Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

A comédia dos erros willian shakespeare, Manuais, Projetos, Pesquisas de Engenharia Mecânica

primeiro livro upado aki livro magnifico (minha opiniao)

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

Antes de 2010

Compartilhado em 08/08/2009

anderson-faria-11
anderson-faria-11 🇧🇷

4

(1)

2 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe A comédia dos erros willian shakespeare e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Engenharia Mecânica, somente na Docsity! A COMÉDIA DOS ERROS (The Comedy of Errors) William Shakespeare ÍNDICE ATO I Cena I Cena II ATO II Cena I Cena II ATO III Cena I A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (1 of 39) [04/04/2001 11:58:03] Cena II ATO IV Cena I Cena II Cena III Cena IV ATO V Cena I Personagens SOLINO, Duque de Éfeso. EGEU, mercador de Siracusa. ANTÍFOLO DE ÉFESO, filho de Egeu e de Emília. ANTÍFOLO DE SIRACUSA, filho de Egeu e de Emília. DRÔMIO DE ÉFESO, criado dos dois Antífolos. DRÔMIO DE SIRACUSA, criado dos dois Antífolos BALTASAR, mercador. ÂNGELO, ourives. Um mercador, amigo de Antífolo de Siracusa. Um segundo mercador, de quem Ângelo é devedor PINCH, mestre-escola e exorcista. EMÍLIA, esposa de Egeu, abadessa em Éfeso. ADRIANA, esposa de Antífolo de Éfeso. LUCIANA, sua irmã. LÚCIA, criada de Adriana. UMA CORTESÃ. O carcereiro, oficiais de justiça e gente do séqüito. ATO I Cena I Uma sala no palácio do duque. Entram o duque, Egeu, carcereiro, oficiais e séqüito. EGEU - Vamos, Solino; apressa a minha queda; de mim, com a morte, este martírio arreda. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (2 of 39) [04/04/2001 11:58:03] Cena II O mercado. Entram Antífolo de Siracusa, Drômio de Siracusa e um mercador. MERCADOR - Deveis dizer, por isso, que nascestes em Epidamno, para vos livrardes de ficar com os bens todos confiscados. Ainda hoje, um mercador de Siracusa foi preso, por haver desembarcado, e, porque a vida resgatar não pôde, há de, acorde com a lei desta cidade, vir a morrer, antes que o sol no ocaso fatigado se deite. Eis o dinheiro que em confiança me destes, ainda há pouco. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Drômio, leva-o ao Centauro, onde pousamos, e lá te deixa estar até que eu chegue. Para o jantar ainda falta uma hora; verei, enquanto espero, os mercadores, estudarei os usos da cidade e observarei seus belos edifícios Depois, de volta para a hospedaria, pretendo repousar, que a longa viagem me deixou lasso e exausto. Vai depressa. DRÔMIO DE SIRACUSA - Muita gente talvez tomasse à risca quanto dizeis e se pusesse ao fresco carregando tesouro tão opimo. (Sai.) ANTÍFOLO DE SIRACUSA - É um criado alegre, meu senhor, que muitas vezes, quando estou cheio de cuidados e de melancolia, me dissipa todo o humor com seus ditos prazenteiros. Ireis passear comigo na cidade, para depois jantarmos na estalagem? MERCADOR - Não, meu caro senhor; fui convidado por certos mercadores, com os quais conto realizar bons negócios. Desculpai-me. Mas às cinco horas nos encontraremos no mercado, se a idéia vos agrada, podendo, após, fazer-vos companhia até a hora de deitar. Negócio urgente me força a vos deixar por uns instantes. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Então até mais tarde; sem destino vou distrair-me a ver vossa cidade. MERCADOR - Ao vosso bem-estar vos deixo entregue. (Sai.) ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Quem ao meu bem-estar me deixa entregue, faz entrega de todo em todo inútil, pois é do que careço. Sou no mundo como uma gota de água que à procura de outra gota no oceano se encontrasse, e que, ao cair ali, toda desejos de achar a companheira, desaparece na busca, sem ser vista. Assim, comigo: para um irmão e minha mãe achar - pobre de mim! - me perco a procurá-los. (Entra Drômio de Éfeso.) Eis outra vez meu almanaque vivo. Que é que há? Por que voltaste assim tão cedo? DRÔMIO DE ÉFESO - Tão cedo? Perguntai por que tão tarde. O capão já tostou; caiu do espeto, de tanto ser virada, a bacorinha; já o relógio da torre deu doze horas e a patroa me deu uma no rosto; quente ela está por causa da comida que esfriou; a comida ficou fria por não terdes voltado para casa; não voltaste porque não tendes fome; não tendes fome por comido haverdes. Nós, porém, a jejuar nos encontramos; por vossa culpa em penitência andamos. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Detende esses pulmões, senhor: dizei-me onde está minha bolsa com o dinheiro. DRÔMIO DE ÉFESO - Oh! Aqueles seis pences que me destes na última quarta-feira com o encargo de pagar o conserto do rabicho da patroa? Ao seleiro os dei, senhor; não costumo furtar coisa nenhuma. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (5 of 39) [04/04/2001 11:58:03] ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não estou hoje para brincadeiras. Deixa de lado as graças e me dize, sem subterfúgios, onde está o dinheiro. Sendo nós estrangeiros na cidade, como te mostras tão remisso, ousando separar-te de soma tão vultosa? DRÔMIO DE ÉFESO - Por obséquio, senhor, deixai as graças para a hora do jantar. Vim procurar-vos como correio, de ordem da senhora; se sem vós eu voltar, é coisa certa meter-me na correia, que ela as vossas faltas há de gravar na minha pele. Penso que deveríeis ter no estômago, como eu, relógio certo, para a casa vos chamar, sem haver necessidade de nenhum mensageiro ou de recados. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Pára com isso, Drômio; essas graçolas vêm fora de propósito. Reserva-as para hora mais alegre. Onde puseste o ouro que te confiei? DRÔMIO DE ÉFESO - A mim, senhor? Não sei de ouro nenhum que me entregásseis. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Vamos, senhor velhaco, acabai logo com essas maluquices, e dizei-me de que modo a incumbência foi cumprida. DRÔMIO DE ÉFESO - Minha incumbência constitui apenas em vos vir procurar até o mercado e vos levar, senhor, a casa, à Fênix, para jantar. Por vós já estão à espera minha senhora e a irmã. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Ora, tão certo como eu ser batizado, me responde onde puseste a salvo o meu dinheiro; se não, te quebrarei essa cabeça jocosa, que só cuida de pilhérias, quando me acho indisposto. Dize logo: em que lugar puseste os meus mil marcos? DRÔMIO DE ÉFESO - Marcas vossas eu tenho na cabeça; nos ombros tenho marcas da patroa; mas, reunidas, mil marcos não perfazem. Se forçado eu me visse a restituí-las a Vossa Senhoria, é bem possível que não as recebêsseis com paciência. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Tua patroa? Que patroa, escravo? DRÔMIO DE ÉFESO - A senhora de Vossa Senhoria, minha patroa da estalagem Fênix, a mesma que jejua à vossa espera, para jantar e que vos pede, instante, irdes jantar com ela neste instante. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Como! Zombas de mim na minha frente, conquanto eu to proibisse? Então toma isto. (Bate-lhe.) DRÔMIO DE ÉFESO - Senhor, que pretendeis? A mão detende, por piedade! Se não, dos pés me valho. (Sai.) ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Sou capaz de jurar que esse malandro foi logrado e perdeu todo o dinheiro. Dizem que esta cidade abunda em fraudes, em escamoteadores astuciosos, feiticeiros noturnos que os sentidos confundem das pessoas, negras bruxas que matam a alma e o corpo informe deixam, charlatães convincentes, disfarçados embusteiros e muitos pecadores quejandos. Se tudo isso for verdade, não ficarei aqui. Vou ao Centauro dar outra coça nesse bandoleiro; temo que haja perdido o meu dinheiro. (Sai.) A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (6 of 39) [04/04/2001 11:58:03] ATO II Cena I Casa de Antífolo de Éfeso. Entram Adriana e Luciana. ADRIANA - Nem vem o meu marido nem o escravo que eu incumbi de o procurar com pressa. Devem ser duas horas, Luciana. LUCIANA - Talvez tenha sido ele convidado por algum mercador e, do mercado, tivesse ido jantar em qualquer parte. Mana, vamos comer; não te amofines. Da liberdade os homens são senhores; o tempo é o mestre deles; vão e vêm, conforme o tempo o enseja. Sê paciente. ADRIANA - Por que hão de ser mais livres do que nós? LUCIANA - Porque fora de casa têm negócios. ADRIANA - Se com ele desta arte eu procedesse, ficaria zangado. LUCIANA - Não ignoras que da tua vontade é freio o esposo. ADRIANA - Frear se deixam tão-somente os asnos. LUCIANA - A liberdade indócil é domada pela própria desgraça. Não há nada sob a vista do céu que não se mova num limite restrito, assim na terra como no ar e no mar. Todas as fêmeas dos animais, dos pássaros, dos peixes seguem ao macho e em tudo lhe obedecem. O homem, ser mais divino, senhor deles, dono do mundo todo, do mar vasto, que a superioridade do intelecto pós acima de pássaros e peixes, da esposa é dono e mestre. Assim, alegre, com ele em tudo concordar te cumpre. ADRIANA - Tanta humildade condiz mais com freira. LUCIANA - O medo é que me faz ficar solteira. ADRIANA - Casada, talvez fosses uma harpia. LUCIANA - A obedecer, de noiva aprenderia. ADRIANA - Se teu esposo a outra mulher amasse? LUCIANA - Em casa aguardaria o desenlace. ADRIANA - Sem ser provada, a paciência dura; calma é quem vive livre de tortura. Ao infeliz que a adversidade oprime é fácil animar num tom sublime; mas se igual fardo no ombro nos pesasse, nossa calma tomara-se falace. Por não teres marido que te oprima é que me fazes essa pantomima; mas se chegasses a te ver burlada, tua paciência acabaria em nada. LUCIANA - Hei de casar-me para ver se acerto. Eis o criado; o patrão deve andar perto. (Entra Drômio de Éfeso.) ADRIANA - Dizei se o vosso retardado mestre ao alcance da mão por fim se encontra. DRÔMIO DE ÉFESO - Fui eu que fiquei ao alcance das mãos dele, como dão testemunho as minhas A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (7 of 39) [04/04/2001 11:58:03] vos fazer de meu bobo, vossa audácia vos leva a exorbitar, até quererdes apalhaçar as minhas horas sérias. Quando o sol brilha, as moscas dançam ledas; mas, quando some, logo elas se escondem. Para poderdes discretear comigo será conveniente ver-me o rosto. Assim, pelos meus olhos, a atitude sabereis escolher. Caso contrário, vos meterei pela cabaça o método. DRÔMIO DE SIRACUSA - Cabaça lhe chamais? Eu preferia ter cabeça, uma vez que deixasses de a malhar. A continuardes desse jeito, vou procurar uma cabaça para forrar com ela a cabeça e não ter de procurar o espírito nas espáduas. Mas, por obséquio, senhor: por que me bateis? ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não sabes a causa? DRÔMIO DE SIRACUSA - Não sei nada, senhor, a não ser que estou a receber pancada. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Desejas que ta revele? DRÔMIO DE SIRACUSA - Perfeitamente, senhor, e também o seu porquê, pois dizem todos que não há causa sem porquê. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Pois foi porque te riste à minha custa. Agora vejamos o porquê: porque de novo riste de mim, quando eu falava sério. DRÔMIO DE SIRACUSA - Quem sova igual já tomou? Coisa assim nunca mais me aconteça, pois os porquês que aduzis são porqueiras sem pés nem cabeça. Obrigado, senhor. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Por que obrigado? DRÔMIO DE SIRACUSA - Ora, senhor, por essa coisa que me destes por coisa nenhuma. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Na próxima vez me corrigirei, dando-te coisa nenhuma por alguma coisa. Mas dizei-me, senhor: já são horas de jantar? DRÔMIO DE SIRACUSA - Não, senhor; a carne ainda não ficou como eu estou. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Como assim, senhor? Que é que lhe falta? DRÔMIO DE SIRACUSA - Ser batida. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Perfeitamente, senhor; com isso ela ficará seca. DRÔMIO DE SIRACUSA - Nesse caso, peço-vos não provar bocado. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Vossas razões? DRÔMIO DE SIRACUSA - Para não ficardes colérico outra vez e não tornardes a me bater. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Então, meu senhor, aprendei a gracejar só quando houver ocasião, porque para tudo há tempo certo. DRÔMIO DE SIRACUSA - Era o que eu ousaria contestar, antes de haverdes ficado tão colérico. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Em que razões vos firmais, senhor? DRÔMIO DE SIRACUSA - Ora, senhor, em uma razão tão reluzente como a careca reluzente do velho A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (10 of 39) [04/04/2001 11:58:03] Tempo. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Vamos ouvi-la, então. DRÔMIO DE SIRACUSA - Quem é calvo por natureza, em tempo nenhum recupera o cabelo. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não lhe seria possível conseguir isso por meio de um processo de posse absoluta? 126 DRÔMIO DE SIRACUSA - Sim, protestando pela posse de uma peruca, para ficar de posse dos cabelos de outra pessoa. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Por que motivo o Tempo é tão sovina de cabelo, quando é certo que este cresce com tanta liberalidade? DRÔMIO DE SIRACUSA - Isso é bênção que ele reserva aos animais; o que ele nega aos homens em cabelo, dá-lhes em inteligência. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - E por esse motivo que muita gente é dotada de mais cabelo do que inteligência. DRÔMIO DE SIRACUSA - Mas não há quem tenha inteligência para perder o cabelo. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Concluíste há pouco que as pessoas de muito cabelo são lorpas destituídos de espírito. DRÔMIO DE SIRACUSA - Quanto mais lorpa, mais cabelo perde; contudo, perde sempre com alegria. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - E a razão disso? DRÔMIO DE SIRACUSA - São duas as razões, senhor, e ambas de peso. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - De peso é que não devem ser. DRÔMIO DE SIRACUSA - Razões seguras, pelo menos. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Dize quais são elas. DRÔMIO DE SIRACUSA - A primeira é economizar o dinheiro que deveria gastar com o penteador; a segunda, ficar livre de lhe cair o cabelo na sopa. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Durante todo esse tempo, queríeis provar que não há tempo para tudo. DRÔMIO DE SIRACUSA - E consegui-o, senhor, a saber: não há tempo para recuperarmos o cabelo perdido pela natureza. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Mas não apresentaste razão substancial do porquê de não haver tempo de recuperá-lo. DRÔMIO DE SIRACUSA - Então, corrijo em tempo: por ser calvo o Tempo, há de ter até ao fim do mundo seguidores calvos. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Previa que a conclusão ia ser calva. Mas, devagar: quem é que nos está a A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (11 of 39) [04/04/2001 11:58:03] fazer sinais dali? (Entram Adriana e Luciana.) ADRIANA - Sim, sim, Antífolo, o conspecto franze, lança-me olhar severo. A outras mulheres dedica só blandícias. Tua esposa não sou; não sou Adriana. Houve já tempo em que espontaneamente me juravas que nenhuma palavra te era música aos ouvidos, os olhos coisa alguma te distraía, nada te causava prazer ao tacto, ao paladar comida nenhuma te sabia, senão minha fala, e o conspecto meu, o meu contacto, e o assado que por minha mão te dava. Que aconteceu, querido esposo, para que estranho, assim, ficasses de ti mesmo? Sim, de ti mesmo, disse, pois te encontras afastado de mim, que inseparável sendo de ti, me considero ainda melhor que a melhor parte de ti mesmo. Pois sabe, meu amor: fora mais fácil no mar deitares uma gota de água para, intacta, depois a recolheres, sem adição nenhuma ou qualquer perda, do que sem mim de mim te retirares. Como ficaras no âmago ferido se, quando nada, alguém fosse contar-te que eu era licenciosa e que este corpo a ti, só, consagrado, ora poluído pela bestial luxúria se encontrava? Em tua indignação, não me cuspiras, aos pés não me calcaras, nestas faces não jogaras o nome de marido, não me rasgaras a manchada cute da fronte infiel, e desta mão perjura a aliança nupcial não arrancaras, com a maldição quebrando-a do divórcio? Sei que o farias. Pois então não tardes: a mancha do adultério em mim se alastra; trago no sangue o crime da luxúria, pois se ambos somos um, e prevaricas, na carne trago todo o teu veneno, por teu contágio me tornando impura. Ao nosso leito, pois, sê infiel aliado; só assim serei pura e tu honrado. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Falais comigo, mui graciosa dama? Não vos conheço, pois há duas horas que a Éfeso cheguei, tão estrangeiro à cidade como a isso que dissestes. Sou de espírito parco de recursos para entender sequer vossos discursos. LUCIANA - Ora, irmão! Pode o mundo mudar tanto? Quando a mana trataste desse modo? Ela mandara te chamar por Drômio... ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Por Drômio? DRÔMIO DE SIRACUSA - Por mim? ADRIANA - Por ti... E esta resposta me trouxeste: que ele te esbofeteara e, com seus golpes, dissera não ser dele a minha casa e que eu consorte sua jamais fora. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Conversaste, senhor, com esta senhora? Qual a intenção de toda esta conjura? DRÔMIO DE SIRACUSA - Eu, senhor? Nunca a vi até este instante. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Mentes, vilão! Que há pouco, no mercado, me transmitiste esse recado mesmo. DRÔMIO DE SIRACUSA - Eu nunca lhe falei em toda a vida. ANTÍFOLOO DE SIRACUSA - Como sabe ela, então o nosso nome? Só se é inspiração. ADRIANA - Como desdiz de tanta gravidade desta arte conchavar com vosso escravo e espicaçá-lo a me fazer pirraças! Seja embora eu culpada de tudo isso, não me façais assim tão mau serviço, aumentando com vossa zombaria a imensa dor que a vida me abrevia. De vós não mais me afastarei... Oh! Ride! Sois o olmo, meu marido; eu, vossa vide, cuja fraqueza à vossa força aliada em rijeza tran.sforma-se A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (12 of 39) [04/04/2001 11:58:03] DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - Abrir, caro senhor? Falta saber por quê. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Por quê? Para jantar. De fome estou varado. DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - Então ide a outra parte; aqui já houve assado. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Quem és, que assim me pões de minha casa fora? DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - Drômio, caro senhor, gentil porteiro agora. DRÔMIO DE ÉFESO - Roubaste-me, vilão, o ofício e o próprio nome. Aquele me valeu estar morrendo à fome; o outro me rende mais: pancada e insultos a esmo. Mas se tivesse sido, há pouco, Drômio mesmo, por outro nome o teu terias já trocado e desejaras ser mero asno do mercado. LÚCIA (dentro) - Drômio, que barulheira é essa no portão? Quem bate assim? DRÔMIO DE ÉFESO - É o mestre, Lúcia; abres ou não? LUCIA (dentro) - Chegou tarde demais. Vai; dize ao patrão isso. DRÔMIO DE ÉFESO - Só rindo muito, oh Deus! De tanto rebuliço. Mas conheceis, acaso, um dito muito certo, de que uma boa sova, às vezes... LUCIA (dentro) - Oh! decerto! faz esquecer a fome a quem não vê comida. DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - Se tu te chamas Lúcia, ó Lúcia, és bem sabida! ANTÍFOLO DE ÉFESO - Pequena, não me ouviste? Aqui fala o patrão. LÚCIA (dentro) - Já vos perguntei isso. DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - E vós dissestes "não". DRÔMIO DE ÉFESO - Boa resposta, agora; estamos mão por mão. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Vamos, idiota, abri! LÚCIA (dentro) - Pois não, caro senhor; mas primeiro contai-me a causa desse ardor. DRÔMIO DE ÉFESO - Mestre, arrombai a porta. LÚCIA (dentro) - Assim; malhai de rijo. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Deixa, que, após abri-la, a prosa eu te corrijo. LÚCIA (dentro) - Se eu chamar pela guarda, ireis todos de embrulho. ADRIANA (dentro) - Drômio, que significa à porta esse barulho? DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - Que posso eu vos dizer? Mas estranhar não há de quem tiver visto o que eu já vi nesta cidade. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Esposa, quero ver-te; a fome não me importa. ADRIANA (dentro) - Tua esposa, tratante? Afasta-te da porta. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (15 of 39) [04/04/2001 11:58:04] DRÔMIO DE ÉFESO - Esse "tratante", mestre, a honra vos deixa torta. ÂNGELO - Não acharemos cá nem prosa nem comida. BALTASAR - E nós a discutir qual fosse a preferida! DRÔMIO DE ÉFESO - Mandai-os, mestre, entrar, que a fome é desabrida. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Há qualquer coisa no ar que nos impede a entrada. DRÔMIO DE ÉFESO - Com essa capa, mestre, o frio é quase nada. Nós gememos cá fora, enquanto na lareira, lá dentro, o fogo estrala: é bela a brincadeira. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Vou arrombar a porta e a todos dar o troco. DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - Vinde, que eu vos prometo abrir em dois o coco. DRÔMIO DE ÉFESO - Fácil é prometer; mas com facilidade não se transforma em ato um soco de verdade. DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - Vejo que de apanhar tu tens muita vontade. DRÔMIO DE ÉFESO - Vamos, deixa-me entrar; quero ir até à cozinha. DRÔMIO DE SIRACUSA (dentro) - Pois não, caro senhor; mas só quando a galinha penas já não tiver e o peixe reluzente puder no mar viver sem guelras e contente. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Vou arrombar a porta; arranja uma alavanca. DRÔMIO DE ÉFESO - Uma alavanca, mestre? Agora, sim, a tranca no gajo vai saltar e, como o seu peixinho sem guelras, ele passa a bocejar sozinho. ANTÍFOLO DE ÉFESO - A alavanca! Depressa! Há muita urgência! BALTASAR - Em tudo; amigo, é de mister paciência. Com isso fazeis guerra à vossa própria reputação, chamando para dentro do âmbito da malícia a honra impoluta de vossa digna esposa. A comprovada prudência que lhe é própria, a alta virtude, os anos, a modéstia, valer fazem a seu favor alguma causa oculta para tal proceder, a qual vos foge. Não o duvideis, senhor, mas é certeza que ela vai desculpar-se, revelando-vos o motivo de estar fechada a porta. Deixai que eu vos oriente neste passo. Retirai-vos paciente; vamos todos jantar no Tigre, e quando já for noite, sozinho voltareis para saberdes a razão desta insólita recusa. Se vos dispondes a empregar violência numa ocasião de tanto movimento, hão de surgir, por certo, comentários que, pela turba ignara propalados, a despeito do vosso nome limpo, acolhida acharão por toda parte, até mesmo na vossa sepultura, quando já não viverdes. Que a calúnia, como bens transmitidos por herança, sempre cresce onde venha a encontrar ansa. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Tendes razão; vou retirar-me quieto e, embora a contragosto, hei de esforçar-me por parecer alegre. Ora me lembro de uma donzela de agradável prosa, bonita, espirituosa, algo estouvada, mas, no fundo, gentil. Por causa dessa criatura minha esposa - sem motivos para isso, vos afirmo - muitas vezes tem feito cenas de ciúme incríveis. Vamos jantar com ela. (A Ângelo.) Ide a cadeia buscar em vossa casa, pois já deve estar pronta, e levai-a ao Porco-espinho que é onde mora a mulher de que vos disse. Vou dar-lhe essa cadeia, mas que seja só para minha esposa ficar fula. Nossa hospedaria A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (16 of 39) [04/04/2001 11:58:04] ganhará o presente.Ide, senhor; não percais tempo: há urgência. Já que meu lar se me tornou inimigo, verei se alhures bem-estar consigo. ÂNGELO - Pretendo lá chegar dentro de uma hora. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Vai ficar cara a brincadeira... Embora! (Saem.) Cena II O mesmo. Entram Luciana e Antífolo de Siracusa. LUCIANA - Como se dá que te hajas esquecido dos deveres de esposo? Que a sincera floração de um amor tão belo e fido tenha fanado em plena primavera? Na construção, o amor só faz ruínas? Se desposaste minha irmã somente pela sua riqueza e ora a abominas, sê, ao menos, com ela mais clemente. Se amas alhures, usa de cautela; esconde o falso amor num manto escuro; não faças desses olhos a janela por onde ela entreveja o seu futuro. Arauto da desonra não consintas que tua língua se torne; a deslealdade se mascara com frases indistintas que o sentimento revelar não há de. Sê de olhar meigo; ao vício dá aparência de álacre mensageiro da virtude; guarda em todos os atos conveniência, embora abrigues no imo o crime rude. Ensina a santidade ao vício imundo; sê perjuro em segredo. Por que dares de ti conhecimento a todo o mundo? Que malfeitor assume os próprios ares? Duplamente a ofendeste, quando, à mesa, mostraste que traidor foste ao seu leito; bastarda fama alcaçará a vileza, se de fraseado se valer com jeito. Pobres mulheres! Dai-nos a ilusão de que somos realmente idolatradas; deixai a luva e retirai a mão, que inda vos perdoarão essas coitadas. Voltai, por isso, mano, sem demora; ide falar com a mana e consolá-la, que um halo santo a insensatez decora, quando promove paz fingida fala. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Suave senhora, ignoro vosso nome, nem sei por que prodígio o meu soubestes, a não ser que à beleza se vos some algo de espírito e poder celestes. Ensinai-me a pensar, doce criatura; mostrai à minha inata grosseria, fraca, propensa a errar, de essência impura, da vossa meiga voz toda a magia. Por que lutais contra minha alma ingênua, levando-a por caminho não trilhado? Sois deusa? Desejais que de alma estrênua, depois de eu renascer, fique dotado? Então me transformai, que ao vosso encanto nada terei a opor. Mas, se é verdade que eu sou eu mesmo, o irreprimível pranto de vossa bela irmã fazer não há de que eu me convença de que sou casado nem de que ao leito dela fui perjuro. A vós é que me sinto agrilhoado; a vós, tão-só, me prende o amor mais puro. Oh! não me arrastes, divinal sereia, com tua voz a perecer nas ondas que tua irmã provoca. A mágoa alheia não deve preocupar-nos. Não te escondas de minha vista; deixa que o teu canto pleiteie a tua causa; a coma de ouro sobre as ondas espalha, porque o espanto me leve a cobiçar esse tesouro. E nesse leito, assim, acalentado pela ilusão, encontrarei a morte, sem maldizer, contudo, do meu fado: que morra o leve amor, se não tem sorte. LUCIANA - Que espécie de loucura vos domina? ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não é loucura; é a minha triste sina. LUCIANA - De vossos olhos nasce a causa disso. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Por perto estardes, sol: eis o feitiço. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (17 of 39) [04/04/2001 11:58:04] cachorro seria, ou copeiro da bruxa potente. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não percas tempo; vai direito ao porto. Se houver, acaso, vento favorável, não passarei a noite na cidade. Se achares algum barco quase pronto para sair, volta depressa; eu fico no mercado, passeando, à tua espera. Se todos nos conhecem, e eu ninguém, demorar na cidade não convém. DRÔMIO DE SIRACUSA - Como quem de urso foge e até da Morte, fujo eu de quem me quer para consorte. (Sai.) ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Neste lugar só moram feiticeiras; é tempo de tratar de sair dele. Aquela que me chama de marido não a aceita minha alma como esposa. Mas sua bela irmã possui tal graça, tão soberano olhar, fala aprazível, presença encantadora, que, por pouco fiquei traidor de minha própria causa. Antes de cometer ação tão feia, ficarei surdo ao canto da sereia. (Entra Ângelo.) ÂNGELO - Mestre Antífolo! ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Pronto; assim me chamo ÂNGELO - Sei disso, meu senhor. Eis a cadeia. Pensei em vos achar no Porco-espinho; só demorei para acabar a obra. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Que desejais que eu faça desse mimo? ÂNGELO - O que quiserdes; para vós foi feito. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Para mim? Sem o ter encomendado? ÂNGELO - Não uma vez, nem duas, mas duzentas. Fazei dela presente a vossa esposa; ao jantar vos farei uma visita, para que me pagueis o meu trabalho. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Então recebei logo o que vos devo, que é possível não mais pordes os olhos em cima da cadeia e do dinheiro. ÂNGELO - Sois muito espirituoso; passai bem. (Sai, deixando a cadeia.) ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não sei o que pensar disto, também. Mas uma coisa é certa: ninguém há de recusar um tal mimo por vontade. Pelo que vejo, aqui, e aqui somente, em plena rua ganha-se presente. Vou esperar por Drômio no mercado; havendo barco, fujo de bom grado. (Sai.) ATO IV A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (20 of 39) [04/04/2001 11:58:04] Cena I Uma praça pública. Entram o segundo mercador, Ângelo e um oficial de justiça. MERCADOR - Desde o passado Pentecoste a conta me ficaste devendo, sem que a afronta de vos cobrar té agora eu vos fizesse; nem a faria ainda, se não fosse ter de ir à Pérsia e estar necessitado de florins para a viagem. Por tudo isso, dai-me satisfação; caso contrário, este oficial tem ordem de prender-vos. ÂNGELO - Antífolo me deve justamente a soma que eu vos devo Neste instante deixei com ele uma cadeia de ouro, cujo importe às cinco horas será pago. Se a bondade tiverdes de ir comigo até sua casa, saldarei a dívida e me confessarei muito obrigado. (Vindo da casa da Cortesã, entram Antífolo de Éfeso e Drômio de Éfeso.) OFICIAL - Poupai-vos do trabalho; ei-lo que chega. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Enquanto o ourives eu procuro, trata de comprar uma corda, cujas pontas destino a minha esposa e seus comparsas, por me terem vedado, em pleno dia, a entrada em minha casa. Não demores; compra a corda depressa e leva-a a casa. DRÔMIO DE ÉFESO - Comprarei uma renda de mil libras! Vou comprar logo a corda. (Sai.) ANTÍFOLO DE ÉFESO - Bem aviado ficará quem em vós tiver confiança. Dissestes que a cadela levaríeis, mas visita nenhuma me fizestes. Certamente não foste, por pensar que o nosso amor seria mais durável nos liames da cadeia; e, assim, faltastes. ÂNGELO - Pondo de parte o vosso humor jocoso, eis a nota do peso da cadeia, té o último quilate. A qualidade do ouro e a mão de obra dispendiosa, soma perfazem superior de três ducados à que eu devo a este amável cavalheiro. Por isso vos suplico lhe pagardes, pois precisa viajar, só estando, agora, a aguardar que eu a dívida liquide. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Não tenho aqui dinheiro suficiente para essa conta. Além do mais, preciso fazer alguns negócios na cidade. Ide, meu bom senhor, com este estrangeiro, à minha residência, sem deixardes de levar a cadeia. Minha esposa vos pagará a soma combinada. É bem possível que cheguemos juntos. ÂNGELO - Então vós mesmo levareis o mimo? ANTÍFOLO DE ÉFESO - Não; levai-o vós mesmos; estou com pressa. ÂNGELO - Muito bem; a cadeia está convosco? ANTÍFOLO DE ÉFESO - Uma vez que comigo não se encontra, convosco está, decerto. Do contrário, força será voltardes sem dinheiro. ÂNGELO - Por obséquio, senhor, dai-me a cadeia, pois este cavalheiro está com pressa, que os ventos e a maré têm prazo certo. Para minha vergonha, já o retive mais do que fora justo. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Ora, senhor, lançais mão desse plano, como escusa por haverdes faltado com a palavra de irdes ao Porco-espinho. A mim cabia censurar-vos a falta; ao invés disso, deblaterais como mulher furiosa. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (21 of 39) [04/04/2001 11:58:04] MERCADOR - Senhor, as horas passam; vamos logo. ÂNGELO - Bem vedes como agora ele se esquiva. A cadeia... ANTÍFOLO DE ÉFESO - Levai-a à minha esposa; ela vos pagará. ÂNGELO - Vamos com isso; sabeis que eu vo-la dei faz pouco tempo. Dai-me um sinal qualquer, ou devolvei-a. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Ora, a pilharia passa dos limites. A cadeia, senhor! Deixai-me vê-la. MERCADOR - Não tenho tempo para tais parlendas. Dizei-me, bom senhor, vosso propósito: pagais ou não? No caso de recusa, farei que este oficial o leve preso. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Eu pagar-vos? Dizei: quanto vos devo? ÂNGELO - O preço, justamente, da cadeia. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Nada vos devo, enquanto não for minha. ÂNGELO - Sabeis que vo-la dei há meia hora. ANTÍFOLO DE ÉFESO - A mim não destes nada; isso me ofende. ÂNGELO - Mais me ofendeis, senhor, negando o fato. Considerai que nisso empenho o crédito. MERCADOR - Muito bem. Oficial, por queixa minha, prendei-o sem demora. OFICIAL DE JUSTIÇA - Agora mesmo. Em nome, pois, do duque, obedecei-me. ÂNGELO - Minha reputação sofre com isso. Ou me pagais o preço da cadeia, ou vos farei prender in continenti. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Consentir em pagar o que não devo? Manda prender-me, estúpido, se o ousares. ÂNGELO - Oficial, eis o vosso emolumento; prendei-o a meu pedido. Em circunstâncias como esta, ao próprio irmão eu não poupara, se tentasse ofender-me assim de público. OFICIAL DE JUSTIÇA - Estais preso, senhor; a queixa ouvistes. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Sim, obedeço até pagar a fiança. Mas, por Deus, pagareis a brincadeira com quanto ouro tiverdes na oficina. ÂNGELO - Ora, senhor, hei de achar leis em Éfeso, não o duvido, para vosso opróbrio. (Entra Drômio de Siracusa.) DRÔMIO DE SIRACUSA - Mestre, há no porto um barco de Epidamno, que aguarda tão-somente o proprietário para partir. Já pus a bordo toda nossa bagagem. Comprei óleo, bálsamo e aqua-vitae. De jeito está o navio; sopra fresco de terra o alegre vento. Só a vós e ao dono, mestre, eles aguardam. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Que é isso? Estás maluco? Que navio de Epidamno por mim está esperando? DRÔMIO DE SIRACUSA - O navio, senhor, que me incumbistes de procurar para comprar passagem. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (22 of 39) [04/04/2001 11:58:04] ADRIANA - Eis o dinheiro, Drômio; vai depressa e traze o teu senhor já para casa. De um pensamento, irmã, estou possessa, que ora me deixa fria, ora me abrasa. (Saem.) Cena III Uma praça pública. Entra Antífolo de Siracusa. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não encontro ninguém nesta cidade que não me cumprimente como a velho conhecido. Meu nome todos sabem. Uns, dinheiro de empréstimo oferecem; outros me invitam para cearmos juntos; muitos se mostram gratos por finezas que eu lhes houvesse feito; outros insistem porque lhes compre as mais variadas coisas. Em sua loja, há pouco, um alfaiate me fez entrar, para mostrar-me sedas que para mim comprara e, sem delongas, tomou minhas medidas. Com certeza tudo isso é fantasia; aqui residem, decerto, os feiticeiros da Lapônia. (Entra Drômio de Siracusa.) DRÔMIO DE SIRACUSA - Eis o dinheiro, mestre, que pedistes. Mas, como conseguistes ver-vos livre do retrato do velho Adão de farda? ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Dinheiro que eu pedi? Que Adão é esse? DRÔMIO DE SIRACUSA - Não me refiro ao Adão que guardava o paraíso, mas ao Adão que é guarda da cadeia, o que se veste com a pele do bezerro matado para o filho pródigo, o que marchava por trás de vós, senhor, como anjo do mal e vos intimou a abandonar a liberdade. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não te compreendo. DRÔMIO DE SIRACUSA - Não? Pois é muito simples: refiro-me ao sujeito que anda como um rabecão, numa caixa de couro; o indivíduo, senhor, que dá empurrões nos cavalheiros fatigados e os obriga a repousar; o mesmo que se apiada das pessoas arruinadas e lhes arranja um fato indesfiável; é o tal, em suma, que se gaba de fazer mais piruetas com a sua clava do que os dançarinos com a lança mouresca. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Como assim? Referes-te a algum oficial de justiça? DRÔMIO DE SIRACUSA - Perfeitamente, senhor, ao sargento dos títulos, o mesmo que chama responsabilidade as pessoas que não pagam as suas obrigações e que diz a toda a gente: "Deus vos dê bom repouso", como se todo o mundo estivesse no ponto de ir para a cama. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Muito bem, senhor; ponde remate a essas tolices. Nenhum navio zarpará esta noite? Saímos ou não desta cidade? DRÔMIO DE SIRACUSA - Como não, senhor! Há uma hora vos disse que o barco "Velocidade" partirá esta noite, justamente quando o sargento vos deteve e vos obrigou a aguardar a chalupa "Retardo". Aqui estão os anjos que me mandastes buscar, para que vos livrassem. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Este velhaco está louco de todo, tal como eu. É ilusão tudo o que vemos. Daqui nos tire algum poder celeste! (Entra zona cortesã.) CORTESÃ - Mestre Antífolo, salve! Vejo agora que encontrastes o ourives, finalmente. É essa a cadeia que me prometestes? A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (25 of 39) [04/04/2001 11:58:04] ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Retira-te, Satã! Não me persigas. DRÔMIO DE SIRACUSA - Mestre, essa é a senhora Satã? ANTÍFOLO DE SIRACUSA - É o diabo. DRÔMIO DE SIRACUSA - Não, é pior do que isso: é a avó do diabo, que nos aparece sob a forma de uma meretriz leve; de aí o costume de dizerem as meretrizes: "Deus me dane!" que é como se dissessem: "Deus faça de mim uma donzela leviana!" Está escrito que elas aparecem aos homens como anjos leves de luz. Ora, a luz é uma conseqüência do fogo, e o fogo queima. Logo, as donzelas levianas queimam. Não vos aproximeis dela. CORTESÃ - Vosso criado, senhor, e vós estais hoje muito espirituosos. Não quereis vir comigo? Poderemos comprar aqui perto alguma coisa para cearmos. DRÔMIO DE SIRACUSA - Mestre, se fordes cear e houver probabilidade de tomardes sopa, muni-vos de uma colher comprida. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Por que, Drômio? DRÔMIO DE SIRACUSA - Ora, porque quem come com o diabo precisa ter uma colher comprida. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Demônio, para trás! Por que o convite para cearmos? Como as outras todas, és uma bruxa. Assim, eu te conjuro a me deixares e ires daqui logo. CORTESÃ - Dai-me o anel que ao jantar me arrebatastes, ou, em troca, a cadeia prometida, que eu sairei, senhor, sem molestar-vos. DRÔMIO DE SIRACUSA - Às vezes o demônio pede apenas as aparas das unhas, um cabelo,uma gota de sangue, uma pevide de cereja, uma noz, um quase nada. Esta, porém, mais ambiciosa, pede somente uma cadeia... Cuidado, mestre! Se lhe derdes isso, sacudindo as correntes, o demônio sem demora virá meter-nos medo. CORTESÃ - Senhor, o anel, ou então dai-me a cadeia. Não acredito que queirais lograr-me. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Corre, Drômio, que é tempo. E tu, ó bruxa, fora! DRÔMIO DE SIRACUSA - Disse o pavão: que orgulho! Ouviste-lo, senhora? (Saem Antífolo de Siracusa e Drômio de Siracusa.) CORTESÃ - Não há dúvida: Antífolo está louco; se não, não se aviltara desse modo. Ficou com meu anel que vale cerca de quarenta ducados, prometendo que em paga me daria uma cadeia. No entanto, agora nega ambas as coisas. A principal razão de o julgar louco, sem falarmos no acesso de há momentos, se cinge à história singular que à mesa do jantar me contou, de que se achava impedido de entrar na própria casa. Só se a mulher, por ver o seu estado, mandou fechar a porta de propósito. Só me resta o recurso de ir à casa de Antífolo e contar à sua esposa que ele, por ter ficado de repente desassisado, me invadiu a casa e o anel me arrebatou. Sim, farei isso; reaver o anel perdido é bom serviço. (Sai.) A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (26 of 39) [04/04/2001 11:58:04] Cena IV Uma rua. Entram Antífolo de Éfeso e um oficial de justiça. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Nada temas, amigo, que eu não fujo. Antes de te deixar dar-te-ei a soma justa da minha fiança. Minha esposa desde hoje está de gênio insuportável. Certamente não deu crédito fácil ao mensageiro que levou a notícia de que eu me achava em Éfeso detido. Semelhante notícia - é o que vos digo - lhe há de ter parecido muito estranha. (Entra Drômio de Éfeso com uma corda.) Meu criado vem vindo. Com certeza traz o dinheiro. Então, senhor, trouxestes a encomenda de que eu vos incumbira? DRÔMIO DE ÉFESO - Aqui está o com que dar a eles todos o troco suficiente. ANTÍFOLO DE ÉFESO - E o meu dinheiro? DRÔMIO DE ÉFESO - Ora, senhor, gastei-o nesta corda. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Quatrocentos ducados pela corda? DRÔMIO DE ÉFESO - Com isso, quatrocentas vos comprara. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Que foi que eu te mandei buscar em casa? DRÔMIO DE ÉFESO - Uma corda, senhor; eis-me de volta. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Recebe, então, de volta este presente. (Bate-lhe.) OFICIAL DE JUSTIÇA - Senhor, tende paciência. DRÔMIO DE ÉFESO - Paciência preciso eu, que estou apanhando. OFICIAL DE JUSTIÇA - Filho, detém a língua. DRÔMIO DE ÉFESO - Mandai, então, que ele detenha o braço. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Descarado! Vilão insensível! DRÔMIO DE ÉFESO - Desejara ser insensível, senhor, para não sentir vossas pancadas. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Só és sensível à pancada, tal qual um asno. DRÔMIO DE ÉFESO - Sou um asno, realmente; e a prova são estas orelhas compridas. Eu o servi desde o dia de meu nascimento até hoje, não tendo recebido em pagamento senão pancada. Quando estou com frio, ele me aquece com pancada; quando estou quente, ele me esfria com pancada; se durmo, é com pancada que ele me esperta; se me sento, com pancada me faz levantar; quando saio à rua, é com pancada que ele me faz atravessar a porta sendo, também, com pancada que me dá as boas-vindas. Carrego as pancadas nos ombros, como os mendigos os seus fedelhos, e estou certo de que, quando ele me deixar aleijado, terei de mendigar com elas de porta em porta. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Vamos saindo daqui, que minha mulher já chega. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (27 of 39) [04/04/2001 11:58:04] ADRIANA - Oficial insensato, que pretendes? Tens alegria à vista de um coitado que a si mesmo se ultraja e faz violência? OFICIAL DE JUSTIÇA - Ele é meu prisioneiro; se o levardes, de mim exigirão quanto ele deve. ADRIANA - Antes de ir, desobrigo-te de tudo. Leva-me ao seu credor, para que eu saiba quanto ele deve e a dívida resgate. Meu bom mestre doutor, levai-o a casa com toda a segurança. Oh dia infame! ANTÍFOLO DE ÉFESO - Oh prostituta infame! DRÔMIO DE ÉFESO - Mestre, por vós me vejo agora preso. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Cala-te, biltre, que me deixas louco. DRÔMIO DE ÉFESO - Quereis que vos amarrem sem motivo? Ficai louco e gritai: Aqui, diabo! LUCIANA - Quanta tolice esses coitados dizem! ADRIANA - Levai-os logo. Irmã, vinde comigo. (Saem Pinch, os criados, Antífolo de Éfeso e Drômio de Éfeso.) Dizei: à ordem de quem foi ele preso? OFICIAL DE JUSTIÇA - De um tal Ângelo, ourives. Conhecei-lo? ADRIANA - Conheço, sim; e a quanto monta a dívida? OFICIAL DE JUSTIÇA - A duzentos ducados. ADRIANA - De que compra? OFICIAL DE JUSTIÇA - De uma cadeia que lhe encomendara vosso marido. ADRIANA - Soube que ele havia feito a encomenda para mim; contudo, nunca vi a cadeia. CORTESÃ - Pouco tempo depois de entrar, furioso, em minha casa vosso marido e arrebatar-me a jóia - a mesma que lhe vi no dedo há pouco - com uma cadeia ao colo o vi de novo. ADRIANA - É bem possível; porém nunca a vi. Ao ourives levai-me, carcereiro; quero ficar a par de tudo o que houve. (Entram Antífolo de Siracusa e Drômio de Siracusa, com espadas desembainhadas.) LUCIANA - Deus nos acuda! Estão de novo soltos! ADRIANA - E de espadas na mão! Chamai mais gente, para os prender. OFICIAL DE JUSTIÇA - Vão nos matar; fujamos. (Saem Adriana, Luciana e o oficial de justiça.) ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Pelo que vejo, as duas feiticeiras a espada as amedronta. DRÔMIO DE SIRACUSA - A que queria ser vossa esposa, agora vos evita. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Vai ao Centauro e tira as nossas coisas. Não vejo a hora de entrarmos no navio. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (30 of 39) [04/04/2001 11:58:04] DRÔMIO DE SIRACUSA - Ora, senhor, ficai mais esta noite; não nos farão nenhum mal. Bem vedes que nos dirigem palavras amáveis, dão-nos dinheiro... Parece tratar-se de uma nação muito amável; se não fosse a tal montanha de carne louca, que me reclama para esposo, não importaria de viver aqui e virar bruxo. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Nem por toda a cidade eu passo a noite. neste lugar. Por isso, não demores: vai logo pôr a bordo nossas coisas. (Saem.) ATO V Cena I Uma rua defronte da Abadia. Entram o mercador e Ângelo. ÂNGELO - Fico triste por ter-vos retardado; mas, em verdade, posso asseverar-vos que lhe dei a cadeia, embora o negue por maneira tão fria e desonesta. MERCADOR - Em que conceito é tido na cidade? ÂNGEL0 - No mais alto; é de crédito infinito, muito estimado, de impoluto nome; na cidade é o primeiro, sempre, em tudo. Uma palavra sua, em qualquer tempo, me faria empenhar toda a fortuna. MERCADOR - Falai baixo; ei-lo aqui, se não me engano. (Entram Antífolo de Siracusa e Drômio de Siracusa.) ÂNGELO - Justamente, e ao pescoço traz a mesma cadeia que por modo tão monstruoso negou ter recebido. Ficai perto de mim; vou lhe falar. Senhor Antífolo, muito me admira o incômodo e a vergonha que me causastes - não sem vos manchardes algum tanto - por terdes protestado sob juramento e com tamanho afinco, não vos ter eu entregue essa cadeia que ao pescoço trazeis com tal descaso. Além da queixa, da prisão, do opróbrio por que passei, causastes a este amigo grande prejuízo, pois a não ter sido impedido por nossa controvérsia, a estas horas se achara velejando. Dei-vos essa cadeia, não é certo? ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Creio que sim; jamais neguei tal coisa. MERCADOR - Negastes, sim senhor, sob juramento. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Quem foi que ouviu, quando eu jurei tal coisa? MERCADOR - Eu próprio o ouvi; bem sabes que é verdade, miserável. Que opróbrio! Teres vida para te ombreares com pessoas sérias! ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não passas de um vilão, por me acusares dessa maneira. Provarei minha honra e minha honestidade agora mesmo, se tiveres o ousio de enfrentar-me. MERCADOR - Tenho, vilão! Aceito o desafio. (Sacam das espadas. Entram Adriana, Luciana, a cortesã e outros.) ADRIANA - Parai, por Deus! Não o firais! É louco! Segurai-o por trás! Tomai-lhe a espada! A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (31 of 39) [04/04/2001 11:58:04] Amarrai Drômio e a casa levai ambos. DRÔMIO DE SIRACUSA - Mestre, corramos, pelo amor de Deus! Procuremos abrigo em qualquer casa. Aqui perto há um convento; entremos nele; do contrário, estaremos liquidados. (Antífolo de Siracusa e Drômio de Siracusa se acolhem à Abadia. Entra a Abadessa.) ABADESSA - Boa gente, acalmai-vos. Por que causa vos reunis aqui? ADRIANA - Para levarmos meu infeliz marido, que está louco. Permiti-nos entrar, porque possamos amarrá-lo e levá-lo para casa, e ele a razão recuperar consiga. ÂNGELO - Percebi logo que ele não estava em seu perfeito juízo. MERCADOR - Ora lastimo ter lançado contra ele mão da espada. ABADESSA - Há quanto tempo anda ele assim possesso? ADRIANA - Passou toda a semana fatigado, aborrecido, triste, nas menores coisas muito Outro do que ser costuma. Mas somente hoje à tarde a sua doença chegou a esses acessos de loucura. ABADESSA - Não perdeu muitos bens nalgum naufrágio? Não teria enterrado algum amigo? Acaso os olhos não lhe ensejariam ao coração algum amor ilícito? É pecado freqüente nos mancebos que dão aos olhos muita liberdade. Por qual destas razões sofre ele agora? ADRIANA - Por nenhuma, a não ser, talvez, pela última, algum amor que o desviou de casa. ABADESSA - Por isso, certamente, o repreendestes. ADRIANA - Foi o que fiz, de fato. ABADESSA - Mas com modos. ADRIANA - Tanto quanto a modéstia o permitia. ABADESSA - Em casa apenas, creio. ADRIANA - Não; na frente de estranhos uma vezes. ABADESSA - Mas não muitas. ADRIANA - Era o assunto de todas as conversas. Tanto sobre isso eu lhe falava, que ele mal podia dormir; quando na mesa das refeições, de tanto eu falar nisso, não provava bocado; quando estava só comigo, era o assunto que eu puxava; se tínhamos visitas, atirava-lhe freqüentes indiretas. A toda hora lhe dizia que ele era vil e mau. ABADESSA - De aí ter acabado ele maluco. As queixas venenosas de uma esposa ciumenta são de efeito mais nocivo do que dentada de cachorro louco. Parece que essas rixas o impediam de dormir; eis a causa de ter ele ficado com o juízo perturbado. Disseste que ele, às refeições, só tinha censuras por tempero. Ora, quem come sem a calma precisa, não digere, de onde se originarem grandes febres. E a febre que é, senão um grande acesso de loucura? Disseste que o repouso lhe perturbavas sempre com censuras. Quando o recreio ameno é perturbado, que se segue senão tristeza e funda melancolia, irmã do desespero mais inquieto e feroz? No rasto deste segue uma tropa imensa de moléstias, de pálidas desordens, de A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (32 of 39) [04/04/2001 11:58:04] DUQUE - A falta é grave, muito grave. É verdade o que ele disse? ADRIANA - Não, meu bom lorde; eu, ele próprio e a mana jantamos juntos hoje. Morrer quero, se tudo o que ele diz não for mentira. LUCIANA - Não quero ver jamais a luz do dia, nem repousar à noite, se verdade não for quanto ela disse a Vossa Alteza. ÂNGELO - Quanta mentira! As duas são perjuras; fala a verdade o louco neste ponto. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Meu soberanos, eu sei o que vos digo; o vinho não me turva o entendimento; não me transtorna a cólera furiosa, muito embora os ultrajes a mim feitos pudessem deixar louco o homem mais sábio. Esta mulher deixou-me hoje na rua, quando eu ia jantar, o que este ourives confirmar poderia, se não fosse com ela estar mancomunado agora, pois ele me deixou neste momento para ir buscar uma cadeia, tendo prometido levá-la ao Porco-espinho, onde eu e Baltasar então jantamos. Não tendo aparecido, após a mesa saí a procurá-lo e, em companhia do senhor que aqui está, o achei na rua. Então jurou-me este astucioso ourives que entrega me fizera da cadeia que, Deus o sabe, nunca e nunca eu vira. Sob essa acusação mandou prender-me. Obedeci-lhe e, sem demora, a casa enviei meu servo empós de alguns ducados, que ele não trouxe. Então, em termos brandos falei ao oficial para que, juntos, fôssemos até casa. Em caminho, porém, nós encontramos minha mulher, a irmã e uma caterva de cúmplices. Com eles vinha um tipo denominado Pinch, um magricela, espécie de esqueleto, um saltimbanco, um charlatão e tirador de sortes, um pobre diabo de olhos encovados, um biltre de olhar baço, um morto-vivo. Pensai só que esse escravo amaldiçoado se arvorou a exorcista e, de olhos fixos nos meus, tomou-me o pulso e, com seu todo de alma penada, a me fitar, me disse que eu estava possesso. Nisso, todos caíram sobre mim, as mãos me ataram, amarraram-me os pés, e, juntamente com meu servo, também todo ele atado, nos puseram num quarto úmido e escuro. Com os dentes pude desfazer os laços e libertar-me, vindo in continenti procurar Vossa Graça, a quem suplico que se me dê satisfação completa de tanta ofensa e de tão grande opróbrio. ÂNGELO - Posso afirmar, milorde, que, em verdade, hoje jantar ele não pôde em casa. DUQUE - Mas recebeu, ou não, tua cadeia? ÂNGELO - Sim, milorde; ao pescoço ele a trazia, quando por nós passou; todos a viram. SEGUNDO MERCADOR - Posso, demais, jurar que vos ouvi com estes ouvidos, confessar que tínheis a aludida cadeia, ao passo que antes, no mercado, dissestes o contrário. Foi então que eu fiz uso desta espada e fostes refugiar-vos na abadia, de onde saístes, penso, por milagre. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Jamais entrei os muros da abadia, nem nunca a espada contra mim tirastes. O céu me é testemunha de que nunca vi nenhuma cadeia. Tudo quanto contra mim assacastes é mentira. DUQUE - Quanto complicação! Até parece que a provar vos deu Circe a beberagem. Se na abadia ele tivesse entrado, ainda estaria lá. Se fosse louco, não poderia discorrer com tanto sangue-frio e coerência. Assegurastes que ele jantou em casa; mas o ourives afirma o oposto. E vós, que dizeis disso? DRÔMIO DE ÉFESO - Ele e aquela mulher jantaram juntos, no Porco-espinho. CORTESÃ - E fato; foi quando ele me arrebatou do dedo aquele anel. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (35 of 39) [04/04/2001 11:58:04] ANTÍFOLO DE ÉFESO - É certo, nobre duque; o anel é dela. DUQUE - Viste quando ele entrou nesta abadia? CORTESÃ - Tão certo como vejo Vossa Graça. DUQUE - É estranho, Ide chamar a superiora. (Sai uma pessoa do séqüito.) Se não estais variando, enlouquecestes. EGEU - Mui poderoso duque, uma palavra me seja permitida. Ali perceboo amigo que me vai salvar a vida, por mim pagando a multa cominada. DUQUE - Fala, siracusano, o que quiseres. EGEU - Por obséquio, senhor, não sois Antífolo? E não se chama Drômio aquele escravo que a vós está ligado? DRÔMIO DE ÉFESO - Até há uma hora ligado a ele estava. Mas por sorte - devo-lhe esse favor - roeu-me a corda. Ora sou Drômio, escravo desligado. EGEU - Penso que ainda vos lembrais de mim. DRÔMIO DE ÉFESO - Vendo-vos, nos lembramos de nós mesmos, pois até há pouco estávamos atados, como ora vos achais. Pelo que vejo, Pinch vos pôs também no seu regime. EGEU - Por que me olhais dessa maneira? Penso que sabeis quem eu sou. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Até este instante jamais vos tinha visto em toda a vida. EGEU - É que a tristeza me alterou bastante dês que nos separamos. As cuidosas horas e o tempo com sua mão deforme me deixaram no rosto estranhos sulcos. Mas respondei se pela voz, ao menos, não vos lembrais de mim. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Não. EGEU - E tu, Drômio? DRÔMIO DE ÉFESO - Tampouco eu, meu senhor. EGEU - Tenho certeza de que de mim te lembras. DRÔMIO DE ÉFESO - Ora, senhor, e eu tenho certeza de que não me lembro. E quando uma pessoa vos nega alguma coisa, será forçoso ficardes atado à sua palavra. EGEU - Não me conhece a voz? Ó tempo ingrato! De tal maneira a língua me fendeste nestes curtos sete anos, que meu único filho não reconhece o som rachado de minhas desentoadas amarguras? Embora tenha o amarfanhado rosto recoberto de neve floconosa do inverno destruidor da seiva viva, e congelados já me estejam todos os condutos do sangue, ainda me resta nesta noite de vida algum resquício da memória de outrora, minha lâmpada quase extinta ainda emite uma luz tênue, ainda ouve alguma coisa o ouvido mouco. E todas essas testemunhas dizem - não posso errar- que tu és meu filho Antífolo. ANTÍFOLO DE ÉFESO - Não vi meu pai em toda a minha vida. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (36 of 39) [04/04/2001 11:58:04] EGEU - Entanto, sabes, jovem, que há sete anos, me separei de ti em Siracusa. Sim, compreendo, meu filho: é que te acanhas de me reconhecer nesta miséria. ANTÍFOLO - O duque e todos quantos me conhecem podem dar testemunho do que afirmo. Jamais vi Siracusa em toda a vida. DUQUE - Posso te assegurar, siracusano, que, há vinte anos, Antífolo é meu súdito e que ele nunca esteve em Siracusa. Vejo que a muita idade e os sofrimentos te fizeram perder de todo o juízo. (Volta a Abadessa com Antífolo de Siracusa e Drômio de Siracusa.) ABADESSA - Mui poderoso duque, olhai este homem que tem sofrido muitas injustiças. (Todos se aproximam para olhá-lo.) ADRIANA - Ou vejo mal, ou vejo dois maridos. DUQUE - Um destes indivíduos gênio é do outro. Dá-se o mesmo com aqueles. Mas quem pode dizer qual seja o espírito, qual o homem! DRÔMIO DE SIRACUSA - Drômio sou eu, senhor; mandai-o embora. DRÔMIO DE ÉFESO - Drômio sou eu; não permitais que eu saia. ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não sois Egeu? Ou acaso sois o espírito dele somente? DRÔMIO DE SIRACUSA - Ó meu antigo mestre! Quem foi que vos atou dessa maneira? ABADESSA - Fosse quem fosse, a mim cumpre soltá-lo dessas cadeias, para que um marido, com sua liberdade, a ganhar venha. Dize-me, velho Egeu, se já tiveste por esposa uma Emília, que dois gêmeos te brindou de uma vez, dois lindos filhos? Oh! Se és o mesmo Egeu, fala-me! fala-me que aqui tu vês aquela mesma Emília. EGEU - Se não estou sonhando, tu és Emília. Se és ela mesma, dize onde está o filho que contigo flutuou no fatal mastro? ABADESSA - Eu, ele e Drômio fomos recolhidos por gente de Epidamno. Pouco tempo depois, no entanto, rudes pescadores de Corinto tomaram-lhes meu filho, juntamente com Drômio, entre os primeiros me deixando sozinha. Qual tivesse sido a sorte dos dois, não sei dizer-te; a mim coube a fortuna que contemplas. DUQUE - Isso completa a história começada nesta manhã. Estes irmãos Antífolos tão parecidos, e os dois gêmeos Drômios, que não se diferençam, e o naufrágio a que ela se refere... Os pais são estes destes dois filhos que, por coincidência, aqui juntos estão. Dize-me, Antífolo: era Corinto teu lugar de origem? ANTÍFOLO DE SIRACUSA - Não, milorde; eu cheguei de Siracusa. DUQUE - Não vos distingo; põe-te deste lado. ANTÍFOLO DE ÉFESO - De Corinto eu cheguei, gracioso lorde... DRÔMIO DE ÉFESO - E eu com ele. ANTÍFOLO DE ÉFESO - em companhia do guerreiro excelso, Duque de Menafon, vosso alto tio. A comédia dos erros file:///C|/site/LivrosGrátis/comedia.htm (37 of 39) [04/04/2001 11:58:04]
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved