suficientes para demonstrar o que afir-
a A q eso relatar um outro, fornecido também pela “História” de Tito Lívio. Con
ue iusi i à ,
aaa ele autor que em Chiusi, uma das cidades mais renomadas da Toscana, um
Gio tcumo dba violado a irmã de Arunte; este, não podendo vingar-se pois o
a poderoso, procurou os gauleses ,
, que ocupavam a região hoj i
como Lombardia, propondo-lh i ira a cilada Era
, “lhes o envio de uma expedição i
como : I : pedição contra a cidade, fazen-
que seria vantajoso tomar a si aquela vingança. Está claro que se Arunte ti
vesse podido vingar-se de acor. ei sua pátria, não teria recorrido à
ordo com as leis da
P ria recorrido às
Todavi e jam útei
ninho via, embora as acusações sejam úteis numa república, as calúnias são da-
as, e inúteis, como veremos no capítulo que se segue º
Capítulo Oitavo
As calúnias são tão perniciosas às repúblicas quanto são úteis as
denúncias.
Embora Camilo Furius, cuja coragem libertara Roma do jugo dos gauleses, ti-
vesse pelo seu mérito obrigado todos os cidadãos a reconhecê-lo como superior, sem
que se considerassem por isto rebaixados, Mânlio Capitolino sofria com impaciên-
cia a atribuição àquele grande homem de tantas honrarias, Salvador do Capitólio,
pensava ter contribuído tanto quanto Camilo para a defesa da cidade, e não se con-
siderava em coisa alguma inferior ao rival, no concernente aos outros talentos mili-
tares. Devorado pela inveja, irritado com a glória de Camilo, e vendo que não con-
seguiria semear a discórdia entre os senadores, lançou-se aos braços do povo, espa-
thando entre os cidadãos suspeitas as mais ignóbeis. Dizia, entre outras coisas, que
os tesouros reunidos para saciar a avidez dos gauleses (tesouros que, afinal, não lhes
tinham sido entregues) haviam sido divididos entre alguns cidadãos; que se fossem
recuperados, dando-se-lhes uma destinação pública, seria possível aliviar o povo de
uma parte dos tributos, ou pagar algumas das suas dívidas. Estes discursos tiveram
bastante influência sobre o povo, levando-o a se reunir, e a cometer desordens pela
cidade. Irritados, os senadores, julgando o Estado em perigo, nomearam um dita-
dor para tomar conhecimento do que se passava, e reprimir a audácia de Mânlio.
Citado pelo ditador, os dois se encontraram em praça pública: o ditador cercado de
todos os nobres, Mânlio no meio do povo, Ordenou-se a Mânlio declarar onde se
encontrava.o tesouro a que se referia, pois o Senado tinha tanto desejo de localizá-lo
quanto o povo. Sem ter nada a dizer de positivo, Mânlio respondeu, de modo evasi-
vo, que era inútil dizer o que todos sabiam tão bem quanto ele; por esta resposta, o
ditador o fez prender em seguida.
Este episódio mostra claramente que a calúnia deve ser detestada, nas cidades
que vivem sob o império da liberdade — e como é importante criar instituições ca-
pazes de reprimi-la. Para isto, o melhor meio é abrir caminho às denúncias. Quan-
to mais estas denúncias são propícias à república, mais as calúnias se tornam inju-
riosas. É preciso atentar para o fato de que a calúnia dispensa testemunhos e pro-
vas: qualquer um pode ser caluniado por qualquer um. Mas as acusações exigem
provas exatas, com a indicação de circunstâncias precisas, que demonstram fatos.
46 Maquiavel
Acusa-se os cidadãos perante magistrados, perante O povo, ou os tribunais;
calunia-se nas praças públicas, em reuniões particulares. A calúnia é mais empre-
gada sobretudo nos Estados onde a acusação é menos habitual, e cujas instituições
não se harmonizam com este sistema.
Por isto, o fundador de uma república deve estabelecer o princípio de que todo
cidadão poderá ser acusado, sem qualquer temor ou perigo; uma vez estabelecido e
bem observado este direito, os caluniadores devem ser punidos rigorosamente; não
poderão queixar-se de tal punição, uma vez que existam tribunais abertos para ou-
vir acusações contra os que preferirem caluniar em reuniões particulares. Em toda
parte onde esta disposição não está perfeitamente estabelecida, sempre nascem
grandes desordens. A calúnia, de fato, irrita os homens e não os corrige; os que se
irritam só pensam em seguir seu caminho, porque detestam a calúnia mais do que a
temem.
Esta era uma das medidas bem ordenadas em Roma, mas foi sempre mal orga-
nizada em Florença. Como a ordem estabelecida em Roma teve grandes méritos,
assim também em Florença a desordem contrária provocou males dos mais funes-
tos.
Quem ler a história desta cidade verá como a calúnia sempre perseguiu os ci-
dadãos que se envolveram em qualquer assunto de importância. Dizia-se de um,
que havia desviado fundos do Estado; de outro, que por corrupto não alcançara a
vitória; de outro ainda, que a sua ambição causara esta ou aquela desgraça. Como
resultado, surge a animosidade e o rompimento aberto de facções, levando o faccio-
sismo à ruína do Estado.
Se houvesse em Florença uma lei que permitisse acusar os cidadãos, e punir os
caluniadores, não teria havido todas as desordens ocorridas nesta cidade. Condena-
dos ou absolvidos, os cidadãos acusados não se teriam torrado perigosos para o'Es-
tado. De todo modo, o número dos acusados teria sido sempre muito inferior aos
dos caluniados. Como disse, pode-se acusar tão facilmente quanto caluniar. A calá-
nia foi sempre um dos meios utilizados pelos ambiciosos para chegar à grandeza, e
não dos menos eficazes. Foi empregada contra os poderosos que se opunham à avi-
dez dos caluniadores, servindo maravilhosamente aos desígnos destes. De fato, to-
mando o partido do povo, e acirrando o seu natural ciúme contra tudo o que é ele-
vado, o caluniador conseguia facilmente o seu apoio.
Poderia citar muitos exemplos para ilustrar a tese que avancei, mas me con-
tentarei com um só.
O exército de Florença assediava Luca, sob o comando de João Guicciardini,
comissário da república. Seja pela imperícia do comando militar, seja por simples
má sorte, não foi possível tomar a cidade. Qualquer que tenha sido a causa do in-
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 47
fortúnio, lançou- ã
io Danço “ a culpa sobre João, acusando-o de se ter deixado corrom;
ani “pe
sabia * Luca. Seus inimigos ecoaram esta calúnia, levando-o o de
pero. Para se justificar, ofereceu-se em vão como prisi ei Não do povo,
eni iu jamais ce ires ã
ão conseguiu jamais se justificar integralmente
ca um modo próprio de fazé-lo. ,
Disto r irritação
dos a, coultou Erofunda Yritação entre os amigos do caluniado — a maiori
ratas de — j cação no go
pp Td doença ã e entre os que almejavam uma modificação no go
. s, atiçadas diariamente por ,
5 E estes e outros moti
enfim um incêndio, que devorou toda a república OHHos, acenderam
Máânlio Capitolino foi um caluniador, e não denunciante;
envol no episódi
'veu, Os romanos deram um exemplo claro da maneira como Pisídio que o
a calúnia deve ser
Capítulo Décimo
Os fundadores de uma república ou de um reino são dignos de
elogio, tanto quanto merecem recriminação os que fundam uma
tirania.
Dentre todos os mortais que já mereceram elogios, os mais dignos são os chefes
ou fundadores de religiões. Depois vêm os fundadores-de república ou de reinos.
Em seguida os que, à frente de exércitos, estenderam os domínios da sua pátria. À
estes devemos acrescentar os letrados; e como destes há várias espécies, cada um al-
cança a glória reservada à categoria a que pertence. Enfim, no número infinito dos
homens, nenhum deles deixa de receber a fração de elogio a que faz jus pela sua ar-
te ou profissão.
Por outro lado, merecem o ódio e a infâmia os destruidores de religões, os que
permitiram que os reinos ou repúblicas confiados a seus cuidados se perdessem; os
inimigos da virtude, das letras e das artes honradas e úteis à espécie humana; e as-
sim os ímpios, os furiosos, os ignorantes, os ociosos, os covardes e os inúteis.
Não haverá ninguém tão insensato ou sábio, tão corrompido ou virtuoso, que,
se lhe pedirmos para escolher entre as duas espécies de homem, não aprove a que
merece ser elogiada, criticando a que merece ser detestada. Contudo, quase todos
se deixam seduzir, voluntariamente ou por ignorância, pelo brilho enganoso dos
que merecem o desprezo mais do que encômios, envolvidos pela atração do falso
bem, ou da vã glória.
E alguns que alcançaram a honra imortal de fundar uma república ou um rei-
no, mergulham na tirania sem perceber que, ao abraçá-lo, perdem renome, glória,
honra, segurança, paz e satisfação espiritual, expondo-se à infâmia, às críticas, à
culpa, a perigos e inquietações.
Se os cidadãos de uma república — ou aqueles que a boa sorte ou a coragem
transformaram em príncipes — aprendessem as lições da história, seria impossível
que não preferissem viver, os primeiros, mais como Cipão do que como César; os se-
54 Maquiavel
gundos, como Agesilau, Timoleonte, e Dí, e não como Nábis, Faláris e Dionísio. Is-
to, porque veriam que uns se cobriram de vergonha; outros, de glória. Veriam que
Timoleonte e os seus êmulos podem ter alcançado autoridade igual à de Dionísio e
Faláris, mas tiveram segurança bem menor.
Que ninguém se deixe maravilhar pela glória de César, e sobretudo pelos elo-
gios com que os escritores o cumularam. Os que celebraram César haviam sido cor-
rompidos, ou se assustavam com a duração de um império que, governado sempre
sob a sua influência, não permitia aos escritores escreverem livremente. Os que qui-
serem saber o que pensavam os escritores terão apenas que ler o que disseram de
Catilina. César teria sofrido execração ainda maior, pois quem pratica o crime é
mais culpado do que quem o planeja. Quem examinar todos os encômios prodigali-
zados a Brutus verá que, na impossibilidade de atingir o tirano, por causa do seu
poder, exaitou-se a glória do seu inimigo.
Aquele que for elevado ao poder supremo de uma república que considere os
elogios com que Roma, transformada em império, cumulou os imperadores que se-
guiram as leis, de preferência aos que se conduziram de modo contrário. Verá en-
tão que Tito, Nerva, Trajano, Adriano, Antonino e Marco Aurélio não tinham ne-
cessidade, para a sua defesa, de soldados pretorianos ou de grande número de le-
giões, porque a maneira como viviam, a afeição do povo e o amor do Senado consti-
tuíam sua melhor proteção.
Verá também que todas as forças do Oriente e do Ocidente não conseguiram
salvar os Calígulas, os Neros, os Vitélios, e tantos outros criminosos coroados, da
vingança dos inimigos criados pelos seus costumes execráveis e pela sua ferocidade.
Se a história desses monstros fosse bem estudada, serviria de ensinamento aos prín-
cipes, mostrando-lhes os caminhos da glória e da vergonha, da segurança e do ter-
ror. Sabe-se, como efeito, que dos vinte e seis imperadores que reinaram, de Cêsar a
Maximino, dezesseis foram assassinados, e dez morreram de morte natural. Se o nú-
mero dos assassinados se inclui alguns justos, como Galba e Pertinax, é porque fo-
ram vítimas da corrupção introduzida no exército pelos seus predecessores. Por ou-
tro lado, se dentre os que morreram naturalmente se encontra um malvado como
Severo, isto se deve à sua grande coragem, e a uma felicidade inaudita — duas cir-
cunstâncias que poucas vezes se reúnem para beneficiar os homens.
O estudo da história ensinará também coimo se pode fundar um bom governo,
pois todos os imperadores que subiram ao trono por “direito de nascença foram
maus, com a exceção de Tito; os adotados como reis foram todos excelentes, como
se pode ver pelos cinco que se sucederam, de Nerva a Marco Aurélio. Que o leitor os
compare com seus antecessores é sucessores, escolhendo depois aqueles sob quais
preferiria viver tomo súdito.
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 55
E que descobriria sob o reino dos imperadores bons? Um príncipe governando
em segurança, no meio de súditos pacíficos; o mundo em paz, dirigido pela justiça;
o Senado com plena autoridade, os magistrados em toda dignidade, os cidadãos
com riqueza opulenta. A nobreza e a virtude, honr: :
iqu , adas; em tod; il
trangiilidade. * pane a dia e a
afastados a ressentimento, a licença, a corrupção, todas as ambições, veria re-
a .
ascida a idade de ouro em que todos podem sem temor exprimir e sustentar uma
opinião. Veria enfim o mundo triunfante, o príncipe cercado de respeito e glória,
os povos felizes envolvendo-o com o seu amor. ,
. E se examinasse depois, em pormenor, o reinado dos outros imperadores, po-
deria vê-los ensangientados por guerras atrozes, revolucionados por sedições e de
sastres, na paz e na guerra. À maior parte dos príncipes mortos pela espada; em to-
da parte a guerra civil, ou guerras externas, À itália em pranto, e a cada dia re:
de novos infortúnios: suas cidades devastadas, caindo em ruínas. Pres
- Veria Roma em cinzas, o Capitólio desfeito pelos próprios cidadãos; templ
antigos profanados, cerimônias religiosas corrompidas, as cidades povoad: ; de
adúilteros. Os mares cheios de exilados, os rochedos manchados de sangue. Venta
Roma atemorizada por crueldades inumeráveis. A nobreza, as riquezas as honra
rias antigas e sobretudo a virtude tidas como pecados capitais. Os caluniadores re.
miados, es servos corrompidos contra os senhores, os clientes contra seus patronos;
es que não possuiam inimigos, oprimidos pelos próprios amigos. Poderia perceber
então o que Roma, a Itália, e todo o mundo devem a César. E se esj anta de
que há quem possa imitar esses reinados execráveis. º céEee
Seguramente, um príncipe inflamado pelo amor à glória descjará governar um
Estado corrompido — não, como César, para completar sua ruína, mas, como Rô-
mulo, para reformá-lo. De fato, não pode haver melhor ocasião de ganhar a im
talidade. Se um prícipe, animado pela vontade de regenerar um Estado, se vir
ameaçado de perder o trono, e renunciar por isto à seus projetos de reforma, poder.
se-à talvez desculpá-lo. Mas se tiver condições de conservar o trono, refontindo 5
Estado, e não o fizer, será impossível absolvê-lo. , Metadado O
=, Que reflita, portanto, todo aquele a quem o céu vier a oferecer tão bela oca-
sião, sobre as duas alternativas que se abrem à sua escolha: uma que o fará viver em
s É
egurança, assegurando-lhe a glória após a morte; a outra fa-lo-á viver em constan-
te angústia, e marcará sua memória com eterna infâmia.
Capítulo Décimo Primeiro
A religião dos romanos.
Roma teve Rômulo por fundador, devendo-lhe, como a um pai, seu nascimen-
to e formação. Os céus não julgaram, porém, que as instituições daquele príncipe
fossem suficientes para os grandes destinos do império, inspirando ao Senado a es-
colha de Numa como seu sucessor, para que promulgasse todas as leis que Rômulo
não chegou a formular.
O novo monarca encontrou um povo bravio; quis impor-lhe o jugo da obediên-
cia civil, fazendo com que experimentasse as artes da paz. Voltou o seu olhar para a
religião como o agente mais poderoso da manutenção da sociedade, fundando-a so-
bre tais bases que nenhuma outra república demonstrou jamais maior respeito pe-
los deuses, o que facilitou todos os empreendimentos do Senado e dos grandes ho-
mens que aquele Estado viu nascer.
Quem examinar os atos importantes devidos a todo o povo romano reunido, ou
a grupos de cidadãos, verá que os romanos respeitavam seus juramentos mais ainda
do que as leis, convencidos que estavam de que a potência dos deuses é maior do
que a dos homens. Cipião e Mânilo Torquato oferecem dois exemplos frisantes.
O primeiro, após a vitória de Cannes, que Anibal impôs aos romanos, vem a
saber que um grupo de cidadãos, aterrorizados com a derrota, pretendiam abando-
nar a Itália, buscando refúgio na Sicília. Corre ao seu encontro e, de espada na
mão, força-os a jurar que não abandonariam a pátria.
Tito Mânlio, conhecido depois pelo sobrenome Torquato, tinha sido acusado
por Marco Pompônio, tribuno do povo. Antes do dia do julgamento, Tito vai pro-
curar Marco e 0 ameaça de morte, obrigando —o a abandonar a acusação dirigida
contra seu pai. É o que Pompônio jura e, tendo comprometido a palavra, abando-
na de fato a acusação.
Vê-se, nestes exemplos, que cidadãos a quem o amor da pátria e a força das
leis não puderam reter na Itália, nela permaneceram, presos por juramento que
e Maquiavel
quem pensasse tê-la visto responder que “sim”, com um gesto ou uma palavra.
Cheios de religiosidade, esses soldados (como comenta Tito Lívio, observando que
tinham entrado no templo sem desordem, dominados pelo respeito e pela devoção)
acreditaram facilmente que a deusa dava à pergunta a resposta que tinham prova-
velmente presumido. E Camilo, como os outros responsáveis pelo governo, aceitou e
difundiu esta crença.
Se a religião se tivesse podido manter na república cristã tal como o seu divino
fundador a estabelecera, os Estados que a professavam teriam sido bem mais feli-
zes. Contudo, a religião decaiu muito. Temos a prova mais marcante desta deca-
dência no fato de que os povos mais próximos da Igreja Romana, a capital da nossa
religião, são justamente os menos religiosos. Se examinássemos o espírito primitivo
da religião, observando como a prática atual dela se afasta, concluirtamos, sem dú-
vida, que chegamos ao momento da sua ruína e do seu castigo.
Como há quêm pretenda que a felicidade da Itália depende da Igreja de Ro-
ma, apresentarei contra essa Igreja várias razões que se oferecem ao meu espírito,
dentre as quais duas extremamente graves, contra as quais, segundo penso, não há
objeção possível. Em primeiro lugar, os maus exemplos da corte romana extingui-
ram, neste país, a devoção e a religião, que trouxe como consequência muitos in-
convenientes e distúrbios, E como em toda parte onde reina a religião se acredita na
prevalência do bem, pela mesma razão se deve supor a presença do mal nos lugares
onde ela desapareceu. É, portanto, à Igreja e aos sacerdotes que os italianos devem
estar vivendo sem religião e sem moral; e lhes devemos uma obrigação ainda maior,
que é a fonte da nossa ruína: a Igreja tem promovido incessantemente a divisão nes-
te malfadado país — e ainda a promove. Com efeito, só há união e felicidade nos
Estados sujeitos a um governo único e a um só príncipe, como a França e à Espa-
nha. A razão por que a Itália não se encontra na mesma situação daqueles dois paí-
ses, não possuindo um governo único, monárquico ou republicano, é exclusivamen-
te a Igreja, a qual, tendo possuído e saboreado o poder temporal, não tem contudo
a força suficiente, nem a coragem bastante, para se apossar do resto do país,
tornando-se dele soberana.
Por outro lado, se a Igreja nunca foi tão forte como para poder ocupar toda a
Itália, não permitiu que qualquer outro país dela se apossasse; fez assim com que
esta nação não se pudesse reunir sob um só chefe, mantendo-se dividida entre vários
príncipes ou senhores. Daí a desunião e a fraqueza, que a reduziram a presa não só
de bárbaros ferozes, mas do primeiro que quisesse atacá-la.
É à Igreja que a Itália deve isto. E para provar esta verdade com uma expe-
riência irrecusável, bastaria que se fizesse a corte romana mudar-se, com toda a au-
toridade que possui em Roma, para a Suíça — o único país contemporâneo que se
assemelha aos antigos, na religião e nas instituições militares. Ver-se-ia em pouco
tempo os costumes corruptos daquela corte provocarem desordens das mais profun-
das, que poderiam produzir, sem tardança, os acontecimentos mais desastrosos.
Capítulo Décimo Terceiro
Com / igtã
O 05 romanos se seruiram da religião para organizar o governo
ca, po
da república, para promover seus empreendimentos e reprimir
desordens. '
Penso ãe i
comia que não estaria fora de propósito relatar aqui alguns exemplos do modo
romanos se serviram da religião para executar reformas no Estado, e para
promover seus empreendimentos. Tito Lívi á mui
” « Tito Lívio nos dá muito:
tentarei com os seguintes. + templos, mas me con
Depois que os tribunos militares sucederam os cônsules no poder consular,
aconteceu num certo ano que o povo elegeu todos eles dentre eb
q P ge ntre os plebeus, com uma
única exceção. Naquele mesmo ano o país sofreu peste e fome, acompanhadas de
pe: pa:
muitos prodigi nando da eleição subsegiiente, os nobres, aproveitando-se das
uitos prodígios. Quando da eleiç; boss te, Os nobi de d:
circunstâncias, divulgaram que os deuses estavam irritados com Roma, à ual ha-
, q il s q
via prejudicado a majestade do império, e que a única maneira de a! acá-los seria
3 pério, e que ca maneira de ap!
retirar os tribunos da classe onde deviam ser Justamente escolhidos. Atemorizado
temendo ofender a religião, o povo elegeu todos os novos tribuno: dentre os patrí-
, elegeu
ge s tribunos dentre os patrí
ha O assédio de Veios nos Sfereceu um exemplo do modo como os generais se uti-
a religião para incitar os soldados a uma campanha. Em certo ano o |
de Alba tinha crescido de forma prodigiosa; os soldados romanos, sda
longo sítio, queriam voltar à sua cidade; foi quando se fez correr a v
lo, e outros oráculos, tinham profetizado que Veios se renderi
águas do Alba extravasassem suas margens. e
cansados pelo
oz de que Apo-
ano em que as
A esperança de que a cidade sitiada fosse logo tomada permitiu que os solda
dos suportassem a morosidade da guerra, e os aborrecimentos do sítio. Prossegui-
ram na sua campanha prazerosamente, até o dia em que Camilo, nomeado dita-
:
q , ita.
dor, tomou a cidade, após um assédio de dez anos. Deste modo, a religião, bem em-
, igião, bem em
pregada, foi de utilidade para conquistar Veios e para obrigar a eleição de tribunos
escolhidos dentro os nobres. Sem a religião, teria havi i
Cidades dentro o nobres. Sem a religião, teria havido sem dúvida grandes difi-
64 Maquiavel
Não quero deixar escapar um outro exemplo. Tinha havido desordem em Ro-
'ma no tempo do tribuno Terêntilo, que desejava promulgar uma lei sobre cujos
motivos falaremos mais adiante. Entre os meios empregados contra ele pela nobre-
+a, um dos mais poderosos foi a religião, utilizada com dois objetivos. Em primeiro
lugar, foram consultados os livros sibilinos, que se interpretou de modo a profetiza-
rem que naquele ano a cidade estaria sob ameaça até mesmo de perder a liberdade
caso houvesse discórdia interna. Embora descoberto pelos tribunos, o embuste pro-
vocou um tal terror entre os populares que congelou todo o seu ardor por seguir à
proposta de Terêntilo.
A outra vantagem foi a seguinte: um certo Ápio Erdônio se havia apoderado à
noite do Capitólio, à frente de mais de quatro mil bandidos e escravos; temia-se que
se os équos ou os volscos, inimigos perenes de Roma, atacassem a cidade naquele
momento, poderiam tomá-la por assalto. Contudo, os tribunos insistiam opiniati-
camente na necessidade de promulgar a lei Terêntila, alegando que Roma de fato
não corria o menor perigo. Foi quando um certo Públio Rubétio, homem sério e ra-
zoável, saiu do Senado e, num discurso entre ameaçador e aliciante, expôs os pen
gos que cercavam a capital, mostrando ao povo que sua reivindicação não era opor-
tuna, e convencendo-o a jurar o cumprimento das ordens do cônsul. A multidão
obedeceu, e o Capitólio foi tomado pela força.
Como o cônsul Públio Valério foi morto no ataque, nomeou-se imediatamente
Tito Valério para substituí-lo. Este preferiu não dar ao povo tempo para pensar so-
bre a controvertida lei, ordenando-lhe sair de Roma para marchar contra os vols-
cos, com a justificativa de que o juramento feito tornava aquela ordem obrigatória.
Os tribunos se opuseram, dizendo que o juramento havia sido feito ao cônsul faleci-
do. Mas Tito Lívio conta como o povo, temendo violar a religião, preferiu obedecer
ao cônsul, em vez de ouvir os tribuhos. E acrescenta estas palavras em favor da anti-
ga religião: “Nondum haec, quae nunc tenet saeculum, negligentia deum venerat,
nec interpretando sibi quisque jusjurandum et leges aptas faciebat” (não predomi-
nava ainda, como hoje, a inobservância das coisas divinas; nem cada um interpre-
tava a seu modo o valor das leis e dos juramentos”).
Temerosos de perder credibilidade, os tribunos entraram em acordo com o
cônsul, consentindo em obedecê-lo, e admitindo deixar transcorrer todo um ano
sem insistir na lei Terêntila, sob condição de que durante esse período os cônsules
não levassem o povo à guerra. Deste modo, a religião deu ao Senado os meios para
vencer uma dificuldade que não teria sido jamais contornada sem o seu auxílio.
Capítulo Décimo Quarto
Os r X fcic
é , comanos interpretavam os auspícios conforme a necessidade, e
ag am com grande prudência na observância pública da religião,
quando eram obrigados a violá- la; puniam todos os que,
temerariamente, a desprezavam. qe,
Como disse anteriormente, os titufam não só boa parte -
se anteriormente, os augúrios constituíam não só boa parte do funda
mento da religião mas também uma das fontes do bem estar da república romana.
.
ram, igualmente, de todas as instituições religiosas, aquela à qual os romanos atri
E h de lígiosas, aquel:
, qual a!
buíam a maior importância. A abertura das sessões consulares, o início de todos os
ul. ci
'
empreendimentos, e das campanhas militares, o momento de travar batalha — en
fim, todo assunto de importância, civil ou militar — dependia de que se auscultasse
os auspícios; j i inf i
pícios; jamais se dava início a uma expedição sem persuadir os soldados de
que os deuses haviam prometido a vitória.
Entre os á i iã
é cos áugures, havia os guardiães das aves sagradas que seguiam os exérci
uando se inimi .
dos. Quando preparava o ataque ao inimigo, esses guardiães faziam auspícios fa-
s aves comessem com avidez (ca i
so em que se combatia com confi ;
se se recusavam a comer, era aco: á panda
, nselhável abster-se do
e É ' ataque. Contudo,
razão f i i PA
azia sentir à necessidade do combate, ainda que os auspícios fossem contrá
rios, não se deixava de combater; mas tomava- do para evitar a acusação de
, mas tomava-se cuidado p:
:
ai cusaç
tos.
Foio ô i lã
io que fez o cônsul Papírio por ocasião de uma batalha de grande importân-
cia ntra 0s samnitas (o tiro de misericórdia contra esse povo aguerrido). À vitória
parecia certa, se pudesse atacar em d: k
] , lado momento; desejando it
a e ; aprov -
tunidade tão favorável, fez com que se procurassem os aus : das avos sas
das se re:
das se cusaram a comer. Vendo o ardor das tropas, a convicção do general e dos
lados de que venceriam a batalha já
+ o chefe dos guardiães não qui
q t ão quis que se perdes-
sea o) ram É o
portunidade e mandou dizer ao cônsul que os auspícios eram favoráveis
pícios, mas as aves sagra-
Contudo, quando Papírio di érci
dos e sdo ua pírio dispunha o exército em posição de ataque, alguns
ntaram o que tinha acontecido. A notícia chegou a Spário Papi.
Maquiavel
66 q
i brinho do cônsul, que foi levá-la ao tio. Papírio respondeu imediatamente
quê fo i eu dever; que quanto a ele e ao exército os auspícios €: T
rt ordem; se o chefe dos guardiães o tivesse alterado, a culpa secai-
e lusiamente sobre Je. E para que as coisas se passassem assim, deu ordens de
ja exclusivamente sobre el RN
Colocar o guardião na linha avançada do ataque, onde ele foi atingit
e
uma lança romana, que o matou. Ao ser informado do acidente, Papiro
declara q ora tudo sairia bem, e que os deuses lhes seriam favoráveis, poi qe
o cn dorido pelo exército tinha sido lavado pela morte do impostor caio ao
gue ext ira a cólera que pudessem ter contra os Tomanos. Conciliant
au Prudência seus objetivos com a predição dos oráculos, entrou em combate sem
que à soldados suspeitassem que pudesse ter infringido em qualquer ponto a:
que
dens sagradas da religião.
ica, Ápi - campanha
Durante a primeira guerra púnica, Ápio Pulcro comportou-se, na camp:
da Sicília, de modo oposto. eria atacar os cartagineses e fez consulta às aves sa-
: gi
le posto. Qu s
1 imentar-se. “Vejamos se querem beber”, disse; e man-
ão quiseram ali )
ás do ma a foi travada, e os romanos, vencidos. Sua conduta
dou jogá-las ao mar. A batalh os ron 5
foi condenada em Roma, enquanto a de Papírio foi elogiada.
i haver sido
Esta diferença de tratamento tinha menos que ver com o deu ver sd
1 ncia -
vencido, enquanto o outro fora vencedor, do que com a circunst ncia de aa
gundo tratara com prudência os oráculos, enquanto que o primei
temerariamente.
jos ti idade: incitar os sol-
Este costume de consultar os auspícios tinha uma só finalidade: incita)
i ra quase sempre a
dados a marchar confiantes para o combate, pois a confiança ga ra que e o ca
vitória. Esta prática não era seguida apenas pelos romanos, mi
i i tulo seguinte.
trangeiros. Darei um exemplo no capítulo segui
Capítulo Décimo Quinto
Como os samnitas recorreram à religião como um derradeiro
remédio contra os seus males.
Depois de terem sido vencidos muitas vezes pelos romanos, os samnitas foram
completamente derrotados na Toscana, perecendo todos os seus soldados e capi-
tães. E com eles os toscanos, gauleses e úmbrios, que partilharam o desastre, “Nec
suis nec externis viribus jam stare poterant, tament bello non abstinebant; adeo ne
infeliciter quidem defensae libertatis taedebat, et vinci quam non tentare victoriam
malebant” (“Já não podiam contar com sua própria força, ou com a dos aliados, e
contudo não abandonavam a disposição de combater pela liberdade defendida com
tão pouca sorte; preferiam ser vencidos a deixar de tentar a vitória”). Foi quando
resolveram fazer uma última tentativá. E como sabiam que o êxito desse esforço de-
pendia em grande parte da firmeza dos soldados, e que o modo mais seguro de
Ppromové-la era a religião, pensaram renovar um antigo sacrifício, servindo-se para
iso do Sumo Sacerdote Óvio Pácio; arranjaram as cerimônias da seguinte forma:
após um sacrifício solene, chamou-se todos os chefes militares para junto dos corpos
dos soldados mortos em combate, colocados em altares iluminados por tochas. Os
chefes juraram então não abandonar o combate um instante sequer. Chamou-se,
em seguida, todos os soldados, uns após os outros: ao lado dos altares, e no meio de
numerosos centuriões com a espada desembainhada, os soldados juraram não repe-
tir jamais o que iriam ver e ouvir, após o que se exigiu deles que prometessem dian-
te dos deuses, com imprecações terríveis, e as fórmulas mais espantosas, seguir estri-
tamente as ordens dos seus comandantes, sem abandonar o combate sob qualquer
Pretexto, matando todos os que vissem fugir. Apelou-se para a vingança dos céus,
que deveria cair sobre as suas cabeças e as dos seus descendentes, caso traíssem a pa-
lavra empenhada.
Alguns soldados, assustados, recusaram-se a prestar tal juramento, e foram
massacrados pelos centuriões. Os sobreviventes, horrorizados com o espetáculo, ju-
Taram unanimemente.
Capítulo Décimo Sétimo
Um povo corrompido que recobra a liberdade só com grande
dificuldade poderá manter-se livre.
A meu juízo, ou Roma deixaria de ter reis ou necessariamente recairia, em
pouco tempo, numa tal fraqueza que passaria a ser um Estado sem importância. Se
considerarmos o grau de corrupção a que tinham chegado seus monarcas, veremos
que teria sido impossível remediá-la caso tivesse havido dois ou três outros reinados,
e o mal se alastrasse aos membros da coletividade, depois de dominar sua cabeça.
Mas, como esta foi decepada quando o tronco estava ainda intacto, foi possível
manter a ordem e a liberdade.
É incontestável que uma cidade corrompida, que vive sob o domínio de um
príncipe, não recobrará jamais a liberdade, ainda que o príncipe e sua raça sejam
destruídos. Torna-se mesmo necessário que o príncipe seja destronado por um ou-
tro, e que a cidade passe assim de monarca em monarca, até encontrar um sobera-
no, mais virtuoso e esclarecido, que a liberte — benefício este que não se estenderá
por mais tempo do que o da vida do libertador. Em Siracusa houve dois exemplos
marcantes: Dí e Timoleonte, que fizeram florescer a virtude, nas diferentes épocas
em que viveram; mas, logo após a morte de cada um, a cidade recaiu na tirania.
O exemplo de Roma é ainda mais convincente. Após a expulsão dos Tarqui-
nios, a cidade pôde conquistar e conservar a liberdade. Mas, depois da morte de
César, de Calígula, de Nero, após a extinção de todos os Césares, foi impossível
reviver-lhe a chama. Resultados tão opostos de acontecimentos semelhantes, na
mesma cidade, são devidos unicamente a que o povo romano, sob o reinado dos
Tarquínios, não estava ainda corrompido, enquanto que, mais tarde, todo o impé-
rio se encontrava infectado por profunda corrupção.
No primeiro daqueles períodos, bastava fazer jurar que Roma não admitiria
jamais um rei para afirmar a república e inspirar a repulsa aos monarcas. No se-
gundo, o exemplo estóico de Brutus, apoiado por todas as legiões do Ocidente, não
foi suficiente para levar os romanos a decidir conservar sua liberdade — a qual, co-
mo o primeiro Brutus, ele acabava de oferecer-lhes. Esta corrupção tinha sido in-
"4 Maquiavel
troduzida no corpo estatal pelo partido de Mário; feito chefe supremo, César conse.
guiu cegar de tal forma a multidão que ninguém percebeu o jugo que O próprio po-
vo consentiu em receber.
Embora o exemplo de Roma seja mais decisivo do que qualquer outro, quero
citar o de alguns povos contemporâneos: ouso, portanto, declarar que Milão e Ná-
poles nunca serão livres, por maior que seja a catástrofe ou mais sangrenta a revolu-
ção que possa ali ocorrer: a corrupção avançou demais pelos membros daqueles Es-
tados. Viu-se a prova disto após a morte de Felipe Visconti, quando Milão, queren-
do reaver a liberdade, nem póde e nem soube mantê-la.
Para os romanos, foi uma grande felicidade que os seus reis tenham degenera-
do tão rapidamente que tenha sido possível expulsá-los antes de que o mal penetras-
se nas entranhas do Estado. Sua corrupção fez com que as numerosas desordens
ocorridas em Roma fossem vantajosas, em vez de ter resultados funestos, pois as in-
tenções dos cidadãos eram boas.
De onde se conclui que, quando a massa do povo é sadia, as desordens e os tu-
multos não chegam a ser daninhos: mas quando está corrompida, mesmo as leis
melhor ordenadas são impotentes — a menos que sejam manipuladas habilmente
por uma personalidade vigorosa, respeitada pela sua autoridade, e que possa cortar
o mal pela raiz.
Não sei se já se viu tal prodígio, ou mesmo se ele é possível. Se acontecesse de
uma cidade arruinada pela corrupção se recuperar da sua queda, este benefício só
poderia ser atribuído a virtude de um homem, e não à vontade geral que o povo pu-
desse ter em favor de boas instituições. E mal a morte abatesse este reformador, a
massa retornaria aos seus antigos costumes. Com efeito, não há homem cuja vida
seja longa o bastante para poder reformar um governo há muito tempo desorgani-
zado; e se tal reforma não for feita por um príncipe longevo, ou durante dois reina-
dos igualmente virtuosos, o Estado tombará necessariamente num abismo do qual
só poderá sair às custas de muito esforço e de.sangue derramado. A corrupção e a
inaptidão para a vida em liberdade provêm da desigualdade que se introduziu no
Estado; para nivelar essa desigualdade, é preciso recorrer a meios extraordinários,
que poucos homens sabem ou querem usar. É o que vamos ver mais detidamente
em outra parte destes comentários.
Capítulo Décimo Oitavo
De que maneira se pode manter o governo livre numa cidade
corrompida; e como instituí- lo, se ela ainda não o tiver.
Não creio que seja fora de propósito, ou estranho ao que avancei no capítulo
precedente, analisar a possibilidade de se manter um governo livre numa cidade
corrompida, ou de instituí-lo, caso áinda não tenha sido estabelecido. As duas em-
presas apresentam igual dificuldade; e, embora seja quase impossível propor regras
fixas sobre este ponto, devido à necessidade de proceder segundo os diferentes graus
de corrupção, não quero deixar passar em claro o assunto, pois é bom que tudo seja
examinado.
Vamos supor, em primeiro lugar, uma cidade que chegou ao estado máximo
de corrupção, onde a questão se apresenta com toda a força da sua dificuldade.
Onde o desregramento é universal, não há leis nem instituições que o possam repri-
mir. De fato, os bons costumes só podem ser conservados com o apoio de boas leis,
a observação das leis exige bons costumes.
Além disto, as leis e instituições estabelecidas na origem de uma república,
quando os cidadãos eram virtuosos, se tornam insuficientes quando eles começam a
se corromper. E se os acontecimentos determinam alterações nas leis, como o mais
comum é que as instituições não se modifiquem, a legislação nova fica sem efeito, já
que as instituições originais cedo as corrompem.
Para melhor me explicar, direi que em Roma havia instituições que regulavam
O governo, ou seja, O Estado, e leis que ajudavam os magistrados a refrear as desor-
dens provocadas pelos cidadãos.
As instituições abrangiam a autoridade do povo, do Senado, dos tribunos, dos
cônsules, a maneira de eleger os magistrados, e o processo legislativo. Os fatos pou-
co mudaram essas instituições. O mesmo não aconteceu, contudo, com as leis que
disciplinavam os cidadãos, como as leis sobre o adultério, o luxo, à conspiração e
todas as demais que se tornaram necessárias devido à mudança sucessiva dos costu-
76 Maquiavel
mes. Mas, como foram conservadas instituições que não eram boas, no meio da cor-
rupção geral, as novas leis não bastaram para manter os homens na virtude. Para
fazer com que se tornassem inteiramente úteis, teria sido preciso que se mudasse ao
mesmo tempo as antigas instituições.
Dois pontos principais demonstram que as mesmas instituições deixam de ser
convenientes a uma cidade corrompida: a criação dos magistrados e o processo le-
gislativo.
O povo romano só concedia o consulado e as outras principais magistraturas
da república aos que as postulavam. Este princípio era excelente, pois sô se candi-
datavam àquelas funções os cidadãos que se consideravam dignos, já que era uma
vergonha o ser rejeitado. De sorte que, para merecê-las, os cidadãos se esforçavam
por praticar o bem.
Mas quando os costumes da cidade decaíram, este processo se tornou extrema-
mente pernicioso. As magistraturas passaram a ser postuladas não pelos mais vir-
tuosos, mas pelos mais poderosas; e os cidadãos sem recursos, ainda que dotados de
todas as virtudes, não ousavam apresentar-se como candidatos, temendo ser rejeita-
dos. Este vício não se manifestou imediatamente; surgiu aos poucos, como soe acon-
tecer com todas as inconveniências. Como os romanos tinham dominado a África e
a Ásia, bem como uma parte da Grécia, sentiam-se seguros da sua liberdade, e não
temiam nenhum inimigo. Esta Segurança e a impotência dos seus rivais fizeram
com que os cidadãos, na escolha dos cônsules, não se detivessem mais na considera-
ção do valor, mas sim na do favor, promovendo àquela elevada função os que me-
lhor sabiam obter os votos populares — é não os que melhor sabiam vencer seus ini-
migos. Mais tarde, desceu-se ainda mais, passando-se a nomear os que ostentavam
maior poder; de modo que, pelo vício das instituições, os homens de bem foram ex-
cluídos de todos os cargos. Qualquer tribuno, ou outro cidadão, podia propor uma
lei: todos tinham o direito de apoiá-la, ou não, antes de que fosse objeto de delibe-
ração — o que era uma boa medida, na época em que os cidadãos eram virtuosos;
deve-se considerar como um bem a possibilidade de cada um propor 0 que conside-
ra útil ao público, e é igualmente bom que se permita a cada um expressar livre-
mente o seu pensamento sobre o que é proposto, de modo que 0 povo, esclarecido
pela discussão, adote o partido que achar melhor.
Mas, quando os cidadãos se corromperam, a instituição ficou sujeita a nume-
rosos inconvenientes: só os homens poderosos passaram a propor leis, não no inte-
“resse de liberdade, mas no do seu próprio poder; e ninguém ousava falar contra es-
ses projetos, devido ao temor que seus proponentes inspiravam. De modo que o po-
vo, enganado ou constrangido, se via obrigado a decretar a própria ruína.
Para que, no meio desta corrupção, Roma pudesse manter a liberdade, foi ne-
cessário que, em diversas épocas da sua existência, promulgasse novas leis e ao mes-
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 7
mo tempo estabelecesse novas instituições, Pois as instituições apropriadas a um po-
vo corrompido são diferentes das que se ajustam ao que não o é; não convém a mes-
ma forma a matérias inteiramente diversas.
A mudança das instituições pode ser feita de dois modos: reformando-se todas
elas ao mesmo tempo, quando se reconhece que perderam o valor, ou gradualmen-
te, à medida que se lhes percebe os inconvenientes. Os dois modos oferecem dificul-
dades quase insuperáveis.
A reforma parcial e sucessiva deve ser provocada por um homem esclarecido
que saiba reconhecer de muito longe as dificuldades, logo que surjam. É possível
que nunca se encontre um homem deste tipo; se surgisse um só, não conseguiria ja-
mais convencer os concidadãos dos vícios identificados pela sua previsão. Quando
estão habituados a uma certa maneira de viver, os homens não a querem alterar,
sobretudo se não enxergam claramente o mal que se lhes insinua.
Quanto à reforma total e imediata da constituição política, quando há convic-
ção geral de que ela é defeituosa, é difícil efetuá-la mesmo se o defeito é evidente,
porque para isto os meios ordinários são insuficientes. Torna-se indispensável o re-
curso a métodos extraordinários — as armas e a violência. Antes de mais nada, o
reformador deve apoderar-se do Estado, a fim de poder dele dispor à vontade.
É necessário ser um homem de bem para reformar a vida política e as institui-
ções de um Estado; mas a usurpação violenta do poder pressupõe um homem ambi-
cioso e corrupto. Assim raramente acontecerá que um cidadão virtuoso queria
apossar-se do poder por meios ilegítimos, mesmo com as melhores intenções; ou que
um homem mau, tendo alcançado o poder, queira fazer o bem, dando boa utiliza-
ção ao poder que conquistou com o mal.
Do que acabo de dizer, transparece a dificuldade, ou mesmo a impossibilida-
de, de manter o governo republicano numa cidade corrompida, ou de ali
estabelecê-lo. De qualquer maneira, mais vale a monarquia do que o estado popu-
Jar para assegurar que os indivíduos cuja insolência as leis não podem reprimir se-
jam subjugados por uma autoridade real.
Pretender regenerá-los por outro meio seria uma empresa muito penosa, ou
absolutamente impossível, como já comentei, ao falar de Cleômenes.
Aquele príncipe massacrou os éforos para reunir em suas mãos toda a autori-
dade do Estado. Levado pelos mesmos motivos, Rômulo matou seu irmão, e Tito
Tácio. E se ambos fizeram depois um bom uso da autoridade que conseguiram ob-
ter desta forma, é preciso lembrar que os dois tratavam com povos ainda não mar-
cados pela corrupção. Por isto puderam entregar-se sem obstáculos a seus objetivos,
revestido-os de cores favoráveis. '
Capítulo Vigésimo Primeiro
Como são culpados os príncipes e as repúblicas que não têm
exército próprio.
Os príncipes contemporâneos e as repúblicas modernas que não dispõem de
soldados próprios, para o ataque ou para a defesa, deveriam corar, vendo, no
exemplo de Tulo, que este erro não pode ser atribuído à falta de homens capacita-
dos para a guerra; a culpa é exclusivamente dos governantes, que não souberam
treinar seus cidadãos como soldados.
Durante quarenta anos, Roma tinha gozado as delícias da paz. Ao subir ao
trono, Tulo não encontrou num só romano com experiência de armas. Tinha in-
tenção de fazer a guerra, mas não queria servir-se para isto dos samnitas ou dos tos-
canos — nem de qualquer outro povo habituado ao combate. Príncipe esclarecido
que era, decidiu contar somente com os seus súditos, empenhando-se nisto de tal
forma, que em breve pôde reunir soldados magníficos.
Se faltam soldados onde há homens, a culpa disto é exclusivamente do prínci-
pe, não do país ou da natureza — esta é uma das verdades mais bem provadas. Te-
mos um exemplo recente: ninguém ignora que, nos últimos tempos, o rei da Ingla-
terra atacou a França com tropas formadas com o povo; como o seu reino gozava de
paz há mais de trinta anos, não foi possível encontrar um só soldado ou oficial com
experiência militar. Mas o monarca inglês não teve medo de atacar um país repleto
de chefes militares hábeis, e com um exército experimentado, que continuava a
combater na Itália. Isto se deveu à sabedoria do rei e à boa administração do seu
reino onde, mesmo em tempos de paz, praticava-se o treinamento militar.
Depois de ter libertado Tebas, sua pátria, subtraindo-a 20 jugo espartano,
Epaminondas e Pelópidas se encontraram numa cidade amoldada ao trabalho es-
cravo, no meio de um povo efeminado.
84 Maquiavel
Corajosas, não tiveram dúvida de que poderiam formar seus concidadãos no
ofício das armas, liderando-os numa campanha para impedir a expansão de Espar-
ta, até alcançar a vitória.
Contam os historiadores, com efeito, que aqueles ilustres capitães provaram,
em pouco tempo, que não só na Lacedemônia havia guerreiros, mas em todos os
países, desde que haja quem treine os homens na prática militar, como se diz que
Tulo instruiu os romanos. Os versos de Virgílio não poderiam exprimir mais clara-
mente esta opinião, que era também a sua: “... Desidesque movebit Tullus in arma
viros” (“... Tulo obrigou à prática das armas os homens enlanguescidos”).
Capítulo Vigésimo Segundo
O que há de notável no combate entre os três Horácios de Roma e
os três Curiácios de Alba.
Tulo, reino de Roma, e Métio, reino de Alba, tinham convencionado que se
jogaria a sorte dos dois Estados num combate de que participariam três guerreiros
de cada país: aquele que vencesse governaria o outro. No combate, os três Curiácios
de Alba foram mortos; do lado romano, um sé dos Horácios saiu com vida. Foi as-
sim que Métio e o seu povo se tornaram súditos dos romanos.
Após a vitória, o Horácio vencedor, de volta a Roma, matou uma das suas ir-
mãs, que chorava um dos Curiácios mortos, seu esposo. Julgado pelo crime, foi ab-
solvido após longo julgamento —- resultado devido mais aos pedidos do pai do que
aos próprios méritos.
Há três coisas a observar aqui:
A primeira, que não se deve jamais arriscar toda nossa fortuna com apenas
uma parte -das nossas forças; a segunda, que num Estado bem governado o mérito
nunca pode compensar a culpa; a terceira, que se deve considerar pouco sábia toda
resolução quando houver dúvida de que os acordos serão bem observados; a escravi-
dão é de tal modo funesta que era impossível aceitar que esses dois reis, ou dois po-
vos, não se arrependeriam de jogar sua Hberdade na sorte de três concidadãos.
Foi o que Métio demonstrou pouco tempo depois. Embora aquele príncipe se
confessasse vencido, após a vitória dos romanos, tendo jurado obedecer a Tulo,
quando, na primeira campanha contra os veianos, se viu obrigado a juntar-se ao rei
romano, procurou enganá-lo, tomando consciência, tarde demais, da imprudência
do que tinha feito,
Como me estendi bastante a propósito desta personagem, nos dois próximos
capítulos falarei só dos dois outros.
Capítulo Vigésimo Terceiro
Não se deve pôr em perigo toda a nossa sorte sem empregar todas
as nossas forças; por isto muitas vezes não sé deve defender um
desfiladeiro.
Expor tudo o que temos sem empregar todas as forças disponíveis é uma im-
prudência extrema, que se pode cometer de várias maneiras.
Uma consiste em agir como Tulo e Métio, que jogaram o destino da sua pátria,
e o valor de tantos guerreiros na coragem e na sorte de apenas três cidadãos — uma
parte bem pequena da força de que dispunham. Não perceberam que, deste modo,
se desvaneciam todos os esforços realizados pelos seus antepassados para fundar o
Estado e para dar-lhe uma existência livre e prolongada, fazendo dos cidadãos de-
fensores da sua liberdade. Não seria possível tomar decisão mais imprudente.
O mesmo ocorre quase sempre quando, para impedir a marcha do inimigo, se
decide defender um desfiladeiro, ou guardar uma posição dificil, Se as condições o
permitem, deve-se fazê-lo: mas se o lugar em questão-for de difícil acesso e não for
possível postar ali todo o exército, a decisão é perigosa. Esta opinião tem funda-
mento no exemplo dos que atacados por inimigo poderoso, numa região árida, cer-
cada de montanhas escarpadas, evitaram combater o inimigo nos desfiladeiros ou
nas montanhas, preferindo encontrá-lo mais adiante; ou então acharam melhor es-
perar o seu ataque num local aberto e de fácil acesso. A razão disto, já a expliquei.
Como não se pode empregar muitos homens para defender um lugar selvagém, por
causa das dificuldades de abastecimento e pela aspereza do terrena, é impossível re-
sistir ao choque de um inimigo que ataca com forças consideráveis.
Para o inimigo, é mais fácil atacar em grande número, porque seu objetivo é
passar, e não manter uma posição. Mas os que se defendem não podem contar com
o grande número, pois precisam acampar durante muito tempo em lugares inóspi-
tos, e não sabem o momento em que o inimigo vai tentar a passagem. Por outro la-
do, se se perder um desfiladeiro que se acreditava poder defender, e no qual o povo
Capítulo Vigésimo Sexto
Um novo príncipe, em cidade ou região conquistada, deve renovar
todas as coisas.
Quem conquista o poder soberano sobre uma cidade ou um Estado, não tem
meio mais seguro de se manter no trono do que pela renovação, desde o início do
seu reinado, de todas as instituições — sobretudo quando o seu poder não tem raí-
zes muito fortes. Deve, por exemplo, instituir novos magistrados com novas deno-
minações:-ou dar a riqueza aos pobres, como fez Davi, ao ser coroado, “qui esurien-
tes implevit bonis, et divites dimisit inanes” (“que encheu de bens os miseráveis, e
reduziu os ricos à pobreza”).
Será preciso também que construa novas cidades, destruindo as antigas; e que
faça transportar os habitantes de um lugar para outro. Em poucas palavras, que
não deixe coisa alguma intata no novo Estado; que toda situação, autoridade ou Ti-
queza seja devida ao novo soberano. Seu modelo deve ser Filipe da Macedônia, pai
de Alexandre Magno, que, com tal política, de rei de um pequeno país
transformou-se no monarca de toda a Grécia. Os historiadores contam que Filipe
passeava os cidadãos, de província para província, como um pastor a conduzir seu
rebanho.
Este é, sem dúvida, um procedimento bárbaro, contrário à civilização, anti-
cristão e anti-humanitário. Todos devem evitá-lo, preferindo a vida simples de um
particular à de um rei que, para reinar, deve levar à ruína seus súditos.
Não obstante, àquele, que em vez do bem preferir o poder, convém que prati-
que este mal, Mas os homens pensam que é possível escolher um caminho entre es-
ses dois extremos, O que é muito perigoso. Não sabem ser completamente bons ou
completamente maus, como demonstra o exemplo do capítulo seguinte.
Capítulo Vigésimo Sétimo
Raramente os homens sabem ser inteiramente bons ou
inteiramente maus.
Ao viajar a Bolonha, em 1505, para expulsar dali a família Bentivogli, que há
cem anos dominava a cidade, o Papa Júlio il queria também expulsar de Perugia o
tirano João Paulo Baglioni, como pretendesse combater todos os tiranos que ha-
viam ocupado terras da Igreja. Aproximando-se de Perugia, cheio deste ânimo de-
terminado e audacioso por que era conhecido, não quis esperar o exército que o se-
guia, e entrou na cidade só e desarmado, embora João Paulo houvesse reunido um
grande número de soldados para defender-se. Levado pela impetuosidade que diri-
gia todas as suas ações, entregou-se, com sua guarda imediata, nas mãos do inimi-
go. Este o levou consigo, deixando na cidade um governador para comandá-la em
nome da Igreja.
A gente esclarecida que acompanhava 0 Papa comentou a temeridade do pon-
tífice e a covardia de Baglioni. Não podiam conceber que este, com um gesto que o
teria tornado famoso, não houvesse esmagado de um golpe o inimigo; que não se ti-
vesse enriquecido com os cardeais, que arrastavam consigo todos os seus refinamen-
tos e que teriam constituído presa fácil. Não se podia crer que tivesse deixado de
agir assim por bondade, ou consciência; um celerado, que vivia maritalmente com
a própria irmã, assassinara os sobrinhos e primos para poder chegar ao trono, não
poderia ter o mais leve sentimento de respeitosa piedade. Do episódio se conclui que
os homens não sabem guardar nenhuma dignidade no crime, nem ser. perfeitamen-
te bons. E que, quando o crime apresenta algum aspecto de grandeza ou generosi-
dade, temem praticá-lo.
Por isto João Paulo — que não temia o incesto ou o parricídio — quando sur-
giu uma ocasião legítima, não soube fazer o que lhe teria valido a admiração de to-
dos pela sua coragem, dando-lhe memória eterna. Não quis ser o primeiro a de-
monstrar aos chefes da Igreja a pouca estima que se tinha pelos que governavam co-
mo eles, executando uma ação cuja grandeza teria feito apagar sua infâmia, neu-
tralizando todos os perigos que dela pudessem resultar.
Capítulo Vigésimo Oitavo
Porque Roma foi menos ingrata com os seus cidadãos do que
Atenas.
Quando se percorre a história das repúblicas, vê-se que todas elas foram ingra-
tas para com os seus cidadãos: mas há menos exemplos disto em Roma do que Ate-
nas, ou em qualquer outra cidade de governo popular. Se se quiser conhecer a ra-
zão, creio que ela está em que os romanos tinham menos motivos do que os atenien-
ses para temer a ambição dos seus concidadãos. De fato, desde a expulsão dos reis
até os tempos de Mário e Sila, Roma não viu nenhum cidadão usurpar a liberdade.
Não tinha, portanto, motivo para desconfiar deles, e, em consegiiência, nenhuma
razão para ofendê-los gratuitamente.
Em Atenas aconteceu o contrário. Sob a aparência de uma falsa probidade,
Pisístrato roubou a liberdade dos atenienses, quando esta florescia. Por isto, ao rea-
ver sua liberdade, a lembrança das ofensas sofridas e da escravidão tornou Atenas
extremamente vingativa. Os cidadãos eram punidos não só pelos seus crimes, mas
pela sombra de um equívoco. Daf a morte e o exílio impostos a tantos homens ilus-
tres; a instituição do ostracismo; e todas as violências exercidas em diversas épocas
contra cidadãos dos mais ilustres.
Nada mais verdadeiro do que o que dizem alguns pensadores: os povos que re-
cobram a liberdade são mais atrozes na sua vingança do que os povos que nunca fo-
ram livres.
Se refletirmos no que disse, ficará claro que não se deve culpar Atenas ou lou-
var Roma, mas simplesmente reconhecer a situação à que as conduziram aconteci-
mentos diferentes, ocorridos em uma e outra cidade. Poder-se-á ver, com efeito,
que se Roma tivesse tido sua liberdade destruída, como Atenas, não trataria com
menos crueldade seus cidadãos. Prova disto é o que aconteceu com Calatino e P,
Valério, quando os reis foram expulsos. O primeiro, embora tivesse colaborado
com a libertação de Roma, foi exilado só porque levava o nome Tarquínio.
Capítulo Trigésimo
O que deve fazer um príncipe, ou uma república, para escapar ao
vício da ingratidão; e o que devem fazer os capitães e os cidadãos
para não se tornarem vítimas.
Um príncipe que não queira viver sob constante temor, e que deseje evitar a in-
gratidão, deve assumir pessoalmente o comando de todas as expedições militares,
como o fizeram desde o início os imperadores romanos; como o faz em nossos dias o
Grão-Turco; como o fizeram e fazem ainda todos os príncipes corajosos.
Se alcançar a vitória, a glória e as conquistas serão suas. Mas, se não comandar
em pessoa, a vitória lhe será estranha, e pensará ser necessário extinguir nos outros
a glória do que não se pôde revestir — o que o tornará necessariamente ingrato ou
injusto (certamente há mais a perder do que a ganhar, com este tipo de conduta).
Ao príncipe que, por indolência ou imbecilidade, permanecer em seu palácio mer-
gulhado no ócio, fazendo-se substituir por um dos seus súditos, não tenho outro
conselho a dar senão o de seguir o próprio instinto.
Ao capitão vitorioso, presa segura da ingratidão, direi que tem duas alternati-
vas. Logo após a vitória, é preciso que deixe o seu exército e venha lançar-se nos
braços do príncipe, evitando demonstrar orgulho ou ambição; deste modo,
despojando-se de qualquer suspeita, o monarca terá motivo para recompensá-lo —
ou pelo menos para não lhe fazer mal. Se não puder agir assim, que tome a atitude
oposta, com coragem e sem hesitação; que todas as suas ações tendam a provar que
considera as conquistas feitas como suas, e não do príncipe: demonstrando afabili-
dade para com os seus soldados e os cidadãos; entrando em novas alianças com os
vizinhos; ocupando as praças fortificadas com tropas de confiança; corrompendo os
principais chefes do exército e assegurando-se do apoio daqueles que não pode cor-
romper. Quer procure, enfim, com o seu comportamento, punir o soberano pela
ingratidão que suspeite possa usar contra ele. Não há outro caminho, Mas, como já
disse, os homens não sabem ser nem de uma virtude absoluta nem inteiramente cri-
minosos. Os generais não querem abandonar seu exército logo após a vitória; não
104 Maquiavel
conseguem conduzir-se com moderação e também não sabem agir com determina-
ção violenta, que seria pelo menos gloriosa. Flutuando nesta ambigiiidade, são viti-
mados pela sua demora e sua hesitação.
As repúblicas não se pode aconselhar, como aos príncipes, que, para evitar a
ingratidão, comandem pessoalmente os exércitos; no seu caso, é preciso confiar tal
comando a um cidadão. Mas é aconselhável fazer o que fazia a república romana
para ser menos ingrata do que as demais. Em Roma, tanto os nobres quanto os ple-
beus serviam indistintamente na guerra; assim, em todas as épocas, surgiam muitos
homens de coragem, numerosos cidadãos coroados por vitórias; nenhum deles, por-
tanto, era temido, devido ao seu grande número e ao controle que exerciam uns so-
bre os outros. A sua virtude não se corrompia, e todos cuidavam de não demonstrar
qualquer sombra de ambição, e de não dar motivo que pudesse levar o povo a puni-
los: Por isto, quem atingia a ditadura alcançava uma glória tanto maior quanto
mais depressa se despojava do poder.
Com isto, não nasciam suspeitas, e portanto não se produzia a ingratidão. A
república que deseja escapar à prática da ingratidão deve imitar Roma; o cidadão
que procura evitar as agressões da inveja deve seguir em todas as ocasiões o exemplo
dos romanos.
Capítulo Trigésimo Primeiro
Os generais romanos nunca foram punidos de forma extrema pelos
erros cometidos, mesmo quando, por ignorância ou por uma
decisão errônea, causaram prejuízo à república.
Os romanos foram não só menos ingratos do que os cidadãos de outras repúbli-
cas, como já tive ocasião de dizer, mas também mais humanos e moderados nos cas-
tigos impostos a seus generais. Se um deles cometia um erro com intenção crimino-
sa, era punido, mas sem rigores inúteis. Se o erro era cometido por ignorância, em
lugar de puni-lo, os romanos o recompensavam, atribuindo-lhe honrarias.
Isto lhes parecia apropriado, pois acreditavam muito importante, para os co-
mandantes, ter o espírito livre de temores: poder tomar uma decisão sem se deixar
influenciar por considerações estranhas às que o problema militar exigia. Não que-
riam acrescentar perigos e dificuldades adicionais a algo já em si tão difícil e peri-
goso, e estavam persuadidos de que os temores permanentes impediriam a condu-
ção de qualquer empreendimento com o vigor necessário.
Se enviavam, por exemplo, uma expedição militar à Grécia, contra Felipe da
Macedônia, ou à Itália, contra Anibal, ou contra alguns dos povos dominados ini-
cialmente, o general que a comandava estaria normalmente preocupado com os
cuidados relativos às graves providências exigidas pelas circunstâncias. Se se acres-
centasse a esta preocupação a idéia de que um general romano podia ser crucifica-
do, ou condenado a qualquer outro suplício, por ter perdido uma batalha, isso tor-
naria impossível ao chefe militar tomar decisões com toda firmeza. Achavam os ro-
manos que a vergonha da derrota era um suplício bastante grande, e que não se de-
via atemorizar os generais com a perspectiva de penas ainda mais rigorosas.
Eis um exemplo de erro não causado pela ignorância: Sérgio e Virgínio esta-
vam ambos acampados frente a Veios, cada um comandando uma divisão do exér-
cito. Sérgio, do lado de onde poderiam vir os toscanos; Virgínio, do outro lado.
Atacado pelos feliscos e outros povos, Sérgio preferiu ser batido e ter que recuar do
106 Maquiavel
que pedir socorro a Virgínio. Este, por sua vez, esperando que o companheiro se
humilhasse diante dele, preferiu assistir à desonra da pátria, e à sua vergonha, do
que correr a socorrêo.
Este comportamento, verdadeiramente criminoso, merecia a infâmia eterna, e
teria comprometido a honra da república romana se os dois generais não fóssem
punidos. Roma se contentou com uma multa, embora em qualquer outra república
os dois tivessem recebido a pena capital, Limitava-se o castigo não porque o delito
não merecesse punição maior, mas porque os romanos, pelos motivos que expli-
quei, preferiam respeitar, nas circunstâncias, as máximas dos seus antepassados.
Quanto aos erros provocados pela ignorância, não há exemplo mas convincen-
te do que o de Varrão. Sua temeridade fez com que o exército romano fosse destruí-
do inteiramente por Aníbal, em Cannes, pondo em perígo a liberdade da repúbli-
ca. No entanto, como sua ação fosse causada pela ignorância, e não pela perfídia,
em lugar de ser punido, Varrão foi cumulado de honrarias. Quando retornou a Ro-
ma, o Senado inteiro foi ao seu encontro e, não podendo felicitá-lo pelo êxito da ba-
talha, agradeceu-lhe o ter voltado a Roma, não desesperando da salvação da repú-
blica.
Quando Papírio Cursor quis condenar Fábio ao suplício por ter dado combate
aos samnitas, não obstante a ordem recebida em contrário, a razão mais importan-
te alegada pelo pai do culpado foi a de que, mesmo nos maiores reveses, os romanos
jamais tinham tratado os generais vencidos com a severidade que Papírio queria
fosse aplicada a um general vitorioso.
Capítulo Trigésimo Segundo
As repúblicas e os príncipes não devem demorar a assistir o povo
nas suas necessidades.
Os romanos costumavam tratar o povo com liberalidade nos momentos de pe-
rigo. Quando Porsena assediou a cidade, com o propósito de reconquistá-la para os
Tarquínios, o Senado, que não confiava na plebe (pois suspeitava que estava pronta
a servir os reis, em lugar de combatê-los), isentou-a do imposto do sal e de outros
tributos, para obter o seu apoio, alegando que “os pobres já fazem bastante pelo
bem público criando os seus filhos”. Seu objetivo era fazer com que o povo, diante
deste benefício, não hesitasse em resistir ao assalto, à fome e à guerra.
Que este exemplo não recomende esperar o momento do perigo para ganhar o
apoio popular; o que deu resultado para os romanos pode nunca mais ter o mesmo
efeito. A multidão não dirá que deve aos governantes o benefício recebido, mas que
o deve ao inimigo; suspeitará que, cessado o perigo, a vantagem lhe possa ser retira-
da — vantagem pela qual, aliás, não precisa manifestar gratidão.
Se os romanos tiraram alguma vantagem do que fizeram, foi porque o Estádo
mal se iniciava, e o povo já tinha visto várias leis promulgadas em seu benefício (co-
mo a do apeio ao julgamento popular); pensou-se, assim, que o novo benefício era
devido menos à aproximação do inimigo do que à inclinação do Senado em seu fa-
vor. Por outro lado, estava viva ainda a lembrança dos ultrajes e do desprezo dos
reis.
Contudo, como tais causas raramente ocorrem juntas, é também raro que os
mesmos remédios possam ser eficazes. Em consequência, estejamos numa república
ou numa monarquia, é preciso examinar, antes de mais nada, que perigos nos
ameaçam, e de quem vamos precisar, no momento do perigo. Depois, é preciso agir
com relação a essas pessoas como estaríamos obrigados a agir em caso de desgraça.
Quem agir de outro modo — seja príncipe ou república, mas especialmente um
príncipe — estará profundamente enganado, pois acreditará que, na hora do peri-
go poderá conquistar o apoio necessário, em troca de benefícios. Em lugar de obter
o que precisa, o resultado será o apressamento da sua ruína.
Capítulo Trigésimo Quarto
A instituição da ditadura fez bem, e não mai, à república romana;
o que causa dano à vida política é o poder usurpado, não o que é
livremente delegado.
Alguns autores criticam os romanos por haverem instituído um ditador, que
consideram a causa da tirania imposta a Roma em seguida. Alegam tais autores
que o primeiro tirano de Roma teve o título de ditador, e que se essa instituição não
existisse, César não teria revestido sua tirania com o véu da legitimidade.
Mas quem avança esta opinião não examinou os fatos com atenção. Não foi a
instituição ou o título de ditador que sujeitou Roma, mas o poder usurpado pelos
cidadãos para se manter no governo. Se o título não existisse, criariam um outro: a
força encontra facilmente um título, mas nenhum título cria a força.
Enquanto a ditadura se manteve dentro das formas legais, e não foi usurpada
pelos cidadãos, representou um sustentáculo da república. De fato, os magistrados
instituídos por meios extraordinários, e o poder alcançado por esses meios, não são
perigosos para o Estado. Se examinarmos os acontecimentos ocorridos na república
romana, veremos que os ditadores só lhe prestaram serviços importantes por razões
evidentes.
Para que um cidadão possa fazer dano ao Estado, usurpando um poder ex-
traordinário, é preciso, antes de mais nada, o concurso de numerosas circunstân-
cias — inexistentes numa república que manteve a pureza de costumes. É preciso
que ele seja extremamente rico, e que tenha um grande número de amigos e de
clientes, o que não pode acontecer numa monarquia. Supondo que tal cidadão
existisse, seria extraordinário que pudesse obter os votos do povo.
£ preciso notar, aliás, que os ditadores romanos eram designados por tempo li-
mitado; a duração do seu poder não excedia as circunstâncias que haviam obrigado
a sua instituição. Sua autoridade consistia em tomar sozinho todas as medidas que
considerasse oportunas para enfrentar um perigo determinado. Não tinha necessi-
ns Maquiavel
dade de realizar consultas, e podia punir sem apelo os que considerasse culpados.
Mas o ditador nada podia fazer que atentasse contra o governo estabelecido — co-
mo retirar autoridade ao Senado ou ao povo, ou substituir as antigas instituições da
república. À curta duração da ditadura, os limites que definiam o seu poder, bem
como as virtudes do povo romano, tornavam impossível que transbordasse da sua
autoridade, prejudicando o Estado, ao qual, pelo contrário, sempre foi de utilida-
de.
De todas as instituições romanas, esta é sem dúvida a que merece maior aten-
ção. Deve-se contar a ditadura entre os meios que contribuíram para a grandeza
desse vasto império; é difícil que um Estado, sem tal ordenação, possa defender-se
contra fatos extraordinários. Ordinariamente o ritmo do governo numa república é
muito lento. Como nenhum conselho, e nenhum magistrado, pode assumir plena-
mente a autoridade para atuar, há sempre necessidade de realizar consultas; e co-
mo é preciso reunir todas as vontades no momento necessário, a ação do governo é
perigosamente lenta quando surge um mal inesperado, que precisa ser abordado
sem demora. Por isto, é necessário que, entre as instituições das repúblicas, haja al-
guma análoga à ditadura.
A república de Veneza, que nos tempos modernos se fez célebre dentre todos os
governos republicanos, confiou a um pequeno grupo de cidadãos o poder de agir
nas emergências sem deliberações prolongadas. Numa república onde não há tal
sistema, e onde todas as formalidades legais são respeitadas, a queda do Estado é
certa, a não ser que se busque a salvação no desrespeito Aquelas formalidades. Seria
desejável que nunca ocorressem circunstâncias que exigissem remédios extraordiná-
rios, pois não há dúvida de que, embora as vias extralegais sejam úteis, o seu exem-
plo é sempre perigoso. Começa-se por atingir as instituições existentes com o propó-
sito de servir o Estado e logo se usa esse pretexto para perdê-lo. Assim, uma repúbli-
ca não será perfeita se a sua legislação não tiver previsto todos os acidentes que po-
dem ocorrer, com os respectivos remédios. Concluo, portanto, com a observação de
que as repúblicas que nos casos de perigo não podem recorrer a um ditador, ou a
instituição análoga, não têm condições de evitar sua perdição.
É digna de nota a sabedoria demonstrada pelos romanos no processo de no-
meação do ditador. Como este cargo tinha algo de ofensivo para os cônsules (que,
embora chefes do govemo, deviam reconhecer, como todos os cidadãos, uma auto-
ridade superior à sua), era de se supor que a designação de um ditador fizesse nas-
cer o descontentamento. Decretou-se assim que a designação seria feita pelos cônsu-
les.
Pensou-se que, se acontecesse algo que obrigasse Roma a se apoiar no poder
ditarorial, os cônsules recorreriam a ele sem cuidados; e, devendo eles próprios no-
mear o ditador, este privilégio compensaria a delicadeza da sua situação.
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 115
De fato, as feridas que os homens fazem em si próprios, deliberadamente, são
bem menos dolorosas do que os males trazidos por mãos alheias.
Vale notar, aliás, que nos últimos tempos da república, os romanos, em vez de
instituir um ditador, atribuiam poderes ditatoriais ao próprio cônsul, servindo-se
da fórmula: “videat consul ne respublica quid detrimenti capiat” (“Observe o côn-
sul que o Estado não sofra qualquer dano”).
Para não ter que retornar a este assunto, concluo que os povos vizinhos de Ro-
ma, ao procurar submeter aquela cidade, provocaram a criação de instituições
apropriadas não só à sua defesa, mas ao ataque com forças mais numerosas, maior
poder e melhor orientação.
Capítulo Trigésimo Quinto
Por que a criação do decenvirato prejudicou a liberdade na
república romana, embora tenha resultado de livre escolha do
povo.
A escolha de dez cidadãos eleitos pelo povo para legislar parecerá contrária ao
que dissemos aqui: que só o poder usurpado pela violência pode ser nocivo ao Esta-
do, nunca o que é estabelecido livremente pelo sufrágio popular. Com efeito, os de-
cênviros logo se transformaram em tiranos, jogando imprudentemente com a liber-
dade do povo, A este propósito, é necessário atentar para o modo como se confere a
autoridade, e a duração desse mandato.
Se se estabelecer a autoridade sem limite de qualquer lei, por um longo perío-
do (um ano, ou mais), haverá sempre um perigo. Os resultados prejudiciais ou be-
néficos vão depender da perversidade ou da virtude dos homens a quem se confiar a
função.
Comparando-se o poder dos decênviros com o dos ditadores, vê-se que os pri-
meiros eram incomparavelmente mais poderosos. O ditador governava na presença
dos tribunos, dos cônsules, do Senado, e não podia desrespeitar a sua autoridade.
Embora tivesse poderes para retirar o consulado de um cidadão, ou expulsar um se-
nador, não tinha a faculdade de destruir todo o Senado, ou de promulgar novas
leis. O Senado, os cônsules e os tribunos agiam como fiscais, impedindo o ditador
de ultrapassar os limites do dever.
Mas a criação dos decênviros ofereceu um espetáculo diferente, Logo depois de
instituídos, eles aboliram os cônsules e os tribunos; arrogaram-se o direito de pro-
mulgar leis e se conduziam com autoridade que pertencia exclusivamente ao povo,
Colocados à frente do governo, sem os cônsules, os tribunos, e sem a possibilidade
de apelo ao povo, nada regulava sua conduta; posteriormente, explodiu toda a sua
insolência, graças à ambição de Ápio.
É preciso explicar que, quando declarei que a autoridade conferida pela livre
escolha do povo não oferecia qualquer perigo à liberdade, pensei no caso de uma
Capítulo Trigésimo Oitavo
As repúblicas fracas são hesitantes, e não sabem decidir; se tomam
afinal um partido, isso se deve mais à necessidade do que à
deliberação.
Roma estava assolada por peste de muita gravidade, o que levou os volscos e os
équos a pensar que havia chegado o momento de dominá-la; reuniram um forte
exército e atacaram em primeiro lugar os latinos e os érnicos que, vendo seu país
devastado, tiveram que pedir socorro aos romanos, revelardo-lhes a situação difícil
em que se encontravam. A braços com a peste, estes alegaram que não podiam ofe-
recer qualquer ajuda, recomendando-lhes que se defendessem com suas próprias
armas.
Esta resposta testemunha a sabedoria e a grandeza do Senado. Em todas as cir-
cunstâncias, aquele órgão quis sempre ser senhor das decisões dos povos submissos;
mas nunca deixou de tomar resolução contrária à sua maneira normal de agir, ou
mesmo a uma determinação que já fosse sua, quando isto era necessário.
Vale lembrar que o mesmo Senado havia antes proibido os volscos e équos de
se armarem; um Senado menos esclarecido teria pensado, portanto, perder autori-
dade ao permitir-lhes prover sua própria defesa. Mas, ao contrário, os senadores
guardaram sempre um julgamento equilibrado das coisas, tomando, em qualquer
circunstância, a decisão menos ruim. Se lhes era difícil não poder defender os povos
sob sua proteção, parecia-lhes igualmente duro vê-los tomar armas sem sua licença,
pelos motivos já expostos e por muitos outros que se pode facilmente compreender.
Convencido de que a necessidade obrigava aqueles povos a se armarem contra o ini-
migo que os pressionava, o Senado decidiu da forma mais honrosa, e quis que o que
fizessem fosse autorizado, por temor de que, tendo desobedecido uma vez por ne-
cessidade, se habituassem a desobedecer por capricho. Podemos pensar que, em
tais circunstâncias, qualquer república teria feito o mesmo; mas os Estados fracos
ou mal orientados nunca sabem decidir, nem agir honrosamente frente à necessida-
de.
126 Maquiavel
O duque Valentino tinha tomado Faenza, forçando Bolonha à mesa de nego-
ciação. Como pretendesse atravessar a Toscana para retornar à Roma, enviou um
valido à Florença solicitar passagem para si e o seu exército. Os florentinos discuti-
ram sobre o que fazer, mas ninguém propôs que se acolhesse o pedido. Isso signifi-
caria afastar-se inteiramente da política seguida pelos romanos, pois o duque tinha
forças temíveis, e os florentinos eram fracos demais para poder impedir sua passa-
gem. Teria sido mais honroso para eles parecer consentir, em vez de ver a passagem
realizada à força. De fato, o duque Valentino fez o que queria, deixando a vergo-
nha recair sobre a cidade. Vergonha que os florentinos teriam em parte evitado,
agindo de modo diverso. O maior vício de todas as repúblicas fracas é a indecisão;
de sorte que cáda escolha que fazem é ditada pela força — se o resultado é feliz, isto
se deve à necessidade, e não à sabedoria da sua conduta.
Quero dar dois outros exemplos contemporâneos, ocorridos na nossa república
no ano de 1500.
Depois de que Luís XII, rei da França, se apoderou de Milão, quis tomar Pisa
para obter os cinquenta mil ducados que lhe haviam sido prometidos pelos florenti-
nos em troca daquela cidade, Enviou assim à Pisa o seu exército, comandado pelo
Senhor de Beaumont que, embora francês, merecia a confiança de Florença, Beau-
mont dirigiu o exército para a região entre Cascina e Pisa, com a intenção de atacar
esta última. Estava ali há vários dias, preparando-se para o ataque, quando repre-
sentantes pisanos vieram procurá-lo, oferecendo render a cidade às tropas francesas
se o rei prometesse não a entregar aos florentinos antes de quatro meses. Estes, con-
tudo, rejeitaram a proposta, e quiseram forçar a rendição, sem o conseguir, porém.
Da empresa fracassada só lhes ficou a vergonha.
A rejeição da proposta pisana vinha da desconfiança que os florentinos tinham
do rei francês, que os havia dominado devido à pouca firmeza da sua vontade. Não
perceberam também que seria melhor que o rei lhes restituísse Pisa, depois de a ha-
ver tomado, (ou então, não a devolvendo, que desvelasse a má fé que o movia) do
que obrigá-los com uma promessa, prometendo-lhes algo que não tinha. Teriam de
fato agido melhor consentindo que Beaumont tomasse a cidade, embora condicio-
nalmente.
Foi o que a experiência lhes ensinou em 1502, quando Arezzo se rebelou, e o
rei de França socorreu os florentinos com uma expedição comandada por Imbault.
Este, detendo-se a pequena distância da cidade, encetou negociações com os habi-
tantes, que aceitaram entregá-la sob condições semelhantes às que tinham sido pro-
postas pelos pisanos.
A oferta foi outra vez recusada pelos florentinos. Mas Imbault, percebendo à
dificuldade que a cegueira destes iria causar, começou a negociar com os aretinos
em seu nome, sem à presença de delegados de Florença. E, tendo concluído um tra-
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 127
tado nos moldes que desejava, penetrou em Arezzo com suas tropas, fazendo sentir
aos florentinos sua imprudência e inexperiência.
Acrescentou que, se desejassem Arezzo, bastaria dizê-lo ao rei, para quem era
mais fácil ceder-lhe a cidade, agora que a tinha ocupado, do que quando esta se en-
contrava fora do seu domínio. Entrementes, Imbault foi bastante criticado em Flo-
rença, até se reconhecer que, se Beaumont tivesse agido como ele, Florença seria
dona de Pisa, como foi de Arezzo.
Portanto, retornando ao nosso tema, as repúblicas de vontade insegura nunca
tomam uma decisão apropriada, a não ser quando a necessidade as obriga. Sua fra-
queza as impede de chegar a um conclusão, enquanto persiste a menor dúvida. E se
esta dúvida não fosse superada por alguma violência, continuariam flutuando na
eterna incerteza.
Capítulo Trigésimo Nono
Vê-se muitas vezes os mesmos acontecimentos repetirem-se em
povos diferentes.
Quem estudar a história contemporânea e da antiguidade verá que os mesmos
desejos e as mesmas paixões reinaram e reinam ainda em todos os governos, em to-
dos os povos. Por isto é fácil, para quem estuda com profundidade os acontecimen-
tos pretéritos, prever o que 0 futuro reserva a cada Estado, propondo os remédios já
utilizados pelos antigos ou, caso isto não seja possível, imaginando novos remédios,
baseados na semelhança dos acontecimentos. Porém, como estas observações são
negligenciadas (ou aqueles que estudam não sabem manifestá-las), disto resulta
que as mesmas desordens se renovam em todas as épocas.
Como depois do ano de 1494 Florença perdera uma parte das suas possessões
(Pisa e outras cidades), os florentinos se viram forçados a combater contra os Esta-
dos que delas se haviam apossado; como estes eram poderosos, foram feitas despesas
enormes sem qualquer vantagem. Esses gastos levaram à imposição de tributos cada
vez mais pesados, que provocaram reclamações populares.
Como a guerra era dirigida por um conselho de dez cidadãos, que o povo cha-
mava de “os dez da guerra”, a multidão começou a acusá-los incisivamente, como
se fossem a causa exclusiva das hostilidades e das despesas que estas ocasionavam.
Pensou-se que, abolindo o conselho, eliminar-se-ia a razão da guerra. Por isso,
quando chegou a época de renovar o colegiado, não se fizeram novas eleições,
confiando-se os poderes do órgão à Senhoria.
Esta decisão teve consegiiências das mais funestas: não só não pôs fim à guerra
(o que todos os cidadãos desejavam), como afastou aqueles que a dirigiam com
competência. Foi assim que Florença, além de Pisa, perdeu Arezzo e muitas outras
cidades. O povo finalmente admitiu o seu erro — percebendo que a causa do mal
era a febre, e não o médico — e restabeleceu o Conselho dos Dez.
134 Maquiavel
dido agir com maior imprudência. Para manter a tirania, tornou-se inimigo de to-
dos os que haviam ajudado a impô-la (e que poderiam ainda ajudá-lo a mantê-la),
fazendo-se amigo daqueles que em nada haviam contribuído ou poderiam contri-
buir para isto. Perdeu assim a confiança dos antigos amigos, tentando ganhar a
afeição dos que não tinham condições para ser seus amigos.
De fato, embora todos os nobres tendam à tirania, os que não participam do
poder são sempre inimigos do tirano, que nunca pode contar inteiramente com
eles, pois sua ambição é vasta, e sua avareza, insaciável; e ainda que o tirano possa
distribuir riquezas e honrarias, nunca poderá satisfazer o desejo de todos. Por isto
Ápio cometeu um erro evidente do abandonar o povo a fim de se aproximar da no-
breza; para conquistar -se a autoridade pela força, é preciso ser mais forte do que o
adversário, Os tiranos que favorecem o povo, e que só têm por inimigos os nobres,
gozam de segurança bem maior: têm o apoio de forças mais amplas do que os que
só contam com os nobres contra a inimizade do povo.
Foi assim que Nábis, tirano de Esparta, atacado por toda a Grécia e por Ro-
ma, conseguiu resistir. Depois de verificar que o número dos nobres cra reduzido, e
que o povo o apoiava, não teve medo de se defender, o que não teria ousado se o po-
vo estivesse contra ele.
Por outro lado, quando só se tem poucos amigos, as forças do país podem não
bastar, sendo necessário buscar auxílio além das fronteiras. Deste auxílio, há três
variedades: a primeira consiste nos estrangeiros destinados à guarda do tirano; a se-
gunda, no fornecimento de armas aos camponeses para que possam prestar os mes-
mos serviços militares dos cidadãos; a terceira, na aliança com vizinhos poderosos
que possam defendê-lo. Quem trilhar este caminho poderá salvar-se, ainda que o
povo seja seu inimigo.
Mas Ápio não podia conquistar a estima dos camponeses, que formavam um
mesmo povo com os habitantes de Roma. Não soube realizar o que poderia ter fei-
to, e o seu poder se desmoronou mal havia se erguido.
O povo e o Senado cometeram alguns erros graves, 20 instituir os decênviros. E
embora tenha dito, no capítulo referente ao ditador, que só representam um perigo
para à liberdade os magistrados que se apoderam do governo com as próprias mãos
— e não os que são eleitos pelo povo —, este último, contudo, quando se estabele-
cem novos cargos públicos, deve fazer com que os seus ocupantes se preocupem com
as consegiiências da sua eventual corrupção.
Os decênviros deveriam ser mantidos no caminho do dever por uma fiscaliza-
ção ativa, mas os romanos não os fiscalizavam, deixando que se transformassem no
único tribunal romano — todos os demais foram abolidos. Como disse, foi assim
que o desejo intenso que tinha o Senado de abolir os tribunos, e o povo de destruir
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 135
os cônsules, conseguiu cegar de tal modo um e outro que os induziu a concorrer pa-
ra a desordem geral.
O rei Fernando, o Católico, da Espanha, dizia que os homens amiúde imitam
essas aves de rapina que, por perseguirem com tanta obstinação a presa que a natu-
reza lhes destina, não percebem outro pássaro, mais forte, que se lança sobre elas
para despedaçá-las.
Ver-se-á assim, pelo que disse neste capítulo, em que dificuldades o desejo de
salvar a liberdade precipitou o povo romano — e os erros cometidos por Ápio ao
tentar dominar a tirania.
Capítulo Quadragésimo Primeiro
É imprudente e inútil passar abruptamente da modéstia ao
orgulho, da clemência à crueldade.
Um dos meios mais notáveis de que Ápio se serviu, de modo imprudente, para
preservar a tirania, foi a súbita mudança de caráter e conduta: a dissimulação com
que enganou o povo, fingindo-se seu amigo, bem como a posição que adotou a res.
peito da renovação do decenvirato.
Pode-se aplaudir a audácia demonstrada, nomeando-se a si próprio — o que a
nobreza não esperava —, e a eficiência que testemunhou ao escolher os colegas de
função. Mas não foi prudente sua conduta ao mudar de caráter, revelando-se ini-
migo do povo logo que o seu êxito ficou assegurado. Transformou-se de acessível e
afável em orgulhoso, adotando bruscamente os defeitos contrários às qualidades
originais. Deste modo, a falsidade da sua alma ficou demonstrada aos observadores
prevenidos.
Aquele que durante um certo tempo pareceu virtuoso, mas deseja entregar-se
sem entraves à sua natural perversidade, deve fazê-lo gradualmente, servindo-se
para isto de todas as oportunidades. Assim, antes que um novo comportamento,
oposto ao primitivo, afaste dele os favores do povo, a nova conduta terá adquirido
outros favores, para que a autoridade da pessoa não sofra. Agir de outro modo é
descobrir-se, perdendo os amigos e perdendo-se a si próprio.
Capítulo Quadragésimo Segundo
O quanto os homens podem facilmente corromper- se.
O decenvirato nos fornece um exemplo da facilidade com que os homens se
deixam corromper; da presteza com que o seu caráter se transforma, ainda quando
naturalmente bom e cultivado pela educação.
Basta considerar como os jovens que Ápio escolhera para acompanhá-lo logo
se familiarizaram com a tirania, deixando-se seduzir em troca de umas poucas van-
tagens. Basta ver Quinto Fábio, membro do segundo decenvirato, homem famoso
pela virtude, mas a quem a ambição cegou, sendo seduzido pela perversidade de
Ápio e desprezando a virtude para mergulhar no vício, tornando-se em tudo um
êmulo deste.
São fatos, que examinados maduramente, darão mais motivos ainda aos legis-
ladores das repúblicas e dos reinos para impor um freio às paixões dos homens,
tirando-lhes a esperança de poder errar impunemente.
Capítulo Quadragésimo Quinto
Não observar uma lei é dar mal exemplo, sobretudo quando quem
a destespeita é o seu autor; é muito perigoso para os governantes
repetir a cada dia novas ofensas à ordem pública.
Ajustado o acordo, e restabelecida a antiga constituição romana, Virgínio
convocou Ápio para defender sua causa perante o povo. O acusado atendeu à cita-
ção cercado de nobres, e Virgínio ordenou que fosse aprisionado. Ápio pôs-se a gri-
tar, pedindo socorro ao povo, enquanto Virgínio alegava que ele não merecia o
apelo que havia abolido, nem devia ser defendido pelo povo que ofendera. Ápio
respondeu que não era lícito violar a regra do apelo, que se havia restabelecido com
tal empenho. Preso, matou-se antes do dia do julgamento. Embora pelos crimes
que cometeu Ápio merecesse os castigos mais severos, não era justificável violar
qualquer lei por sua causa, sobretudo uma que acabava de ser restaurada. Com
efeito, o exemplo mais funesto que pode haver, a meu juízo, é o de criar uma lei e
não cumpri-la, sobretudo quando sua não observância se deve àqueles que a pro-
mulgaram.
Depois de 1494, a república de Florença havia reformado seu governo sob a in-
fluência de frei Savonarola, cujos escritos dão prova de ciência, sabedoria e virtude.
Entre as leis então estabelecidas para assegurar a liberdade dos cidadãos, havia
uma que autorizava o apelo ao povo de todas as sentenças passadas pelo Conselho
dos Oito ou pela Senhoria relativa a crimes contra o Estado. Mal confirmada essa
lei, que Savonarola tinha proposto havia muito tempo, e que só com dificuldade
conseguiu fosse adotada, cinco cidadãos foram condenados pela Senhoria por aten-
tar contra a segurança do Estado. Os acusados quiseram apelar, o que não lhes foi
concedido, violando-se assim a lei. Este episódio contribuiu, mais do que qualquer
outro, para prejudicar o crédito de Savonarola. Se ele considerava o apelo uma ins-
tituição de utilidade, deveria fazer observar a lei; em caso contrário, não deveria ter
feito tantos esforços para que fosse aprovada,
Estes fatos foram ainda mais marcantes porque nunca se ouviu Savanarola,
nos sermões que pregou depois da violação da lei, acusar ou justificar os que a ti-
nham violado — porque não queria desaprovar uma ação que lhe trouxera benefí-
146 Maquiavel
cio mas, ao mesmo tempo, porque não podia justificar os que assim tinham agido.
Com isto revelava seu caráter faccioso, e a ambição que o dominava, perdendo a re-
putação, e atraindo acusações gerais.
Nada mais funesto do que inflamar a cada dia, entre os cidadãos, novos res-
sentimentos pelos ultrajes cometidos incessantemente contra alguns destes, como
acontecia em Roma depois do decenvirato. De fato, todos os decênviros, e muitos
outros cidadãos, foram em várias oportunidades acusados e condenados. O temor
era geral entre os nobres, que não viam o fim dessas condenações antes que se des-
truísse toda a sua classe. Disto teria resultado inconvenientes dos mais desastrosos
para a república se o tribuno Marco Duélio não houvesse posto termo à situação
proibindo, durante um ano, citar ou acusar qualquer cidadão romano, o que fez
com que as nobres recobrassem a segurança.
Este exemplo mostra como é perigoso para uma república ou para um príncipe
manter os cidadãos em regime de terror contínuo, atingindo-os sem cessar com ul-
trajes e suplícios. Nada há de mais perigoso do que este tipo de procedimento, por-
que os homens que temem pela própria segurança começam a tomar todas as pre-
cauções contra os perigos que os ameaçam; depois, sua audácia cresce, e em breve
nada mais pode conter sua ousadia.
Por isto, é necessário ou não atacar ninguém ou então cometer ao mesmo tem-
po todas as ofensas, dando garantias, em seguida, aos cidadãos, para restaurar sua
confiança e a tranquilidade geral.
Capítulo Quadragésimo Sexto
Os homens se lançam de ambição a ambição procurando, a
princípio, defender-se dos outros, e depois oprimi- los.
O povo romano tinha recobrado a liberdade, reassumindo sua antiga posição.
Havia -se mesmo ampliado seus privilégios, com muitas leis novas, que confirmaram
seu poder. Podia-se esperar, portanto, que Roma entrasse finalmente num período
de trangiilidade. A experiência, contudo, demonstrou o contrário: a cada dia
ocorriam novas desordens e novas dissensões.
Com sua sagacidade costumeira, Tito Lívio mostra os motivos de tais dificul-
dades. Vale a pena repetir aqui suas palavras. O orgulho do povo aumentava —
conta — à medida que a nobreza demonstrava mais moderação; e o mesmo aconte-
cia com esta, em relação à plebe. Quando o povo gozava tranquilamente seus direi-
tos, os jovens da nobreza vinham insultá-lo. Os tribunos, cujo poder não era plena-
mente respeitado, não podiam opor-se a isto com o vigor que seria necessário. Os
nobres, por sua vez, embora reconhecendo os excessos cometidos pelos mais jovens,
não se importavam que fossem os seus que ultrapassassem os limites da ordem pú-
blica. Desta forma, o ardor com que cada um dos dois partidos defendia seus inte-
resses fazia com que um deles fosse sempre prejudicado. De fato, o rumo ordinário
dos acontecimentos deste gênero é o seguinte: procurando abrigar-se do medo, os
homens começam logo a fazer-se temer; lançam sobre os seus rivais a agressão da
qual se protegem, como se fosse necessário ser oprimido ou opressor.
Vê-se, assim, de que modo as repúblicas se destroem, e como os homens só
abandonam o objeto da sua ambição para perseguir um outro; fica provada a ver-
dade da frase que Salústio atribuiu a César: “Quod omnia mala exempla bonis ini-
tis orta sunt” (“Porque todos os maus exemplos tiveram origem em ações em si jus-
tas”).
Como dissemos anteriormente, os cidadãos que se entregam à ambição procu-
ram antes de mais nada defender-se — não só dos particulares mas também dos
magistrados. Procuram fazer amigos servindo-se de meios na aparência legítimos:
empréstimos de dinheiro, proteção contra os poderosos. São meios que, aparente-
mente virtuosos, enganam a todos, fazendo com que não se pense em atacar aquele
mal.
148 Maquiavel
Tendo alcançado sem obstáculos uma posição de importância, com sua perse-
verança, o ambicioso passa a ser temido pelos cidadãos e respeitado pelos magistra-
dos. A partir deste momento, não tendo recebido qualquer oposição, está de tal
forma enraizado que é perigoso-tentar extirpá-lo, pelos motivos a que já me referi
ao falar sobre o perigo que pode haver em procurar eliminar um abuso que se tenha
instalado perfeitamente no governo. É preciso ou procurar suprimi-lo, correndo o
risco da ruína súbita, ou deixá-lo crescer, curvando-se ao jugo de uma inevitável
servidão — a menos que a morte, ou alguma feliz ocorrência permita a restituição
da liberdade. Quando os cidadãos e até mesmo o magistrado tremem diante de um
dos seus pares, receando ofendê-lo, ou a um dos seus amigos, não estão distantes do
momento em que passarão a distribuir justiça e ofensas ao sabor dos seus caprichos.
Assim, uma das instituições mais importantes do Estado deve ser a que impede
que os cidadãos possam fazer o mal à sombra do bem; e que só tenham a reputação
que possa ser útil e benéfica à liberdade -- o que vamos examinar no lugar apro-
priado.
Capítulo Quadragésimo Sétimo
Embora sujeitos a erros ao tratar dos assuntos de um modo
genérico, os homens não se enganam quando os consideram em
particular.
Conforme observamos, o povo romano estava cansado do título de cônsul e
queria que se permitisse aos plebeus alcançar aquela dignidade — ou então que se
limitasse o seu escopo. Para não diminuir o poder do consulado, atendendo a tal
reivindicação, a nobreza adotou uma terceira solução, consentindo na criação de
quatro tribunos, revestidos da capacidade consular, escolhidos indiferentemente
dentre nobres ou plebeus. O povo, triunfante, pensou ter eliminado a instituição
consular, elevando-se ao nível de poder que exercia. Mas é digno de notar o fato de
que, ao eleger esses tribunos, os plebeus só nomearam nobres, embora pudessem
escolhê-los na sua classe. A este propósito diz Tito Lívio: “Quorum comitiorum
eventus docuit alios animos in contentione libertatis et honoris, alis secundum de-
posita certamina, in incorruptio judício esse” (“A escolha efetuada demonstrou co-
mo é diferente a disposição dos eleitores quando lutam pela liberdade e por honra-
rias e quando, pondo de lado quaisquer disputas, agem com julgamento sereno”).
Se procurarmos a origem desta diferença, veremos, penso, que :la provém do
fato de que os homens — que se enganam com frequência a respeite dos resultados
gerais de uma determinada providência — estão menos sujeitos a erro quando se
trata de um fato particular. Os plebeus estavam convencidos, de modo geral, que
mereciam o consulado, porque eram mais numerosos e se expunham aos perigos da
guerra; Roma lhes devia seu poder e sua liberdade, Esta pretensão parecia razoá-
vel; queriam, assim, obtê-la por todos os meios. Mas, quando se tratou de pesar em
particular os méritos de cada um, verificou-se que conheciam suas fraquezas,
achando que sobre nenhum deles, individualmente, devia recair a honra que em
conjunto pestulavam para si, Preferiram, então, eleger aqueles que a seu juízo me-
reciam ser nomeados. Impressionado justamente por este comportamento, Tito Li-
vio indaga: “Hanc modestiam aequitatemque et altitudinem animi, ubi nunc in
uno inveneris, quae tunc populi universi fuit?” (“Onde se encontraria, num sô indi-
víduo, a modéstia, equidade e elevação de espírito demonstradas por todo o
povo?").
Capítulo Quadragésimo Nono
Se as cidades que foram livres desde a sua fundação, como Roma,
têm dificuldade em promulgar leis que conservem sua liberdade,
isto é quase impossível para as que nasceram na servidão.
O rumo e os progressos da república romana provam como é difícil organizar
um governo livre, no qual todas as leis tendam à manutenção da liberdade. A des-
peito do número das Jeis instituídas por Rômulo, Numa, Tulo Hostílio, Sérvio, e
depois pelos decênviros — que foram criados para este fim —, a cada dia o governo
reconhecia alguma necessidade nova, que exigia a criação de novas instituições.
Foi o que ocorreu com o estabelecimento dos censores, que podem ser conside-
rados uma das defesas mais importantes erigidas pelos romanos para proteger a sua
liberdade, enquanto esta se manteve. Árbitros supremos dos costumes, os censores
foram uma das causas mais poderosas que contribuíram para retardar a corrupção
do povo romano.
Na concepção desta magistratura foi cometido um erro, estabelecendo-se-a
por cinco anos: pouco tempo depois o erro foi reparado pela sabedoria do ditador
Mamerco, que com nova lei reduziu o mandato dos censores para dezoito meses. Os
que estavam em exercício na ocasião se irritaram de tal modo com a medida que
excluíram Mamerco do Senado — o que foi desaprovado, de modo geral, por patrí-
cios e plebeus. E como Mamerco não pôde evitar este ultraje, é de se crer que a his-
tória esteja incompleta, ou então que as leis romanas fossem defeituosas neste ponto
— pois uma república não deve ser organizada de modo que um cidadão esteja ex-
posto a ser punido, sem se poder defender, por ter ousado promulgar uma lei ade-
quada a um governo livre.
Mas, voltando ao assunto deste capítulo, a criação desta nova magistratura
mostra que, se os Estados que nasceram livres como Roma, têm tanta dificuldade
em encontrar leis apropriadas à manutenção da liberdade, não é de espantar que as
cidades que nasceram na servidão sintam a quase impossibilidade de organizar uma
constituição que lhes assegure a liberdade e a tranquilidade.
156 Maquiavel
Florença é um bom exemplo. Originalmente, foi uma dependência do império
romano; acostumada a viver sob um senhor, permaneceu longamente em situação
servil, sem se ocupar com sua própria existência. Tendo chegado mais tarde à inde-
pendência, desenvolveu uma constituição própria; mas as novas instituições, mistu-
radas às antigas, que não valiam de nada, não surtiram efeito. Foi assim que, se-
gundo tradição segura, durante duzentos anos a cidade jamais teve um governo que
lhe fizesse merecer o nome de república.
As dificuldades que Florença encontrou são enfrentadas por todas as cidades
que tiveram a mesma origem. E, embora muitas vezes um pequeno número de ci-
dadãos tenha recebido, por livre escolha do povo, a missão de reformá-la, nunca se
fez esta reforma visando ao bem comum, mas sempre ao benefício de um partido;
assim, em vez de repor a ordem na cidade, só se fez acrescentar a desordem.
Para citar um exemplo em particular, e que ilustra este ponto, observo que,
entre os temas a serem considerados pelo fundador de um Estado, um dos mais im-
portantes é saber em que mãos se deve pór o direito de punir com a morte os cida-
dãos. Sob este ponto de vista as instituições romanas eram admiráveis. Normalmen-
te, era possível apelar para o povo; mas se houvesse alguma circunstância imperio-
sa, tornando perigoso acolher o apelo e suspender a execução, nomeava-se logo um
ditador, o qual mandava cumprir a sentença imediatamente; mas os romanos sóre-
correriam a este remédio em caso de necessidade premente.
Em Florença e em outras cidades de origem semelhante, habituadas também à
servidão, este poder terrível era confiado a um estrangeiro comissionado para tal
fim, Depois de alcançar a independência, essas cidades continuaram a conceder es-
te direito a um estrangeiro, que recebia o título de “capitão”.
O cargo era dos mais perigosos, pela facilidade com que os cidadãos poderosos
corrompiam quem o ocupava. Com o tempo, muitas modificações foram feitas no
governo, passando-se a nomear oito cidadãos para preencherem as mesmas fun-
ções. A mudança não fez senão tornar a situação pior do que antes, pelo motivo que
já indicamos: um conselho de número reduzido é sempre instrumento dos cidadãos
poderosos.
Já Veneza soube preservar-se deste perigo: estabeleceu o Conselho dos Dez, que
podia punir qualquer cidadão, sem apelação. Como a autoridade do Conselho po-
deria ser insuficiente contra o poder de certos cidadãos, embora em teoria tivesse a
faculdade de puni-los, criou-se a “Quarantia”, estabelecendo-se ainda que o conse-
lho dos“Pregai”, i.e. o Senado, teria o direito de punir os cidadãos culpados. As-
sim, como os acusadores nunca faltam, encontrou-se também juízes para conter os
poderosos.
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 157
Quando se toma conhecimento de que as boas instituições que regulavam a re-
pública romana, devido à sua sabedoria e à de tantos ilustres cidadãos, não eram
suficientes; e que a cada dia os acontecimentos obrigavam a promulgar novas leis
em favor de liberdade, não nos devemos espantar de que em outros Estados, cuja
origem foi mais desordenada, surjam dificuldades que tornem impossível restabele-
cer neles a ordem pública.
Capítulo Quinquagésimo
Nenhum conselho ou magistrado deve poder obstruir os assuntos
do Estado.
Eram cônsules em Roma Tito Quíncio Cincinato e Júlio Mento, cuja desunião
tinha perturbado todos os assuntos do governo. O Senado pediu-lhes que nomeas-
sem um ditador, para executar o que a inimizade dos dois não permitia que se fizes-
se, Mas estes, que não concordavam sobre coisa alguma, só não disputavam um
ponto; não queriam designar um ditador. Por fim, o Senado, sem outro recurso, so-
licitou a intervenção dos tribunos, os quais, apoiados, por sua vez, pela autoridade
do Senado, obrigaram os cônsules a obedecer.
É preciso apontar aqui, antes de mais nada, a utilidade do tribunato, que não
se limitava a pôr um freio às pretensões dos nobres contra a plebe, mas também às
pretensões mútuas dos poderosos.
Em segundo lugar, observe-se que não se deve permitir jamais a uma minoria
tomar as decisões normalmente necessárias para a manutenção de uma república.
Assim, por exemplo, se se deu a um conselho o poder de distribuir graças e honra-
rias, ou a um magistrado o de resolver um assunto, é preciso impor um prazo a um
ou ao outro; e prever sua substituição, se se recusarem a cumpri-lo; sem isto, a insti-
tuição ficaria defeituosa e prenhe de perigos, como teria ocorrido em Roma se a au-
toridade dos tribunos não tivesse sido oposta à obstinação dos dois cônsules.
Na república de Veneza é o Conselho Maior que distribui os cargos públicos e
as honrarias do Estado. Acontecia às vezes que o Conselho, por ressentimento ou al-
guma falsa sugestão, não quisesse dar sucessores aos magistrados que governavam a
cidade e aos que administravam o Estado. Em consegiênca, havia distúrbios repe-
tidos, porque em todas as cidades dependentes, e na própria capital, faltavam, si-
multaneamente, magistrados legítimos. Não se podia sair da confusão a não ser sa-
tisfazendo a maioria do conselho ou enganando-a.
164 Maquiavel
pois era difícil agir assim e porque não poderia fazé-lo honradamente. De fato, os
meios de que se serviram seus inimigos para derrubá-lo, e com os quais puderam
precipitar sua ruína, consistiam no favorecimento dos Médici. Não seria honroso
para ele fazer o mesmo, pois isto significaria destruir a liberdade que estava sob sua
guarda. Além do que, teria sido preciso favorecer os Médici abertamente, e de súbi-
to, o que o exporia a perigo ainda maior. De fato, como quer que se mostrasse ami
go daquela família, se tornaria objeto da suspeita e da repulsa do povo; e seus ini-
migos, mais do que nunca, teriam uma oportunidade para perdê-lo.
Os homens devem considerar o partido em que se vão engajar sob todos os pon-
tos de vista, pesando com cuidado os inconvenientes e perigos: deixando de abraçá-
lo quando nele encontraram mais perigos do que utilidade, mesmo que a escolha
traga apoio certo ao que pretendem. Agindo de outra forma, vão expor-se ao mes-
mo perigo que assaltou Cícero quando, pretendendo destruir a influência de Antó-
nio, só conseguiu aumentá-la.
Antônio tinha sido declarado inimigo do Senado. Reuniu em pouco tempo um
grande exército, composto em boa parte de soldados que tinham marchado sob as
águias de César. Cícero, para lhe tirar os soldados, exortou o Senado a manifestar
confiança em Otávio, enviando-o com os cônsules e as forças da república contra
Marco Antônio. Alegava-se que, se os soldados ouvissem o nome de Otávio, sobri-
nho do ditador (que se fazia também chamar de César), desertariam para se reunir
a ele, de modo que Marco Antônio, sem ter quem o defendesse, seria facilmente
derrotado.
Mas o conselho de Cicero teve um efeito contrário ao desejado. Marco Antônio
soube convencer Otávio, e os dois se aliaram contra Cicero e o Senado. Aliança fu-
nesta, que foi a perdição do partido aristocrático. Contudo, tal consegiiência era
fácil de prever. Não se deveria, de fato, ter seguido o conselho de Cicero; era o no-
me de César que devia ser temido — um nome cuja glória dissipara todos os seus
inimigos, e que lhe havia assegurado em Roma o poder supremo. E quanto aos her-
deiros do ditador e seus cúmplices, nada se devia esperar deles que fosse favorável à
liberdade.
Capítulo Qiiinquagésimo Terceiro
Enganado por uma falsa aparência, o povo muitas vezes deseja sua
própria ruína: é fácil movê-lo com promessas espantosas e grandes
esperanças.
Depois da tomada de Veios, circulou, o rumor, entre o povo romano, que have-
ria vantagem para Roma se metade da sua população fosse habitar a cidade con-
quistada. Argumentava-se com a riqueza daquele país, a extensão da cidade, sua
proximidade. A medida imaginada poderia facilmente enriquecer a metade do po-
voe, graças à vizinhança de Veios, não traria qualquer prejuízo ao trato dos assun-
tos públicos.
Contudo, ao Senado e aos cidadãos mais esclarecidos, a idéia pareceu sem van-
tagens e de tal forma perigosa que se dizia ser preferível a morte a concordar com a
proposta. Seguiram-se debates dos mais ardorosos, e o povo, indignado com o Sena-
do, quis tornar as armas e derramar sangue, o que teria ocorrido se este último não
tivesse sido defendido por alguns cidadãos respeitados pela idade e posição. Foi este
respeito que impediu o povo de levar adiante suas insolentes intenções.
É preciso, aqui, fazer dois comentários. O primeiro é que a multidão, seduzida
pela imagem de um falso bem, muitas vezes trabalha pela sua própria ruína. E se
alguém que lhe inspira confiança não esclarece o que é nocivo e o que É vantajoso,
ela se expõe a graves perigos. Se por má sorte o povo não encontrar alguém de con-
fiança — como já têm acontecido —, o Estado não evitará essa ruína, causada pelo
engano urdido pelos homens ou pelos acontecimentos. É a este propósito que Dan-
te, no seu livro sobre a monarquia, diz que o povo já clamou muitas vezes: “Viva a
minha morte! Morra a minha vida!” Por esta falta de confiança, acontece às vezes
que uma república não ousa tomar uma decisão vantajosa, como exemplifiquei a
propósito dos venezianos; estes, assaltados por inimigos numerosos, não puderam
resolver-se a seduzir alguns deles, restituindo-lhes o que os próprios venezianos ti-
nham tirado a outrem, afim de evitar a perdição do seu país (conquistas que consti-
tufam a causa da guerra, e da aliança de tantos príncipes contra eles).
166 Maquiavel
Examinando, contudo, aquilo de que é fácil convencer o povo, e o que é mais
difícil, cabe uma distinção. Na decisão de que se deseja persuadi-lo, o povo tende
sempre a ver, à primeira vista, uma perda ou um ganho; um gesto de grandeza ou
de covardia. Se encontra nos projetos que lhe são submetidos alguma vantagem
real, se tais propostas lhe parecerem magnânimas, será fácil fazê-las adotar, ainda
que, sob aparência enganosa, nelas se oculte a sua própria ruína, e um desastre pa-
ra O Estado. Será difícil, por outro lado, obter o apoio popular para uma decisão
que pareça covarde, ou danosa, ainda que traga uma vantagem genuína para o Es-
tado.
Há disto numerosos exemplos, retirados da história antiga e moderna dos ro-
manos e dos bárbaros. Tal foi a origem da opinião negativa que se desenvolveu em
Roma contra Fábio Máximo, o qual não conseguiu persuadir o povo de que fora
útil à república contemporizar durante a guerra, opondo-se a Anibal sem lhe dar
batalha. O povo considerava esta conduta pusilâmine, e não percebia o seu sentido.
Fábio, por sua vez, não tinha argumentos bastante fortes para convencê-lo. O que
prova a cegueira com que os homens adotam as posições que lhes parecem corajo-
sas: embora o povo romano tenha cometido o grave equívoco de dar ao comandan-
te da cavalaria de Fábio autorização para entrar em combate, malgrado a oposição
do cônsul — autorização que teria valido a derrota do exército romano se Fábio não
a houvesse moderado com a sua prudência —, isto não lhe bastou, e logo Varrão foi
nomeado-cônsul, não pelo mérito próprio, mas porque percorreu Roma prometen-
do vencer Aníbal se lhe fosse dada licença para combater. As consequências desta
conduta foram a derrota de Cannes e um grave perigo para Roma.
Sobre este assunto, quero contar um outro episódio da história romana, Havia
já oito ou dez anos que Aníbal combatia na Itália, etodo o país estava inundado pe-
ko sangue dos romanos, Foi quando um certo Marco Centênio Penula, de caráter vil
(embora tivesse alcançado uma certa graduação no exército), ofereceu ao Senado
trazer-lhe Aníbal, morto ou prisioneiro, desde que se lhe desse permissão para reu-
nir um corpo de voluntários em toda a Itália.
A promessa parecia temerária. Mas o Senado refletiu que, se a rejeitasse, logo
o povo dela teria notícia, podendo disto resultar queixas e tumulto, bem como acu-
sações aos senadores.
Acolheu-se, portanto, a proposta de Penula, com o propósito de expor os que
se dispusessem a segui-la, evitando-se assim incitar outra vez o ressentimento do po-
vo, por saber com que facilidade ele acataria tal decisão, e como seria difícil
dissuadi-lo de o fazer. Em consegiiência, o insensato marchou ao encontro de Aní-
bai, à frente de uma multidão sem ordem ou disciplina — para serem derrotados, e
muitos deles mortos, no primeiro combate.
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 167
Apesar da sua sabedoria e prudência, Nícias não pôde convencer os habitantes
de Atenas do perigo que havia em estender a guerra à Sicília — empresa que, leva-
da a cabo, não obstante as advertências dos cidadãos mais esclarecidos, causou a
ruína total de Atenas.
Quando Cipião foi nomeado cônsul, pretendeu tomar a província africana,
derrotando Cartago: mas o Senado, contido por Fábio Máximo, não o quis autori-
zar. Cipião, então, ameaçou levar o assunto ao povo — sabendo como proposta des-
te gênero são bem acolhidas pela multidão.
Outro exemplo pode ser dado em nossa cidade. Hércules Bentivogli, coman-
dante das forças florentinas, depois de ter batido Bartolemeu d' Alviano em São Vi-
cente, foi assediar Pisa, juntamente com Antônio Giacomini. Essa campanha tinha
sido decidida pelo povo, seduzido pelas promessas magníficas de Bentivogli — não
obstante as representações de muitos cidadãos esclarecidos, rejeitadas pela vontade
geral, excessivamente confiante nas amplas promessas do comandante.
O meio mais fácil de assegurar a perdição de um Estado onde o povo tenha au-
toridade soberana é organizar expedições ousadas; pois, onde o povo tem influên-
cia, esses projetos serão sempre abraçados com entusiasmo, e os homens prudentes,
que tiverem opinião contrária, jamais poderão impedi-lo.
Contudo, se bem o resultado inevitável dessa conduta seja a ruína do Estado,
vê-se o desastre atingir com mais frequência os responsáveis por tais empreendi-
mentos. Pois o povo, encontrando derrota onde esperava uma vitória, não culpa
disto a má sorte, ou os meios insuficientes de que dispunha quem dirigiu a guerra,
mas a sua ignorância e incapacidade, fazendo-o pagar muitas vezes com a morte, a
prisão ou o exílio.
Muitos generais, em Atenas e em Cartago, dão a prova do que digo. Por mui-
tas vitórias passadas que ostentassem, um só revês as apagava.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com Antônio Giacomini, nosso compatrio-
ta. Não tendo podido conquistar Pisa, como o povo esperava, e ele próprio havia
prometido, incorreu de tal forma no desfavor popular que, não obstante todos os
bons serviços que havia prestado à pátria, quase perdeu a vida; ficou a devê-la à hu-
manidade dos que detinham o poder naquela época, e não a qualquer impulso de
compreensão que o povo pudesse ter,
Capítulo Quinquagésimo Quarto
A autoridade que tem um homem respeitado para conter a
multidão excitada.
O segundo ponto importante que indicamos no capítulo precedente é o seguin-
te: nada mais adequado para conter a multidão que se levanta, excitada, do que
um homem sábio, que goze de respeito, e que se dirija a ela com a autoridade que
lhe dá sua virtude,
Tinha razão Virgílio, quando escreveu:
“Tum, pietate gravem ac merities si forte virum quem Conspexere, silent, ar-
rectisque auribus adstant.”
O que quer dizer: “Quando defrontam um homem sério, respeitado pelos seus
méritos, calam-se, passando a ouvi-lo com toda atenção”,
Por isto, o comandante militar, ou o governante de uma cidade onde ocorre
uma sedição, deve apresentar-se imediatamente no local do tumulto, usando o me-
lhor que possa sua influência e a consideração que mereça; para imprimir maior
respeitabilidade à sua pessoa, deve revestir-se de todos os simbolos da autoridade.
Há poucos anos, Florença estava dividida em duas facções, os “frateschi”, par-
tidários de Savonarola, e os “arrabbiati”, amigos dos Médici. Chegou-se ao confli-
to, e os “frateschi” foram vencidos. Distinguia-se entre eles Paulo Antônio Soderini,
um dos mais ilustres cidadãos da república. O povo, em armas, se precipitou para a
sua casa, com o intuito de pilhá-la, Lá se encontrava Francisco, seu irmão, que hoje
é cardeal e na época era bispo de Volterra, Ao ouvir o ruído da turba que se aproxi-
mava, o bispo pôs sua roupa mais digna, apresentando-se assim aos assaltantes fu-
riosos, a quem deteve com sua presença e as palavras que usou. Durante vários dias
esta conduta firme e corajosa foi celebrada em toda parte.
174 Maquiavel
Em todas as repúblicas, a sociedade é marcada por escalões de denominação
variada. Assim, Veneza está dividida em burgueses e nobres (“gentiluomini”), dos
quais uns possuem, ou pelo menos podem possuir, todas as honrarias das quais os
outros estão excluídos. Já expliquei os motivos pelos quais esta divisão não leva a
qualquer perturbação para o Estado.
Portanto, que o fundador de uma república a institua onde haja, “ou possa ha-
ver, ampla igualdade; que se prefira criar uma monarquia onde exista a desigual-
dade. Do contrário, nascerá um Estado desproporcionado no seu conjunto, sem
condições para uma longa vida.
Capítulo Qiiinquagésimo Sexto
As grandes transformações que ocorrem nas cidades e nos países
são precedidas de sinais ou de homens que as prenunciam.
Não sei qual a razão, mas a verdade, ilustrada por exemplos antigos e moder-
nos, é que não houve um acontecimento importante que não tenha sido previsto —
por profecias, revelações, prodígios ou outros sinais do céu. Para não ir mais longe,
sabemos todos que a chegada do rei Carlos VIII à Itália fora prevista há muito por
Savonarola. Além disto, correu o rumor, por toda a Toscana, que se tinha ouvido
dois exércitos combatendo — os quais, aliás, foram também avistados — perto da
cidade de Arezzo.
Ninguém ignora também que pouco tempo antes da morte de Lourenço de
Médici, o Velho, a catedral foi atingida por um raio que a danificou consideravel-
mente. Sabe-se também que, antes que fosse cassado Pedro Soderini, nomeado pe-
los “gonfalonieri” florentinos a título vitalício, um raio atingiu o palácio, sede da
Senhoria.
Poderia citar muitos outros casos, que deixarei de lado para não fatigar o lei-
tor, limitando-me a contar o que, segundo Tito Lívio, ocorreu antes da chegada
dos gauleses a Roma. Um certo Marco Cedício, plebeu, foi relatar ao Senado que,
passando de noite pela Rua Nova, ouviu uma voz sobre-humana que lhe ordenava
dizer aos magistrados que os gauleses avançavam sobre Roma.
Para explicar a causa desses prodígios seria preciso ter das coias naturais e so-
brenaturais um conhecimento que não possuímos. Pode ser que os ares — como
pensam alguns filósofos — estejam repletos de inteligências celestiais que, pela sua
natureza, conheçam o futuro; movidas de piedade pelos homens, os avisam para
que se possam preparar e defender. De qualquer forma, é fato que, depois desses
prodígios, os impérios sempre sofreram transformações extraordinárias e inespera-
das.
Capítulo Qiiinquagésimo Sétimo
Unido, o povo é forte; isolados, os indivíduos são fracos.
Depois que os gauleses atacaram Roma, muitos cidadãos foram estabelecer-se
em Veios, não obstante os decretos do Senado. Para pôr fim à desordem, este esta-
beleceu publicamente que os cidadãos deveriam retornar dentro de breve prazo,
sob pena de receber os castigos previstos pela lei. Aqueles a quem o decreto se desti-
nava a princípio não o levaram a sério; mas, quando chegou o fim do prazo previs-
to, ninguém ousou desobedecer. Sobre isto, comenta Tito Lívio: “Ex ferocibus uni-
versis, singuli, metu suo, obedientes fuere” (“De furiosos que eram todos, em con-
junto, pelo medo de cada um foram levados à obediência”).
De fato, não se pode encontrar exemplo que mostre mais claramente o com-
portamento característico da multidão. Os homens são levados muitas vezes pela
audácia a se queixar em voz alta das medidas tomadas pelos governantes; mas,
diante do castigo; perdem a confiança que tinham uns nos outros, e terminam por
obedecer às ordens recebidas.
Não se deve dar muita importância a tudo o que 0 povo diz sobre a sua disposi-
ção, boa ou má, desde que quando esteja bem disposto seja possível aos governantes
mantê-los assim; e, em caso contrário, estes possam impedi-lo de ter um comporta-
mento perigoso. Entende-se por má disposição do povo a que tem outra origem que
não a perda da sua liberdade — ou a perda de um príncipe querido, que viya ain-
da; pois a conduta que tem origem nestas causas é poderosa, requerendo-se as
maiores precauções para moderá-la. Os descontentamentos, porém, são fáceis de
dissipar quando a multidão não tem um líder a quem recorrer; pois, se não há nada
de mais forte do que a massa sem freio e sem chefe, nada há, por outro lado, de
mais frágil. Ainda que a multidão disponha de armas, é fácil contê-la, desde que
haja um abrigo que proteja do seu primeiro impulso. De fato, quando os ânimos se
arrefecem, e todos percebem que é preciso voltar para casa. Esvai-se a confiança
que a massa depositava na sua força: cada um pensa na própria salvação,
decidindo-se a fugir, ou a trair.
178 Maquiavel
O povo que deseja evitar tais perigos deve escolher um chefe que o dirija, o
mantenha unido, e o defenda. Foi o que fez a plebe quando abandonou Roma de-
pois da morte de Virgínio, nomeando vinte tribunos para zelar pela sua segurança.
Agindo de outra forma, ocorrerá sempre o que diz Tito Lívio nas palavras que
reproduzimos: reunidos, os homens se enchem de coragem; mas quando cada um
reflete no perigo que o cerca, torna-se a multidão fraca e covarde.
Capítulo Qiinquagésimo Oitavo
O povo é mais sábio e constante do que o príncipe.
Tito Lívio e todos os outros historiadores afirmam que não há nada de mais in-
constante e ligeiro do que a multidão. Muitas vezes, em relatos sobre 0 comporta-
mento dos homens, vê-se a multidão chorar um morto depois de tê-lo condenado,
clamando por ele com toda a força do arrependimento. Foi o que fizeram os roma-
nos com Máânlio Capitolino. Eis o que diz, a este respeito, o grande historiador:
“Populum brevi, posteaquam ab eo periculum nullum erat, desiderium eius tenuit”
(“Logo o povo, quando já não havia mais qualquer perigo, foi tomado pelo arre-
pendimento”). E em outra passagem, ao narrar o que aconteceu em Siracusa, de-
pois da morte de Jerônimo, neto de Híeron, declara: “Haec natura multitudinis est,
aut humiliter servit, aut superbe dominatur” (“Tal é a natureza da multidão: ou
serve com humildade ou domina orgulhosamente”).
Não sei se, ao tentar rejeitar uma tese afirmada por tantos escritores, não esta-
rei entrando em província agreste, por um caminho tão difícil que mais me conviria
abandonar. Contudo, qualquer que seja o resultado deste esforço, jamais conside-
rarei um erro combater uma opinião com argumentos racionais sem usar a força ou
a autoridade.
Direi, portanto, que o defeito que os historiadores atribuem à multidão pode
ser imputado aos homens, de modo geral — e aos princípes, em particular. Com
efeito, todos a quem faltem leis para regular sua conduta podem coineter os mes-
mos erros que a multidão sem freio. É fácil convencer-se disto; existiram, e existem
ainda, muitos princípes, mas poucos deles sábios, ou bons. Refiro-me aos príncipes
que romperam os freios que os controlavam; não incluo nesta categoria os freios do
Egito, quando aquele país tão antigo vivia sob o império das leis; nem os de Espar-
ta; nem, em nossos dias, os da França, Estado onde as leis tém maior poder de que
em qualquer outro da época atual.
Os monarcas que nascem em regime semelhante não devem ser contados entre
aqueles cujo caráter natural pode ser comparado ao da multidão; só se lhe deveria
comparar uma multidão igualmente submissa às leis, com as mesmas boas qualida-
184 Maquiavel
Depois de ter pesado todas estas considerações, estou convencido de que, sem-
pre que surge um perigo iminente, encontrar-se-á mais solidez numa república do
que num príncipe. Isto porque, embora a primeira sofra as mesmas paixões e os
mesmo desejos dos monarcas, a lentidão com que normalmente toma decisões fará
com que tarde mais a determinar sua posição; em consequência, estará menos
pronta a romper a palavra empenhada.
São os interesses que cortam os laços de todas as alianças; sob este ponto de vis-
ta, as repúblicas são bem mais rigorosas na observância das leis do que os príncipes.
Poder-se-ia citar muitos exemplos de ocasiões em que o interesse mais frágil levou
um príncipe a violar sua fidelidade, enquanto que as maiores vantagens não pude-
ram demover uma república de cumprir sua palavra. Este foi o conselho de Temís-
tocles aos atenienses, numa das assembléias do povo. Dizia ter um projeto cuja exe-
cução teria a maior utilidade para a pátria; não podia, contudo, divulgá-lo, pois is-
to vedaria a oportunidade de sua execução. O povo ateniense designou Aristides
para que tomasse conhecimento do segredo, de modo que se seguisse a conduta re-
comendada por ele. Temístocles mostrou, então, que toda a frota grega, cuja segu-
rança repousava sobre a sua descrição, estava colocada de medo a poder ser facil
mente tomada, ou destruída, o que faria dos atenienses os árbitros da Grécia. Aris-
tides explicou então que a proposta de Temistocles era muito útil, mas igualmente
desonesta. O povo a rejeitou por unanimidade.
Filipe da Macedônia seguramente não teria agido assim — como muitos outros
príncipes que viram na violação da palavra dada um meio seguro de favorecer seus
interesses.
Não falo aqui das infrações cometidas contra um tratado, por não observar-se
suas disposições, o que é coisa comum. Refiro-me aos tratados que foram rompidos
pro causas extraordinárias; e, pelos motivos que expus, estou convencido de que os
povos são menos sujeitos a erro neste particular do que os'príncipes, e que se deve
fiar mais nos primeiros do que nestes últimos.
Capítulo Sexagésimo
Como em Roma as nomeações para o consulado, e certas outras
funções, não levavam em conta limites de idade.
Os acontecimentos sucessivos que a história nos relata indicam que, logo que
os plebeus passaram a participar do consulado, os romanos começaram a atribuí-lo
sem considerar a idade ou a classe social dos cidadãos. Em Roma, aliás nunca se
deu importância à idade, buscando-se sempre a virtude igualmente nos jovens e nos
velhos. Valério Corvino é um exemplo notável: nomeado cônsul aos vinte e três
anos, explicava a seus soldados que aquele era o prêmio do mérito, não da estirpe:
“Erat praemium virtutis, non sanguinis”. Haverá muito a dizer sobre as vantagens e
desvantagens deste costume.
Quanto à classe, era necessário que não fosse levada em consideração — neces-
sidade que surgirá em toda a república que quiser constituir império semelhante ao
de Roma. Não se pode confiar aos homens trabalhos a realizar sem premiá-los; e
não se pode, sem que o Estado corra perigo, retirar-lhes a esperança de conseguir o
prêmio. Era, sem dúvida, preciso que o povo tivesse a esperança de alcançar o con-
sulado, e que alimentasse durante algum tempo tal esperança; depois, a esperança
não bastou, e foi necessário dar ao povo o objetivo pretendido.
O Estado que não precisa dos súditos para empreendimentos gloriosos pode
tratá-los ao sabor dos seus caprichos, como já observamos. Se quiser, contudo, al-
cançar os mesmos êxitos de Roma, não deverá criar distinções no seu seio. Sendo o
argumento válido no que toca à posição social, resolve a questão relativa à idade,
que se segue necessariamente.
Se um jovem é levado à dignidade tal que implique na prudência do ancião, é
óbvio — já que a nomeação coube ao povo — que praticou alguma ação extraordi-
nária, a qual o revelou digno do elevado cargo. E se o mérito de um jovem brilha
com uma ação extraordinária, seria perigoso que o Estado não o reconhecesse, para
186 Maquiavel
retirar-lhe o público benefício: que esperasse ver os anos esfriarem tal vigor de espí-
rito, e toda a atividade que se deveria empregar a serviço da pátria. Por isto Roma
se serviu de Valério Corvino, de Cipião, de Pompeu, e de muitos outros cidadãos
ilustres, cuja extrema juventude não os impediu de triunfar sobre os inimigos.
LIVRO SEGUNDO
Introdução
Os homens elogiam o passado e se queixam do presente, quase sempre sem ra-
zão. Partidários cegos de tudo o que se fazia outrora louvam épocas que só conhe-
cem pelos relatos dos historiadores; e aplaudem o tempo da própria juventude, con-
forme a lembrança que lhes fica na velhice.
Quando se equivocam, como acontece quase sempre, isso se deve a várias ra-
zões. A primeira é a de que não se pode conhecer toda a verdade sobre os aconteci-
mentos da antiguidade; muitas vezes se oculta o que poderia trazer desonra aos
tempos passados, enquanto se celebra, e amplia, tudo o que acrescenta à sua glória.
Ocorre também que os escritores, em sua maioria, seguem a sorte dos vencedores,
aumentando o que fizeram de glorioso para melhor ilustrar suas vitórias, e acres
centando à força dos inimigos que venceram; de modo que os descendentes de uns e
de outros não podem deixar de admirá-los e de exaltar o seu tempo, fazendo-os ob-
jeto de homenagem e admiração.
Há mais ainda. Por medo ou por inveja, os homens se entregam ao ódio, cujas
duas razões mais fortes não vigem em relação ao passado: pois não há motivo para
temer 0 que já ocorreu, e não tem sentido invejar os acontecimentos pretéritos.
O mesmo não ocorre, porém, com os acontecimentos dos quais participamos
como atores, ou que se passaram sob os nossos olhos. O conhecimento perfeito que
podemos ter revela-os em todos os seus pormenores; é fácil, assim, distinguir neles o
pouco de bem, separando-o de todas as circunstâncias que nos desagradam. Somos
forçados a vê-los com olhos menos favoráveis, embora na verdade muitas vezes o
presente mereça mais nossos louvores e admiração. Não me refiro, naturalmente,
aos monumentos artísticos, cujo valor é evidente, e o tempo poucg pode diminuir
ou aumentar; falo dos costumes das coletividades, que não se manifestam de forma
tão óbvia.
Não hã dúvida de que este hábito de louvar e criticar, a que me referi, existe
realmente; mas não é verdade que sempre nos engane. Há ocasiões em que devemos
guiar-nos pela evidência; porque, como as coisas deste mundo estão sempre em
transição, .ora as exaltamos, ora as rebaixamos.
194 Maquiavel
Para não mencionar o período que precedeu o ataque dos gauleses, sabe-se
que enquanto os romanos combatiam os équos e os volscos, duas nações na época
poderosas, nenhum outro povo se insurgiu contra eles, Vencidos esses inimigos, fo-
ram iniciadas as hostilidades contra os samnitas; embora os povos do Lácio se tives-
sem levantado contra os romanos; como os samnitas eram aliados de Roma quando
estou-ou a revolta, o seu exército ajudou os romanos a reprimir a rebeldia dos lati-
nos. Quando estes foram subjugados, retomou-se a guerra contra o Sâmnio.
Os exércitos samnitas foram derrotados em muitas batalhas antes de que se ini-
ciasse a guerra toscana; esta já havia terminado quando a chegada de Pirro à Itália
deu nova força aos samnitas. Derrotado aquele príncipe, e obrigado a retornar à
Grécia, teve começo a guerra de Cartago, a qual mal havia findado quando os gau-
leses dos dois lados dos Alpes se aliaram contra Roma, sendo exterminados numa
horrível carnificina, no lugar onde hoje se eleva a torre de São Vicente, entre Popu-
lônia e Pisa. Depois desta última guerra, todas as demais que os romanos fizeram,
durante vinte anos, tiveram pouca importância; só precisaram combater os lígures
e os gauleses remanescentes, que se encontravam na Lombardia. Foi assim até a
eclosão da segunda guerra púnica, que sacudiu a Itália durante dezesseis anos. Esta
guerra, terminada com tanta glória, provocou a da Macedônia, que por sua vez le-
vou à de Antióquia e da Ásia. Como Roma foi vitoriosa, não sobrou em todo o uni-
verso conhecido um só príncipe, ou uma república, que, por si só, ou em aliança,
pudesse opor-se aos romanos.
Contudo, se estudarmos os acontecimentos militares antes destes últimos triun-
fos, encontraremos uma rara mistura de boa sorte, coragem e sabedoria. E quem
quiser se aprofundar nas causas desses êxitos militares poderá descobri-las facil-
mente, É certo que quando um povo (cu um príncipe) adquire tal reputação que
todos os vizinhos passam a temê-lo, hesitando diante da idéia de-atacá-lo, pode es-
tar seguro de que só lhe farão guerra se isto for necessário. O Estado poderoso, por-
tanto, terá sempre a liberdade de declarar guerra ao vizinho que quiser atacar,
usando a linguagem da paz para com os outros — os quais, desencorajados pelo seu
poder e seduzidos por sua diplomacia, se deixarão facilmente tranquilizar; quanto
aos demais príncipes, distantes, verão o perigo longe demais para que possa
amedrontá-los. Essa cegueira só é curada quando o incêndio os atinge; então, os
seus próprios meios são insuficientes para apagá-lo, pois o inimigo já é todo-
poderoso.
Não quero mencionar a indiferença com que os samnitas viram os romanos
triunfar sobre os volscos e os équos; para não perder tempo em comentários supér-
fluos, vou limitar-me a falar sobre os cartagineses. Esse povo era já poderoso e goza-
va de justa celebridade quando os romanos ainda disputavam o seu império com
samnitas e toscanos; tinha em seu poder toda a África, a Sardenha, a Sicília e uma
parte da Espanha. O seu poderio e a distância de Roma afastavam a idéia de que
esta viesse atacá-lo; não pensou assim em socorrer os samnitas ou os toscanos. Muito
Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio 195
pelo contrário, os cartagineses se aliaram com Roma, procurando sua amizade, e só
reconheceram este erro quando os romanos, havendo subjugado todos os povas que
se encontravam entre eles e Cartago, começaram a disputar-lhes a posse da Sicília e
da Espanha.
O mesmo engano cegou os gauleses, Filipe da Macedônia e o rei Antíoco, cada
um dos quais imaginou que, nas lutas contra os vizinhos, Roma poderia vir a ser
derrotada, e que seria sempre possível escapar ao seu domínio pela paz ou pela
guerra, Segundo penso, a boa sorte que tiveram os romanos nestas circunstâncias
teriam tido também todos os príncipes que assim procedessem, e que tivessem qua-
lidades semelhantes.
. Conviria mostrar, a este propósito, a conduta dos romanos 20 penetrar em ter-
ritório inimigo — assunto que examinei longamente no meu tratado sobre “O Prín-
cipe”, onde pude aprofundá-lo. Por isto direi aqui apenas, brevemente, que procu-
ravam sempre ter, nas novas conquistas, algum amigo que servisse de porta, ou de-
grau, para sua penetração, a qual lhe desse meios de ocupar o país.
Foi assim que se serviram dos habitantes de Cápua para entrar no Sâmnio; dos
carmertinos, na Toscana; dos mamertinos, nas Sicília; dos habitantes de Sagunto,
na Espanha; de Massinissa, na África; dos eólios, na Grécia; de Eumênio e de ou-
tros príncipes, na Ásia: dos marselheses e éduos, na Gália. Não lhes faltou Jamais
este tipo de apoio para facilitar suas conquistas, dominar novos territórios e consoli-
dar sua posição. Os povos que tiveram conduta semelhante sentirão menor necessi-
dade dos favores da fortuna do que aqueles que agirem de outro modo.
Para que se possa entender melhor como a virtude foi, em Roma, mais impor-
tante do que a boa sorte para explicar a conquista do império, mostrarei, no capí-
tulo que segue, as qualidades que tinham os povos que os rsmanos combateram, e
com que determinação souberam defender-se. ,
Capítulo Segundo
Que povos os romanos combateram, e com que determinação estes
se defenderam.
Nada tornou mais difícil para os romanos a conquista dos povos vizinhos, e de
alguns mais distantes, do que o amor que estes tinham pela liberdade, a qual defen-
diam com tal determinação que nunca teria sido possível subjugá-los sem uma pro-
digiosa coragem. Numerosos exemplos mostram os esforços que fizeram para
conservá-la ou reconquistá-la, e que vinganças praticaram contra os que a tinham
violentado. A história nos demonstra também que a perda da independência expõe
os povos e as cidades a verdadeiros desastres.
Embora em nossos dias somente num país haja algumas cidades independen-
tes, na antiguidade todos os países eram povoados por homens livres. Basta ver co-
mo, na época de que falamos, havia povos livres desde as altas montanhas que sepa-
ram a Toscana da Lombardia até a extremidade da Itália, tais como os toscanos,
romanos, samnitas e muitos outros que habitavam este país — no qual, segundo os
historiadores, nunca houve outros reis além dos que reinaram em Roma e de Porse-
na, soberano dos toscanos, raça que não se sabe mesmo como se extinguiu.
Na época em que os romanos assediaram Veios, a Toscana era independente e
defendia de tal modo sua liberdade, rejeitando a monarquia, que, quando os habi-
tantes de Veios pediram o seu apoio contra os romanos, após longa deliberação este
Hhe foi negado, enquanto obedecessem ao rei que haviam nomeado. Pensavam os
toscanos que não deviam defender a pátria de quem já a havia submetido ao jugo
de um monarca.
Percebe-se facilmente de onde nasce o amor à liberdade dos povos; a experiên-
cia nos mostra que as cidades crescem em poder e em riqueza enquanto são livres. É
maravilhoso, por exemplo, como cresceu a grandeza de Atenas durante os cem anos
que se sucederam à ditadura de Pisistrato, Contudo, mais admirável ainda é à
grandeza alcançada pela república romana depois que foi libertada dos seus reis.
198 Maquiavel
Compreende-se a razão disto: não é o interesse particular que faz a grandeza dos Es-
tados, mas o interesse coletivo. E é evidente que o interesse comum só é respeitado
nas repúblicas: tudo o que pode trazer vantagem geral é nelas conseguido sem obs-
táculos. Se uma certa medida prejudica um ou outro indivíduo, são tantos os que
ela favorece, que se chega sempre a fazê-la prevalecer, a despeito das resistências,
devido ao pequeno número de pessoas prejudicadas.
O contrário acontece numa monarquia; com frequência, o que o monarca faz
em seu próprio interesse prejudica o Estado — e o que beneficia o Estado é nocivo
aos interesses particulares do monarca. Assim, quando a tirania se levanta no meio
de um povo livre, o inconveniente menor que traz é a sustação do progresso, dei-
xando o país de crescer em poder e em riqueza; porque o normal é que, nesse caso,
o Estado regrida. Se surge por acaso um tirano dotado de alguma virtude, que com
valor e capacidade militar aumenta o seu domínio, isto não traz à república qual-
quer vantagem: o tirano é o único beneficiado. Estará impedido de homenagear
seus súditos mais sábios e corajosos, para não tê-los como inimigos; e não transfor-
mará os Estados conquistados em tributários, pois não lhe interessa fazer sua cidade
mais poderosa. Para ele, o único que conta é que todas as cidades e províncias o re-
conheçam como mestre. Quer semear a desunião, extraindo das suas conquistas
proveito para si próprio, não para a pátria.
Os que quiserem fortalecer esta opinião com muitas outras provas devem ler o
tratado de Xenofonte sobre a tirania.
Não é de espantar, portanto, que os povos da antiguidade tenham perseguido
os tiranos; e que tenham dado tanta importância à liberdade.
Quando Jerônimo, o neto de Hieron, morreu em Siracusa, mal a notícia da sua
morte se espalhou pelas tropas aquarteladas nos arredores, O exército começou a se
levantar para perseguir os criminosos. Mas, ao ouvir toda Siracusa gritar pela liber-
dade, os soldados, tocados por essa palavra, se detiveram, deixando de lado os tira-
nicidas e pondo-se a trabalhar para que se instalasse na cidade um governo livre.
Tampouco devemos nos espantar de que os povos cometam vinganças inusita-
das contra os que violentam sua liberdade. Os exemplos não faltariam, mas quero
referir um só, ocorrido em Corcira, cidade da Grécia, durante a guerra do Pelopo-
neso. Estava a Grécia dividida em duas facções: uma favorecia os atenienses, a ou-
tra os espartanos. Como resultado, muitas cidades tinham entrado em aliança com
Atenas, outras com Esparta. Aconteceu que os nobres de Corcira dominaram a ci-
dade, tirando ao povo sua liberdade. Mas os plebeus, socorridos pelos atenienses,
tomaram o poder, aprisionando todos os nobres num lugar bastante amplo, de on-
de os retiravam em grupos de oito ou dez, sob q pretexto de enviá-los para o exílio,
mas na verdade para matá-los com os suplícios mais cruéis. Os prisioneiros rema-
nescenies, percebendo a sorte que lhes estava reservada, decidiram tentar a fuga,
Comentários Sobre a Primeira Dêcada de Tito Lívio 199
para escapar âquela morte sem glória. Armando-se com tudo o que pudessem en-
contrar, atacaram os guardas quando estes quiseram penetrar no recinto,
defendendo-se à entrada da prisão. O povo, acorrendo, demoliu o edifício, esma-
gando os prisioneiros sob as ruínas.
A Grécia foi palco de vários outros episódios semelhantes, e não menos horri-
veis, os quais demonstram que se vinga com maior furor a liberdade violada do que
a que se tentou violar.
Quando se considera por que os povos da antiguidade amavam a liberdade
mais do que os da nossa época, pareçe-me que a razão é a mesma que explica por
que hoje os homens são menos robustos — o que se relaciona, a meu juízo, com a
diferença entre a nossa educação e a dos antigos, e a diferença, igualmente grande,
entre a nossa religião e a dos antigos.
Com efeito, nossa religião, mostrando a verdade e o caminho único para a sal-
vação, diminuiu o valor das honras deste mundo. Os pagãos, pelo contrário, que
perseguiam a glória (considerada o bem supremo), empenhavam-se com dedicação
em tudo que lhes permitisse alcançá-la. Vê-se indícios disto em muitas das antigas
instituições, a começar pelos sacrifícios, esplendorosos em comparação com os nos-
sos, bastante modestos, e cujo rito, mais piedoso do que brilhante, nada oferece de
cruel capaz de excitar a coragem.
A pompa das cerimônias antigas era igual à sua magnificência. Havia sacrifi-
cios bárbaros e sangrentos, nos quais muitos animais eram degolados; e a visão rei-
terada de um espetáculo tão cruel endurecia os homens. As religiões antigas, por
outro lado, só atribuíam honras divinas aos mortais tocados pela glória mundana,
como os capitães famosos, ou chefes de Estado. Nossa religião, ao contrário, só sam-
tifica os humildes, os homens inclinados à contemplação, e não à vida ativa. Para
ela, o bem supremo é a humildade, o desprezo pelas coisas do mundo. Já os pagãos
davam a máxima importância à grandeza d'alma, ao vigor do corpo, a tudo, en-
fim, que contribuísse para tornar os homens robustos e corajosos. Se a nossa religião
nos recomenda hoje que sejamos fortes, é para resistir aos males, e não para incitar-
nos a grandes empreendimentos.
Parece que esta moral nova tornou os homens mais fracos, entregando o mun-
do à audácia dos celerados. Estes sabem que podem exercer sem medo a tirania,
vendo os homens prontos a sofrer sem vingança todos os ultrajes, na esperança de
conquistar o paraíso.
Contudo, se os homens perderam a fibra, e se os céus não impõem mais a guer-
ra, estas transformações se originam na covardia dos que interpretam a religião de
acordo com a sua fraqueza, e não segundo a virtude verdadeira; se se levasse em