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Expectativa do engenheiro agrônomo que atenda as demandas sociais do século XXI, Notas de estudo de Engenharia Agronômica

RESUMO O objetivo central deste estudo é questionar a formação do Engenheiro Agrônomo, do ponto de vista histórico e de perspectivas, buscando elementos que possibilitem repensar de forma pedagógica e política essa formação, na tentativa de propiciar maior aproximação, sintonia e profissionalidade desse cientista com as demandas atuais e emergentes do setor agrário brasileiro. O setor agrário foi identificado historicamente, de maneira simplista, como o local de produção agrícola. Submeti

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 16/12/2009

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Baixe Expectativa do engenheiro agrônomo que atenda as demandas sociais do século XXI e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Agronômica, somente na Docsity! VALDO JOSÉ CAVALLET A FORMAÇÃO DO ENGENHEIRO AGRÔNOMO EM QUESTÃO: A expectativa de um profissional que atenda as demandas sociais do século XXI SÃO PAULO 1999 VALDO JOSÉ CAVALLET A FORMAÇÃO DO ENGENHEIRO AGRÔNOMO EM QUESTÃO: A expectativa de um profissional que atenda as demandas sociais do século XXI Tese apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FEUSP. Orientador: Prof. Dr. Marcos Tarciso Masetto SÃO PAULO 1999 iv DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos homens, mulheres e crianças, reprimidos e subjugados historicamente no meio agrário; e, em especial ao meu pai, Ermindo Cavallet (falecido em 8 de junho de 1998), um homem de origem rural que só teve a oportunidade de cursar um ano de escola, mas mesmo assim foi o suficiente para fazê-lo acreditar no potencial da Educação e lutar para dar condições aos seus dez filhos concluírem a formação universitária. v AGRADECIMENTOS Agradeço: • Ao meu orientador, Marcos Tarciso Masetto, que com atos de amor, incentivo e coragem tem me despertado para o gosto de ensinar e apreender. A sua família, Dayse, Ana Helena e Victor, pela calorosa acolhida nos momentos com os quais convivi. • Aos meus professores de disciplinas, Elizabete Monteiro de Aguiar Pereira (FE/UNICAMP), Evaldo Amaro Vieira (FEUSP), José Camilo dos Santos Filho (FE/UNICAMP), Manoel Oriosvaldo de Moura (FEUSP), Marli Eliza André (FEUSP), Selma Garrido Pimenta (FEUSP), pelos conhecimentos e pelo carinho e paciência, de educadores, demonstrada para com o aluno, Engenheiro Agrônomo. • Aos meus colegas estudantes, Alexandre, Andréa, Javert, Léa, Marta, Marineide e Míriam, pela convivência e amizade, construída ao longo do curso. • Aos parceiros de trabalho, no Grupo de Estudos de Formação de Professores, Selma, Andréa, Aida, Branca, Celso, Fátima, Fusari, Izabel, Klein, Mariazinha, Regina e Terezinha, pelo aprendizado e saberes, prazerosamente construídos de forma solidária. • Aos funcionários da secretaria de pós-graduação da FEUSP pelo esmero sempre demonstrado no atendimento. • A família, que me adotou e que eu adotei, da cidade de São Paulo, Baltazar, Dora e Paulinha, pela hospitalidade e afeição que demostraram. • Aos professores que assumiram minhas atividades na UFPR, reconhecendo que o incentivo e a prestatividade, por parte dos mesmos, possibilitaram o meu doutorado. • Aos italianos, Tonino, Massimo, Roberta, Giuliano, Francesco e Vittorio, pela receptividade e amizade demonstrada durante o meu estudo realizado naquele país, no ano de 1997. • A minha família, Susan, companheira de tantas lutas e as minhas filhas, Izabel Carolina, Ana Paula e Luiza Helena. Cada uma destas quatro mulheres, que integram a minha vida, contribuiu de forma peculiar, propiciando muita energia e amor para a caminhada no doutorado. vi SUMÁRIO LISTA DE SIGLAS................................................................................... viii LISTA DE TABELAS............................................................................... x RESUMO.................................................................................................... xi ABSTRACT................................................................................................ xii INTRODUÇÃO.......................................................................................... 1 1.O HOMEM, O MEIO AGRÁRIO E A AGRICULTURA................... 9 1.1 A AGRICULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS.................................... 9 1.1.1 Os primórdios da agricultura................................................................ 9 1.1.2 Primeiros avanços na sociedade agrícola.............................................. 10 1.1.3 A agricultura na Idade Média............................................................... 12 1.1.4 A agricultura na Idade Moderna - Século XV a XVIII......................... 13 1.1.5 As transformações da agricultura no capitalismo.................................. 15 1.2 A AGRICULTURA BRASILEIRA........................................................ 18 1.2.1 A agricultura colonial.......................................................................... 18 1.2.2 A agricultura no período Imperial........................................................ 20 1.2.3 A agricultura na República................................................................... 23 1.3 O MEIO AGRÁRIO E A AGRICULTURA NA ATUALIDADE........... 26 1.3.1 A questão sócio-econômica................................................................. 26 1.3.2 A questão ambiental............................................................................ 31 1.3.3 A questão cultural e educacional.......................................................... 34 1.3.4 O êxodo rural e a questão urbana......................................................... 42 1.4 PONDERAÇÕES SOBRE OS DESAFIOS ATUAIS E EMERGENTES DA REALIDADE AGRÁRIA........................................... 44 2.A AGRONOMIA E O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ENGENHEIRO AGRÔNOMO................................................................. 47 2.1 A AGRONOMIA................................................................................... 47 2.1.1 A Agronomia através dos tempos......................................................... 47 2.1.2 A Agronomia na atualidade.................................................................. 52 2.2 O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ENGENHEIRO AGRÔNOMO.. 56 2.2.1 A legislação profissional...................................................................... 56 2.2.2 Organização e posicionamento dos Engenheiros 59 ix FEUSP........ Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo FISENGE.... Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros IBGE.......... Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IES.............. Instituição de Ensino Superior INCRA....... Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPSO........... Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos JEA............. Jornal do Engenheiro Agrônomo LDB............ Lei de Diretrizes e Bases da Educação MA............. Ministério da Agricultura MEC........... Ministério da Educação e Cultura MST........... Movimento dos Sem Terra ONG........... Organização Não-Governamental PUC........... Pontifícia Universidade Católica PNAD......... Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PRONERA.. Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária SBCS.......... Sociedade Brasileira de Ciência do Solo SENAR....... Serviço Nacional de Aprendizagem Rural SENASCA.. Seminário Nacional sobre Currículo de Agronomia. SESU......... Secretaria de Ensino Superior UFCE.......... Universidade Federal do Ceará UFPA.......... Universidade Federal do Pará UFPEL........ Universidade Federal de Pelotas UFPR.......... Universidade Federal do Paraná UFSC.......... Universidade Federal de Santa Catarina UFV............ Universidade Federal de Viçosa UNESCO.... Organização das Nações Unidas para a Educação UNESP....... Universidade Estadual Paulista USAID........ United States Aid International Development USDA......... Departamento de Agricultura dos Estados Unidos UNICAMP.. Universidade Estadual de Campinas USP............ Universidade de São Paulo x LISTA DE TABELAS Tabela 1 Propriedade da terra e ocupação social no setor agrário brasileiro.. 28 Tabela 2 Características da distribuição da renda......................................... 29 Tabela 3 Distribuição percentual das pessoas ocupadas na agricultura, conforme categorias ocupacionais.................................................. 30 Tabela 4 Situação dos agrotóxicos no Brasil................................................. 33 Tabela 5 Distribuição percentual das pessoas ocupadas na agricultura, conforme níveis de escolaridade, no Brasil e regiões...................... 37 Tabela 6 Razão entre a renda média de cada categoria educacional e a renda média dos sem instrução, na agricultura brasileira................ 38 Tabela 7 Rendimentos médios relativos associados à posição na ocupação.. 39 Tabela 8 Rendimentos médios relativos associados à educação: distribuição das pessoas ocupadas na agricultura.............................................. 40 xi INTRODUÇÃO A Agronomia é uma ciência de fundamentação multidisciplinar, organizada há aproximadamente dois séculos, com o objetivo de produzir conhecimentos direcionados a melhorar o desempenho da agricultura. A agricultura é uma atividade econômica que começou há aproximadamente dez mil anos, quando o homem passou a plantar, cultivar e aperfeiçoar ervas, raízes e árvores comestíveis e domesticou, colocando sob sua dependência, algumas espécies de animais. Com a agricultura, o homem passou de coletor a produtor de alimentos e conquistou o controle sobre o abastecimento de sua alimentação. Este controle possibilitou um crescimento populacional e a geração de tempo livre nos agrupamentos humanos da época. O tempo livre foi aproveitado diferenciadamente entre os indivíduos dos agrupamentos humanos, determinando o surgimento de outras atividades e outras formas sociais de organizações. Progressivamente, ocorreu ao longo da história, um processo de urbanização e estruturação de atividades relacionadas a meios com maior concentração demográfica. Quem permaneceu no meio agrário, obrigado pela força ou por não ter outra opção, limitou-se a continuar a penosa labuta de produzir os recursos necessários para abastecer a população urbana. A partir da Revolução Industrial, aumentou a oferta de trabalho nas cidades e o processo de urbanização intensificou-se ainda mais, tanto pelo crescimento populacional, como o êxodo agrário. O êxodo agrário é a expressão de busca, por parte da população que habita naquele meio, a melhores condições de vida. Contrapõe-se ao caráter estóico que os setores dominantes da sociedade e aqueles que desconhecem as agruras da realidade agrária atribuem às pessoas do campo. Diante das premonições de falta de alimentos e com a filosofia capitalista buscando impulsionar atividades econômicas promissoras de lucros, a Agronomia foi organizada com o objetivo de propiciar soluções para o processo de produção agrícola, com base em um saber científico. Em menos de dois séculos, a Agronomia contribuiu para uma profunda alteração das formas de produção agrícola. A agricultura, até então baseada em práticas milenares, passou a integrar um crescente sistema de relações e 2 negócios, fornecendo e consumindo mercadorias, de acordo com os interesses dos detentores de poder, no setor chamado agronegócios. Paralelamente às transformações do processo de produção agrícola, a Agronomia foi estruturando seus elementos constitutivos que, mesmo tênues, lhe possibilitaram o status de profissão, com a presença de cursos de graduação espalhados em todo o país, em praticamente todo o sistema universitário brasileiro. 3 DEFINIÇÃO DO PROBLEMA O meio agrário brasileiro da atualidade apresenta-se como um setor heterogêneo, altamente complexo, permeado de situações ambíguas, contraditórias e conflituosas, em processo contínuo de busca de um novo paradigma. O Engenheiro Agrônomo continua a ser formado com base numa abordagem pedagógica tradicionalista, em que os conhecimentos técnicos e científicos são repassados por especialistas, através de uma coletânea de disciplinas que são reorganizadas periodicamente nas grades curriculares. Através de constatações, provenientes de participação intensa em diferentes momentos, como dirigente da categoria, como professor, como profissional da área, como persistente militante na busca de maior compromisso social dos privilegiados egressos do ensino superior em nosso país e como idealista de um modo de vida digno para os que livremente optam ou vierem a optar por viver no meio agrário, deduzo que vem crescendo de uma forma generalizada a contestação à Agronomia como profissão. Diante disto, a hipótese trabalhada neste estudo é: O modelo de ensino de Agronomia praticado no Brasil não possibilita mais a profissionalidade1 necessária para responder aos desafios e demandas atuais e emergentes do setor agrário. Para responder à hipótese levantada são trabalhados três focos: • Quais seriam os desafios atuais e emergentes que permeiam a realidade agrária brasileira; • Quais seriam as contribuições da Agronomia e do Engenheiro Agrônomo frente a esta realidade; • Quais seriam os componentes básicos e essenciais para a construção de um modelo pedagógico de formação do Engenheiro Agrônomo capaz de propiciar-lhe um grau de profissionalidade reconhecido socialmente. 1 Profissionalidade é um neologismo, utilizado neste estudo, como indicativo da capacidade do profissional em implementar alternativas eficazes diante da crise e dos problemas da atualidade. 6 RAZÕES PESSOAIS: A HISTÓRIA DE VIDA, FRUTO DE UM IDEAL Além dos motivos racionais da ciência, profissão e educação, considerados para a realização deste estudo, aos quais atribuo significativa importância, extrapolo a rigidez normativa da metodologia científica e registro motivos emocionais, redigindo em primeira pessoa alguns trechos do trabalho e incorporando a seguir aquilo que considero a força determinativa do meu trabalho. A região do vale do Rio do Peixe, situada no meio-oeste do estado de Santa Catarina, foi colonizada a partir do início desse século. Os colonizadores eram predominantemente filhos de europeus oriundos do Rio Grande do Sul, estado que havia acolhido grandes levas de imigrantes na segunda metade do século passado. (SANTOS, 1984) Foi nesta região de Santa Catarina que nasci e fui criado. Neto de italianos imigrantes e migrantes convivi desde cedo com o modo de vida da agricultura familiar. Foi quando cursava o ginásio escolar, no município de Água Doce, na década de sessenta, que conheci o primeiro profissional de ciências agrárias. Nas palestras e visitas a propriedades que a escola promoveu com aquele agrônomo, pioneiro da profissão na região, comecei a perceber a existência de outros conhecimentos que poderiam ser aplicados às atividades agrícolas. Limitado a uma visão de mundo no qual as lutas do homem do campo pela sobrevivência e melhoria da qualidade de vida dependiam do seu conhecimento empírico e da vontade divina, as novas descobertas foram um achado. Incorporava-se ali, ao espírito de luta e solidariedade herdado da família e desenvolvido pelo modo de vida do campo, um desejo de chegar a universidade e adquirir aqueles conhecimentos, que poderiam contribuir para melhorar aquele tipo de vida. Do modo de vida nasceu um objetivo de luta. Nesta luta fui fazendo aprendizados. No aprender, percebi caminhos. Caminhando em busca dos objetivos e embalado em sonhos, cheguei a novos municípios, a um novo estado e ao saber científico - entrei na Universidade Federal do Paraná em janeiro de 1975. Na busca da formação que me capacitaria para reincorporar-me a luta do campo, procurei aprender tudo o que era possível. Literalmente achando que 7 fazia o melhor, fiz tudo o que os professores solicitavam. Passei no vestibular em primeiro lugar e concluí o curso de Agronomia no menor tempo possível e como o melhor aluno da turma. Ainda na universidade, participei ativamente na busca daquilo que eu entendia por melhores condições de ensino. Fui vice-presidente do diretório acadêmico setorial e, posteriormente, membro do Conselho Universitário, eleito pelos estudantes da UFPR. Já como profissional, além do trabalho do dia-a-dia, atuei intensivamente junto as entidades organizadas da profissão. Cheguei a presidente regional (1982-84), estadual (1984-86) e nacional (1986-88) da FAEAB - Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil. Como dirigente nacional da categoria dos agrônomos, na época, participei ativamente do processo de alteração curricular, junto ao C.F.E.. Conheci pessoalmente as sessenta escolas de Agronomia então existentes no país. O processo de acompanhamento, discussão e representação junto aos segmentos ligados à formação e ao exercício profissional, permitiram conhecer mais a fundo a realidade da profissão. No ensino universitário, dirigi o curso de Agronomia (1991-93) e atuei desde 1993 até abril de 1998 na Comissão de Avaliação da UFPR. Em todo meu trajeto, permaneci fiel e ativo aos ideais traçados na infância, ou seja, capacitar-me também pelo conhecimento científico para contribuir para a melhoria do modo de vida do campo. Dentro das diversas áreas que atuei, sempre dediquei tempo especial para a questão da formação profissional. A experiência no exercício da profissão, somada à atuação como dirigente da categoria em todos os níveis, formou e consolidou em mim uma visão crítica da atuação do profissional de Agronomia junto a agricultura brasileira. Por outro lado, a participação mais direcionada no ensino, despertou uma paixão a mais: a educação. A visão da educação como instrumento de capacitação humana, de justiça social, de construção da liberdade e possibilitadora da formação de um profissional mais compromissado socialmente contribuíram decisivamente para uma nova etapa : o estudo formal da educação, com um olhar direcionado a vida do campo. Da luta em busca do objetivo de vida, reconstrui conceitos. Na reconstrução de conceitos, refiz caminhos. No refazer caminhos, cheguei ao doutorado em Educação na Universidade de São Paulo, no início de 1994. Durante cinco anos, além de fazer (no sentido literalmente ativo do verbo) o curso de doutorado, procurei viver em família, em amizade e em 8 solidariedade com diversas situações e lutas, inclusive as da minha universidade. No ano de 1997, morando na Itália, estudei intensivamente o desenvolvimento agrário naquele país e visitei outras experiências européias nessa área. Como observador participante, neste período de doutoramento, proferi mais de uma centena de palestras, conferências e cursos referentes a educação e profissionalidade e participei debatendo em outro tanto de eventos. No ano de 1998, de volta ao Brasil, assessorei o Sistema CONFEA/CREAs na elaboração de proposta alternativa as Diretrizes Curriculares para o Ensino Superior, encaminhadas pelo MEC. O registro da maioria destas atividades consta nos relatórios do curso de doutorado e nos relatórios de produção docente. Após concluído os créditos e superada mais uma etapa com esta redação, tendo participado ativamente da vida acadêmica da USP, com a satisfação de estar cativado por aquilo que está fazendo e longe de querer achar que foi tudo até aqui muito fácil, creio ter me aproximando daquilo que SEVERINO (1993) chama de “amadurecimento para a realização das várias etapas de uma de pesquisa” e acrescento: “para uma vida de professor reflexivo”. As condições de vida do campo, o modo de vida deste segmento social, suas demandas de conhecimento na busca da melhoria de qualidade de vida e o papel significativo que o profissional de Agronomia pode vir a desempenhar nas determinantes daquele meio, impulsionam-me para continuar a caminhada. A minha vontade de contribuição acadêmica, meus vínculos, minha solidariedade e responsabilidade com o homem do campo, a minha história de vida na área e minha realização na educação retratam a importância do tema para mim. 11 direta, começou a aparecer de forma explícita a dominação de determinados grupos sobre outros. Os novos conhecimentos, incorporados ao processo produtivo, proporcionaram a liberação de parcelas crescentes e significativas da população da tarefa básica de produzir diretamente a sua própria alimentação, permitindo fazer as mesmas tarefas em menos tempo, gerando tempo livre no processo básico de produzir alimentos para a civilização. Esse tempo livre gerado não foi distribuído de forma igualitária para os membros da sociedade. Enquanto o grupo encarregado da produção de alimentos continuava a trabalhar em tempo total na atividade, o processo produtivo exigia toda a força disponível, o tempo todo, em trabalhos braçais, pesados e cansativos apesar da incorporação da força animal, os outros grupos utilizavam o tempo livre gerado pela nova condição da agricultura, para desenvolver outras atividades, principalmente nos nascentes centros urbanos. As formas de vida e de produção na agricultura repetiam-se através dos anos e de geração em geração. Os mais novos aprendiam o ofício trabalhando desde pequenos junto aos mais velhos, aproveitando a experiência acumulada por estes ao longo de sua existência. Enquanto nas cidades o avanço da civilização possibilitava ganhos de qualidade de vida, a forma de vida do produtor de alimentos, o camponês3, permanecia o mesmo. A vida se resumia a aprender o ofício, fazer produzir a terra e ensinar o ofício aos descendentes. Na idade antiga, após o surgimento do processo de urbanização, a população de camponeses que habitava e trabalhava no campo era constituída por segmentos menos privilegiados ou capacitados de cada uma das civilizações que se desenvolveram naquela época, e fundamentalmente, pela escravização dos povos conquistados nas guerras, que , muitas vezes, eram travadas com essa finalidade. (BRONOWSKI, 1992); (CHILDE, 1981) O processo de escravização com a finalidade agrícola acentuou-se muito no final da Idade Antiga. Durante o ciclo de dominação dos gregos e dos romanos, na medida que crescia a população e, consequentemente, a necessidade de alimentos, incorporavam-se maiores contingentes de força de trabalho ao sistema de produção agrícola (expandia de acordo com as necessidades) nas mesmas condições acima expostas.. 3 O termo é usado nesta tese representando o homem que habita e trabalha no campo tendo na atividade agrícola seu meio de vida. Compreende tanto o camponês produtor que com a família trabalha a terra , como o camponês assalariado que vende a sua força de trabalho. 12 1.1.3 A agricultura na Idade Média Na fase final da antigüidade praticamente toda a produção agrícola estava baseada na força de trabalho escrava e, na Idade Média, com o final do Império Romano do Ocidente e o advento do feudalismo, pouca coisa mudou no tipo de vida do camponês e na forma de produção agrícola Se antes era um império que escravizava os povos conquistados e os direcionava como força de trabalho à produção agrícola de acordo com as necessidades, no feudalismo, o escravo- camponês passou a ser o servo do senhor feudal. Os senhores feudais constituíam uma classe social referendada pela nobreza e pelo clero. A maior riqueza da época era a posse da terra , privilégio este conferido aos referidos senhores feudais. Os camponeses, ou servos como eram chamados, cultivavam a terra para os senhores feudais, em troca do direito de residirem sobre a mesma e de terem uma pequena parcela da produção para a própria alimentação. O fim do império romano e os constantes saques às cidades contribuíram para o processo de ruralização, no qual o sistema de produção agrícola passou a ter características locais, visando o abastecimento do feudo. (AQUINO; AIETA; MOURA, 1986) A força de trabalho agrícola evoluiu do sistema de escravidão anterior para o sistema de servidão. Embora o camponês no feudalismo não fosse mais propriedade de ninguém, ficava vinculado a terra que trabalhava por toda a vida, sem direito a abandoná-la. Levava uma vida miserável, trabalhando em tempo integral, onde qualquer insubordinação era punida, até com a morte. Ao longo dos séculos XI, XII e XIII, as cruzadas contribuíram para rearticular e expandir o comércio além do âmbito restrito dos feudos, para regiões mais distantes. Houve um novo crescimento das cidades, que tornaram-se pólos e consequentemente, novos centros de poder, incrementando o comércio entre o ocidente e o oriente, tendo como eixo o mar Mediterrâneo. Nos séculos XIV e XV, intensificou-se o comércio a longas distâncias e consolidou-se a influência das cidades-polo como centros de poder. Também foi um período de crises intensas, em que os efeitos maiores eram sentidos nas classes pobres. Houve revoltas de camponeses por toda a Europa. Milhares deles foram massacrados na luta da nobreza e do clero contra a emancipação dos que trabalhavam na terra. Os campos foram sendo despovoados e a produção agrícola reduzida em decorrência das guerras, da urbanização, das insurreições dos camponeses e da peste negra. Como conseqüência, o trabalho 13 agrícola foi extremamente valorizado e foram conquistados progressivos níveis de liberdade em relação ao senhor feudal. O sistema de trabalho servil do feudalismo foi substituído pelo arrendamento com pagamento de taxas em moeda. Os camponeses passaram a ter liberdade de se movimentar , arrendar, comprar ou legar terras. O fato de a terra ter se transformado em mercadoria, como outra coisa qualquer, caracterizou o fim do período feudal. (HUBERMAN, 1984) Uma das grandes conseqüências do processo de passagem do trabalho servil para o trabalho livre, na agricultura, foi que o camponês passou a se interessar concretamente sobre o processo produtivo. No sistema servil ele produzia para viver. Não possuía qualquer incentivo para ir além disso, pois o adicional era usufruído pelo senhor feudal. No novo sistema, os acréscimos produtivos resultavam em rendimentos concretos para os camponeses. Quanto mais e melhor produzissem, maior seria o retorno econômico. Abria-se assim , após séculos de agricultura baseada na mão-de-obra escrava e servil, a possibilidade de uma agricultura a ser desenvolvida através de seus principais protagonistas : os que faziam diretamente a terra produzir. Os conhecimentos empregados até então estavam submetidos aos dogmas e à tradição e esbarravam na falta de estímulo dos trabalhadores na agricultura. 1.1.4 A agricultura na Idade Moderna - Século XV a XVIII Este período histórico é conhecido como a transição entre o feudalismo e o capitalismo. Na expansão comercial e marítima constituía-se a base da política mercantilista. Os países europeus intensificaram a formação de esquadras marítimas expandindo o comércio e constituindo grandes impérios coloniais com a exploração de novas terras e de suas riquezas. O eixo econômico do Mediterrâneo foi deslocado para o Atlântico. O capital comercial, extremamente valorizado, determinou uma revolução nos preços, que beneficiou a burguesia, mas criou dificuldades para os outros setores da economia. A possibilidade de firmação econômica dos segmentos sociais menos favorecidos que viviam e trabalhavam no campo era assim abortada. A agricultura realizada dentro de cada reino era muito pouco valorizada, pois segundo a ideologia mercantilista conduzida pelas monarquias absolutistas da época , o que trazia riqueza e prosperidade para o reino era o comércio marítimo. 16 O êxodo rural era expressivo na busca de uma oportunidade de trabalho na indústria urbana. Segundo HUBERMAN (1984), a população rural na Inglaterra de 1770 a 1841 havia retrocedido de quarenta por cento (40%) a vinte e seis por cento (26%). A população crescia de forma assustadora nos grandes centros industriais. Dentro desse contexto histórico, em 1798 surge uma tese que influenciou muitos acontecimentos da época e que influencia algumas correntes de pensamento até os dias atuais. Escrita por Thomas Robert Malthus, no livro “Ensaio sobre o Princípio de População”, embasa uma visão pessimista sobre o futuro da humanidade que é denominada como visão Malthusiana (POURSIN; DUPUY, 1975). Da obra, o que mais foi referenciado como expressão de seu pensamento, foi a equação teórica que simboliza a afirmação de que a população cresce em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos cresce em progressão aritmética. Segundo essa teoria o crescimento constante destas duas variáveis em ritmos diferenciados, como afirmado, levaria a humanidade a grandes períodos de crise e fome, ocasionando epidemias, pestes e pragas, com grandes mortandades, que reequilibrariam a população em função da disponibilidade de alimentos. Pela importância da obra e do autor, ela foi e continua sendo utilizada com diferentes objetivos, de acordo com cada segmento ideológico que dela se utiliza. Malthus, um vigário inglês reconhecido historicamente como economista, procurou ser coerente com a elite dirigente de onde era originário: atribuiu as razões do crescente aumento da miserabilidade a causas naturais e não a fatores sócio-econômicos de concentração da riqueza. Sua teoria contribuiu, assim, como um forte argumento para fazer frente aos ideais que a Revolução Francesa inspirava na Europa. (HUBERMAN, 1984) Para Malthus, “fazer desaparecer a desigualdade, a propriedade, a hierarquia é lutar contra um problema falso e socializar a miséria, cuja única verdadeira causa é a superpopulação”. Durante a maior parte do tempo nos dois últimos séculos, foi evocado constantemente para fazer frente a diferentes doutrinas sociais e soluções jurídicas e institucionais diante da miséria. O que Malthus conseguiu deixar como argumento histórico social através de sua obra foi que “os pobres são os únicos culpados de sua pobreza”. (POURSIN; DUPUY, 1975) Nesta fase inicial do capitalismo, os sistemas produtivos trabalhavam os meios de produção de acordo com as melhores oportunidades de obter maiores lucros. Os proprietários de terra direcionavam o sistema produtivo agrícola para o algodão e a lã, de grande valor e demanda para a indústria têxtil. Grandes contingentes populacionais, que haviam habitado historicamente o campo e de 17 onde obtinham ao menos o necessário para a própria alimentação, eram expulsos e forçados a buscar nas cidades um trabalho industrial que lhes permitisse não morrer de fome. A parcela de camponeses que, embora desprovidos da propriedade da terra, continuava trabalhando no sistema produtivo agrícola, começava um novo ciclo histórico na agricultura: a partir do capitalismo iniciavam-se as relações de trabalho assalariadas. Os valores pagos para essa força de trabalho, na forma de moeda ou, dissimulados com o pagamento através de parte da produção, não permitiam esperar melhor sorte aos camponeses daquilo que já havia sucedido aos seus antecessores, irmãos de profissão: trabalhar todo o tempo, o tempo todo para conseguir manter a si e a sua família com as condições que os permitissem permanecer vivos e em pé para produzir mais. A nova variável incorporada ao sistema de produção agrícola capitalista foi o conhecimento elaborado com vistas a obter maiores lucros. Até o início do capitalismo, as diferentes civilizações, para obterem os alimentos necessários, de acordo com o crescimento das necessidades, valiam-se basicamente do aumento da força de trabalho e incorporação de novas áreas de produção. Havia uma relação direta entre produção e necessidade . A partir do capitalismo, a relação direta passou a ser produção e lucro. O lucro tanto poderia ser obtido pelo baixo custo da mão-de-obra, como pela incorporação crescente de conhecimentos tecnológicos, visando ganhos de produtividade. A agricultura , por dez milênios, do seu início até o fim do feudalismo, foi uma atividade elementar básica com a função de produzir alimentos necessários à manutenção da vida humana. Ao ser executada pela força de trabalho de uma parcela da população, possibilitou a outra parcela, crescentes e sistemáticos ganhos culturais, econômicos e sociais. A produção agrícola, do capitalismo em diante, além de sua função elementar e básica, possibilitou também aos detentores dos meios de produção, a obtenção de lucros nas mesmas condições que qualquer outra atividade econômica. Acima de ser um alimento, constitui-se numa mercadoria e como tal dela se espera obter lucro. Não é produzida em função de uma certa procura decorrente de necessidade, mas sim baseado nas oportunidades de gerar lucros. 18 1.2 A AGRICULTURA BRASILEIRA Desde o início da colonização, a terra, as técnicas e a mão-de- obra agrícola foram concentradas para gerar riquezas no mercado internacional e não para elevar o nível alimentar da população. Já havia uma visão do propósito produtivo desvinculado das necessidades sociais. A economia agrícola brasileira pouco mudou em termos de propósito e racionalidade, orientando-se basicamente para a exportação. Mudou a forma como os agentes passaram a trabalhar. Os modernizadores arcaicos continuam, entretanto, defendendo como moderna uma lógica agrícola de quinhentos anos. (BUARQUE, 1991) 1.2.1 A agricultura colonial O Brasil foi colônia de Portugal no período que estendeu-se de 1500 a 1822. A chegada dos portugueses ao Brasil foi decorrência direta da expansão marítima dos países da Europa no final do século XV. Inicialmente os portugueses priorizavam o comércio com o Oriente, que havia chegado ao seu apogeu nos séculos XV e XVI. A colonização do Brasil esbarrava na falta de interesse da elite econômica do país pelos novos domínios na América, na baixa densidade populacional da metrópole para fazer uma colônia de povoamento - Portugal contava na época com menos de dois milhões de habitantes - e no pequeno interesse econômico para explorar os recursos naturais até ali conhecidos . No primeiro meio século, as atividades na costa brasileira se resumiam ao extrativismo de madeira, em particular o pau-brasil, utilizado para extrair uma matéria corante para tinturaria. (PRADO JR,1984) As constantes incursões na costa brasileira por parte dos franceses, holandeses e ingleses, ainda na primeira metade do século XVI, que colocavam em risco a posse portuguesa, obrigou a coroa a desenvolver alguma atividade a mais, além do extrativismo do pau-brasil. Esta nova atividade deveria propiciar a ocupação e a colonização efetiva do Brasil de uma forma não dispendiosa. O território brasileiro foi então dividido em quatorze capitanias, distribuídas a nobres portugueses, que implantaram a cultura da cana-de-açúcar. 21 O ciclo compreendido entre o final do período colonial e a primeira fase do Brasil Imperial Independente foi caracterizado por graves dificuldades econômicas. A economia do país estava então toda vinculada às monoculturas da cana-de-açúcar e do algodão. As condições internacionais que haviam propiciado um novo impulso a estas culturas no Brasil foram desaparecendo. Com o final da guerra da secessão nos Estados Unidos, a produção do algodão começou um novo ciclo de desenvolvimento naquele país dominando o mercado internacional. Situação idêntica aconteceu com a cana-de-açúcar na América Central, onde terminados os conflitos entre as nações européias com soberania sobre esta região, a produção foi retomada. Como estas áreas de produção estavam a menor distância dos mercados consumidores e também tiveram uma modernização do processo produtivo voltaram a dominar o comércio desses produtos. (PRADO JR, 1984) O quadro de crise da agricultura brasileira e, consequentemente, da economia do país agravou-se ainda mais quando a Inglaterra condicionou o reconhecimento da independência ao fim do tráfico de escravos. O que a Inglaterra buscou com esta medida foi, principalmente, a diminuição da concorrência do açúcar brasileiro com o produzido nas colônias britânicas. Além das dificuldades acima, a agricultura brasileira era conduzida através de técnicas agrícolas rudimentares e a produção foi reduzindo na razão direta da escassez da mão-de-obra escrava. (AQUINO, 1986) O problema do Brasil passou a ser o de encontrar um produto de exportação com valor comercial e que tivesse como principal fator de produção a disponibilidade de terra, único recurso amplamente disponível naquele momento histórico. A alternativa econômica do comércio interno, segundo PRADO JR (1984), não era considerada. As populações rurais, constituídas em sua grande maioria de escravos e sediadas em fazendas autônomas, alimentavam-se muito mal pois a prioridade do sistema produtivo era produzir para exportar. Por outro lado o abastecimento das populações dos centros urbanos, minoria em relação ao conjunto da população, também era bastante precário e a regra era a insuficiência o que determinava uma carestia crônica. A preocupação com o abastecimento interno de alimentos só apareceu historicamente com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, mas as condições para atendê-lo minimamente só surgiriam na segunda fase do período imperial. Na primeira fase, com a abertura dos portos, o abastecimento alimentar, ao menos da corte e dos que possuíam renda suficiente, continuou sendo obtido através de importações. Dentro do quadro de crise enfrentado, a alternativa agrícola que foi aos poucos aparecendo, com perspectivas econômicas razoáveis, foi o café. Este havia sido introduzido no Brasil no início do século XVIII mas era utilizado 22 basicamente pelos escravos como bebida. Aos poucos tornou-se um artigo de luxo nos mercados internacionais. Seu uso cotidiano difundiu-se amplamente no final do século XVIII e no início do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos, transformando-se, em meados do século XIX, no principal produto do comércio internacional. As características do produto e do sistema de produção necessário para o cultivo possibilitaram ao Brasil transformar-se no maior produtor mundial. O seu cultivo era adequado às condições da agricultura brasileira: monocultura de latifúndio baseada na mão-de-obra escrava. Decorrente da presença de capitais e de empresários, de mão-de-obra disponível com a decadência da mineração e das condições ecofisiológicas5, o desenvolvimento da cultura em larga escala predominou no sudeste do Brasil, ocasionando o deslocamento do poder econômico e político do nordeste para esta região. (SZMRECSÁNYI, 1990) O deslocamento do eixo produtivo do nordeste para o sudeste trouxe uma migração interna da mão-de-obra, agravando ainda mais este fator nas lavouras do nordeste. Segundo FURTADO (1959), com a independência, o domínio político passou para as mãos da aristocracia agrária, que era ideologicamente identificada com as políticas de escravidão. Este fato, se por um lado atenuava as dificuldades de mão-de-obra no campo, por outro lado, retardaria o fim da escravidão em quase meio século, levando a que o Brasil, juntamente com Cuba, estivessem entre os últimos países do mundo a decretarem a abolição. Conduzido por um poder político conservador escravista, valendo-se do argumento de que o fim da escravidão decretaria a falência econômica do país, a abolição só foi acontecer em 1888. Com o amplo domínio do mercado internacional do café, embora com os crescentes problemas de mão-de-obra no seu tradicional sistema de produção agrícola, o país supera a primeira fase crítica da consolidação da independência e inicia a segunda fase do império, por volta de 1850. Toda esta fase, caracterizada pela crescente dificuldade de mão-de-obra na agricultura, foi acompanhada de medidas políticas de retardamento da abolição e de iniciativas, no sentido de abrir o país para as grandes imigrações européias. (IANNI, 1963) Os incentivos às imigrações tiveram dois princípios básicos: • A busca de mão-de-obra para a lavoura de café na região sudeste, em substituição ao trabalho escravo; • povoamento de áreas estratégicas do país na região sul. 5 Condições ecológicas adequadas para a fisiologia da planta do café, tais como: pluviosidade bem distribuída, temperaturas amenas e solos férteis. 23 Nesta fase, o Brasil começou a diversificar o seu modelo tradicional de produção agrícola. Além da monocultura de latifúndio direcionada para a exportação, iniciou a agricultura familiar. Contribuíram para essa transformação: o aumento contínuo da população total a partir da vinda da corte portuguesa; o crescimento da urbanização decorrente do início de algumas atividades de industrialização e da organização político-administrativa do país; estruturação crescente de um comércio interno de alimentos; a promoção de colônias de povoamento; e a chegada de imigrantes com tradição e iniciativa na agricultura de subsistência. Para autores-historiadores como FURTADO (1959), HOLANDA (1976) e PRADO JR (1984), foi a partir da segunda metade do século XIX que o Brasil acumulou condições importantes para desenvolver, ao lado da tradicional agricultura de monocultura de latifúndio, uma agricultura mais social, baseada na propriedade familiar. As bases sociais da nova agricultura originaram-se dos imigrantes, de pequenas parcelas de escravos alforriados e de descendentes portugueses que sofreram graves crises (até falência) em ciclos econômicos anteriores. Quanto às transformações na agricultura tradicional, limitaram-se à substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra assalariada. No final do período Imperial, com esta diversificação sócio-econômica da agricultura, abria-se a possibilidade para que esta atividade se caracterizasse como modo de vida, forma esta que vai muito além da restrita condição de meio de vida até então existente. 1.2.3 A agricultura na República O afluxo contínuo do capital internacional, desde os primeiros anos da República, possibilitou a construção das estruturas de base para as condições que o país se encontra nos dias atuais. O modelo de país construído processou- se sem modificações substanciais do caráter fundamental da economia , isto é , a produção precípua de gêneros destinados ao comércio exterior. Se por um lado o sistema financeiro internacional possibilitou ao Brasil a caminhada em direção a uma situação e ritmo de vida modernos, por outro lado, a dívida e seus serviços se acumularam, aprisionando o país a uma economia predominantemente primária, fornecedora de gêneros tropicais ao comércio internacional e sujeita, como tanto, a todas as crises características desse tipo de modelo econômico. 26 influenciaram para essa situação foram: extensão das áreas agricultáveis, população, volume de produção e de uso de insumos tecnológicos. 1.3 O MEIO AGRÁRIO E A AGRICULTURA NA ATUALIDADE [...]as grandes companhias agropecuárias arruínam o solo de que depende nossa própria existência, perpetuam a injustiça social e a fome no mundo, e ameaçam seriamente o equilíbrio ecológico global. Uma atividade que era originalmente dedicada a alimentar e sustentar a vida converteu-se num importante risco para a saúde individual, social e ecológica. (CAPRA, 1998) 1.3.1 A Questão sócio-econômica Com o avanço do capitalismo, após a Revolução Industrial, a agricultura, que até então tinha como objetivos, alem de produzir o sustento da população diretamente envolvida, produzir excedentes capazes de liberar parcelas da população para outras atividades, passou a ser organizada com vistas a gerar lucro. O produto agrícola agregou um valor adicional : além de ser alimento, passou a ser uma mercadoria. Com o processo de industrialização, da urbanização e do aumento populacional, cresceram as demandas por produtos agrícolas nacionais e internacionalmente; o avanço tecnológico possibilitou a mecanização de boa parte do trabalho agrícola, a melhoria das espécies exploradas economicamente e a ampliação do uso dos recursos naturais, além de um maior controle das condições do processo produtivo. Essas condições possibilitaram a obtenção de lucros, também na atividade agrícola, em condições idênticas aos demais setores da economia. A indústria foi atraída por este novo mercado e passou a concentrar a sua atenção no processo produtivo do campo. Com a forte estruturação da agroindústria consolidou-se o complexo agro-industrial. (CARVALHO, 1992) O desempenho do complexo agro-industrial passou a ser, para o governo e a grande imprensa, o indicador privilegiado das condições da agricultura brasileira. Indicadores como o volume comercializado de máquinas, 27 equipamentos e insumos e a produção de grãos dissimulam as implicações e resultados do setor em outros campos, como por exemplo a questão da concentração da terra, da renda e da degradação ambiental. O avanço da industrialização e o aceleramento da modernização da agricultura vêm sendo comandados pelo grande capital, seja ele agrário ou urbano. Na busca da obtenção de saldos positivos na balança comercial, as políticas agrícolas das últimas décadas produziram efeitos distributivos perversos, agravando ainda mais as históricas desigualdades sociais do país. (MÜLLER, 1989) É muito amplo o número de trabalhos que retratam o processo de modernização da agricultura brasileira e as conseqüências desse processo na realidade atual. Trabalhos como os de MARTINS (1979), SZMRECSÁNYI; QUEDA (1979); FURTADO (1982); SILVA (1982); VELHO (1982); SILVA (1987); MARTINE; GARCIA (1987); MÜLLER (1989); VEIGA (1990); GERMER (1992); ABRAMOVAY (1992); STÉDILE (1994) e RAMOS; REYDON (1995) explicam com diferentes olhares e destaques o aumento das desigualdades e o crescimento dos conflitos sociais no setor agrário brasileiro. De acordo com o objetivo deste trabalho, mais centrado na historicidade do setor agrário e suas relações com a ciência e o ensino, destaca-se a seguir elementos da realidade agrícola que possibilitam a reflexão, contribuindo na elaboração de uma nova estratégia de desenvolvimento rural para o Brasil. FAO/INCRA (1994) sistematizam dados de ocupação social e propriedade da terra de forma que ficam evidentes as grandes diferenças no setor: A Tabela 1 mostra que 75% da terra está nas mãos da agricultura patronal, que a utiliza de acordo com a conjuntura econômica e política. As demais categorias, responsáveis pela geração de 80% da ocupação agrária e que têm na atividade agrícola praticamente sua única alternativa de vida, detém apenas 25% da área total. Desde as origens da colonização até o final da escravidão, a propriedade da terra, recurso básico para a agricultura no Brasil, foi domínio exclusivo da elite social. Posteriormente, mesmo com a abolição da escravidão e com as grandes correntes imigratórias, permaneceu altamente concentrada. Com o avanço do capitalismo no campo, nas últimas décadas, parte das grandes propriedades modernizaram-se, transformando-se em empresas agrícolas voltadas à produção de monoculturas de grande mercado. A outra parcela das grandes propriedades permaneceu na forma tradicional, com baixo uso, sendo ocupadas, quanto muito, por uma pecuária rudimentar, servindo como instrumento de riqueza e poder. Quanto às propriedades familiares, constituídas em sua grande maioria a partir das grandes imigrações, estas 28 também tecnificaram-se em parte, a outra parcela permaneceu praticando a agricultura tradicional de subsistência. Tabela 1 - Propriedade da terra e ocupação social no setor agrário brasileiro Categoria No estabeleci mentos (milhões) Área média (ha) Área ocupada (milhões ha) % área total Pessoal ocupado/ estabelec imentos Pessoal ocupado (milhões ) % total pessoal ocupado Patronal1 0,5 600 300 75 10 5 20 Familiar consolidada 2 1,5 50 75 19 4 6 24 Transição3 2,5 8 20 5 3 7,5 30 Periférica4 2,5 2 5 1 *2,5 *6,5 *26 TOTAIS 7,0 57 400 100 *4 *25 100 Fonte: FAO/INCRA (1994) * Estimativas 1. Estabelecimentos de características empresariais 2. Estabelecimentos relativamente estáveis, conduzidos pelo trabalho predominantemente familiar. 3. Estabelecimentos com destacada instabilidade decorrentes de diversos fatores. 4. Estabelecimentos com mais ênfase a residência e subsistência. CORRÊA (1998), em seu trabalho de tese, demonstra o aumento das desigualdades na distribuição da renda e a conseqüente concentração da riqueza na agricultura brasileira. A pesquisadora sistematiza dados oficiais de acordo com a posição na ocupação relativos ao meio agrário que contribuem para evidenciar a realidade daquele setor. Segundo a Tabela 2, o Brasil além de apresentar diferenças regionais significativas, a nível internacional, tem a maior concentração de renda entre os países relacionados. 31 Os setores dominantes da agroindústria e os formuladores das políticas públicas, profundos conhecedores da dinâmica econômica do meio, capitalizam a força do conjunto da agricultura, fazem a representação das lutas do conjunto da agricultura e, em nome do setor agrário, buscam continuamente medidas governamentais para todo o setor, de forma aparentemente democrática, como está evidenciado em trabalhos representativos deste setor, como BRASIL (1991), ABAG (1993), PINAZZA; ARAÚJO (1993), FAEP (1996; 1997a e 1998a). Estes setores dominantes, respaldados na superioridade política, econômica, administrativa e educacional, capitalizam a quase totalidade dos benefícios e oportunidades. Diferentemente dos demais, que vivem exclusivamente da agricultura, os empresários da agroindústria podem optar por reduzir ou até suspender as atividades no setor, quando a conjuntura lhes é desfavorável. A questão fome, que é retratada nos setores dominantes como uma conseqüência da baixa prioridade, ou até da ausência de políticas agrícolas, é um efeito da distribuição da renda, posição social na ocupação das atividades econômicas e utilização da capacidade produtiva do setor de alimentos frente a conjuntura econômica. Trabalhos como POURSIN; DUPUY (1975), MINAYO (1985), CHONCHOL (1989), SÃO PAULO (1992), FLORES; SILVA (1994) e BRASIL (1996) permitem a interpretação das causas da fome e de como a questão é utilizada de forma falseada pelos setores dominantes e seus representantes como forma de obterem mais privilégios. De fato, como constata VEIGA (1991), “o setor agrícola continua a ser motivo de uma grande perplexidade para os cientistas sociais. Uma série de características de seu funcionamento técnico-econômico atropelam o senso comum formado ao longo dos últimos duzentos anos, pela racionalidade industrial”. 1.3.2. A questão ambiental Desde que o homem passou de coletor a produtor, suas ações sobre a natureza, para condicioná-la adequadamente a exploração de espécies animais e vegetais, foram sentidas em diferentes níveis de intensidade. Ao privilegiar uma determinada espécie, visando aumentar sua produtividade, o homem altera o equilíbrio natural, transformando o 32 ecossistema estável, de alta diversidade e baixa produtividade, para um ecossistema instável de baixa diversidade e alta produtividade. O sistema produtivo agrícola aproveita as potencialidades dos recursos naturais - fauna, flora, solo e água - para obter o máximo de produtividade para a espécie desejada. Durante toda a história da agricultura até a época da Revolução Industrial, na medida que haviam terras disponíveis, o homem atenuou a degradação dos recursos naturais, abandonando as áreas desgastadas e trocando-as por áreas conservadas e férteis. O processo de desgaste dos recursos naturais era relativamente lento, pois o sistema de produção integrava a produção animal e a vegetal, possibilitando a reciclagem de diversos elementos da fertilidade. A partir da Revolução Industrial e posteriormente à revolução agrícola, com a intensificação do processo produtivo, baseado em tecnologia de altos impactos ambientais, o escasseamento de terras virgens agricultáveis e a degradação dos recursos naturais foi muito acelerada. O problema não ficou restrito ao campo, pois com o uso persistente de produtos para o manejo sanitário das espécies animais e vegetais, surgiram os resíduos tóxicos, causando problemas não só de contaminação ambiental, mas também de intoxicações de produtores e consumidores. Quando o homem foi histórica e culturalmente mais ligado à terra, os cuidados com a preservação dos recursos naturais foram mais apurados. No Brasil, desde os primórdios da colonização portuguesa, foi praticada uma exploração depredatória. O modelo econômico baseado na mentalidade colonizadora de explorar o máximo tudo o que fosse possível e de valor, acrescido, posteriormente, da falsa visão da infinidade das riquezas naturais levaram a uma degradação sem precedentes. O descaso com a natureza em detrimento da exploração econômica, no Brasil ao longo dos séculos, é lembrado com muita evidência por FURTADO (1959), HOLANDA (1976) e PRADO JR (1984) em suas reconstituições da história brasileira. No período mais recente, a questão ambiental é tratada em inúmeras obras e, cotidianamente, a grande imprensa noticia agressões e desastres ambientais de toda a ordem, resultantes da mentalidade colonizadora, na qual a preservação dos recursos naturais e da natureza esteve quase sempre vista como custo de produção e raras vezes como investimento. A denúncia da filosofia depredatória em detrimento de um modelo baseado na sustentabilidade dos recursos naturais e na qualidade do ambiente é feita com muita propriedade em trabalho de pesquisadores como BULL; HATHAWAY (1986), MOONEY (1987), COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE e DESENVOLVIMENTO (1988), PINHEIRO; NASR; 33 LUZ (1993), VIEIRA; MAIMON (1993), BURSZTYN (1994), VIEZZER; OVALLES (1995) e BOFF (1995). A grande imprensa tem feito inúmeras reportagens que retratam a degradação ambiental e dão historicidade ao modelo de desenvolvimento praticado no meio agrário e na agricultura da atualidade. Como exemplos destacam-se : - Segundo BATMANIAN (1998), só nos últimos anos foram desmatados 47 mil quilômetros quadrados de floresta natural, uma área maior de que o estado do Espírito Santo. A espoliação e destruição permanente da riquíssima fauna brasileira é considerada um dos maiores crimes contra a natureza e a humanidade. É interessante notar que o extrativismo florestal foi uma atividade econômica que esteve sempre presente, embora com diferente intensidade, nos quase quinhentos anos que se seguiram a chegada dos portugueses ao Brasil. - O Jornal FOLHA DE SÃO PAULO (1998) em caderno especial publica ampla reportagem sobre as graves conseqüências do uso e abuso dos agrotóxicos no Brasil. Baseada em dados oficiais, a reportagem retrata a triste situação atual: Tabela 4 - Situação dos agrotóxicos no Brasil Ano Vendas (em U$ milhões) No de intoxicações No de óbitos 1993 1.050 3.418 118 1994 1.404 4.763 139 1995 1.536 4.911 130 1996 1.793 4.759 142 1997 2.161 - - Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO (1998) Obs.: Inclui apenas os casos notificados e comprovados em laudos médicos. Os números registrados na Tabela 4 retratam apenas parte das intoxicações e mortes, visto que a constatação médica da intoxicação por agrotóxicos na maioria das vezes não é possível. Embora parciais, estes números já são alarmantes e, mesmo assim, as providências encaminhadas são insignificantes e infrutíferas. O descaso oficial e da própria sociedade fica evidente. Tão grave quanto as intoxicações diretas na produção é a questão dos resíduos de agrotóxicos nos alimentos. Conforme a mesma reportagem, o próprio governo reconhece o seu despreparo para um maior monitoramento e 36 Em todo o processo histórico da agricultura, jamais a elite dirigente encaminhou políticas e modelos de desenvolvimento que possibilitassem um modo de vida com condições aceitáveis de vida aos camponeses. As próprias palavras Cidadania e Urbanidade são expressões culturais construídas historicamente em oposição às condições de vida existentes no campo. Até o final da escravidão, a força de trabalho necessária à produção de alimentos e à produção de mercadorias, possibilitadora do tempo livre para outras atividades e para o lucro, respectivamente, foram viabilizadas pelo poder absoluto dos regimes dominantes. Para viabilizar a força de trabalho, no período mais recente, os setores dominantes ressaltam constantemente o caráter idílico do meio agrário, e são favorecidos pela falta de outras alternativas ou perspectivas de vida do homem do campo. Apesar dos avanços de modernização da agricultura e a evolução nas relações de trabalho, CARVALHO (1998) constata a existência ainda de diversas situações que se assemelham ao regime de escravidão : “trabalhadores miseráveis, analfabetos, embrutecidos e errantes submetidos ao regime de trabalho forçado”. Para historiadores como HUBERMAN (1984), HOLANDA (1976) e AQUINO; LOPES; LEMOS (1986) a vida do homem do campo, muito mais que idílica e heróica, teve sempre um caráter estóico que contou com a indiferença e conivência da cultura urbana. Todo o complexo quadro sociocultural do meio agrário sempre foi facilitado pelo baixo nível de escolaridade e pelo caráter reprodutor das condições e dos valores urbanos nos modelos pedagógicos implantados naquele meio. A necessidade de um modelo de educação que contribuísse para o rompimento do ciclo de dominação no meio agrário e possibilitasse construir ali um modo de vida digno e alicerçado nos direitos fundamentais do homem, onde fosse possível, além de viver, viver por opção e com qualidade de vida em todos os sentidos, foi a utopia de educadores como FREIRE (1986). Essa luta permeia toda a obra deste educador. Independentemente do modelo de educação levado ao meio agrário, os níveis de escolaridade ali constatados ainda são extremamente modestos. Segundo dados do IBGE (1998) relativos a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1996, a população rural era de 31.850.015 habitantes9. Portanto a população rural brasileira naquele momento era aproximadamente 25% do total. Pelos mesmos dados foi constatado um índice de analfabetismo na população com 7 anos ou mais, de 14,6%, sendo 10,5% na população urbana e 3l,0% na população rural. 9 Não está incluída neste número a população rural dos estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Os dados do meio agrário desses estados ainda não são coletados pelo PNAD. 37 CORRÊA (1998), além de sistematizar os dados da PNAD com referência a população rural de acordo com os níveis de escolaridade, estabelece correlações, em seu trabalho de tese, que indicam a contribuição desta variável para o aumento da desigualdade na distribuição da renda no período de 1981 a 1990. Tabela 5 - Distribuição percentual das pessoas ocupadas na agricultura conforme níveis de escolaridade, no Brasil e regiões. CATEGORIA/ANO BRASIL REGIÃO SÃO PAULO SUL SUDESTE CENTRO- OESTE NORDESTE Superior 1981 0,4 0,5 0,7 0,4 0,5 0,1 1990 0,7 2,0 0,8 0,1 1,5 0,2 Colegial 1981 1,0 2,0 1,5 1,3 1,9 0,3 1990 2,2 3,9 3,4 2,9 4,2 0,6 Ginásio completo 1981 1,1 2,2 1,7 1,3 1,9 0,4 1990 2,0 3,5 4,1 2,0 2,5 0,7 Ginásio Incompleto 1981 4,3 5,8 10,0 3,0 5,0 1,9 1990 6,9 8,1 15,3 6,2 9,4 3,1 Primário Completo 1981 14,4 22,0 25,1 18,3 16,5 5,4 1990 16,4 26,7 27,3 21,8 19,4 6,9 Primário Incompleto 1981 32,6 37,6 34,0 37,4 34,8 28,2 1990 29,0 33,8 29,3 33,0 30,2 26,0 Sem instrução/<1ano 1981 46,2 29,9 27,0 38,3 39,4 63,7 1990 42,8 22,0 19,8 33,1 32,8 62,5 Fonte: CORRÊA (1998) A Tabela 5 demonstra o baixíssimo nível de escolaridade ainda existente no meio agrário, embora tenha havido uma melhoria dos índices entre os anos de 1981 e 1990. 38 A Tabela 6 aponta a crescente diferença da renda média, de acordo com o nível de escolaridade. Uma pessoa com menos de um ano de escola ganha aproximadamente metade do que ganha uma pessoa com o primário completo e quatorze vezes menos do que uma pessoa com nível superior que trabalha na agricultura. Tabela 6 - Razão entre a renda média de cada categoria educacional e a renda média dos sem instrução, na agricultura brasileira CATEGORIA/ANO BRASI L REGIÃO SÃO PAULO SUL SUDESTE CENTRO- OESTE NORDESTE Superior 1981 12,94 12,72 7,09 11,87 7,779 20,92 1990 14,47 7,8 12,02 14,35 11,23 10,64 Colegial 1981 5,94 7,26 3,30 3,63 4,83 6,85 1990 5,19 3,75 3,59 4,28 4,89 3,83 Ginásio Completo 1981 4,15 2,42 3,54 4,28 2,07 4,55 1990 3,05 2,78 2,10 2,83 2,82 2,45 Ginásio Incompleto 1981 2,74 1,79 1,72 3,51 1,94 3,42 1990 3,11 7,0210 2,05 2,12 1,59 2,18 Primário Completo 1981 2,04 1,59 1,59 1,69 1,86 1,75 1990 1,95 2,15 1,56 1,57 1,54 1,38 Primário Incompleto 1981 1,50 1,33 1,33 1,40 1,22 1,37 1990 1,39 1,35 1,36 1,21 0,98 1,28 Sem instrução<1ano 1981 1,00 1.00 1,00 1,00 1,00 1,00 1990 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 Fonte: CORRÊA (1998) 10 Esse valor está associado à existência de um empregador com nível de escolaridade ginasial incompleto, com renda muito elevada (cerca de 4152 salários mínimos), em São Paulo, em 1990. 41 O camponês, tendo na agricultura o seu único meio de vida, obrigado a produzir para viver, formado no saber empírico da história, desprovido de informações e saberes atualizados, desamparado e impossibilitado de conseguir assessoria especializada, transforma a sua atividade econômica básica numa aventura diante da força de uma economia cada vez mais globalizada. As oportunidades de lucro na grande agricultura intensiva estão condicionadas à conjuntura e políticas do comércio internacional. Com conjuntura mercadológica favorável, a lucratividade é diretamente proporcional à produtividade. Os empresários, na busca de taxas crescentes de produtividade lançam mão dos recursos tecnológicos de última geração, praticando a agricultura de precisão. A execução de uma agricultura de precisão demanda trabalhadores escolarizados e capazes de usar com habilidade tecnologias cada vez mais complexas. Face às demandas de mão-de-obra cada vez mais especializada, são mais freqüentes as posturas como as expressas em FAEP (1998b), defendendo e exigindo políticas educacionais para o meio agrário. Entidades formativas de mão-de-obra agrária, como o SENAR, subordinado política e institucionalmente aos empresários agrícolas estão intensificando os cursos de formação desta mão-de-obra do homem do campo. Na busca de manter a hegemonia e a dominação cultural sobre o homem do campo confundem constantemente o processo que executam de qualificação de mão-de-obra para o trabalho com um modelo ideal de educação. Com relação a uma proposta de educação mais adequada ao meio agrário, somente nos últimos anos é que estão surgindo propostas, muito pontuais ainda, mas que contribuem para aumentar o nível de escolaridade neste meio. Frente a uma realidade cultural e econômica do uso dos filhos como apoio e mão-de- obra nos períodos críticos de trabalho na lavoura, busca-se, como uma dessas medidas, adequar o calendário escolar ao calendário agrícola e abordar os conteúdos em sintonia com a realidade vivida pelos alunos rurais. Nesse sentido, as escolas denominadas Família- Agrícola, conduzidas em parceria por diversas entidades que atuam no meio agrário, são avanços importantes frente ao modelo tradicional. (CTA, 1996) Somente num período mais recente é que, institucionalmente, as Universidades Brasileiras dedicaram alguma atenção ao problema social do meio agrário. O CRUB (1996), ao realizar um evento nacional sobre a questão, discutiu amplamente os fatores favoráveis e limitações de atuação das IES frente a realidade agrária brasileira. Dentre os fatores limitantes apontados, chama a atenção o registro da “incompatibilidade da formação acadêmica atual frente a atual realidade social do país”. As questões sociais e educacionais do meio agrário são relativizadas e praticamente ignoradas na formação 42 universitária, inclusive nos cursos das ciências agrárias. O aspecto priorizado foi sempre “o desenvolvimento tecnológico visando a produtividade econômica”. Como o acesso tecnológico só é possível a quem tem recursos para tal, na formação profissional ignoram-se os demais fatores da realidade. O evento realizado pelos dirigentes das Universidades, além de discutir a realidade agrária brasileira, também contribuiu na formulação de uma proposta mais efetiva de ação: TODOROV (1998), coordenador do PRONERA, apresenta um projeto nacional de alfabetização e educação rural a ser realizado em parceria entre o governo, o CRUB, e os movimentos sindicais e sociais. Decorrente da falta histórica de ação mais efetiva do estado e conscientes do papel da educação na luta pela cidadania plena, movimentos sociais do campo, como o MST, têm implementado um sistema educacional próprio. Mesmo na rusticidade dos acampamentos e assentamentos, mas atribuindo uma alta prioridade a questão educacional, conseguem, nas escolas implementadas e coordenadas, através do movimento, uma qualidade de ensino equivalente ao meio urbano. (SORIMA NETO, 1997) Mas estas boas iniciativas são muito pouco frente a realidade dos números apresentados por CORRÊA (1998): 42,8% do total de um quarto da população brasileira que vive no meio rural não tem ao menos um ano de escola. 1.3.4 O êxodo rural e a questão urbana O processo de urbanização, ao longo da história, aconteceu tanto devido a industrialização, como a outros fatores ligados às condições de vida. Na medida em que foram crescendo os níveis de industrialização e a mecanização do processo produtivo do campo, grandes contingentes humanos que eram empregados na produção agrícola foram se deslocando para as cidades em busca de novas oportunidades de trabalho. Além do emprego, outras questões relacionadas às condições de vida, propiciadas em maior intensidade no meio urbano, também contribuíram para esta migração, tais como : a educação, sociabilidade, lazer, transporte, infra-estrutura básica e de serviços (energia, comunicação, saneamento, moradia, saúde, assistência social e legal). 43 A corrente migratória12 do campo para a cidade, além de estar diminuindo constantemente nos últimos anos, começa a dar alguns sinais pontuais de inversão. CROMARTIE; BEALE (1997) analisam o crescimento populacional superior das áreas não metropolitanas, ocorrido pela primeira vez nas últimas três décadas, no período de agosto de 1994 a julho de 1995 nos Estados Unidos. Fenômeno idêntico vêm sendo observado na Europa com cada vez mais intensidade. (CANNATA, 1995) No Brasil, JUNQUEIRA (1998) constata, também, a fuga das grandes metrópoles para o interior. A crescente degradação das condições de vida nas grandes metrópoles, nos últimos anos , em questões como : custo de vida, segurança, poluição, trânsito, moradia, serviços, relações sociais e humanas, tem se mostrado decisiva para que 41% da população destes centros urbanos desejem mudar, em busca de melhor qualidade de vida. Para ENZENSBERGER (1997), o luxo do futuro vai ser o tempo, o espaço, a segurança, o meio ambiente, a atenção e o sossego. Para este pensador alemão, “nos próximos anos ocorrerá uma curiosa inversão na lógica dos desejos, na qual o conceito de luxo abandona o supérfluo e prende-se ao necessário”. Paradoxalmente, hoje, são as elites funcionais que dispõem de menor liberdade em seu próprio tempo de vida. O espaço comprimido dificulta a locomoção e aumenta infinitamente as distâncias. Na disputa entre dinheiro e política, esporte e arte, técnica e publicidade, pouco resta da atenção. Quanto maior a segurança, maior a perda da liberdade. Quanto maior o crescimento econômico, maior a destruição do meio ambiente. Para Enzensberger, o que se deve temer é que as condições de luxo nos próximos anos, fiquem a disposição de uma pequena minoria. As condições difíceis e complexas dos grandes centros urbanos levam a cientistas como FURTADO (1997) e ARAÚJO (1998) afirmarem que, cada vez mais, as possibilidades de criação de novos postos de trabalhos , além de mais viáveis, sejam também mais econômicas no campo do que nas cidades. O avanço do conhecimento tecnológico e organizacional possibilita mudanças no meio agrário, que até esse momento ficavam mais restritas ao meio urbano. Novas tecnologias relativizam o tempo e o espaço, permitindo a realização de outras e novas atividades no meio agrário, ao lado da tradicional atividade agrícola. (SCARPITTI; ZINGARELLI, 1996), (IACOVO; FRANCESCONI; TELLARINI; ULIVIERI, 1997). Assim, o meio agrário 12 Dependendo do autor e do enfoque da análise o fenômeno, quando ocorre migração do campo para a cidade, é chamado tanto de êxodo rural como de urbanização; quando ocorre no sentido inverso é chamado de contra urbanização ou urbanização do campo. 46 através dos seus diferentes agentes - governo, empresários, profissionais, agricultores e consumidores - e se aprofunda a caracterização sócio-econômica e interesses de cada segmento estudado. As atividades historicamente praticadas no meio agrário visavam, basicamente, a produção de alimentos e a extração de riquezas naturais. Decorrente da crescente desestruturação e degradação dos recursos naturais ocasionada pelo modelo adotado e a partir do surgimento da consciência social sobre a importância dos mesmos para a humanidade, a sustentabilidade ecológica do setor passou a merecer maior atenção. Com o avanço dos direitos fundamentais do homem, em contraposição com a progressiva degradação das condições de vida nos grandes centros urbanos, o setor agrário apresenta-se, potencialmente, como um meio em que um novo modo de vida com qualidade pode ser desenvolvido. O desafio que se impõe é a construção de um modelo de desenvolvimento agrário, baseado na pluriatividade14, no qual, além de outras novas atividades, busque-se garantir a segurança alimentar da humanidade em quantidade e qualidade, a sustentabilidade dos recursos naturais e os direitos fundamentais e justiça social para os que ali trabalham e habitam. A prioridade deve ser a busca de condições em que as atividades econômicas ali desenvolvidas, sejam elas agrícolas ou não-agrícolas, deixem de ser apenas um fim e passem a ser MEIO DE VIDA, capaz de viabilizar um novo MODO DE VIDA para todos aqueles que optarem em ali viver. O MODO DE VIDA a ser atingido deverá ser dotado de uma qualidade, capaz de estimular a sociedade a rever o sentido etimológico da expressão e buscar um novo conceito para os valores e condições que foram expressos ao longo da história, através de palavras como CIDADania e URBANidade. 14 A pluriatividade ou agricultura de tempo parcial é uma forma de desenvolvimento agrário que vem avançando nos últimos anos, onde o espaço rural deixa de ter como função exclusiva a produção agrícola. A propriedade que era o lugar de produção passa a lugar de moradia e o trabalho - a produção - é desenvolvido também fora do âmbito de sua influência. Atividades extra-agrícolas somam-se a atividades agrícolas, buscando melhores condições de vida para a família que ali habita. (SCHNEIDER, 1994) 47 2 A AGRONOMIA E O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ENGENHEIRO AGRÔNOMO Não é possível entender as relações dos homens com a natureza, sem estudar os condicionamentos histórico-culturais a que estão submetidas suas formas de atuar. A capacitação técnica, que não é adestramento animal, jamais pode estar dissociada das condições existenciais dos camponeses, de sua visão cultural de suas crenças. Deve partir do nível em que eles se encontram, e não daquele em que o Agrônomo julgue deveriam estar. (FREIRE 1988) 2.1. A AGRONOMIA A ciência pela ciência é uma ilusão de cientistas que se fecham em seus laboratórios ou mundos mentais. Querendo ou não, o conhecimento que produzimos poderá sempre ser usado por alguém, de forma totalmente oposta às nossas intenções. A única finalidade da ciência esta em aliviar a miséria da existência humana. (ALVES, 1995) 2.1.1. A Agronomia através dos tempos Desde os primórdios da agricultura, quando o homem passou de coletor a produtor, as atividades de produção dos alimentos necessários a sua existência foram baseadas nos recursos naturais disponíveis internamente em cada ecossistema. A necessidade de maiores quantidades de alimentos era atendida através de um aumento das áreas cultivadas, com uma respectiva incorporação de pessoas ao processo produtivo, por diferentes regimes de trabalho. Durante milênios, o homem do campo, através do seu trabalho, acumulou conhecimentos sobre como produzir alimentos. Estes conhecimentos 48 acumulados constituíram-se num saber agrícola, que era repassado de geração em geração. Assim, os homens agrícolas se educavam e educavam a seus descendentes. Grande parte do conhecimento praticado, além de aumentar a produção, garantia a reprodução ecológica do meio a longo prazo. Embora muitas das fundamentações teóricas sobre as práticas agrícolas utilizadas na época fossem equivocadas, as atividades em si produziam efeitos benéficos ao processo produtivo. Alguns dos aspectos deste conhecimento acumulado historicamente são validados e reproduzidos ainda nos nossos dias: a escolha dos melhores solos, o pousio, a utilização de leguminosas, as rotações, as reciclagens, os sistemas integrados de produção animal e vegetal. (CAVALLET, 1996a) Com o avanço dos direitos sociais, o aumento da população e o processo de urbanização que se intensificaram em torno do século XVIII, o modelo histórico de produção de alimentos começou a dar sinais de esgotamento. O contexto da época era o da Revolução Industrial, em que os avanços do conhecimento nas áreas da química, da biologia e da física foram significativos, constituindo-se na base científica de um novo modelo. O mercantilismo, iniciado no século XVI, abriu a possibilidade para a agricultura passar de uma atividade produtiva de sustentação básica da sociedade, para uma atividade comercial com perspectivas de lucro. Assim, a limitação e desestruturação progressiva do modelo histórico de produção agrícola, a perspectiva de falta de alimentos, o avanço dos conhecimentos em diferentes áreas e a estruturação crescente do capitalismo propiciaram as condições necessárias para o surgimento da Agronomia, no início do século XIX. (SEBILLOTTE, 1987) A Agronomia, como um ramo das ciências naturais, teria a atribuição de estudar cientificamente o desenvolvimento da agricultura. Esta atribuição pressupunha pensar na agricultura e suas relações, buscando soluções e avanços para a atividade, com base em um saber científico, porém, dentro da filosofia do sistema capitalista. Após o surgimento da Agronomia, o sistema de produção agrícola passou a receber incrementos crescentes de recursos externos ao ecossistema. A posse do saber agrícola, historicamente acumulado no homem do campo, foi gradativamente deslocado para os meios intelectuais e incorporado na tecnologia, na condição de propriedade do capital, aprofundando a divisão entre a concepção e a execução do processo produtivo, restando ao camponês o trabalho braçal. (CAVALLET, 1996b) Com o avanço da ciência, as práticas como a de sistemas vegetais diversificados, associados à criação animal, que até então era utilizada para 51 Crédito Rural, que condicionava a concessão de recursos à aquisição do pacote tecnológico, direcionado para determinadas culturas de exportação. O governo brasileiro, preocupado com a balança comercial e objetivando a geração de excedentes exportáveis, promoveu ao máximo a modernização da agricultura. O sistema brasileiro de pesquisa e extensão rural foi reordenado visando essa mudança. (AGUIAR, 1986) A ciência agronômica, até o início dessa transformação, servia integralmente aos objetivos traçados para a agricultura pelos setores dominantes sem questioná-los. (CONGRESSO BRASILEIRO DE AGRONOMIA, 1940) Com o avanço do processo de democratização da sociedade brasileira, no período pós-guerra, os diferentes setores de trabalhadores, profissionais liberais e estudantes mobilizaram-se de várias formas, trazendo reflexos nas áreas científicas. (IANNI, 1984) O processo de avanço democrático da sociedade brasileira também teve seus reflexos na Agronomia, quando os engenheiros agrônomos começaram a construção do estatuto da profissão. São criadas, a partir da década de sessenta, a entidade nacional dos profissionais, FAEAB e a dos estudantes, FEAB, que passam a reivindicar, além de condições vinculadas ao trabalho técnico do agrônomo, a participação política na formulação das propostas para o setor agrário. (CONGRESSO BRASILEIRO DE AGRONOMIA, 1965); (FEAB, 1996) Com o avanço da organização dos profissionais e estudantes da área, a ciência agronômica começou a apresentar alternativas acerca do modelo de desenvolvimento para o campo. Embora majoritariamente continuasse fiel aos setores dominantes dos agronegócios e da política oficial, voltada para os aspectos quantitativos da produção agrícola, a Agronomia começou também a se preocupar com o desenvolvimento do meio agrário, a agricultura familiar e a sustentabilidade dos recursos naturais. (FAEAB, 1985a); (CONGRESSO BRASILEIRO DE AGRONOMIA, 1979) Com a organização da categoria e o debate democrático das idéias, as contradições do processo de modernização da agricultura, já bastante explícitas no meio agrário, começaram a ser percebidas também nas ciências agronômicas. Passou-se a formular idéias e propostas para o setor agrário, freqüentemente divergentes entre si, de conformidade com os interesses e objetivos a quem estavam vinculados os diferentes segmentos da categoria agronômica. ROMEIRO (1987) O paradigma predominante na agricultura brasileira, mesmo com muitos questionamentos em função das diversas conseqüências dele decorrentes, tem sido o do crescimento econômico dos agronegócios. Esse modelo é impulsionado pelo avanço da ciência e da tecnologia agronômica. 52 2.1.2. A Agronomia na atualidade Depois de séculos brincando com Deus, ao ampliar o horizonte de suas explicações, os cientistas passam a brincar de Deus, ampliando o poder de suas interferências, em um jogo no qual tudo se passa como se o êxito maior da ciência, ao explicar o mundo, carregasse o germe de seu fracasso, ao ameaçar destruí-lo com o saber criado. Conhecem os meios, mas não têm o controle sobre os resultados. Salvo se dispuserem de uma normatização ditada por valores éticos. (BUARQUE, 1990) Em menos de dois séculos, de seu início até os dias de hoje, a Agronomia contribuiu para uma profunda alteração das formas de produção na agricultura. O seu objetivo central, dentro dos pressupostos que fundamentaram a sua criação e organização como ciência, de viabilizar uma produção agrícola em quantidades adequadas ao comércio capitalista, já foi amplamente atingido.(TUBIANA; MARLOIE, 1995) O fato de ser muito superior às necessidades reais, a capacidade concreta da produção agrícola, realizada ou não, tanto a nível mundial como a nível nacional, não impede que aquele objetivo para a Agronomia continue sendo utilizado, mesmo que de forma mitificada, no intento da continuidade do crescimento e manutenção da lucratividade dos agronegócios, que é concretizada através da comercialização dos pacotes tecnológicos e do processamento da produção agrícola. A afirmação incisiva de que “é preciso produzir e para tanto é preciso tecnificar” sustenta o mito18, que na verdade pretende alongar o período de uso, para continuar a produção de lucros das tecnologias de ponta, através de sua implantação nos países dependentes tecnologicamente. É comum, no noticiário da grande imprensa, dados sobre a venda de tecnologia serem utilizados como único indicador de desempenho da agricultura. Quando caem as vendas dos bens de produção, usam-se esses dados para pressionar por políticas públicas que favoreçam a comercialização de tecnologia sob o argumento das conseqüências sociais que a suposta crise da 18 Mito é uma condição aceita mesmo que injustificadamente, usado para responder a questões pessoais e da sociedade. A crítica a esta condição pode produzir a desmitificação do fenômeno. Ao se abster da crítica, os sistemas fechados contribuem para manter a situação, impedindo o desenvolvimento mais pleno e íntegro do potencial humano. (ZIEMER, 1996) 53 agricultura poderá ocasionar. O interessante é que os benefícios para o setor são direcionados para a tecnologia e não diretamente ao agricultor. ( O ESTADO DE SÃO PAULO, 1998) O uso intensivo de tecnologias de ponta em países como o Brasil, onde a maioria da população é carente de recursos, educação, conhecimento e pesquisa adequados, favorece o interesse acima exposto, beneficiando uma pequena minoria e, paradoxalmente, se por um lado são eficientes em termos de produtividade, por outro lado agravam os problemas como: • Concentração de riqueza. (CORRÊA, 1998) As políticas direcionadas a um determinado setor, no caso a agricultura, podem tanto buscar a eficiência como a eqüidade. As políticas agrícolas do Brasil têm visado sistematicamente a eficiência, buscando expandir a produção e a produtividade. O predomínio de políticas que buscam a eficiência em detrimento da eqüidade contribui ainda mais para a concentração da renda e da riqueza no campo. Os setores mais organizados política e economicamente, como o dos agronegócios, maximizam a utilização das políticas direcionadas para a agricultura. • Desestruturação social. (RATTNER, 1980) O homem do campo, tanto o que pratica a agricultura familiar como o assalariado, tem seu único meio de vida baseado no saber cultural e historicamente adquirido nas atividades do campo. O conhecimento científico, incorporado à tecnologia, substitui o fazer histórico desse homem do campo. Como os ganhos do avanço tecnológico não são socialmente distribuídos e o sistema de educação formal é limitado na sua capacidade de proporcionar a esse homem a compreensão do novo modelo, bem como a abertura de novas oportunidades é restrita, resta a ele o subemprego ou a marginalidade, seja no meio agrário ou urbano. • Degradação ambiental. (AMSTALDEN, 1991); (HOBBELINK, 1990); (CAVALLET, 1998a) O desenvolvimento da tecnologia destinada à agricultura é realizado basicamente nos países desenvolvidos, onde o clima é temperado e os recursos naturais são específicos. No Brasil, a agricultura é praticada no clima tropical e equatorial onde os recursos naturais também têm suas especificidades. A comercialização da tecnologia, difundida globalmente, visa muito mais a maximização do lucro, pelo volume de venda e prolongamento do retorno do investimento, do que sua contribuição na preservação dos recursos naturais através de um manejo adequado. A exploração intensiva e até abusiva dos recursos naturais, aliada a uma inadequação ecológica da tecnologia, contribui significativamente para a degradação ambiental, para as condições impróprias 56 2.2. O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ENGENHEIRO AGRÔNOMO O trabalho do Agrônomo não pode ser o de adestramento nem sequer o treinamento dos camponeses nas técnicas de arar, de semear, de colher de reflorestar, etc. Se se satisfizer com um mero adestrar pode, inclusive, em certas circunstâncias, conseguir uma maior rentabilidade do trabalho. Entretanto, não terá contribuído em nada ou quase nada para a afirmação deles como homens mesmo. (FREIRE, 1988) 2.2.1 A legislação profissional A historicidade da legislação profissional do Engenheiro Agrônomo, além de possibilitar uma visão da profissionalização21 da categoria, contribui também para clarear o seu papel no modelo de desenvolvimento econômico, em cada momento histórico. O reconhecimento do trabalho do Engenheiro Agrônomo só veio acontecer muito tempo após o surgimento da Agronomia no Brasil. Em 12 de outubro de 1933, conforme BRASIL (1933a), o Decreto presidencial no 23196 regulamentou o exercício da profissão de Agronomia. Portanto, somente cinqüenta e oito anos após a criação da primeira escola de Agronomia, fato ocorrido em 1875 na Bahia, é que foi oficializada a existência desse profissional. Esta data da regulamentação da profissão, 12 de outubro, passou a ser adotada pela categoria como o dia do Engenheiro Agrônomo. Embora o exercício profissional do Engenheiro Agrônomo tenha sido finalmente regulamentado, através do Decreto assinado por Getúlio Vargas, sob o ponto de vista de assegurar uma carreira profissional autônoma, os avanços foram poucos. O Decreto foi inteiramente omisso quanto aos objetivos da ciência agronômica. Como vinculou as atribuições dos Engenheiros Agrônomos ao serviço público oficial e condicionou o direito do trabalho ao registro no Ministério da Agricultura, o espírito daquela legislação deixava claro a 21 Segundo BOSI (1995), profissionalização é o conjunto de ações através das quais uma ocupação ou semi- profissão, busca conquistar o status de profissão. A obtenção dos elementos constitutivos de uma profissão não se dá por um processo expontâneo, mas é fruto de conquistas obtidas através de intensa atividade política. 57 condição da profissão como instrumento da política de produção agrícola do país. A Engenharia, a Arquitetura e a Agrimensura foram regulamentadas por Getúlio Vargas no dia 11 de dezembro de 1933, através do Decreto no 23569, sessenta dias após ter sido regulamentada a profissão agronômica. (BRASIL,1933b) A diferença de tratamento com relação as duas situações foi o fato de que, juntamente com a regulamentação destas últimas, o Governo criou um conselho específico - CONFEA22 - com a atribuição de geri-las, o que caracterizou uma condição diferenciada de autonomia com relação a Agronomia, que ficou vinculada ao seu principal usuário, o Ministério da Agricultura. Mesmo com as limitações do Decreto no 23.196, a regulamentação significou um avanço em relação a fase inicial do trabalho do Agrônomo no país, em que os mesmos estavam a serviço da aristocracia agrária sem nenhuma regulamentação formal. (CONGRESSO BRASILEIRO DE AGRONOMIA, 1940) O Decreto-lei no 9.585, de 15 de agosto de 1946, uniformizou o título dos profissionais da Agronomia. Após este Decreto , em vigor até hoje, todos os profissionais da Agronomia passaram a usar o título de engenheiros agrônomos. Anteriormente a esse decreto, coexistiam tanto o título de Agrônomo como o de Engenheiro Agrônomo. (BRASIL, 1946) A Lei no 4.950-A estabeleceu o piso salarial para os profissionais assalariados. Tendo como base a jornada de trabalho diária de seis horas, o piso salarial foi fixado na lei em seis vezes o maior salário mínimo vigente no país, com vinte e cinco por cento de acréscimo para as horas excedentes. (BRASIL, 1966a) O exercício profissional da Agronomia permaneceu submetido ao Ministério da Agricultura, órgão responsável pela política de produção agrícola do país até a aprovação e sanção da Lei no 5194, em 24 de dezembro de 1966, quando a profissão do Engenheiro Agrônomo foi integrada ao CONFEA. (BRASIL, 1966) Depois de 91 anos da criação da primeira escola e 33 anos do reconhecimento da profissão, o Engenheiro Agrônomo obtinha o seu estatuto de profissão autônoma desvinculando-se oficialmente do controle direto do usuário. 22 CONFEA no período de 1933 a 1966 era a sigla de Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agrimensura. Com a incorporação da Agronomia em 1966, através da Lei 5194, a mesma sigla passou a significar Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia. (CASTRO, 1995) 58 O CONFEA, uma entidade relacionada diretamente ao Ministério do Trabalho, regulamenta complementarmente as profissões por ele abrangidas através de resoluções. Das mais de quatrocentas resoluções já emitidas disciplinando o exercício profissional, duas são particularmente importantes em relação ao tema desta tese: • Resolução no 205, de 30 de setembro de 1971- Adota o Código de Ética do Engenheiro, do Arquiteto e do Engenheiro Agrônomo; - Através da Resolução no 205, o CONFEA oficializou o código de ética para os profissionais da engenharia, Arquitetura e Agronomia. (CONFEA, 1971) Trata-se de um conjunto de deveres elaborados por uma comissão nacional, designada para tal, com um enfoque corporativista, que valoriza a atuação técnica dos profissionais objetivando uma postura indiferente frente a realidade política, econômica e social da época em que foi aprovado. Hoje, quase três décadas após a sua adoção, este código continua em vigor, embora a realidade da época esteja completamente superada. A realidade atual impõe um novo padrão de procedimentos dos profissionais da Agronomia, que a categoria através dos seus embates internos deverá definir. • Resolução no 218, de 29 de junho de 1973 - Discrimina as atividades das diferentes modalidades profissionais da Engenharia, Arquitetura e Agronomia. (CONFEA, 1973) Essa Resolução procura em seu artigo 5o explicar os campos de conhecimento que são atribuições do Engenheiro Agrônomo e em seu artigo 1o as diferentes atividades com que pode atuar ao exercer a profissão. A Lei no 8078, de 11 de setembro de 1990, veio preencher uma lacuna jurídica na sociedade brasileira sobre os direitos do consumidor nas relações com o fornecedor. Como os profissionais de nível superior prestam serviços de diferentes naturezas à sociedade, são equiparados nessa lei como fornecedores. A lei objetiva os direitos do consumidor, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida em relação a produtos e serviços perigosos ou nocivos, à publicidade enganosa e abusiva e a procedimentos comerciais coercitivos ou desleais. O exercício profissional da Agronomia, em desacordo com a lei de defesa do consumidor, é caracterizado com exercício ilegal e dele poderão decorrer responsabilidades técnicas, civis e penais. (BRASIL, 1990) Do ponto de vista legal, o Engenheiro Agrônomo dispõe hoje de uma regulamentação que, mesmo com limitações, proporciona um elenco de direitos e deveres, que contribuem para a consolidação da profissão. 61 No processo de questionamento de política agrícola e agrária, foram sendo explicitadas diversas discordâncias da categoria em relação ao ensino agronômico. Decorrente disto, a categoria organizou seminários brasileiros que visavam uma mudança na formação dos futuros profissionais. Estes seminários, em número de três, foram denominados SENASCA- Seminário Nacional sobre Currículo de Agronomia. O principal produto destes seminários constituiu-se numa proposta da categoria para o ensino agronômico denominada “Currículo Mínimo da Agronomia: proposta final” e que viria se transformar no atual currículo mínimo da profissão aprovado em 1984, pelo CFE. (FAEAB/FEAB, 1986) Essas lutas da categoria agronômica foram realizadas conjuntamente com os estudantes de Agronomia. Os estudantes de Agronomia haviam fundado, em 1955, sua primeira entidade representativa nacional, o Diretório Central dos Estudantes de Agronomia do Brasil. Esta entidade foi fechada em 1968, pelo regime militar, quando as lutas desses estudantes passaram a acontecer na clandestinidade. Em 1972, foi retomado o movimento em nível nacional, com a criação da Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil, entidade responsável pela representação do movimento estudantil de Agronomia até os dias de hoje. Suas deliberações e orientações acontecem através dos CONEAs- Congresso Nacional de Estudantes de Agronomia, que são realizados anualmente. (FEAB, 1996) Com as eleições diretas para governador de 1982, em diversos Estados brasileiros, assumem governantes oriundos das lutas populares. Estes Estados passaram a constituir-se em espaços privilegiados para a implantação de propostas oriundas de movimentos organizados da sociedade, tais como da Agronomia. No final da década de oitenta e início da década de noventa, intensificaram-se as tensões e contradições no interior da categoria agronômica. Fruto de uma crescente desestruturação do Estado e conseqüente deterioração das condições de trabalho no serviço público, o espaço de trabalho da Agronomia passou a ser predominante na indústria de bens para a agricultura e nas organizações comercializadoras desta tecnologia. Os profissionais que eram assalariados em serviços de extensão rural, crédito agrícola, pesquisa agropecuária, passaram a prestar serviços, predominantemente como profissionais liberais, para indústrias, cooperativas e diversos outros tipos de empresas que atuam no setor de agronegócios. (CARVALHO,1987) Decorrente desta desestruturação acentuou-se a participação dos Engenheiros Agrônomos, especialmente da parcela assalariada, no movimento sindical. Os profissionais da Agronomia, sendo uma categoria do campo das engenharias, são representados nas questões trabalhistas através dos Sindicatos 62 de Engenheiros, organizados por estado e integrados nacionalmente em forma de Federação. (CONSENGE, 1995) Os impactos da crise sobre a estrutura da força de trabalho do Engenheiro Agrônomo refletiram-se na direção política da categoria. A partir de 1993, após quatorze anos nos quais preponderaram as lutas relativas a questões sociais e ecológicas, voltavam a prevalecer, nas manifestações da FAEAB, posicionamentos em conformidade com o paradigma vigente na agricultura. Submetida às pressões do setor de agronegócios, predomina, nos posicionamentos oficiais da categoria agronômica, o caráter corporativista da busca de espaço de trabalho para o Engenheiro Agrônomo, em detrimento de um questionamento maior ao próprio paradigma. (CONGRESSO BRASILEIRO DE AGRONOMIA, 1993; 1995; 1997), (PARANÁ AGRONÔMICO, 1998) Com oportunidades limitadas na FAEAB para questionamentos ao paradigma atual, a participação dos segmentos discordantes da política oficial da categoria agronômica tem-se feito notar em outros espaços, como entidades sindicais, partidos políticos, clubes de serviço e diversas organizações do movimento popular. Os estudantes, menos vulneráveis as pressões do mercado de trabalho, continuam, através da FEAB, exercendo uma função de vanguarda nas lutas relacionadas a Agronomia. Portanto, a organização e os posicionamentos dos Engenheiros Agrônomos na atualidade, em decorrência das divergências ideológicas, das diferentes lutas decorrentes destas divergências e da conjuntura de poder organizacional, dá-se através de diferentes entidades representativas de forma multifacetada. 63 2.3 A AGRONOMIA E O ENGENHEIRO AGRÔNOMO FRENTE A UMA NOVA REALIDADE O trabalho do Agrônomo como educador não se esgota e não deve esgotar-se no domínio da técnica, pois que esta não existe sem os homens e estes não existem fora da história, fora da realidade que devem transformar. (FREIRE, 1988) A Agronomia como ciência e como profissão continua contribuindo, predominantemente, com o paradigma que tem dominado historicamente a agricultura. Esse paradigma limita o meio agrário a local de produção e comercialização de mercadorias agrícolas para o setor de agronegócios. O setor empresarial não prioriza o desenvolvimento agrário e desenvolve as atividades produtivas de acordo com as possibilidades de mercado e lucro. Entra e sai de uma determinada área ou sistema de produção em função da conjuntura econômica. Busca assessoria intelectual e a contratação de mão-de- obra para executar o processo produtivo de acordo com esta conjuntura. Utiliza- se do flagelo da fome de forma mitificada para manter o meio agrário como fonte de renda e riqueza e através do seu poder político e econômico, limita a implantação de modelos alternativos que não estejam em sintonia com seus objetivos para esse setor. Decorrente do crescimento constante da produção agrícola, o processo produtivo tornou-se altamente competitivo e dependente de avanço tecnológico para manter-se como tal. Essa demanda, aliada à força política do setor de agronegócios, monopolizou a capacidade científica da Agronomia. O modelo de desenvolvimento adotado para o setor agrário, limitado a realização de lucros e tomado pela crescente competitividade, foi tornando-se gradativamente mais excludente. Fruto de avanços na sociedade humana e em uma resposta às resultantes negativas do modelo, o meio agrário começou a ser olhado, nos últimos anos, além do aspecto de ser apenas um local de produção de mercadorias. No Brasil, essa mudança de postura ficou consagrada no texto da última Constituição Federal da República, onde as atividades econômicas do campo foram submetidas a efetivação das funções sociais daquele meio. O imóvel rural que 66 da sociedade no que tange ao setor agrário, a superação dessa condição constitui-se um grande desafio para a Agronomia e para os profissionais Engenheiros Agrônomos. De forma análoga à Constituição Brasileira, quando trata da função social do meio agrário, a lei de regulamentação da profissão do Engenheiro Agrônomo caracteriza a carreira pelas relações de interesse social e humano. (CASTRO, 1995) Segundo SANTOS (1989), neste momento emergente da sociedade, não é possível conviver com a ingenuidade constatada ao longo da história, de crer que, somente porque há a afirmação da função social da ciência, esta efetivamente cumpre este papel através de seus representantes, embora legítimos legalmente. A ação desta ciência, pautada por um paradigma que já não tem mais condições de apresentar soluções ao novo momento, precisa ser percebida, questionada e readaptada, apesar das dificuldades características de tal revolução. “A aplicação do conhecimento científico precisa ser edificante, e o seu responsável precisa estar ética e socialmente comprometido com o seu impacto”. “A aplicação edificante não prescinde de aplicações técnicas, mas submete-as às exigências do know-how ético. Ao contrário, a aplicação técnica é mais radical e prescinde do know-how ético”. Para Santos, hoje, “a conflitualidade interna das ciências é entre os partidários da aplicação edificante e os partidários da aplicação técnica”. Para BUARQUE (1990), decorrente do intenso avanço e do crescente poder transformador das ciências, mais do que nunca, há a necessidade de se estabelecer uma ética reguladora ao processo do trabalho científico. O uso do poder científico precisa ser submetido a valores morais. Para o mesmo, o êxito das ciências, entre as quais a Agronomia, convergente ao objetivo produtivista, encontra seu próprio limite na expressão das conseqüências que produz. A velocidade das mudanças exerce um efeito crucial na constituição da pauta de valores. Quanto mais rápido o ritmo, mais rapidamente também se instala o processo de ausência de um sistema de valores que orienta o comportamento dos indivíduos e dos grupos na sociedade. (HAGUETTE, 1995) Portanto, quanto mais veloz o avanço do conhecimento, mais limitada torna-se a capacidade de reflexão crítica da categoria, em função da pouca defasagem de tempo necessário para o processo, e no interior do paradigma, a crise tende a aumentar. A Agronomia, como ciência, é questionada e questiona-se também sobre as contradições e os limites do modelo e do processo de desenvolvimento a que está vinculada. Quando a crítica é feita a partir do interior do paradigma hegemônico existem dificuldades para se perceber alternativas externas a ele. Por outro lado, os setores da categoria não atrelados ao modelo são minoritários 67 e dispersos não possuindo ainda acúmulo de condições para a superação do mesmo. Longe de ver no processo acima os limites da Agronomia, o que deve ser percebido, pela comunidade científica e outros setores interessados, é a urgente necessidade de submeter essa ciência a uma reflexão que possibilite ampliar os seus objetivos redirecionando-a para a construção de um novo modo de vida no campo. A Agronomia e seus profissionais, diante da crise que traspassa todo o meio agrário, e das crescentes dificuldades das condições de vida nos grandes centros urbanos, têm a possibilidade concreta de contribuir para a transformação do setor agrário em MEIO, capaz de propiciar vida digna a todos aqueles que optarem por ali viver, superando a situação histórica. Se a realidade e as novas demandas possibilitam esse desafio, a transformação da profissão é a condição para concretizá-lo. A contribuição da Agronomia para a superação da crise do meio agrário depende primeiro da superação da própria crise que a envolve. Caso venha a superá-la, a Agronomia poderá constituir-se numa ciência madura. Para que a Agronomia obtenha as condições de superação dos entraves, deverá internalizar em seus elementos constitutivos de profissão a reflexão sobre toda a extensão da crise, do meio e da profissão, bem como as demandas que permeiam o setor agrário na atualidade. Ao inserir-se concretamente na realidade do meio agrário, a Agronomia afastar-se-á dos objetivos idealizados em outro momento histórico e diminuirá a força das amarras que a mantém presa ao setor dos agronegócios. Este processo contribuirá para que a Agronomia saia da crise e passe a discutir a crise, acumulando forças para a superação paradigmática. Um dos elementos constitutivos básicos que deverá ser questionado para essa superação é a formação profissional, tanto a inicial como a continuada. A formação profissional do Engenheiro Agrônomo atual continua a ser efetuada visando um profissional direcionado à busca da eficiência produtiva como fim, de acordo com os objetivos do setor de agronegócios a quem serve prioritariamente. Este modelo de formação dificulta ao profissional a percepção da nova realidade do meio agrário. A Agronomia deve buscar uma base de conhecimentos ampla e pluralista que, paralelo ao processo de contribuir tecnicamente com a produção, lhe possibilite construir e contribuir para que se construa um desenvolvimento integral, levando em conta todas as interações desdobramentos e necessidades do meio agrário. Deve, também, interagir amplamente com outras ciências na construção de um novo modelo de desenvolvimento. 68 É também fator determinante neste processo de superação, além do conhecimento, o procedimento dos profissionais Engenheiros Agrônomos. Esse procedimento tende a estar em sintonia com o setor onde se vinculam profissionalmente. Daí resulta parte da dificuldade na mudança paradigmática, face a predominância de vinculação dos Engenheiros Agrônomos no sistema de agronegócios. A forma de relativizar esse vínculo é a participação da categoria nas diferentes lutas da sociedade, através de suas entidades autônomas e representativas da profissão e não somente através do respectivo setor de trabalho. A formação e a representação profissional devem interagir dialeticamente na busca de um ideal para a Agronomia que lhe permita, através de uma ação científica autônoma e edificante, obter o reconhecimento social, fundamental para a manutenção do seu status de profissão neste momento histórico. 71 3.1.1 Conceito de currículo Com freqüência, o currículo é considerado simplesmente como a organização do que deve ser ensinado e aprendido, fruto de uma concepção na qual o professor está ausente e sobre o que tem muito pouco a dizer. (KEMMIS, 1988) Neste trabalho, é dado pouco destaque aos conceitos de currículo que se limitam a descrever conteúdos e distribuí-los, na forma de disciplinas, na grade curricular. Tais conceitos são limitados para explicarem a Agronomia e suas perspectivas. KEMMIS (1988) conceitua o currículo como uma construção histórica e social. O seu estudo possibilita a compreensão do papel da educação na reprodução e transformação de uma determinada sociedade em um determinado momento histórico. Para SACRISTÁN (1998) o conceito de currículo adota significados diversos, porque, além de ser suscetível a enfoques paradigmáticos diferentes, é utilizado para processos ou fases distintas do desenvolvimento curricular. Para ele, qualquer tentativa de organizar uma teoria coerente, além de ser obrigatoriamente do tipo crítica, deve dar conta de tudo o que ocorre no sistema curricular, vendo como a forma de seu funcionamento num dado contexto afeta e dá significado ao próprio currículo. Aplicar o conceito de currículo somente a alguns desses processos ou fases, além de ser parcial, cria elementos diferenciados, de perspectivas difíceis de integrar numa teorização coerente. Uma visão tecnicista, ou que apenas pretenda simplificar o currículo, nunca poderá explicar a realidade dos fenômenos curriculares e dificilmente contribui para mudá-los, porque ignora que o valor real do mesmo depende dos contextos nos quais se desenvolve e ganha significado. GOODSON (1995), ao pesquisar a história do currículo, alerta sobre as dificuldades de atribuir significados e conceitos fixos e permanentes a palavras como educação, currículo, disciplinas. Como resultantes de uma construção social, carregam em si todos os interesses, conflitos e necessidades de legitimação e controle de cada momento e cada situação histórica. Já nos trabalhos seguintes, GOODSON (1997) expõe seu conceito de currículo escolar como um artefato social, concebido para realizar determinados objetivos humanos específicos. 72 Segundo COLL (1996), é difícil responder na prática o que é currículo, pois cada especialista tem sua própria definição com nuanças diferenciais. Baseado em interrogações sobre as funções que deve desempenhar, Coll descreve o currículo como “o projeto que preside as atividades educativas escolares, define suas intenções e proporciona guias de ação adequadas e úteis”. Assim, para o professor, o currículo seria o elo entre a declaração de princípios gerais e sua tradução operacional, entre a teoria educacional e a prática pedagógica, entre o planejamento e a ação, entre o que é prescrito e o que realmente sucede nas aulas. Coll entende que o currículo, para cumprir suas funções, deve ser integrado pelas componentes: “o que ensinar”, “quando ensinar”, “como ensinar” e “o que, como e quando avaliar”. O “o que ensinar” é composto por dois temas: conteúdos e objetivos. Os conteúdos são compostos por fatos, conceitos, princípios, atitudes, normas, valores e procedimentos; os objetivos determinam a formação que se deseja construir mediante o ensino. O “quando ensinar” organiza os conteúdos e objetivos. O “como ensinar” estrutura as atividades de ensino/aprendizagem a fim de atingir os objetivos propostos. O “que, como e quando avaliar” assegura que a ação pedagógica responda adequadamente às intenções e introduza as correções, se necessárias. Retomando APPLE (1994), o currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos. Ele é sempre o resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo. Para MOREIRA (1997), a despeito de uma crescente valorização do termo, não há consenso em relação ao que se deve entender pela palavra currículo. As divergências refletem problemas complexos, no entanto, o currículo constitui significativo instrumento utilizado por diferentes sociedades, tanto para desenvolver processos de conservação, como para a transformação e renovação dos conhecimentos historicamente acumulados e ainda, para formar pessoas segundo valores tidos como desejáveis. O debate e as pesquisas sobre o currículo e os conceitos daí resultantes são amplos, predominantemente relacionados ao ensino fundamental e médio, e refletem as diferentes concepções de homem, mundo e sociedade. Isso, por si só, demonstra o papel essencial das alternativas pedagógicas de currículo na busca dos objetivos pretendidos através da escola. Assim, a análise conceitual do currículo contribui para a compreensão do papel e objetivos da educação formal, em um determinado momento histórico da sociedade. É importante destacar que a análise do processo curricular pode indicar se o mesmo está organizado de forma a contribuir para o desvelamento da 73 realidade. Por outro lado, ela pode também indicar se está organizado de forma a doutrinar o educando, afastando-o das contradições da mesma realidade, com o objetivo de submetê-lo aos diferentes interesses de setores dominantes. 3.1.2 Características curriculares no Brasil Não se renova a prática, nem se faz avançar a teoria, sem um intenso debate acadêmico. Precisamos discutir mais entre nós, se de fato desejamos construir teorias e práticas curriculares mais adequadas à realidade brasileira. (MOREIRA, 1998a) Diferentemente do que ocorre nos níveis básicos de educação, são escassos os estudos e trabalhos específicos sobre o currículo no ensino superior. Pela característica de profissionalização, que domina a graduação, os poucos estudos existentes tratam de determinadas profissões e ficam limitados a análises de conteúdos e formas de grade curricular.(Maria Izabel da CUNHA,1992); (PARAÍSO, 1994) Por ocasião de uma consulta direcionada a MOREIRA (1998b), este pesquisador, um dos mais expressivos na área de currículo, manifestou a expectativa de que as discussões sobre diretrizes curriculares para o ensino superior viessem a fomentar a produção de publicações específicas nesta área. O ensino universitário brasileiro, caracterizado por uma forte orientação econômica na formação profissional (GIANNOTTI, 1987), (BUARQUE, 1994), (COELHO, 1994), é concebido e planejado em currículos mínimos nacionais que, além de limitarem as alternativas pedagógicas dos cursos, desobrigam os professores da atividade de pensar a educação de forma integral e crítica. APPLE (1989), ao analisar a “forma do currículo e a lógica do controle técnico”, constatou que um mecanismo utilizado para garantir a produção e a reprodução do conhecimento, segundo a ideologia e os interesses dos setores dominantes da sociedade é a separação entre a concepção e a execução do processo curricular. Em uma de suas obras posteriores, APPLE (1995) deixa claro os interesses do sistema econômico internacional na educação: “uma economia capitalista avançada exige a produção de altos níveis de conhecimento técnico/administrativo por causa da competição econômica nacional e internacional e 76 3.1.3 Tendências curriculares Ao falarmos do futuro, mesmo que seja de um futuro que já nos sentimos a percorrer, o que dele dissermos é sempre o produto de uma síntese pessoal embebida na imaginação. (SANTOS, 1998) Nos dois últimos séculos, com o avanço extraordinário da Ciência, a Universidade passou a viver um dualismo: a formação humanista e generalista, do homem para a vida, e a formação profissional e especializada, do homem para o trabalho. Ficou evidenciado no maior e mais recente evento internacional relacionado à formação universitária, a CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE A EDUCAÇÃO SUPERIOR, realizada pela UNESCO de 5 a 8 de outubro de 1998, em Paris (UFPR, 1998) que além da busca pela construção de uma instituição com múltiplas funções, existe também uma concreta disputa pela hegemonia entre a concepção econômica de educação, que seria determinada pelo mercado e uma concepção humanística, voltada ao desenvolvimento supremo do homem. Este dualismo divisionista, que tem marcado a Universidade, substitui em muitos momentos a visão pluralista e enriquecedora na construção dos conhecimentos. Diante dos desafios da sociedade contemporânea, o repensar da instituição universitária começa a ser uma necessidade dos diferentes povos e seus governos. Diferentes opções de modelos universitários são pensados de acordo com o grau de autonomia e as prioridades implementadas em cada país. O modelo brasileiro de ensino superior para a formação profissional, que vigora até a atualidade, está voltado para o mercado e busca um profissional com perfil para concorrer às ofertas de trabalho dali decorrentes. Diante da velocidade do conhecimento, das constantes mudanças do sistema produtivo, da complexidade das relações de produção e do tempo necessário para a consolidação de um processo de formação inicial, os modelos de ensino tradicionais, baseados na reprodução de perfis rígidos, previamente determinados, ficaram muito limitados. A partir da Revolução Científica, modificou-se radicalmente a compreensão e concepção teórica de mundo, ciência, verdade, conhecimento e método. Foi com Galileu e, posteriormente, com Newton e Kant, que o homem 77 imaginou ter o conhecimento total e fiel da realidade. O acesso à realidade através do experimento científico denominou-se Método Científico. A partir de então, o conhecimento verdadeiro foi considerado aquele determinado pela ciência. O sucesso do método científico-experimental predominou por três séculos e gerou tal confiabilidade que foi aplicado em todas as áreas do conhecimento humano. Para ter valor, o conhecimento deveria ser verificável experimentalmente e apresentar provas confirmadoras de sua veracidade. A contestação do método científico-experimental, baseada no caráter dinâmico da ciência e na historicidade dos princípios epistemológicos do fazer científico, foi progressiva no transcorrer do século XX. Nos dias atuais, consolida-se uma concepção de que “há tantos métodos quantos forem os problemas analisados e os investigadores existentes”. (KÖCHE, 1997) O uso direcionado e utilitarista do conhecimento, aplicado em tecnologia, faz com que se ignore ou se questione outros métodos além do científico- experimental, ainda utilizado, nestes casos, como verdade absoluta. Nesta concepção de ciência, a formação de nível superior, como é o caso da Agronomia, tem a realidade reificada e os olhos dos futuros engenheiros agrônomos só vêem aquilo que lhes é possibilitado enxergar. São treinados para difundirem determinadas tecnologias, independente da realidade trabalhada. A superação dessa condição de dominação tecnológica necessita, além de outras variáveis, de uma formação que tenha como princípio o desvelamento da realidade e que propicie um domínio metodológico pluralista ao educando. Sob o ponto de vista de diversas manifestações a respeito das expectativas de um perfil identificado com os desafios da sociedade contemporânea, inclusive dos setores empresariais modernos, o que se percebe é a busca cada vez maior de um profissional que desenvolva de forma integrada e harmônica: conhecimentos, habilidades e atitudes. Para NOVAES (1992), as inovações tecnológicas impõem mudanças nos perfis profissionais e no aperfeiçoamento e formação das pessoas. Mas, acrescenta que, se no século XX a velocidade dos conhecimentos tecnológicos predominaram, no século XXI esta explosão de conhecimentos só será sustentada se vier acompanhada do poder criativo nas artes e da reformulação de crenças para que o homem encontre pontos de equilíbrio nas suas necessidades, valores e atividades. Diante disso, a autora defende que “a universidade do futuro não terá função de ensinar, mas sim de abrir o revelável a quem quiser tomá-lo por conta própria, de produzir inventos que nutram o processo civilizatório e equilibrem o homem nos adventos cíclicos da humanidade”. Para ela o que se busca é: “a formação de um homem mais criativo que, deverá desenvolver a capacidade de suportar o incomensurável, conviver com a desordem e a contradição, dominar códigos 78 e linguagens mais complexas, refinar sua sensibilidade pela percepção das nuanças das diferenças, assumir os riscos da complexidade e do aprofundamento dos conhecimentos, transcender as dualidades dos saberes, compreender as mutações processuais, e sair do desencantamento racionalista para o reencantamento do imaginário”. SENGE (1990) aponta cinco disciplinas essenciais que devem ser agregadas à aprendizagem nas organizações, com ênfase nas pessoas e que permitirão a realização de seus objetivos. Os componentes indispensáveis descritos por Senge são: • Raciocínio sistêmico - identificado como visão do todo e das inter-relações; • Domínio pessoal - clarificação do objetivo individual que propicia a necessária concentração de energia e habilidades compatíveis com a realidade objetiva; • Modelos mentais - identificação, consciência e análise das imagens que influenciam no modo que cada indivíduo vê as coisas e seus respectivos comportamentos, como ferramenta de aprimoramento constante; • Objetivo comum - visão do futuro que se pretende construir coletivamente de forma compartilhada; • Aprendizado em grupo - iniciando pelo diálogo que se sobrepõe a idéias preconcebidas produzindo o “raciocínio em grupo”. O grupo e suas interações constituem-se unidades básicas do aprendizado, produzindo resultados positivos para a organização e seus integrantes. Numa realidade social de instabilidade e com múltiplos e complexos fatores que se inter-relacionam, ganha expressão a capacitação mais abrangente do profissional, especialmente aqueles que, pelo diferencial de formação superior, ocupam posições que influenciam aos segmentos sociais nos quais interagem. Essa posição tende a ser naturalmente de liderança, embora seus ocupantes nem sempre tenham consciência da própria influência e, menos ainda, do significado amplo que a palavra liderança tem recebido na atualidade . DRUCKER (1998) identifica o líder eficaz pelos seguintes aspectos: é alguém bastante visível que possui seguidores, portanto caracteriza-se pelo exemplo; não é necessariamente popular, mas obrigatoriamente produz resultados pelos quais possui responsabilidade, também identificada como responsabilidade social. KOUZES; POSNER (1997), executivos e consultores empresariais, que defendem a liderança como importante não apenas para as carreiras ou organizações, mas para qualquer tipo de relacionamento, descrevem-na como um desafio de todos e identificam como compromissos comportamentais da referida condição: 81 intuição, auto-aceitação, responsabilidade pessoal, assertividade, dinâmica de grupo e solução de conflitos. BAPTISTELLA (1994) destaca a relação direta entre a visão global do educando e as possibilidades de sucesso no seu futuro profissional. Espera-se que o profissional tenha inserção na realidade e valores sócio culturais e ambientais, um compromisso com o todo que compõe a sociedade em que atua. Entenda sua complexidade através de conhecimentos conceituais, técnicos, operacionais e vivenciais, contextualizados no tempo e espaço e indissociados de valores socioculturais e ambientais. Embora as ciências sejam divididas para fins didáticos, a vida é única. Se por um lado, cada disciplina pode agregar novas visões do todo, que se complementam e ampliam as opções, por outro lado, se não houver a opção clara pela interdisciplinaridade no sentido de entendimento e viabilização dos valores essenciais da vida, a fragmentação poderá ser perigosamente perniciosa. Daí a defesa da interdisciplinaridade e, mais ainda, da ação coletiva. Um dos temas do Primeiro Congresso Holístico Internacional de Brasília, cuja proposta foi repensar a Psicologia e a Educação sob uma visão pluridisciplinar, na busca de respostas aos desafios da última década, aponta a educação holística como alternativa para o que denomina como uma “era de síntese”. Ele defende a educação integral que, além de dedicar-se à pessoa como um todo, procura a integração de conhecimentos e culturas, visão planetária das coisas, equilíbrio entre teoria e prática, levando em conta o passado, presente e futuro. (NARANJO, 1991) DELUIZ (1996) integra grupo de pesquisa sobre o mundo do trabalho e formação profissional; apresenta sua proposta de formação numa perspectiva de politecnia, enfatizando a necessidade da “síntese dialética entre formação profissional e formação política, promovendo o espírito crítico” tanto para a qualificação individual, como o desenvolvimento autônomo e integral que possibilite, além da inserção e compreensão, o questionamento do mundo tecnológico e sociocultural. Destaca a necessidade de se discutir as novas competências e também o desenvolvimento do indivíduo socialmente competente. Caracterizando o indivíduo socialmente competente como aquele que busca autonomia e auto-realização frente a realidade histórica na qual atua e sobre a qual pensa, com capacidade para reagir à coerção da sociedade, questionar normas sociais e buscar novas regras e princípios para a ação individual e coletiva, identifica e agrupa as competências necessárias em: técnico-intelectuais, organizacionais e metódicas, comportamentais, sociais e comunicativas. CAPRA (1998), físico e pesquisador, publicou vários trabalhos sobre as implicações da ciência moderna, com capítulos específicos sobre economia, 82 crescimento econômico, saúde e descreve uma estrutura conceitual, com base no que chama uma nova visão da realidade, segundo uma concepção sistêmica da vida. Acredita em uma mudança ampla de concepção, extrapolando o modelo científico cartesiano (entitulado pelo autor de paradigma obsoleto) e que viria, através de um conjunto de modelos de abordagem sistêmica26, integrar vários ramos do conhecimento humano, cuja estrutura basicamente ecológica, considera tanto concepções de cultura tradicional como conceitos e teorias da física moderna. Considera esta base apropriada, tanto para as ciências do comportamento e da vida, quanto para as ciências sociais. A abordagem em desenvolvimento, que já possui muitos adeptos, transcende ao que já foi tentado - incluirá “dados ecológicos, fatos sociais e políticos e fenômenos psicológicos, com nítida referência a valores culturais”, ocupar-se-á de aspirações e potencialidades humanas integradas ao ecossistema global, sendo em essência “simultaneamente científica e espiritual”. Destaca a preocupação com a saúde em sentido amplo, descrevendo vários aspectos que esclarecem como o excessivo crescimento tecnológico e suas repercussões no ambiente tornou a vida física e mentalmente doentia (insalubre no processo de produção e consumo). Com relação à agricultura, defende práticas que preservem a integridade dos grandes ciclos ecológicos e o respeito à vida. O ideal também se constitui em um elemento importante da formação profissional. O médico, estudioso de assuntos de psiquiatria, filosofia e sociologia, INGENIEROS (1996), trata de maneira bastante profunda o assunto, trazendo a tona não somente a importância dos ideais para a evolução humana, como também aspectos da vida, que caracterizam a mediocridade e que impedem a formação desses, tais como: rotina, hipocrisia e servilismo. Na definição do autor, os ideais são formações naturais, que acontecem quando a função de pensar atinge tal desenvolvimento que a imaginação pode antecipar- se à experiência, concebendo aperfeiçoamentos no futuro, que se identifica com a perfeição. Também afirma que “todo o ideal representa um novo estado de equilíbrio entre o passado e o futuro”. Seu princípio básico é síntese e continuidade (idéia fixa ou emoção fixa), embora se modifique à medida que se amplia a experiência humana. Os ideais são acima de tudo crenças, cuja força sobre a conduta humana está na proporção direta do que se acredita, potencializada quando intensamente pensadas ou sentidas. Por trás dos grandes esforços realizados por homens ou povos, estiveram e estarão presentes ideais que, na visão de Ingenieros, são luzes que apontam o caminho e clareiam etapas da rota de evolução mental dos indivíduos de tempos em tempos. Os ideais conferem aos acontecimentos maior significado, vida e 26 O pensamento sistêmico, segundo CAPRA (1998), é pensamento de processo, ao qual é associada a forma, bem como à inter-relação e interação e os opostos complementam-se (unificam-se) pela oscilação. 83 calor. “A história da civilização mostra uma infinita inquietude de perfeições, que grandes homens pressentem, anunciam ou simbolizam”. Dizia Ingenieros, ainda em 1910, quando também caracterizou o idealista como homem qualitativo, que percebe a diferença entre o “ruim que observa e o melhor que imagina” e, com tais convicções, defendeu a reintegração dos ideais na filosofia científica como diferencial dos homens que honram as virtudes da espécie humana. Com a visão de ideal, como antecipação do que está por vir, influindo na conduta como instrumento natural de todo o progresso humano, diferencia instrução de educação: “Enquanto a instrução se limita a estender as noções que a experiência atual considera mais exatas, a educação consiste em sugerir os ideais que se presumem favoráveis à perfeição”. A representação de um ideal atual e emergente pode ser a crença na viabilidade e aplicabilidade da sugestão de CAPRA (1998) para restabelecer o equilíbrio e a flexibilidade nas instituições sociais, na economia e na tecnologia : “uma profunda mudança de valores”. Segundo o mesmo autor, “os sistemas de valores e a ética não são periféricos em relação à ciência e à tecnologia, mas constituem sua própria base e força propulsora”. As alterações de valores que sugere e que constata, também através de outros autores, como libertadoras e enriquecedoras para a vida humana, cuja escassez é mais existencial do que econômica, são as que caminham da auto-afirmação e da competição para a cooperação e justiça social; da expansão para a conservação; da aquisição material para o crescimento interior. Fala-se de mudança, inovação, responsabilidade ecológica e social e, para fazer frente a tais demandas, sugere-se a educação integral, conforme o novo paradigma holístico. Essa realidade pressupõe, mais do que treinamento de pessoas, demanda por desenvolvimento, resgate do humano como sujeito de si e de sua própria educação. FREIRE (1989) argumenta em defesa da educação, como dinamizadora do processo de mudança, através de um método ativo e participativo, firmando bases da aprendizagem: • Capacidade de auto-reflexão como desenvolvimento da consciência crítica, que reorganiza as experiências vividas, transformando a realidade. • A aprendizagem modifica o homem que, ao mesmo tempo em que se renova, mantém a própria identidade. Portanto, uma aprendizagem libertadora de conquista e aumento da autonomia. • A busca permanente como sujeito, e não objeto da educação; com a consciência da característica humana de ser inacabado. • A noção do tempo, que diferencia homens de animais, e caracteriza o homem como ser histórico, capaz de construir o futuro com base no passado. CARAVANTES; BJUR (1997), interpretando Paulo Freire, concluem:
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