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Guias e Dicas
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Movimento da Matematica Moderna no Brasil - II parte, Notas de estudo de Matemática

Estudo da ação e do pensamento de educadores matematicos nos anos 60

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 29/04/2009

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Baixe Movimento da Matematica Moderna no Brasil - II parte e outras Notas de estudo em PDF para Matemática, somente na Docsity! 146 6. A EXPANSÃO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MOVIMENTO No final de 1963, o movimento da matemática moderna em São Paulo já havia se constituido no desaguadouro dos esforços de valorização e renovação do ensino da matemática no secundário. Havia conquistado um amplo espaço de divulgação na imprensa, multiplicava e sistematizava suas atividades e ampliava sua esfera de ação, atraindo novos participantes. O golpe de 31 de março de 1964, que significou a destruição dos movimentos de cultura e educação popular, não deteve o crescimento do movimento da matemática moderna. Mesmo no fim da década de 60, quando experiências de inovação educacional como a do Ginásio Vocacional do Brooklin e do Colégio de Aplicação da USP - às quais o movimento estava ligado - foram interrompidas pela repressão, a matemática moderna seguiu sendo amplamente divulgada. No final dos anos 60, já havia vários indicadores de um processo parcial de institucionalização do movimento. Neste capitulo é examinado o desenvolvimento do movimento nos anos 60, sendo enfocados os processos de expansão e institucionalização do movimento, as características do movimento que fizeram a expansão possível naquele contexto histórico e o modo como a evolução do movimento foi condicionada por esse mesmo contexto. 147 6.1. O quadro educacional dos anos 80 A ditadura militar instaurada em 1964 no pais veio reestabelecer a garantia das condições de expansão da economia capitalista ameaçada pelo ascenso do movimento popular no periodo 61-63 e pelas ambiguidades colocadas pela politica populista para o papel do Estado. No periodo do pós-guerra, os Estados desempenham um papel crescentemente importante nas economias capitalistas, através das politicas anti-ciclicas, que retardam e atenuam os efeitos das crises, e através da centralização e redistribuição de parcelas do excedente social, proporcionando oportunidades adicionais de valorização dos capitais privados (MANDEL, 1982). Numa economia dependente, com uma burguesia nativa frágil e uma acumulação de capital insuficiente para impulsionar o desenvolvimento dessa economia, como no caso brasileiro, o papel do Estado é ainda mais decisivo: “Seu papel se torna indispensável na criação das condições para a acumulação de capitais financeiros, na oferta de condições privilegiadas para a atração de capitais para os setores mais dinâmicos da economia e no estabelecimento de politicas adequadas ao estimulo dos setores produtivos funcionais ao projeto.” (RODRIGUES, 1984, p. 26). O Estado constituido a partir de 64 atuava tanto como realizador da acumulação - através das empresas estatais e de sua intervenção direta nos processos de produção e comercialização - quanto como aliado do capital, e particularmente do capital monopolista, através de políticas fiscais e subsídios, políticas 150 de 58 a 60, a expansão havia sido de 36,17%; entre 60 e 64, chegou a 32,51; de 64 a 68, foi de 96,57%. Entre 1980 e 1988, a rede estadual de ensino ampliou sua participação nas matrículas do secundário de 49,78% para 76,5% (SAO PAULO, 1969). Houve, então, um processo real de ampliação do ingresso no ensino secundário. Mas não houve uma democratização efetiva do acesso ao ensino. Em 1967, da população com idade de lia l4 anos, no estado de São Paulo, 28,7% estavam fora da escola e 48,1% ainda estavam matriculados no curso primário. No país, em 1970, apenas 15,78% da força de trabalho tinha escolaridade igual ou superior à do primeiro ciclo do ensino médio (SERRA, apud LEAL, 1984). O quadro de exclusão via reprovações e evasão praticamente não se modificou. Dos alunos que ingressaram na primeira série do ginásio em 1964, apenas 46,2% concluíram a quarta série em 1967 - o índice de aproveitamento para os que ingressaram em 1956 havia sido pouco menor: 44,0%. O mesmo quadro se repetia no segundo ciclo: dos ingressos em 1965, apenas 49,7% concluiram o curso em 1967 - para os que ingressaram em 1956, o indice havia sido de 45,7% (SÃO PAULO, 1989). A manutenção da seletividade veio somar-se, no final dos anos 680, uma degradação progressiva das condições de ensino. Entre os elementos desse processo destacou-se a degradação da qualidade da formação dos professores feita nos cursos superiores. Com o aumento da pressão social para o ingresso nas universidades, agudizada no periodo entre 1964 e 1968 com a concentração acelerada de capitais, quebra de pequenas 151 empresas e o fechamento de outras vias de ascensão social que não o diploma, o governo adotou uma politica de liberalização da criação de novos cursos e até estímulo à proliferação de instituições privadas de ensino superior. Assim, se em 1968 a matricula no ensino superior público era maior do que no particular (153.799 contra 124.496), esse quadro, em 1973, havia se invertido com 327.352 estudantes matriculados em instituições públicas contra 836.469 nas privadas. Na cidade de São Paulo, em 1973, 73,8% dos alunos estavam matriculados nos 74 estabelecimentos particulares de ensino existentes (FREITAG, 1986). A transformação do ensino superior num negócio lucrativo (uma tendência que no secundário havia se modificado com o crescimento mais rápido da rede oficial), com escolas mal equipadas e professores mal remunerados, era facilitada pela presença direta dos representantes dos interesses privatistas no Conselho Federal de Educação. FREITAG (1988) assinala que essa expansão do ensino superior privado ocorreu basicamente nos setores tradicionais (entre os quais estava a formação de professores para o ensino médio), enquanto a rede pública continuou se ocupando da formação de profissionais para o atendimento dos setores mais dinâmicos da economia. 6.2. A evolução do movimento da matemática moderna nos anos 60 Ao longo dos anos 60 e no inicio dos anos 70, o GEEM seguiu realizando atividades de divulgação e debate da matemática 152 moderna que consistiam, basicamente, em cursos para professores e sessões de estudo em torno de temas relacionados com o ensino de matemática e tópicos específicos do programa do ensino secundário e elementar. Era através dos cursos que o GEEM conquistava novos “adeptos" da proposta de renovação do ensino. O interesse crescente de professores pelo trabalho do GEEM permitiu que, já em fevereiro de 1965, fossem organizados 3 cursos em niveis diferentes, só para os professores do secundário. Nesse curso, participaram não só professores de outros Estados, mas também da Argentina e da Nicarágua (MATEMATICA, 1965). Uma área importante de expansão do trabalho do GEEM era a do ensino primário, aberta em 1964, através de um curso ministrado por Manhucia Liberman e Anna Franchi, do qual participaram cerca de 300 professores primários (MATEMATICA, 1964). No início de 1968, o curso do GEEM para professores primários chegou a ter 900 professores inscritos em um só dia. Segundo vários depoimentos, o comparecimento dos professores aos cursos do GEEM devia-se fundamentalmente ao entusiasmo com a proposta da matemática moderna, e com a valorização do ensino de matemática no secundário que ela trazia, embora houvesse incentivos em termos de bolsas de estudos e, a partir de 1972, com a oficialização dos cursos, em termos de pontos para promoção funcional: “Os professores se entusiasmaram. Muitos estudaram mais. Muitos se dedicaram a fazer pós-graduação, com o desenvolvimento dos cursos de 155 “Na USP, no IMPA, no Rio, os grandes matemáticos não concordavam com a matemática moderna. Achavam que era besteira, que era fantasia, que o importante é saber manejar o cálculo, e saber geometria mesmo, como se deve saber. (...) O Elon (Lages Lima), essa gente assim, eles nunca foram na onda. Se bem que eles não estavam muito voltados para o ensino secundário. Eles não achavam necessário, no secundário, fazer uma matemática sofisticada, com conjuntos, tudo o mais, porque na universidade depois (o aluno) aprende tudo e acabou.” (depoimento oral); “Todo mundo acreditava. Não havia oposição. Houve matemáticos que não se envolveram, mas respeitaram porque tinha matemáticos importantes por trás (do movimento). Eles nem se preocupavam em saber o que era isso. (...) Uma reação eclética." (D'AMBROSIO, depoimento oral); “Havia resistência à matemática moderna; que estava mais na USP.” (BECHARA, depoimento oral). O GEEM de São Paulo também cumpriu um papel importante de divulgação da matemática moderna a nivel nacional. No IV Congresso Brasileiro de Ensino da Matemática, em 1962, o GEEM havia cumprido um papel central. Segundo o professor SANGIORGI (1969, p. 82), em 19668 o GEEM organizou cursos de matemática moderna em João Pessoa, Brasilia, Vitória, Porto Alegre para professores secundários. Antes disso, em 1964 e 1965, o GEEM já havia ido a Recife, João Pessoa, Salvador e cidades do Rio Grande do Sul para realizar conferências (D' AMBROSIO, 1987, p. 109). Em 1967, o GEEM organizou cursos para professores primários em Paranaguá e Curitiba, com a participação de quase soo professores. A iniciativa mais importante, contudo, de afirmação da proposta da matemática moderna a nivel nacional foi a realização do V Congresso Brasileiro de Ensino da Matemática, em São José 156 dos Campos, de 10 a 15 de janeiro de 1966, no campus do Centro Técnico da Aeronáutica, sob a coordenação do GEEM. O tema central do Congresso era a “Matemática Moderna na Escola Secundária: articulações com o ensino primário e com o secundário”. Como convidados estrangeiros, participaram do Congresso: Marshall Stone, então presidente da Comissão Interamericana de Educação Matemática (CIAEM) e ex-presidente da Comissão Internacional de Educação Matemática (CIEM, ligada à União Matemática Internacional); George Papy, da Universidade de Bruxelas, um educador matemático cuja obra teve importante repercussão no Brasil mais tarde; Hector Merklen, da Universidade de Montevidéu e diretor do Programa Interamericano para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências da (CEA; e Hellmuth VWolker, do Ministério de Educação da Argentina. Estiveram presentes professores de outros treze Estados brasileiros, sendo as maiores delegações as do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paraná, Guanabara e Minas Gerais. O número total de participantes era aproximadamente 350 (MATEMATICA, 19686). O Congresso se compunha, aos moldes dos cursos do GEEM, de palestras tratando da abordagem de tópicos do secundário segundo a matemática moderna, sessões de estudo na área da matemática superior e “aulas-modelo", com a participação de alunos do secundário. A presença de organizadores dos Congressos anteriores e educadores matemáticos de outros Estados na coordenação de atividades do Congresso - como Martha de Souza Dantas, Jorge 157 Barbosa, Eleonora Ribeiro, Melo e Souza, Jairo Bezerra = reafirmava o caráter de continuidade do V Congresso em relação aos anteriores. E, ao final, foi estabelecido que em 1968, o VI Congresso - que nunca chegou a ocorrer - deveria realizar-se na Paraiba. A nivel internacional, um espaço importante para a divulgação do movimento de matemática moderna do Brasil e do trabalho do GEEM em particular foi dado pela II Conferência Interamericana de Educação Matemática, realizada em Lima, em dezembro de 1966. Os representantes brasileiros na Conferência, além do matemático Alfredo Pereira Gomes, membro da comissão organizadora, eram Osvaldo Sangiorgi, Martha Dantas e Arago Backx. Como observadores, também participaram Lidia Lamparelli, do IBECC de São Paulo, Kleber Cruz Marques, diretor do Instituto Central de Matemática da Paraiba e o professor Augusto Wanderley, do Instituto de Matemática de Pernambuco. A primeira Conferência Interamericana de Educação Matemática havia sido organizada pela CIEM e se realizara em dezembro de 1961, em Bogotá, logo após a fundação do GEEM. Desta Conferência, haviam participado Leopoldo Nachbin (membro do Comitê Organizador), Alfredo Gomes e Omar Catunda (matemático, professor da USP e membro do GEEM naquele periodo). Patrocinavam a realização da Conferência a (CEA, UNESCO, Fundação Ford, Fundação Rockefeller, National Science Foundation e Associação Colombiana de Universidades. O professor Nachbin era matemático, um dos fundadores do IMPA (Instituto de Matemática Pura e 160 sentido da valorização do ensino de matemática e do trabalho de renovação desenvolvido em várias escolas, foram as Olimpiadas de Matemática do Estado de São Paulo, coordenadas pelo GEEM e pela Secretaria de Educação. Na 1 OMESP, realizada entre agosto e outubro de 1967, participaram mais de 100.000 alunos de todo o Estado. Na II OMESP, realizada em 1969, a participação foi de mais de 300.000 alunos. 6.2.1. A matemática moderna no ensino primário A expansão do movimento de matemática moderna para o ensino elementar foi um processo de êmbito internacional. Em São Paulo, o trabalho voltado para o ensino primário teve sua divulgação iniciada em 1964. Era um trabalho valorizado pelo GEEM, considerado como elemento do mesmo processo que encaminhava a renovação no secundário: “Para superarmos o ensino tradicional da Matemática devemos propiciar aos alunos, desde a escola primária, o conhecimento do verdadeiro caráter estrutural da matemática moderna.” (SANGIORGI, 1965e). As atividades em torno do ensino primário eram desenvolvidas por um “setor” que tinha essa atribuição especifica, coordenado por Manhucia Liberman e Anna Franchi. Como aconteceu no secundário, a ação do GEEM a nivel de ensino primário apoiava-se no desenvolvimento concreto de uma experiência pedagógica, que foi a do Grupo Escolar Experimental da Lapa. 161 Essa experiência era coordenada, na escola, pela professora Anna Franchi. Segundo ela mesma (depoimento oral), a escola tinha uma proposta de renovação metodológica e no início dos anos 60, quando a matemática moderna já estava sendo divulgada em São Paulo pelo GEEM, a diretora, professora Teresa Franco, convidou o professor Sangiorgi para realizar uma palestra sobre matemática moderna para os professores da escola. A partir dai, a professora Anna Franchi ficou responsabilizada pelo contato com o GEEM e pela coordenação do trabalho de renovação em termos de ensino de matemática na escola. A formação da professora Anna Franchi combinava seis anos de experiência anterior com ensino primário, incluindo-se ai quatro anos de atuação em escola rural, o curso de Licenciatura em Matemática, concluído em 1961, e o curso de treinamento para professores de escolas vocacionais, feito também em 1961: “Eu acho que esse treinamento foi decisivo na minha vida. Eu até posso considerar que a minha experiência anterior foi muito pouco refletida, sob um paradigma muito positivista, da época. (...) Eu olhava meu trabalho com esses olhos, eu conseguia muito êxito com alguns e não conseguia com as crianças mais fracas. (...) Embora eu me preocupasse, era um fato que a gente aceitava com alguma tranquilidade. Eu valorizo muito o trabalho de treinamento do professor que aborda aspectos mais amplos, como aconteceu no treinamento do Vocacional." (FRANCHI, depoimento oral). Em acordo com o trabalho mais geral desenvolvido na escola, o trabalho desenvolvido na área de matemática no Experimental tinha principalmente o sentido de renovação metodológica, com ênfase na compreensão ou no desenvolvimento de conceitos: 162 “O que se fazia numa escola de primeira a quarta série era dar quatro problemas diariamente. (...) Quatro problemas daquele tipo, assim: comprou, gastou, vendeu e havia uma sequência que ainda hoje (é utilizada). (...) Eu acho que o ensino (...) se resumia muito a técnicas operatórias e problemas com os números naturais. Não se trabalhava a parte de geometria, muito pouco e havia um material de geometria muito ruim. (...) Foi uma renovação tentando trabalhar (...) um pouco com a parte conceitual antecedendo problemas, ou problemas como meio de você dominar alguns determinados conceitos.” (FRANCHI, depoimento oral). O primeiro curso realizado pelo GEEM para professores primários aconteceu em 1964. Em 1965, Manhucia Liberman e Anna Franchi publicaram o texto “Introdução da matemática moderna na escola primária”, dedicado aos professores e com caráter experimental. Havia a preocupação de que a divulgação fosse precedida de um experimento realizado série a série, e a proposta de que esse experimento fosse conduzido pelo GEEM: “Não houve essa possibilidade. A própria estrutura do GEEM não ofereceu condições para que se pudesse realizar esse trabalho experimentalmente. Ai então houve o pedido da editora para a professora Manhucia para que publicasse o livro. Ai nós entramos na fase de publicação editorial.” (FRANCHI, depoimento oral). Em 1967, foi publicado o “Curso Moderno de Matemática para a Escola Elementar” para os alunos do curso primário, com a participação também de Lucilia Bechara. Além das publicações, o GEEM mantinha, para os professores primários, atividades similares âquelas organizadas para os professores do secundário: cursos, sessões de estudo, conferências. O trabalho desenvolvido na Lapa teve a influência do trabalho desenvolvido nos Ginásios Vocacionais, uma influência 165 A partir de 1970, o trabalho desenvolvido pelo GEEM teve uma influência importante de Dienes, com a divulgação de sua metodologia e dos "blocos lógicos”, através dos cursos para professores. Outra influência que possivelmente se fez sentir mais diretamente a partir de 1970 foi a de projetos norte-americanos. No final de 1989, a professora Manhucia Liberman esteve durante cinco semanas nos Estados Unidos participando de um curso que tinha por objetivo a observação de atividades de preparação de livros-textos, elaboração de guias e manuais para professores e de diretrizes para o ensino elementar, em vários centros educacionais e editoras (BOLETIM INFORMATIVO DO GEEM, 1970). 8.2.2. Os novos temas incorporados ao discurso do GEEM Beatriz D'AMBROSIO (1987, p. 1987) caracteriza a visão pedagógica que orientou o movimento no Brasil como “uma mistura de idéias trazidas de diferentes paises, numa sintese feita pelos próprios educadores brasileiros”. A combinação de influências como a do SMSG, Papy ou Dienes, projetos baseados em diferentes premissas e com focos distintos, segundo D'Ambrósio, gerou vários tipos de inconsistências. Por exemplo, nunca foi feita a “ponte”, para os professores, entre os livros-texto, de influência do SMSG, e o uso de materiais manipuláveis proposto por Gattegno ou Dienes. 166 De fato, os pressupostos psico-pedagógicos envolvidos nos diferentes programas não eram examinados em profundidade, sobretudo a nivel do GEEM. A adaptação desses projetos, pelo que indicam os dados, não era feita segundo critérios bem definidos, mas mais de acordo com o pensamento, a intuição e a experiência individual de cada professor ou autor de livro didático ou de um grupo de professores atuando numa mesma experiência; a discussão no GEEM relativa à abordagem de tópicos especificos era orientada por critérios da matemática como disciplina e por um bom senso pedagógico. A incorporação de novos elementos à proposta de inovação curricular também não era considerada como contraditória, ou como crítica ao trabalho desenvolvido até então, mas mais como um enriquecimento à proposta da matemática moderna. Essa diluição das diferenças era favorecida pelo modo como o movimento aparecia a nivel internacional, sob a mesma bandeira de “atualização” da matemática do secundário, de unificação da linguagem matemática através da linguagem dos conjuntos e das estruturas algébricas, e de uma visão de construção do currículo a partir da “estrutura da disciplina” segundo os moldes acadêmicos, apesar das diferenças de abordagem, de pressupostos Ppsico-pedagógicos, de visão do processo de construção de conceitos pelas crianças, de maior ou menor apelo à intuição e à experiência concreta. Enfim, havia uma identidade importante que era dada pela rejeição de um ensino de matemática 167 no secundário defasado em relação ao desenvolvimento da disciplina nas universidades. Nesse quadro, e dada a ausência de uma tradição de pesquisa em ensino de matemática no Brasil, a busca de diferentes referências pode ser vista como tendo uma dupla dimensão: de um lado, o ecletismo referido por D'AMBROSIO, favorecido pela valorização do “moderno”, com a busca da “novidade” no interior do próprio movimento; de outro lado, pode ser interpretada como uma atitude de tentar evitar a simples reprodução de um projeto desenvolvido em outro pais. A adaptação e combinação dos diferentes projetos, mesmo que baseada no bom senso e sem o exame dos pressupostos pedagógicos implicitos ou explícitos em cada um deles, pode ser entendida como um esforço de articulação de um projeto local, que seria composto pelos melhores elementos de cada um deles, E possivel dizer que o limite ou o critério decisivo para julgar a validade de um projeto estava na qualidade da matemática envolvida, como aponta o depoimento de Irineu BICUDO: “Não havia, eu acho, essenciais diferenças. Do meu ponto de vista, a inspiração matemática mesmo era a matemática feita pelo Bourbaki. Todas as coisas bem assentadas nas estruturas matemáticas, a linguagem comum da matemática sendo a da teoria dos conjuntos. Então era essa a mensagem. (...) Eu acho que na Europa e nos Estados Unidos não havia diferenças essenciais. E aqui no Brasil se seguia a linha comum.” (depoimento oral). E importante considerar que o contato do GEEM com esses projetos não se limitava à leitura ou tradução de textos 170 AKAMA, 1969). Uma iniciativa importante nessa área foi a realização de um curso, em 1967, pelo Serviço de Ensino Vocacional da Secretaria de Educação, coordenado por Lucilia Bechara, Renate Watanabe e Dorival Antonio de Mello, professor da USP. Mais tarde, em abril de 1969, o próprio GEEM organizou um curso sobre medidas e geometria; e vários cursos organizados pelo GEEM desde então incluíram a disciplina de Transformações Geométricas. No curso do Vocacional, a geometria do plano e do espaço era abordada a partir do conceito de espaço vetorial, com influência do trabalho de Papy e do grupo da Universidade de Illinois. As geometrias não-euclidianas também eram apresentadas, no esforço de mostrar mais claramente os limites da geometria euclidiana e do tratamento tradicional dado à geometria no secundário. A justificativa dada, basicamente, para o novo tratamento da geometria, era a da necessidade da atualização do ensino: “Não podemos esquecer as novas descobertas, as novas criações, os avanços dados no estudo da Geometria. Nosso esforço, portanto, é para chegarmos a uma politica de ensino que tenha suficiente mobilidade para que a ela sejam acrescentadas as mais válidas descobertas.” (BECHARA, 1967). Mas o tratamento a partir dos espaços vetoriais também estava muito relacionado à valorização do rigor e da linguagem dos conjuntos e das estruturas matemáticas como base para a unidade da matemática: “Se nós estávamos fazendo um movimento em que tudo tinha que nascer da teoria dos conjuntos e da idéia de estrutura, que era um 171 princípio geral (...) a única coisa que a gente podia dizer em geometria é que o plano é um conjunto de pontos, o espaço é um conjunto de pontos, a reta é um subconjunto do plano, mas depois como é que eu vou dizer, axiomas, teoremas, tudo o mais? (...) Então o processo foi sair uma geometria também por meio de uma estrutura algébrica. Dai fizeram o estudo de geometria já no ginásio por meio de espaços vetoriais, que é uma estrutura algébrica. (...) E outro caminho foi pelos grupos de transformações, uma estrutura algébrica, ums idéia do (Félix) Klein, mas agora passada a limpo para poder funcionar.” (CASTRUCCI, depoimento oral); “A idéia era fazer uma matemática formalmente rigorosa. (...) A trigonometria, não conseguiram botar a matemática moderna pra ela ficar rigorosa. Outras coisas conseguiram: a álgebra... A geometria ficou chata, porque antes se falava que o ponto pertence à reta ea reta pertence ao plano, agora você tem que falar que O ponto pertence à reta e a reta está contida no plano.” (CAROLI, depoimento oral). Em termos da metodologia, a influência mais importante foi a de Dienes, uma proposta surgida no seio do movimento da matemática moderna mas ao mesmo tempo crítica em relação à ênfase dominante no movimento de reformulação dos programas. Em 1963, Dienes afirmava que sua proposta estava de acordo com as recomendações do Relatório Dubrovnik (OECE, 1961). Insistis, porém, em que a idade em que a aprendizagem de um dado conceito é possível só poderia ser determinada experimentalmente. O trabalho de Dienes foi certamente o esforço mais importante de desenvolvimento de uma proposta pedagógica consistente com as descobertas da psicologia piagetiana. Dienes insistia, como Piaget, na importância do pensamento pré-verbal e propunha a organização de múltiplas experiências concretas como ponto de partida para a aprendizagem de conceitos novos. Como Piaget, 172 Dienes apontava a predominância, na época, da aprendizagem artificial, onde a manipulação de simbolismos não correspondia a uma apreensão real das estruturas, e desaconselhava o esquema formal presente em alguns projetos de matemática moderna: “Resta-nos descobrir precisamente quando as crianças se tornam maduras suficientemente para serem expostas aos ventos frios de tais rigores matemáticos. E claramente desaconselhável começar o estudo de uma estrutura por um tratamento axiomático de suas propriedades; como vimos, o processo mais natural é tornar-se mais familiar com a estrutura, e com estruturas similares, jogando com elas para ver como se comportam. E somente após um uso extensivo de jogos segundo regras que crianças levantarão questões analíticas que conduzirão a considerações axiomáticas. Mas tão poucas crianças no mundo atual estão construindo qualquer espécie de estruturas matemáticas precisas que não será fácil descobrir quando e sob quais circunstâncias elas podem apreciar e entender um tratamento axiomático de uma estrutura.” (DIENES, 1975, p. 173). A divulgação da metodologia de Dienes foi iniciada, em São Paulo, em 1970, no curso de férias do GEEM, por Lucilia Bechara e Manhucia Liberman. Dienes veio ao Brasil pela primeira vez em 1961.A4 metodologia proposta por Dienes foi bastante valorizada pelo GEEM, e encarada como um preenchimento de uma lacuna na proposta da matemática moderna, enquanto metodologia apoiada em experimentos inspirados na teoria piagetiana e percebida como consistente com os programas desenvolvidos, mais do que como uma critica a outros projetos, ou ao próprio trabalho desenvolvido até então: “Este material Dienes é a coisa mais importante e moderna no estudo da nova matemática. (...) A criança deve pensar por si própria. Ela mesma deverá chegar a uma conclusão lógica através 175 USP, em 1961, se eu não me engano, instalaram um computador pequenininho, sem impressora. (...) Tinha 10K, 8K de memória. (...) O computador não causou uma revolução no ensino, porque era uma coisa inacessível. (...) Mas com o tempo foram instalando computadores. Então se falava: Tem que ensinar matemática moderna, porque esse negócio de fazer contas é pra computador'. Se dizia mas ninguém sabia, ninguém usava computador. (...) Não era acessivel às pessoas, a gente ia ver na vitrine (do centro de computação). (...) A primeira vez que eu vi uma calculadora foi em 1973 (...) que era do tamanho de um gravador desses antigos. (...) Ele (o vendedor) foi lá para vender a calculadora para a Faculdade. Não era para os professores, porque era carissima.” (CAROLI, depoimento oral). Em 1973, no curso de férias do GEEM, foram incluídas disciplinas de Computação, a cargo de Fernão Germano e Odelan Linhares. EM 1970, houve também um curso sobre Probabilidade e Estatística, com o húngaro Tamas Varga (MATEMATICA, 1970). As atividades nessa área, contudo, não tiveram continuidade. Lucilia Bechara, em debate realizado no II Encontro Nacional de Educação Matemática, em janeiro de 1988, assinalou a coincidência, no tempo, do movimento de matemática moderna e da introdução da visão tecnicista do ensino no Brasil. Com os dados obtidos neste trabalho, é dificil apontar que tipo de interação houve entre o movimento e a pedagogia tecnicista nos anos 60. E bem possivel que muitas experiências ligadas à matemática moderna tenham assimilado elementos do tecnicismo, como o esforço em mensurar a aprendizagem através da definição de objetivos operacionais - o que se combinava com a tendência formalista da matemática moderna, e que ocorreu em alguma medida no Grupo Experimental da Lapa -, ou algumas técnicas de ensino 176 discurso anterior que rejeitava essa idéia. O sentido principal dado às Olimpiadas, no entanto, não era o da revelação dos melhores alunos - não se propunha, por exemplo, uma formação diferenciada para esses alunos. O objetivo maior era de propaganda e valorização do ensino de matemática no secundário. À participação massiva nas Olimpiadas era considerada uma evidência da deselitização do ensino de matemática: “Pelo menos 100 mil primeiro e segundo anistas de ginásios de todo Estado deram a resposta: “A matemática já não nos assusta”. Evidentemente, ninguém do GEEM ou do Departamento de Educação esperava tamanho sucesso para um empreendimento que, certamente, a muitos e muitos do tempo da matemática-tabu, parecia coisa feita para um número restrito de crianças: para as chamadas crianças-prodigio somente.” (SANGIORGI, 1969b). 6.2.3. O apoio oficial ao movimento da matemática moderna A divulgação da matemática moderna foi desencadeada, no Brasil, por um grupo de professores que viu na proposta um caminho, senão o caminho para a melhoria do ensino secundário de matemática no pais, num quadro de articulação de professores de sua participação na discussão desse ensino, com o sentido da superação do centralismo que vinha caracterizando as decisões sobre organização e programas do secundário, desde 1931. A divulgação da matemática moderna não foi, portanto, resultado direto da decisão de algum gabinete. A dimensão que esse processo adquiriu só pode ser explicada pela existência de um movimento, que envolveu a articulação de grupos de professores secundários e universitários, a realização - e debate de 177 experiências concretas de ensino, a publicação de textos para professores e alunos, a construção de um discurso adaptado à realidade local. O processo pelo qual idéias foram divulgadas e incorporadas no currículo efetivamente implementado também não foi um processo planejado. Ao mesmo tempo, o GEEM, em São Paulo, contou desde o inicio com formas de apoio oficial. Este apoio garantiu não apenas a viabilidade financeira de atividades do GEEM, como contribuiu para a ampliação da divulgação e até mesmo para a legitimação social do trabalho desenvolvido. Embora a politica dos órgãos oficiais em relação à matemática moderna não seja o foco deste estudo, é importante examinar o papel que cumpriu na expansão do movimento. Nesse sentido, é importante distinguir dois niveis diferentes de apoio: a apoio recebido de organismos internacionais, como a (OEA e a UNESCO, ou diretamente de instituições norte-americanas, como a National Science Foundation, que viabilizaram, em boa medida, o contato direto de educadores brasileiros com o movimento internacional de renovação do ensino; e o apoio de órgãos do sistema de ensino do pais, como a Secretaria de Educação de São Paulo e o MEC. 180 Interamericana de Educação Matemática). A realização da primeira Conferência foi facilitada pela presença de Marshall Stone, um de seus principais organizadores, na CIEM, ligada à JUMI. E interessante observar que, enquanto a primeira e a segunda Conferências e as reuniões realizadas naquele periodo tiveram patrocínio da NSF, da Fundação Ford e da Fundação Rockefeller, a III Conferência, realizada em 1972, recebeu auxilio financeiro apenas da OEA e da UNESCO e alguma colaboração de paises europeus (STONE, 1973). Através das Conferências, o esforço de melhoria do ensino secundário aparecia mais como um resultado da necessidade sentida nos diversos paises do que como um processo unilateral, de iniciativa dos Estados Unidos. Uma carta do professor Marshall Stone dirigida ao professor Pereira gomes (STONE, 1962), mostra claramente a preocupação de Stone em dar sugestões e incentivar a aceleração da renovação do ensino de matemática no Brasil. As principais iniciativas de renovação desenvolvidas na década de 60, segundo informe da própria CIAEM (1973), ocorreram nos paises de economia mais desenvolvida da América Latina: no Brasil, na Venezuela, a partir de 1964, no Uruguai e na Argentina, a partir de 1963, com a experimentação de novos programas. A CIAEM também contribuiu para a legitimação do trabalho desenvolvido pelo GEEM no Brasil: “Em comunicado divulgado após a sua visita ao Brasil (em fevereiro de 1962), [o] professor Stone declara estar o GEEM de São Paulo 181 capacitado para iniciar a remodelação, em bases modernas, do ensino de Matemática da Escola Secundária Brasileira.” (SANGIORGI, 1982, p. 13). Em 1964, uma reunião da CIAEM realizada no Rio de Janeiro teve como convidados especiais do Brasil Osvaldo Sangiorgi, presidente do GEEM, e Lindolpho de Carvalho Dias, do JIMPA. Entre as conclusões dessa reunião, foi aprovado: “d) que a CIAEM estude a possibilidade de editar, na Américas Latina, para distribuição entre os professores do ensino médio, um boletim informativo que os mantenha a par de publicações, cursos e outras atividades e iniciativas tendentes a aprimorar o ensino de matemática na América Latina. Recorda-se que atualmente o GEEM edita um boletim informativo que, convenientemente ampliado, poderá cumprir a finalidade proposta.” (CIAEM, 1964). Em 1969, a OEA criou os Programas Regionais de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico e de Desenvolvimento Educativo. Como parte deste último, foi criado o Projeto Multinacional de Melhoramento do Curriculo, Métodos e Materiais de Ensino, voltado para o ensino de ciências. No Brasil, a FUNBEC (Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências) desenvolveu materiais de ensino através deste projeto. A preocupação de divulgar os debates e os projetos desenvolvidos nos Estados Unidos e Europa de renovação do ensino de matemática em paises do terceiro mundo também teve um peso importante na CIEM (ligada à UMI) e na UNESCO, e foi uma das caracteristicas mesmo do movimento de matemática moderna, apoiada na idéia de que o sentido da renovação deveria ser o mesmo em todos os paises. Em 1962, já criada a CIAEM, a CIEM recomendava para o periodo seguinte uma “extensão de sua atividade para novas 182 áreas, como a Africa, onde o interesse atual no campo da educação matemática seria beneficiado com melhor informação sobre o pensamento atual dos matemáticos em relação aos problemas, tanto velhos como novos, que precisam ser resolvidos se a educação matemática quer acompanhar os passos do progresso pedagógico e matemático” (STONE, 1963). No T Congresso Internacional de Educação Matemática, realizado em 1969, em Lyon, pela CIEM, foi uma das recomendações aprovadas: “A cooperação internacional deve ser desenvolvida. (...) Em particular, os paises mais desenvolvidos devem continuar a colaborar com os paises em via de desenvolvimento, para a procura de soluções que lhes sejam apropriadas.” (CONGRES, 1970). A diferença das necessidades era reconhecida, embora a “cooperação” fosse claramente apontada como uma via de mão única. Essa preocupação com a adequação de soluções de inovação do ensino foi mais desenvolvida no II Congresso, realizado em Exeter, em 1972: “Que todo encorajamento e assistência possivel sejam dados aos países em desenvolvimento para as mudanças de seus programas e curriculos; essas mudanças devem ser planejadas por cidadãos qualificados desses paises, para assegurar que sejam plenamente consideradas a experiência cultural dos alunos e as necessidades do desenvolvimento nacional." (INTERNATIONAL CONGRESS, 1973). Finalmente, no LIT Congresso Internacional era afirmado claramente que “não pode haver soluções comuns" mesmo aos paises do terceiro mundo. Em 1966, a UNESCO divulgava também seu programa para o ensino de ciências, voltado basicamente para os países "em 185 moderna a nível nacional: "O MEC apregoava essas coisas nos cursos que se faziam.” (depoimento oral) Segundo alguns depoimentos, o contato entre o GEEM e os órgãos do sistema de ensino era realizado pelo professor Sangiorgi: “Eu não participava dessa parte administrativa. Quem fazia era o Sangiorgi. (...) E ele conseguia muita cooperação da Secretaria de Educação, de outros órgãos."; “Ele fazia as ligações com o poder. Era um homem poderoso. (...) Ele tinha o poder econômico na mão. (...) Ele tinha muito contato com os órgãos governamentais.”; “A liderança do Sangiorgi foi muito forte. Ele conseguiu o suporte de televisão, de jornais, ele conseguia tudo.”. O apoio dos órgãos oficiais de ensino às atividades do GEEM era visto como natural pelos participantes, uma vez que se tratava sobretudo de um esforço de melhoria do ensino: “Eles sentiram que o movimento havia atingido todas as escolas, e que todo mundo estava interessado, e viram que era uma maneira de os professores se reciclarem. Então estava havendo um progresso da parte dos professores, não é?" (CASTRUCCI, depoimento oral); “Não precisava de justificativa. A coisa em si já era importante.” (CAROLI, depoimento oral). Uma análise mais cuidadosa das razões que levaram órgãos como a Secretaria e o Ministério a apoiar o movimento, desde o início, exigiria o levantamento de novos dados. E possível, no entanto, apontar alguns elementos dessa explicação. Em primeiro lugar, é preciso considerar que a partir dos anos 60 foi desenvolvida uma politica mais geral de 186 valorização do ensino de ciências naturais e de matemática. À criação dos Centros de Ensino de Ciências pelo MEC, em 1965, são um exemplo disso. Em 1973, uma outra iniciativa importante foi o lançamento do Projeto de Melhoria do Ensino de Ciências, ligado ao PREMEN (Programa de Melhoria e Expansão do Ensino) (PORTO, 1978). A valorização do ensino de ciências, nos anos 60, e principalmente do seu aspecto experimental, tinham um componente importante de reação a uma tradição de um ensino médio que enfatizava o estudo das línguas, das ciências humanas e de uma matemática desligada de suas aplicações em outras disciplinas. Correspondia a um esforço de adequar o ensino elementar e médio às necessidades de uma sociedade em processo de modernização e com uma demanda crescente de mão-de-obra qualificada. Por outro lado, a valorização do ensino das ciências naturais ajudava a ocultar a desvalorização e o obscurantismo que marcaram o ensino das ciências sociais durante o periodo da ditadura, tanto a nível do ensino médio como das universidades. Em segundo lugar, é importante considerar que, apesar de articulações localizadas (como no caso do Vocacional) com experiências pedagógicas mais amplas, o GEEM, que foi o principal instrumento de divulgação da proposta da matemática moderna, não assumiu nunca um discurso pedagógico mais global, que articulasse uma visão de ensino de matemática com uma concepção filosófica e política da educação que pudesse ser identificada como subversiva ou ameaçadora pelo regime. A crítica do elitismo do ensino 187 tradicional de matemática enquanto um ensino ineficaz e a busca de um ensino mais democrático, no sentido de que mais pessoas pudessem aprender, eram preocupações plenamente absorvíveis por governos que tinham na expansão do ensino um de seus eixos de propaganda, ao mesmo tempo em que despojavam o ensino médio e o ensino superior de seus componentes mais criticos, seja através da repressão a professores e alunos ou da supressão de elementos dos programas. A idéia de que os alunos brasileiros pudessem ter acesso a um ensino tão “moderno” quanto o implementado nos Estados Unidos e paises europeus encaixava-se bem na perspectiva de modernização do consumo e do emprego com que a ditadura acenava principalmente às camadas médias urbanas. E significativo que o professor Sangiorgi tenha sido convidado, em outubro de 1963, a realizar palestras e aula-demonstração sobre a matemática moderna na Academia Militar de Agulhas Negras, um dos centros de articulação do golpe de 31 de março de 1964. Segundo Irineu Bicudo, ainda antes do golpe, em 1964, membros do GEEM voltaram à Academia para realização de um curso. Enfim: os militares que dirigiram a instauração do novo regime conheciam a proposta da matemática moderna, o discurso do GEEM através do professor Sangiorgi, e sabiam de seus limites. E também significativo que o Congresso de 1966 tenha se realizado no campus do Centro Técnico da Aeronáutica, em São José dos Campos, o que evidencia que foi não apenas tolerado mas 190 desenvolvido em termos de experiências de renovação do ensino da matemática. O curso envolvia professores do primário e do secundário e era coordenado pela professora Esther Grossi, convidada pela professora Odila Barros Xavier. Segundo Esther GROSSI (depoimento oral) o curso combinava influências de Félix, Dienes e Papy. Em 1967, foram iniciadas duas experiências-piloto de renovação do ensino, em classes de primeira série: no Instituto mesmo, e numa escola privada, o Instituto João XXIII. O GEEMPA - Grupo de Estudos sobre o Ensino da Matemática de Porto Alegre - foi fundado em 98 de setembro de 1970, quase nove anos após a fundação do GEEM de São Paulo, numa época em que a influência da matemática moderna já penetrava nos livros didáticos e já era tema de debate público - um quadro bem diferente daquele do início dos anos 60. O GEEMPA aglutinava professores de várias escolas primárias e secundárias, e também professores da UFRGS (entre os quais a professora Martha Blauth) e PUC. Em janeiro de 1972, já eram 230 sócios. Como o GEEM, o GEEMPA tinha sua fundação ligada à matemática moderna: “Por que a matemática moderna? A matemática chamada moderna não é uma nova matemática, onde o que era verdade antes é negado agora. (...) A Matemática foi colocada em novas bases neste século, à luz da teoria dos conjuntos e adquiriu uma nova estruturação, muito mais 191 ciência e da técnica. Isto leva à necessidade. de uma atualização dos conteúdos matemáticos trabalhados na escola. (...) Porém, um outro aspecto importantissimo da reforma do ensino da matemática é o que diz respeito a métodos e técnicas, ou seja, à maneira de ensinar (...) Não tem mais sentido que o aluno tão somente memorize o que o professor lhe dá mastigado. Ele precisa descobrir e construir conceitos.” (GROSSI, 1972). Como no inicio do movimento, uma das justificativas centrais para a renovação era a de um ensino acessivel a todos: “Uma nova perspectiva (...) se abre para nossos alunos, através de experiências de aprendizagem de lógica de forma muito produtiva e os estudos de psicólogos como Piaget que asseguram ser todo homem dotado para a matemática.” (GROSSI, 1973). O GEEMPA, assim como o GEEM de São Paulo, dedicou-se principalmente a atividades de formação de professores. Só em 1971 o GEEMPA organizou dez cursos para professores. Além disso, realizaram-se palestras, ciclos de estudos para pais, reuniões de estudo e seminários semanais, publicações para professores. Entre os educadores estrangeiros que participaram de cursos do GEEMPA estão Dienes, Maurice Glaymann, Tamas Varga e Claude Gaulin. Os membros do GEEMPA não se envolveram com a elaboração de livros didáticos, o que pode ser explicado até pelo fato de que Porto Alegre não se constituía em centro editorial como São Paulo. Por outro lado, o GEEMPA não deixou de promover uma divulgação massiva da matemática moderna, em Porto Alegre. No segundo curso do GEEMPA, em dezembro de 1970, já participaram 120 professores. As Jornadas sobre Aprendizagem da Matemática, 192 iniciadas em 1972, com a vinda de Dienes a Porto Alegre, eram organizadas para uma participação de cerca de 1000 professores. Ao mesmo tempo, e diferentemente do GEEM, o GEEMPA coordenou, como Grupo, a realização de experiências pedagógicas. Em 1972, foi iniciado um estudo exploratório com classes-piloto do curso de primeiro grau, em seis escolas de Porto Alegre. Em 1974, foi iniciada uma experimentação mais sistemática, com apoio do INEP. O objetivo era o de testar a metodologia de Dienes no sistema de ensino local, comparando a eficiência dessa metodologia com a “tradicional” do ensino de matemática, em termos de atitude dos alunos face à aprendizagem de matemática, reação a problemas novos, capacidade de aprendizagem e rendimento da aprendizagem de conteúdos novos, desenvolvimento da criatividade. Nesse periodo, o GEEM vinculou-se ao ISGML - International Study Group for Mathematics Learning -, dirigido por Dienes. Desde o início, o GEEMPA enfatizou os aspectos metodológicos da renovação do ensino. Nisso, foi beneficiário da experiência do movimento em São Paulo, onde em 1989 e 1970 já se começava a reconhecer a insuficiência das reformulações de abordagem de conteúdo, o que justificou o esforço de trazer Dienes ao Brasil, em 1971. Por outro lado, na origem do GEEMPA estava também o trabalho dirigido ao ensino primário, onde as reformulações metodológicas sempre foram mais enfatizadas. Os cursos do GEEMPA para professores, tipicamente, tratavam da metodologia do ensino de diferentes conteúdos. De 195 “práticas de ensino”, e à apresentação de justificativas para a adoção da proposta nas escolas, feita muito mais como propaganda do que como explicitação de pressupostos pedagógicos. O GEEM não se propunha acompanhar o desenvolvimento da prática pedagógica dos professores que frequentavam seus cursos. Além disso, não ficava claro, para esses professores, quais os elementos daqueles tópicos desenvolvidos nos cursos que poderiam compor uma proposta de programa para o secundário, e com que abordagem: “E ai a gente não sabia bem o que era para dar. (...) Quando eu dei esse curso, disse claramente que eu estava dando esse curso para os professores secundários, para os professores aprenderem mais coisas, e que se isso ia servir para ensinar ou não no secundário, eu realmente não sabia. Mas, quanto mais o professor sabe, melhor professor ele é. (...) E aí eu me lembro que já começaram algumas polêmicas. (...) E ai eles diziam: 'Mas como que eu vou ensinar isso no secundário?" Mas isso não é para ensinar, é para aprender." (CAROLI, depoimento oral). “Havia cursos, que eram cursos de 30 horas e onde não ficava muito clara a distinção entre o que era a formação do professor em termos, por exemplo, de teoria dos conjuntos, propriedades das operações e o que realmente tinha que ser feito em sala de aula. Não havia essa distinção clara." (FRANCHI, depoimento oral). A realização pelo GEEM de cursos pela televisão evidencia que, se a divulgação da matemática moderna entre os professores era valorizada, ela devia ser tão ampla quanto possivel. A partir de 1964, o GEEM passou a realizar cursos em diferentes estágios, em alguns casos para contemplar professores que frequentavam o curso pela segunda vez, com o sentido de “aperfeiçoamento”. Durante todo o periodo de vida ativa do GEEM, no entanto, um peso importante era dado à divulgação da matemática moderna para novos grupos de professores. 196 Por outro lado, o GEEM não limitava a divulgação da proposta da matemática moderna aos cursos para professores. O “Curso Moderno de Matemática” do professor Sangiorgi teve o seu primeiro volume publicado em 1963. Não era uma realização do grupo, mas aparecia vinculada à sua atividade. Mais tarde, vários outros membros do GEEM, como Scipione Di Pierro Netto, Renate Watanabe, Benedito Castrucci e Ruy Madsen Barbosa participaram da elaboração de textos para o secundário com a influência da matemática moderna. A publicação do "Curso Moderno de Matemática para a Escola Elementar”, por Manhucia Liberman, Lucilia Bechara e Anna Franchi foi incentivada pelo GEEM. Iniciativas como a da realização das Olimpiadas também tinham o sentido de divulgação da matemática moderna. O programa da II OMESP incluia tópicos como sistemas de numeração, bases, propriedades estruturais das operações no conjunto dos números naturais. A divulgação ampla e massiva da matemática moderna era justificada pela visão de que a inovação curricular proposta era não só irrecusável, como inadiável. As críticas dirigidas ao ensino tradicional eram centradas no modo de abordar os conteúdos, e a solução para os problemas do ensino era vista como basicamente localizada na própria disciplina, num modo mais “correto” e “moderno” de tratamento dos tópicos do programa. O esforço de formar professores era visto como resposta à exigência de mudança, muito mais do que como condição anterior ou primeiro passo de um processo planejado de inovação. O discurso da 197 urgência da mudança estava presente desde o início da ação do GEEM: “Na realidade procura-se não protelar mais o divórcio existente entre o que normalmente um aluno de ginásio aprende como Matemática e o que deveria necessariamente aprender. Nesse sentido, paises europeus, de tradições culturais reconhecidas, e os Estados Unidos da América do Norte têm realizado verdadeiras cruzadas, amparando professores (ua) e divulgando publicações destinadas a apresentar as novas idéias sobre modernização de programas, de linguagem da Matemática, bem como as últimas conquistas acerca da metodologia dessa disciplina." (SANGIORGI, 1962, p.5); “Não é admissível que o nosso país continue a lecionar a ciência dos números como até agora, com cálculos astronômicos e problemas complicados.” (SANGIORGI, 1963c); “O professorado brasileiro está realmente interessado em aprimorar sua cultura matemática, razão pela qual o GEEM trabalha ininterruptamente correspondendo às solicitações que nos chegam de todas as partes. Nesta capital, por exemplo, a maioria absoluta dos grandes estabelecimentos de ensino particulares e oficiais está mantendo um alto padrão de ensino da Matemática, com base na modernização dessa disciplina. (...) Isto quer dizer que a Matemática Moderna propõe soluções concretas a seculares problemas encontrados pelos professores em sua prática cotidiana.” (SANGIORGI, 1965e); “As rapidissimas mudanças da ciência deixaram bem para trás a lenta evolução dos nossos clássicos sistemas educativos. Assim, na medida em que um mundo novo luta para nascer estão os educadores - e primordialmente os professores de Matemática - intimados a realizarem um esforço decisivo para elevar a educação cientifica que possuem ao nível dos nossos tempos, orientando-a o melhor possivel para um futuro bem diferente daquilo que lhes era familiar no passado.” (SANGIORGI, 1986). A divulgação iniciada pelo GEEM abriu caminho para dois processos que se combinaram na incorporação de elementos da proposta da matemática moderna no currículo implementado nas escolas. De um lado, abriu caminho para uma divulgação muito mais 200 trabalho que definiu as “novas diretrizes” para o ensino primário na rede pública como representante do GEEM (PRIMARIO, 1967; INICIADO, 1967). A partir de 1967, com a unificação do Exame de Admissão ao ginásio em São Paulo, o GEEM participou da elaboração das questões para o exame. Em 1968, quando através de decreto foi reformulado o segundo ciclo em São Paulo, com a aglutinação dos cursos clássico, científico e normal, o GEEM organizou debates sobre os novos programas de Matemática (MATEMATICA, 1968). Em 1969, o GEEM participava da preparação de um curso de madureza ginasial através da televisão educativa e dos Setores Regionais de Assistência Educativa, núcleos de descentralização da Secretaria de Educação criados naquele ano. Enfim: ao longo da década de 60 o GEEM desenvolveu um vinculo crescente com os órgãos oficiais de ensino - especialmente a Secretaria de Educação -, e uma dimensão, na sua atividade, de colaboração e assessoria a esses órgãos. E interessante notar que o aprofundamento dessa colaboração do GEEM com a Secretaria esteve ligado ao encerramento das atividades do Grupo. A partir de 1972, os cursos de férias do GEEM foram oficializados e, portanto, eram valorizados para efeito de promoção dos professores (Diário Oficial, 13/1/72). Em 1976, o GEEM, a pedido da Secretaria, realizou um curso de preparação de professores para o concurso de 201 ingresso ao magistério (MATEMATICA, 1975). Segundo Lucilia BECHARA (depoimento oral), havia divergência entre os membros do GEEM acerca da validade da realização pelo Grupo de um curso daquela natureza. Entre os membros mais antigos do GEEM, participaram do curso apenas Sangiorgi, Castrucci e Ruy Madsen Barbosa. Nas provas do concurso, que incluiam questões de dissertação (pela primeira vez depois de alguns anos), apenas 27 professores foram aprovados entre os 7502 candidatos a professor de Matemática, nivel III. O curso de 1976 foi o último realizado pelo GEEM (D' AMBROSIO, 1987). 202 7. O ESGOTAMENTO DO MOVIMENTO DA MATEMATICA MODERNA O processo pelo qual a matemática moderna deixou de ser a bandeira em torno da qual ou em nome da qual se realizavam os esforços mais importantes de renovação do ensino de matemática no Brasil e particularmente em São Paulo - enfim, o processo de esgotamento do movimento - é um processo difícil de ser descrito, sobretudo devido à escassez de documentos produzidos no periodo - meados dos anos 70. Num periodo de fragmentação dos esforços de renovação do ensino, de repressão ao debate das questões pedagógicas e de concentração da iniciativa educacional nos órgãos oficiais do sistema de ensino, a tendência de qualquer movimento de inovação pedagógica era a do esvaziamento, pelo impedimento seja da experimentação: ou da reflexão organizada. Mesmo assim, é necessário explicar o esgotamento da matemática moderna em sua dinâmica própria: uma dinâmica que combinou a divisão no interior do movimento, um grau importante de aceitação da proposta pelo sistema de ensino e pelos professores e o desgaste a nivel internacional do movimento. A divisão no interior do GEEM não ficou documentada. Os depoimentos de Lucília Bechara e Dione Carvalho são, no entanto, bem claros a este respeito: “Eu tive uma ruptura também com o GEEM. (...) Em 70, 71, o GEEM mesmo começa a se dividir. Você vê que há dois discursos. Há um discurso do (Ginásio) Vocacional e um do GEEM. Eles estiveram 205 professores. A partir de 1972, Dienes também realizou cursos em Porto Alegre, a convite do GEEMPA. Em São Paulo, essa divulgação foi menos intensa e teve um alcance bem menor do que a matemática moderna havia tido, nos anos 60. Além de um engajamento menor por parte das lideranças do movimento, as caracteristicas da própria proposta, que faziam sua aceitação mais difícil por parte dos professores, limitavam esse alcance: “Ele tinha embutido uma nova proposta, um novo olhar do ensino, um novo olhar do aluno. Tudo isso que era uma coisa dificil para você assimilar, você tirar o professor como centro do processo de aprendizagem. (...) Por isso foi menos gente. E eu acho que o Dienes tinha um dado, embora as propostas dele fossem até mais desvinculadas da realidade, (...) ele não tinha uma cara tão messiânica quanto tinha a matemática moderna. A matemática moderna, você tinha a sensação de que se tivesse um bom trabalho de matemática moderna, nenhum aluno mais teria dificuldade com a matemática.” (CARVALHO, depoimento oral). A implementação da proposta, por outro lado, exigia recursos que não estavam disponiveis aos professores das escolas públicas: “E uma proposta super-sofisticada, com menos de duas pessoas em sala de aula você não conseguia trabalhar. Com classes com mais de 35, impossivel de trabalhar. (...) Era uma coisa tão sofisticada numa época em que se queria dar escola para todo mundo, você tinha 50 alunos nas classes de (ensino) noturno e isso, eu trabalhava na periferia, é real.” (CARVALHO, depoimento oral). Para alguns membros do GEEM, as dificuldades de implementação da proposta de Dienes, sobretudo na escola pública, faziam-na uma proposta elitista: “O conteúdo, nós estávamos todos chegando no mesmo acordo, que era o conteúdo da matemática moderna. (...) Havia muita diferença 206 (em relação aos métodos). Então esse professor (Dienes) ele fazia espaço vetorial com os alunos. (...) Era uma obra de arte. Por isso eu dizia aos meus colegas: quem vai ser o artista capaz de imitá-l0?" (CASTRUCCI, depoimento oral); “Apareceu um método elitista para a escola bem elementar, que é o método Dienes. O Dienes, ele trabalha com conjuntos e trabalha com estruturas de um modo altamente criativo. Mas é um método altamente elitista, porque ele não conduz imediatamente o individuo a fazer os cálculos elementares iniciais. E muitas crianças no Brasil terminam a escola (...) na metade do primeiro grau, e precisam ter a capacidade de fazer algumas coisas. (...) Ele trabalha com as estruturas operatórias da inteligência de um modo muito profundo e bastante adequado, mas é para uma escola muito mais aperfeiçoada.” (DI PIERRO NETTO, depoimento oral) Para aqueles que se envolveram com a proposta de Dienes, a opção metodológica tinha uma importante dimensão político-pedagógica, com um sentido geral de favorecimento da democracia no interior da sala de aula: “Eu fiquei muito impressionada com o Dienes, porque o Dienes tinha uma coisa muito libertária na postura dele educacional e que se precisava muito na década de 70 no Brasil. Então você tinha a impressão de que você estava fazendo (...) quase como se fosse uma revolução na sala de aula de matemática, porque lhe seria permitido pelo menos uma atuação quase que politica de você permitir que o aluno fosse livre, inventasse por si mesmo, escolhesse os seus caminhos.” (CARVALHO, depoimento oral). Considerações sobre as contradições da proposta de Dienes ou os limites de seu potencial transformador, aparentemente, não eram elementos de um debate real entre os educadores. Para os que se envolveram com a proposta, o que contava era o potencial critico da proposta de Dienes em relação ao trabalho desenvolvido até então, e mesmo em relação às práticas pedagógicas tradicionais: 207 “E era uma coisa interessante, porque era uma época em que de alguma forma a área da matemática foi a única que ficou mais ou menos livre para ter todos os tipos de discussão, na proposta do ensino, pelo menos no Estado de São Paulo. (...) E dai os matemáticos, por outro lado, você não está amarrado, você acha que você está fazendo a transformação sozinho, pegando uma coisa assim que é libertária. E libertária teoricamente, mas desamarrada da realidade.” (CARVALHO, depoimento oral) As dificuldades de implementação da proposta de Dienes em larga escala - e que eram muito mais óbvias do que as dificuldades de renovação dos programas - contavam pouco, entre um - grupo de educadores, num periodo em que a repressão inviabilizava, de modo geral, o debate aberto e as experiências de renovação pedagógica mais amplas. Segundo BECHARA (depoimento oral), o sentimento geral de impotência dos educadores de transformação da realidade escolar mais ampla se refletiu no surgimento das escolas “alternativas” em substituição às “experimentais. Esse sentimento encontrava ressonância na leitura feita, naquela época, das idéias de Althusser sobre a escola como aparelho ideológico do Estado, funcionando através da ideologia para a reprodução das relações de produção. De fato, embora não houvesse uma oposição aberta por parte do sistema de ensino à proposta de Dienes, ela não pôde ser implementada em nenhuma escola pública. No mesmo período, foram fechados os Vocacionais e os educadores envolvidos com a proposta foram afastados da coordenação de experiências nas escolas. A experimentação da proposta ficou reservada a algumas escolas privadas. Pelas próprias características da proposta, ela não 210 criticas à matemática moderna por parte de professores brasileiros. Em 1972, Howard Fehr apresentou na USP um trabalho intitulado “Why school mathematics should be taught in a contemporary setting", realizado no SSMCIS (Secondary School Mathematics Curriculum Improvement Study) enfatizando o aspecto “prático” do ensino-de matemática, o que era percebido como um recuo em relação ao discurso tradicional da matemática moderna CSANGIORGI, 1976). Em 1973, foi publicado nos Estados Unidos o livro de Morris Kline “Why Johnny Can't Add: The Failure of The New Math”. Kline tinha sido, desde o inicio, um critico das reformas curriculares inspiradas na matemática moderna. Durante toda a década de 60, matemáticos e educadores norte-americanos debateram sobre a validade dos novos projetos. O livro de Kline, no entanto, tinha uma importância nova, uma vez que era publicado após cerca de 15 anos de experiências, e dirigido a um público bem mais amplo que o de matemáticos e educadores. Para Kline, a ênfase formalista dos novos curriculos e o tratamento da matemática como conhecimento desligado das ciências naturais deviam-se, fundamentalmente, à separação crescente entre a produção de conhecimento matemático e a produção de conhecimento cientifico em geral verificada nos últimos anos, e ã preponderância, nas comissões que elaboraram os projetos, das opiniões dos matemáticos, em geral ligados às áreas de pesquisa mais abstratas da matemática. 211 A divulgação ampla do livro de Kline já refletia o desgaste do movimento nos Estados Unidos. O livro teve repercussão no Brasil e acabou sendo publicado, em 1976, com o titulo de “O Fracasso da Matemática Moderna”. Uma outra critica que teve repercussão no Brasil foi a do matemático René Thom. Em 1970, Thom publicou um artigo em que criticava a contraposição feita nos programas de matemática moderna entre a álgebra e a geometria euclidiana, e a expectativa de que problemas de compreensão da matemática pudessem ser resolvidos através da introdução da linguagem ou da teoria dos conjuntos. No II Congresso Internacional de Educação Matemática,realizado em Exeter, em 1972, Thom apresentou uma critica mais relacionada ao discurso da matemática moderna e aos pressupostos nos quais esse discurso se apoiava, entre os quais uma visão formalista da matemática, a ênfase no rigor mais do que no “significado” de objetos matemáticos, e a idéia de que, ao explicitar mecanismos e técnicas implícitos do pensamento, o próprio uso dessas técnicas seria facilitado. Do mesmo modo que Kline, Thom participava de um debate muito mais amplo que, na França, envolvia educadores e matemáticos e que se realizava publicamente. Um marco importante nesse debate foi a realização de um colóquio sobre ensino de matemática em 1972, na Sorbonne, onde diretores de Institutos de Pesquisa em Educação Matemática (os IREM) como LEHMANN e GLAESER (1980) criticavam o modo como as reformas vinham sendo encaminhadas, principalmente no que se referia à formação dos 212 professores. Um tema que ganhou relevo no debate francês era o do papel seletivo e elitizante cumprido pelo ensino de matemática, um papel que tradicionalmente fora cumprido pelo ensino do latim. Não se tratava, entretanto, de atribuir aos defensores da matemática moderna uma visão elitista do ensino: “Seria ingênuo acreditar que o enfrentamento entre partidários e detratores da reforma é o mesmo que existe entre progressistas e conservadores. Há em efeito uma contradição fundamental entre os conservadores que se sentem molestados por uma reforma que os obriga a sairem de suas rotinas e os que se deram conta de como essa reforma pode ser utilizada como um maravilhoso instrumento de seleção. De modo análogo podemos encontrar entre os partidários da reforma uma contradição entre os idealistas de um lado e os que temem que o resultado contribua para a segregação social, de outro.” (LEHMANN, 1980, p. 375); “Para aquele que deseja manter a “ordem estabelecida”, há uma maneira de ensinar a matemática moderna que pode acentuar o caráter elitista de nosso ensino secundário; é também por isso que alguns dos que querem destruir a “ordem estabelecida” acusam nossas reformas de reforçar, por golpes sucessivos de seleção, a desigualdade de chances entre nossos alunos. Para aquele que vê na escola - sim, na escola renovada - um meio de formação de consciências e por consequência de dar aos cidadãos seu poder, há no ensino de matemática uma via para a liberdade de pensamento; é também por isso que, a cada aparição de um novo programa, uma administração superior ciosa de suas prerrogativas tenta impor suas concepções, à medida em que se vê ameaçada quando uma iniciativa é tomada por aqueles a quem ela dá o titulo de professor.” (WALUSINSKI, 1973). Esse debate se realizava, na França, tendo como pano de fundo as alterações decisivas no debate social sobre tecnologia, ciência e progresso técnico acarretadas pela explosão do movimento estudantil em 1968 e pelo ascenso do movimento operário na França, em 1968, e na Itália, em 1969. 215 Paulo do aluno dizendo: “Papai, quanto é 8314 22, e o paidiz: “E 5"; “Não, 3+2 é igual a 2 + 3 *, que é copiado do livro do Kline, desse livro. Desse ponto de vista é que eu acho que houve uma importação da critica. Porque a nossa criança de primeira série nunca chegou a pensar dessa maneira. Eu não acredito. Porque a escola pública é uma escola que caminha lentamente.” (FRANCHI, depoimento oral); “Eu acho que o movimento acabou assim no mundo inteiro quando começou a haver critica, não é? E críticas de grandes matemáticos. Estas criticas pesaram muito. (...) Ai o Dieudonné escreveu um livro, “Geometria e Algebra Linear”, €...) é um calhamaço, um livro dificílimo, que era destinado ao ginásio. (...) E ai depois saiu uma crítica desse livro na Mathematical Reviews feita por Freudenthal. (...) Então ele diz assim que Oo Dieudonné estava empolgado com uma idéia e estava muito iludido (...) porque no livro que ele escreveu tinha tais e tais coisas que também têm falta de rigor. Mas eu acho que essas causas gerais foram apontadas pelos matemáticos todos, falta de apelo ao concreto, falta de apelo ao mundo fisico. (...) Mas em 71 (...) saiu o livro do (René) Thom, que diz assim: “Matemática moderna: um erro pedagógico?'. A crítica de um grande matemático, prêmio da medalha Fields, um prêmio tradicional. Em 73, saiu o livro de Morris Kline. Em 76, esse Congresso (o III CIEM, em Karlsruhe). Então, por volta de '70 começou (o desgaste do movimento)." (CASTRUCCI, depoimento oral). As criticas mais explícitas em relação à matemática moderna no Brasil se iniciaram por volta de 1973. No anúncio da realização do Nono Colóquio Brasileiro de Matemática, o matemático Elon Lages Lima apontava o ensino brasileiro como seguindo “modelos estrangeiros que não tiveram aprovação satisfatória nos próprios locais de origem" e “prejudicial pelo exagerado desligamento da realidade e por ser excessivamente moderno" (LIMA, 1973). No próprio Colóquio, foi realizado debate sobre o ensino de matemática de nível médio. Também em 1973, no Seminário de Ciências e Matemática realizado pelo Programa de 216 Expansão e Melhoria do Ensino (PREMEN), o professor Manfredo Perdigão do Carmo criticou a matemática moderna pela ênfase nas estruturas matemáticas, na axiomatização e pelo seu aspecto formalista de um modo geral, e argumentou que as “distorções das próprias idéias modernistas em mãos inexperientes", no Brasil, haviam feito de sua aplicação “um caos completo” (CARMO, 1974). Na visão do matemático, a necessidade de um ensino “mais compativel com a Matemática atual e mais adequado à realidade brasileira” indicava E importância da participação dos nstenáticos brasileiros na discussão do ensino, uma participação que até então fora muito limitada. O reflexo das criticas dos matemáticos já se fez sentir nos cursos de férias do GEEM realizados no início de 1974. Pela primeira vez foram incluidos tópicos como Cálculo e Construção dos Números. Não foram incluidos cursos de Teoria dos Conjuntos, Algebra ou Topologia. A marca da matemática moderna estava presente ainda em tópicos como Espaços Vetoriais e Transformações. O próprio professor Elon Lages Lima foi convidado pelo GEEM para realizar palestra durante os cursos de férias. Foram, ainda, exibidos filmes do JIMPA de geometria no espaço, trigonometria, logaritmos, números complexos, temas que nunca foram o foco principal da atenção do GEEM (CURSOS, 1973). O quadro sobre o qual incidiam as criticas era o de um ensino em processo de deterioração de sua qualidade, que no caso da matemática se fazia mais visivel através dos indices de reprovação. A expansão acelerada e não planejada da educação, nos 2a anos 80 e 70, se fazia às custas de um preparo cada vez mais precário dos professores e do comprometimento crescente das condições de ensino. O exame de admissão, unificado em 19687, foi abolido com a vigência da Lei 5692/71, que integrou o primário e o primeiro ciclo do ensino médio no curso de primeiro grau. O discurso da politica educacional governamental era o da garantia plena da escolaridade entre os sete e os quatorze anos. Em São Paulo, o crescimento da rede pública, que já havia sido acelerado nos anos 680, foi intensificado a partir de 19688. Assim, se entre 1964 e 1968 o crescimento das matriculas o crescimento do ensino secundário de primeiro ciclo foi de 74%, entre 1968 e 1972 esse crescimento foi de 105%. Na Grande São Paulo, esse crescimento foi maior ainda, em torno dos 165%. No segundo ciclo do secundário, que havia tido um crescimento de 96% entre 1964 e 1968, a expansão foi de cerca de 215%, considerando-se as matriculas iniciais. A rede estadual era a grande responsável pela expansão: no primeiro ciclo, a participação da rede evoluiu de 77% em 1968 para 92% das matriculas em 1972; e, no segundo ciclo, evoluiu de 76% em 1968 para 81% em 1972 (SÃO PAULO, 1975). A precariedade do ensino praticado na rede estadual de São Paulo, já denunciada por Maria José VWEREBE em 1969, foi agravada nesse periodo. Embora o acesso ao ensino médio estivesse sendo efetivamente ampliado e estendido para novos contingentes sociais, o que houve não foi uma democratização de fato. Não só a qualidade do ensino oferecido a esses setores era degradada, como o próprio valor social do diploma era depreciado. 220 pré-julgamento do êxito de sua filosofia e de sua aplicabilidade. “Encontra-se ainda no Guia uma contradição entre a orientação nitidamente elitista que se preconiza para o ensino da Matemática em São Paulo e os princípios democratizadores da Lei 5692 (...).” (SANGIORGI, 19789. Nesse mesmo periodo, outros espaços de busca de caminhos para a renovação do ensino de matemática começaram a surgir, fundamentalmente, espaços organizados pelos órgãos oficiais do sistema de ensino. Em 1973, foi criado pelo MEC o Projeto de Melhoria do Ensino de Ciências do PREMEN, que envolvia a elaboração de materiais didáticos na área das ciências naturais e da matemática e vários tipos de cursos para professores, destacando-se os cursos de “licenciatura experimental em serviço”. Foi através desse projeto que se organizou o Seminário de Ciências e Matemática do: PREMEN, em 1973, e que foram financiadas experiências com ensino de matemática realizadas na UNICAMP e na Universidade Federal do Ceará (PORTO, 1978). No quadro de uma politica oficial de expansão acelerada dos cursos de pós-graduação, foram produzidas e defendidas no Brasil, em 1972, as primeiras dissertações e teses na área da Educação Matemática. Entre 1972 e 1976, pelo menos 15 teses ou dissertações foram defendidas, sendo a ampla maioria delas voltadas para a validação de propostas metodológicas ou preocupadas fundamentalmente com o baixo rendimento escolar em matemática (FIORENTINI, 1988). 221 Em 1975, foi instalado na UNICAMP um curso de Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática como parte do Projeto Multinacional para a Melhoria do Ensino de Ciências e Matemática (PROMULMEC) da OEA em convênio com o MEC e com apoio do PREMEN (D"AMBROSIO, 1984). Uma proposta que passou a ser divulgada nesse periodo foi a da integração do ensino de ciências e matemática. Assim como a proposta da matematica moderna, a proposta do ensino integrado tinha origem no envolvimento dos cientistas com o ensino. D'AMBROSIO (1974) registra como primeira iniciativa no sentido do ensino integrado de ciências uma conferência realizada em 1967, organizada pela norte-americana National Science Foundation, para discutir as relações entre ciências e matemática nas escolas públicas. A proposta do ensino integrado de ciências e matemática no secundário era, no início dos anos 70, uma das vertentes de uma tendência mais geral a nível internacional de ênfase nos aspectos de uso cotidiano e de aplicação da matemática à descrição da realidade e à solução de problemas surgidos em outras disciplinas ou diretamente da experiência concreta, e de ênfase na aprendizagem dos métodos e princípios necessários à solução de problemas. Tratava-se, claramente, de uma tendência oposta à da matemática moderna em alguns de seus aspectos, principalmente os viezes formalista e abstracionista. Em 1974, a UNESCO tomou a iniciativa de realizar em Montevidéu úma reunião de &Gmbito latino-americano sobre "as 222 aplicações no ensino e aprendizagem de matemática na escola secundária”. A proposta de ensino integrado foi defendida no Brasil por Ubiratan D'Ambrósio no Seminário do PREMEN, em 1973. Em 1975, o GEEMPA iniciou um projeto de pesquisa intitulado “Integração do Ensino no Curriculo por Atividade e por Area de Estudo", também em convênio com o INEP. A proposta do ensino integrado não deu origem, no Brasil, a um movimento pedagógico como foi o caso com a matemática moderna; e foi usada até mesmo para legitimar projetos como o das licenciaturas de curta duração em ciências, que resultaram de um modo geral em meros arremedos de uma formação “integrada” de professores. O GEEM não se envolveu com a proposta, como não desenvolveu nenhuma outra proposta de renovação do ensino de matemática nesse periodo. A dificuldade de o GEEM buscar novos caminhos para a renovação do ensino de matemática e de sua própria ação estava ligada à dificuldade que havia, no interior do Grupo, de elaboração de uma compreensão coletiva sobre a matemática moderna e sobre a experiência que o próprio Grupo havia realizado. No curso de férias do GEEM realizado em janeiro de 1975, foi realizada uma mesa-redonda com a participação de uma representante oficial da Secretaria de Educação do Estado, onde 225 deram origem à proposta divulgada nunca foram sistematizadas, e como o processo de divulgação e implementação da matemática moderna nas escolas nunca foi planejado, era dificil haver uma compreensão comum entre os participantes do movimento acerca dos critérios com que avaliar o movimento e mesmo acerca de qual era a proposta que deveria ser avaliada, deixando-se de lado as deformações ou os exageros introduzidos de fora do movimento. A matemática moderna era marcada pela contradição de uma proposta elaborada em outros paises e experimentada amplamente no pais, sofrendo adaptações que nunca foram precisadas. E possivel que esse processo se houvesse revertido se o periodo em que as criticas surgiram não fosse marcado pela repressão intensa e pelo abafamento do debate educacional no pais. 7.1. 1976 como um marco Em 1976 foi realizado o último curso do GEEM para professores, preparando o concurso para o magistério que acabou se constituindo num momento de desnudamento da situação do ensino. Em 1976, foi publicado o livro de Morris Kline. E foi também em 1976 que, pela primeira vez desde o Congresso de São José dos Campos (em 1986), profissionais do ensino de matemática de todo pais se reuniram, na preparação de sua participação no III Congresso Internacional de Educação Matemática que deveria se realizar naquele mesmo ano. 226 O Seminário, realizado no Rio de Janeiro, foi organizado pelo recém-fundado GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática), e teve apoio oficial através do PREMEN. Embora Lucilia Bechara se refira a esse seminário como tendo sido “duro”, nas conclusões dos grupos não foi incluido qualquer tipo de crítica explicita à matemática moderna. No grupo que discutiu “Educação Matemática em Nível Médio", foram “consideradas válidas" as conclusões da reunião de Montevidéu sobre aplicações no ensino de matemática, uma tendência que se diferenciava da gatemática moderna. Em outros grupos, porém, foi enfatizada a “visão estrutural da matemática”, um dos elementos centrais da matemática moderna (BOLETIM DO GEPEM, 1976; 1977). O silêncio sobre o movimento da matemática moderna nas resoluções de um encontro que se propunha a “obtenção de uma panorama da situação da educação no Brasil" sugere que as dificuldades de avaliação do movimento não eram exclusivas do GEEM. Ao mesmo tempo, esse silêncio revela o esgotamento do movimento, o fato de que já tinha deixado de ser referência para os debates na área da educação matemática no pais. No III Congresso Internacional de Educação Matemática, realizado em agosto, participaram 21 professores brasileiros - a maior delegação latino-americana e talvez a maior entre os paises do terceiro mundo. Para o professor Castrucci, o congresso foi marcante pelas “criticas tremendas" que foram feitas à matemática moderna. 227 De fato, o II Congresso, realizado em 1972, já havia sido palco de polêmica sobre um balanço da matemática moderna como esforço de renovação do ensino e como proposta. No III Congresso, o debate sobre uma “Análise Crítica do Desenvolvimento de Curriculos em Educação Matemática” já enfatizava não a validade da matemática moderna ou de outros projetos de inovação curricular, mas a importância de um balanço sobre o modo como se haviam projetado e implementado as propostas de inovação curricular em matemática nos anos 50 e 60. HOWSON (1977) acentuava, entre as lições aprendidas com essa experiência, a importância do papel dos professores de sala de aula para a inovação curricular e a necessidade da valorização da formação de professores tendo em vista o desenvolvimento de sua autonomia como “inovadores”. Uma outra “lição” apontada não só por Howson, mas incluida entre as conclusões do congresso era a da necessidade de se levar em conta, nos projetos de inovação curricular, as diferenças sociais, educacionais e culturais entre países, regiões ou grupos dentro de um mesmo pais. Ainda, Howson enfatizava a necessidade da elaboração de curriculos voltada não apenas para uma elite acadêmica, mas para alunos de todos os niveis de capacidade e até mesmo para os deficientes. O avanço do debate em relação ao congresso anterior se expressava, também, no esforço de superação do que HILTON (1977) classificou como “falsas dicotomias": a oposição entre a “velha” e a “moderna” matemática, feita nos Estados Unidos pelo movimento “back to basics"; entre “construção de estruturas” e “solução de 230 8. CONCLUSÕES No I Encontro Nacional de Educação Matemática, realizado em janeiro de 1987, em São Paulo, pelo menos dois conferencistas referiram-se explicitamente ao movimento da matemática moderna, embora não se constituísse em tema do Encontro: “Queremos deixar claro que não estamos querendo falar dos exageros e muitas tolices que se fizeram em nome do que se chamava moderna” e as pobres crianças ficavam girando em torno de inutilidades quando mal conduzidas. E quase sempre eram." (DI PIERRO NETTO, 1988, p. 45); “O livro de Fremont ('Teaching Secondary Mathematics Through Applications') é, antes de mais nada, uma feliz antologia de aplicações de Matemática ao mundo de hoje, tudo isso ao nivel da Escola Secundária. Neste particular, ele é o melhor dos antidotos contra o torpor da chamada “Matemática Moderna”. Com efeito, o grande e fundamental fracasso desta última foi precisamente o de adotar uma concepção da Matemática bastante dissociada das aplicações e, como tal, em contradição com o objetivo básico da Escola como preparação à Vida." (LIMA, 1988, p. 40). A necessidade mostrada pelos educadores de fazer referências à matemática moderna mostra como, apesar da escassez de estudos sobre o movimento, é considerado como uma experiência presente nos debates atuais sobre ensino de matemática. Na ausência, porém, de estudos mais sistemáticos e de um debate mais amplo sobre o movimento, duas tendências se expressam nas falas sobre a matemática moderna contribuindo para a construção de uma visão do movimento como uma experiência deslocada da evolução do debate sobre ensino de matemática no Brasil. Uma, de referenciar apenas o que é um produto aparente do 231 movimento - o ensino praticado nas escolas -, em detrimento do movimento como processo de ação e reflexão combinadas. Outra, de tratar o movimento como se sua dinâmica, discurso e propostas fossem idênticas às desenvolvidas nos Estados Unidos e em paises europeus. A tese de Beatriz D' Ambrósio mostrou a importância e a validade de que o movimento da matemática moderna no Brasil seja examinado em sua dinâmica especifica. A mesa-redonda sobre a matemática moderna realizada no II ENEM, em 1988, com a participação de João Bosco Pitombeira, Lucilia Bechara, Martha M. de Souza Dantas, Luiz Márcio Imenes, Beatriz D'Ambrósio e Nilson José Machado, caminhou no mesmo sentido. Este estudo é mais uma contribuição para a confirmação da validade desse enfoque, com a explicitação de múltiplas conexões que unem o movimento da matemática moderna, tanto pelas suas origens como pelas suas consequências, ao desenvolvimento da educação matemática como objeto de debate e pesquisa no pais; conexões que não excluem o investimento e o interesse de agências como a USAID e a OEA na difusão da matemática moderna para paises do terceiro mundo, mas que não consideram esse interesse e esse investimento como o centro da explicação para o surgimento, expansão e esvaziamento do movimento. O pensamento pedagógico que orientou a ação dos educadores é mostrado, também, como profundamente marcado pelo contexto em que foi gestado, pelo debate social em torno do 232 desenvolvimento econômico do pais e pelo desenvolvimento do debate especifico em torno do ensino secundário. A seguir, são resumidas as conclusões deste estudo no que se referem às questões colocadas de início; e são apresentadas algumas considerações finais envolvendo as relações entre o movimento da matemática moderna e o debate realizado hoje, no Brasil, em-torno da educação matemática. 8.1. Retomando as questões iniciais A explicação para a dimensão que o movimento teve em termos da sua divulgação, do engajamento dos professores e da aceitação da proposta e para a amplitude do campo de visões e preocupações dos participantes reside, fundamentalmente, no modo como se deu a combinação de elementos de um desenvolvimento interno, local, e elementos de transferência de uma elaboração realizada em outros paises. A expansão do ensino secundário, iniciada nos anos 30 e reconhecida, nos anos 50, como um fenômeno a suscitar a necessidade de uma reflexão e de uma política especificas foi uma das condições decisivas para o início do desenvolvimento de experiências e esforços de renovação desse ensino. Enquanto o ensino secundário foi, no Brasil, um ensino de acesso reservado às elites e cumprindo papel de passagem para o ensino superior, as tentativas de melhoria da qualidade desse ensino ficaram basicamente restritas à iniciativa dos governos, através da 235 sendo produzido em outros paises, já identificado como “matemática moderna”. Em São Paulo, a ação da Inspetoria Seccional do MEC, do IBECC e das editoras de livros didáticos contribuiram para a construção de condições favoráveis à aglutinação de professores dispostos ao engajamento na renovação do ensino de matemática. 0 ansginento do GEEM de São Paulo refletia esse quadro de disposição e um acúmulo minimo de discussões sobre o ensino da matemática no secundário, ao mesmo tempo em que refletia o investimento de entidades como a (OEA e a National Science Foundation, dos Estados Unidos, que garantiu a ida do professor Osvaldo Sangiorgi aos Estados Unidos para cursos de verão em 1960 e a vinda do professor George Springer a São Paulo, em 1961, para o curso que precedeu a fundação do Grupo. O GEEM já surgiu comprometido com o movimento da matemática moderna. Não se tratava de um resultado de elaborações desenvolvidas por professores brasileiros. O engajamento dos professores, no entanto, decorria não só do fato de que era a única proposta mais elaborada a que tinham acesso, mas do convencimento deles em relação à proposta, da aceitação da proposta como adequada às necessidades do ensino de matemática no Brasil. Essa adequação não era dada pelo simples conhecimento de uma proposta, mas resultou de uma adaptação, a nivel do pensamento e do discurso dos participantes, que se construiu no 236 sentido da compatibilização com preocupações e orientações expressas em debates sobre ensino de matemática já realizados no pais e com o quadro mais geral do debate pedagógico em torno do ensino secundário. Nessa adaptação, alguns elementos do discurso original da matemática moderna foram enfatizados em detrimento de outros; alguns foram omitidos; novos elementos foram introduzidos. A idéia da modernização como superação do ensino arcaico e associada à superação do ineficaz pelo eficaz encontrava um terreno fértil numa sociedade que via na industrialização e no crescimento econômico a via para a conquista da independência e do bem-estar social. Em particular, a valorização da ciência como fator de desenvolvimento econômico, que vinha associada à idéia da modernização, enfatizada desde os anos 20 pelos escolanovistas, ganhara um novo sentido com a aceleração da inovação tecnológica a nivel mundial no pós-guerra e com a institucionalização de uma politica cientifica no pais nos anos 50, expressa na criação do CNPq e da CAPES. No movimento da matemática moderna, a valorização da pesquisa cientifica era expressa no discurso genérico da necessidade da superação da defasagem entre o ensino secundário e o ensino superior e na ênfase em uma matemática mais “correta” como condição de um ensino eficaz, mais rigorosa em termos de conteúdo e de linguagem. A idéia da ênfase nas estruturas matemáticas era percebida não como ligada a uma visão entre outras sobre o 237 conhecimento matemático, mas como a visão decorrente do desenvolvimento mesmo da disciplina, o que era favorecido tanto pela orientação estruturalista presente na Faculdade de Filosofia da USP como pela quase inexistência, nos anos 50 e inicio dos anos 60, de debates em torno da filosofia da matemática, a nível internacional. Um elemento importante de ligação entre o caráter cientifico atribuido à proposta da matemática moderna e sua aceitação pelos professores era a autoridade que os matemáticos pesquisadores davam ao movimento, uma autoridade que foi reproduzida no Brasil pelo GEEM com a participação de matemáticos como Omar Catunda e Benedito Castrucci. Ainda, o recurso à psicologia pisgetiana como fator de validação da ênfase nas estruturas, apresentada como um elo quase que mágico entre o desenvolvimento da inteligência e a história da produção do conhecimento matemático, era um elemento adicional, embora secundário, de atribuição desse caráter cientifico à proposta. Sobretudo no discurso do professor Sangiorgi como representante do GEEM, o elo entre a psicologia piagetiana e a matemática bourbakista era um elemento da explicação de porquê, até então, não havia sido possivel uma renovação do ensino secundário da matemática com esse caráter. A valorização da ciência como fator de “progresso” também se expressava no papel atribuido ao ensino de matemática, tido como fora de questão, do mesmo modo como o valor social do progresso era considerado inquestionável. 240 das definições e conceitos (mesmo os mais abstratos) em experiências concretas. A desvalorização das técnicas de cálculo referia-se não às “habilidades elementares” relativas às quatro operações, mas a um tipo de exercitação que eram amplamente reconhecida como pedagogicamente vazia. Por outro lado, a localização dos problemas do ensino no próprio ensino e em sua articulação com o desenvolvimento da inteligência como esquema geral era uma solução percebida como consistente para a questão do fracasso e da “aptidão matemática”, um problema levantado mas não: resolvido até então. A autoridade de que o movimento se revestiu e o espaço que ocupou em termos de divulgação podem ter sido fatores de esvaziamento de outras alternativas em desenvolvimento nesse mesmo periodo, ou que poderiam ter se desenvolvido. Não é verdade, porém, que a matemática moderna foi artificialmente introduzida no Brasil no sentido de que os valores que justificavam sua aceitação e difusão fossem distintos e opostos, em sua globalidade ou em seus aspectos centrais, ao que vinha sendo desenvolvido. As contradições geradas na adaptação da proposta em si, feita de acordo com critérios do bom senso e orientada de um modo geral por esses valores, como afirma Beatriz D'AMBROSIO (1987), misturando elementos de vários projetos sem um exame critico dos pressupostos embutidos, não eram percebidas como tal. A capacidade de absorção de diferenças, no interior do movimento, em relação à dimensão das modificações a serem introduzidas - por exemplo em termos do rigor de linguagem, da introdução ou não do estudo das estruturas algébricas no ginásio, 241 da algebrização da geometria - ocultava essas contradições e impedia o desenvolvimento de uma oposição ao movimento. As criticas dos aspectos formalista e abstracionista como elementos da essência da proposta da matemática moderna só se desenvolveram nos anos 70, reproduzindo já o debate norte-americano e europeu. O movimento da matemática moderna não se articulou diretamente com outros movimentos de renovação do secundário, mas estava ligado a eles através de alguns de seus protagonistas. Um dos. limites do movimento foi o de não ter desenvolvido essa articulação. No campo da psicologia da aprendizagem, a matemática moderna ficou muito aquém do que podia ser desenvolvido naquele periodo. A integração de disciplinas, com a perspectiva de uma leitura critica através do estudo, sob diferentes pontos de vista, de um mesmo aspecto dessa realidade era uma experiência nova e interessante desenvolvida nos Vocacionais e no Colégio de Aplicação e que não foi assimilada pelo movimento como conjunto. Esse isolamento, a ênfase na especificidade do ensino de matemática, contribuiu para reforçar a ausência de questionamento sobre o papel do ensino de matemática, tido como natural. Os valores que justificavam a renovação do ensino no discurso da matemática moderna - um ensino moderno na sua abordagem e na linguagem utilizada e acessivel a todos (embora dirigido à pequena parcela que então frequentava o secundário) - no entanto, não destoavam significativamente dos valores presentes nas outras experiências. Até os últimos anos da década de 60, a dimensão politica da ação pedagógica, a valorização da 242 cultura popular e a consideração dos diferentes interesses de classe envolvidos na educação não estavam presentes explicitamente nos esforços de renovação do secundário. O debate mais politizado das questões educacionais referia-se à educação de adultos ou às universidades, onde se propunha o desenvolvimento da tecnologia nacional e da cultura popular. Mesmo a adoção de uma proposta elaborada em outros paises não era algo que separasse a matemática moderna de outros movimentos, inspirados nas “classes nouvelles" francesas ou na pedagogia ativa de Dewey. Um outro aspecto que diferenciou o movimento da matemática moderna de outros desenvolvidos no mesmo periodo foi o processo de divulgação e implementação da nova proposta. Nos Ginásios Vocacionais e no Colégio de Aplicação havia o pressuposto de que a renovação exigia condições diferenciadas de trabalho - planejamento em equipe, ampla assessoria psico-pedagógica, maior tempo de permanência dos alunos na escola, entre outros aspectos - que não eram acessíveis nas escolas públicas de um modo geral. Houve mesmo resistência, nessas escolas, às tentativas de reprodução generalizada de uma experiência que se considerava inicial, ainda no final dos anos 60. No movimento da matemática moderna, ao contrário, desde o início e especialmente a partir de 1964, quando o GEEM já estava consolidado, a divulgação foi massiva. O processo de expansão da matemática moderna ao longo dos anos 680 tinha, de um modo geral, duas dimensões: uma, de
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