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Guias e Dicas
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Ensaio: 18 de Brumário, política e pós-modernismo, Notas de aula de História

Artigo de Adriano Nervo Codato da Universidade Federal do Paraná

Tipologia: Notas de aula

Antes de 2010

Compartilhado em 24/12/2008

joao-nascimento-12
joao-nascimento-12 🇧🇷

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Baixe Ensaio: 18 de Brumário, política e pós-modernismo e outras Notas de aula em PDF para História, somente na Docsity! Uma das questões centrais da Sociologia Política marxista é a das relações entre “política” e “economia”. Como é amplamente conheci- do, o trabalho de Marx, O 18 Brumário de Luís Bonapart e, tem sido ce- lebrado como o texto canônico a respeito desse problema teórico e a retomada desse livro, na virada dos anos 1960 para os anos 1970, permi- tiu ao neomarxismo avançar em muitas direções novas: no desenvolvi- mento, por exemplo, de uma teoria do Estado contrária ao “instrumenta- lismo”, que rebaixava as complicadas ligações entre as classes economica- mente dominantes e o aparelho estatal a uma relação de controle estrito do segundo pelas primeiras; na reformulação de uma teoria da ideologia con- trária ao “mecanicismo”, que deduzia dos movimentos da economia a configuração e a função das superestruturas culturais; e na compreensão do problema das classes sociais contrária ao “economicismo”, que definia as primeiras exclusivamente em função da sua inserção no processo pro- dutivo. Essa manobra intelectual contra a ortodoxia tornou-se mais legíti- ma à medida em que se reconheceu (na verdade, à medida em que não se ignorou mais) a prioridade das questões políticas nas “obras históricas” de M a r x .1 No que diz respeito ao problema do “Estado” e das suas relações com a “sociedade civil”, já em 1960 Maximilien Rubel sugeria que se considerasse o fenômeno do “bonapartismo” – precisamente: a autonomia que o aparelho do Estado francês desfrutava em relação à sociedade O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICA E PÓS-MODERNISMO ADRIANO NERVO CODATO 1 As “obras históricas” incluem as análises da política européia da segunda metade do século XIX: A burguesia e a contra-revolução (escrita em 1848), As lutas de classe na França de 1848 a 1850 (1850), Crônicas Inglesas (1852-1854), Lord Palmerston (1853), A Espanha Revolucionária (1854), Herr Vogt (1860), A guerra civil na França (1871), além de O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852). francesa na segunda metade do XIX – como correspondendo à idéia que Marx fazia do Estado capitalista em geral, e não como um fenômeno político particular.2 No final dos anos 1960, menos a aversão ao economicismo reinante e mais uma reação contra o desinteresse sistemático pelas questões relativas ao poder e à política na problemática marxista (de resto o traço básico do “marxismo ocidental”3), foi fundamental para repor o problema do “Estado” numa nova chave interpretativa. Ela deu aos neomarxistas a oportunidade para enfocar o nível jurídico-político (diante do nível eco- nômico), o aparelho do Estado (em relação à “sociedade civil”) e a práti - ca política (frente à atividade econômica) enquanto objetos de conheci - mento distintos. O retorno do Estado à cena intelectual foi provocado tam- bém pela tentativa desse marxismo renovado em responder teórica e em- piricamente aos desafios postos pelo comportamentalismo da Ciência Po- lítica e da Sociologia norte-americanas. Esse movimento “revisionista” acabou por refletir também sobre o mainstream, retirando, de um lado, o assunto do domínio exclusivo dos estudos jurídico-constitucionais e, de outro, enfatizando, a partir de então, a diferença do conceito de “Estado” do de “governo” dos pluralistas. Como recordou Leo Panitch, “Within political science and political sociology, one of the legacies of the new Marxist theory [of the state] was actually that the state was firmly reesta- blished as part of the conceptual lexicon for the study of contemporary politics”.4 No que diz respeito à teoria marxista, foi precisamente a partir dessa virada que ela deixou de ser filosofia e crítica da cultura para tornar- se novamente “teoria social, teoria sobre a sociedade contemporânea e sobre a política do nosso tempo”.5 Desconfio, contudo, que os trabalhos históricos de Marx que inspiraram o “marxismo como ciência social”, para usar a fórmula de Göran Therborn, tenham passado a ser estudados hoje apenas como “tex- tos políticos”, à parte ou em contradição com a teoria marxiana no seu conjunto. O aspecto comum às interpretações politicistas mais contem- porâneas d’O 18 Brumário de Luís Bonaparte é, sintomaticamente, a su- pressão de toda menção à “economia” e a insistência na “especificidade do LUANOVA Nº 63— 200486 2 “‘Le bonapartisme, c’est la religion de la bourgeoisie’: voilà, mise en boutade par Engels, la pensée fondamentale que Marx a développée dans son Dix-huit Brumaire”. Maximilien Rubel, 1960, p. 152. 3 Cf. Perry Anderson, 1976. 4 Leo Panitch, 2002, p. 92. Para uma visão completa dessa história, v. Bob Jessop, 1990. 5 Göran Therborn, 1989, p. 390. O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICAE PÓS-MODERNISMO 89 tralidade da idéia que opõe essência e aparência. Os dois princípios foram- nos apresentados no “Prefácio” de 1859 de Para a Crítica da Economia Política. Nada disso é muito novo, certamente. O próprio Friedrich Engels advertiu que bastaria examinar o trabalho de Marx sobre o golpe de Estado na França para saber que mesmo num texto em que se trata “quase exclusiva- mente do papel p a rt i c u l a r desempenhado pelas lutas e acontecimentos políti- cos”, isso se faz, “é claro”, nos “limites de sua dependência g e r a l das con- dições econômicas”.1 3 Indagado mais tarde sobre o estatuto do “econômico” no âmbito da teoria social marxiana, Engels enfatizou que o livro de Marx consistiria no melhor “exemplo prático” para pôr à prova dois problemas não triviais da explicação histórica: a relação entre c a u s a e e f e i t o e a relação entre n e c e s s i d a d e e a c a s o. Simplificadamente, o materialismo histórico consistiria em afirmar a irrelevância das narrativas que desprezam as “condições econô- micas”, assumindo, ao contrário, que “há todo um jogo de ações e reações” entre a superestrutura e a infra-estrutura e que, “em última instância”, o eco- nômico acaba sempre por impor- s e .1 4 A questão que permanece todavia é: onde exatamente ler essa dinâmica peculiar e complexa entre a base material e a superestrutura (política e ideológica) n’O 18 Bru m á r i o? Pondo de lado as ponderações de Engels, uma sorte de senso comum douto sustentou, e essa é uma opinião renitente, que haveria um “Marx”, o historiador político, cujo trabalho seria inventivo, perspicaz e sofisticado; e um outro “Marx”, o teórico social, cujo pensamento seria pri- sioneiro do modelo dualista “base-e-superestrutura” e, por isso, de esque- mas de interpretação evolucionistas, mecanicistas e economicistas. Raymond Aron, que achava “as duas brochuras de Marx” – As lutas de classe na França e O 18 Brumário de Luís Bonaparte – “brilhantes”, viu a superioridade desses trabalhos na verdade como um desvio: “inspirado pela clarividência de historiador, Marx esquece [sic] suas teorias e analisa os acontecimentos como observador genial”.15 Penso que ler O 18 Bru m á r i o à luz dessa oposição simplificadora – entre a “teoria” (o modelo) e a “prática” (a análise concreta) – é tresler o 13 Carta de F. Engels a Schmidt, 27 out. 1890. In: Karl Marx e Friedrich Engels, s/d., vol. 3, p. 291, grifos do autor. 14 Carta de F. Engels a Starkenburg, 25 jan. 1894. In: Karl Marx e Friedrich Engels, ibid., p. 298-300. 15 Raymond Aron, 1987, p. 266. modelo de análise histórica tal como proposto pelo marxismo clássico no “Prefácio” de 1859. Os escritos “históricos” de Marx sobre a política são, antes de tudo, informados pelas proposições teóricas sistematizadas nos escritos seus “metodológicos”, obviedade que se perde de vista quando, sob o pretexto de se refazer o percurso intelectual de Marx, se toma seu pensa- mento ou em termos estáticos, compartimentando-o em “Filosofia”, “Eco- nomia”, “Política” etc., ou em termos cronológicos, pensando-o como uma e v o l u ç ã o. Ironicamente, considerando as datas dos dois livros aqui em ques- tão, e as diferentes avaliações sobre um e outro, trata-se de um caso curioso de i n v o l u ç ã o. Proponho então que se interprete O 18 Bru m á r i o a partir do “Prefácio” a fim de estabelecer três pontos: (i) o l u g a r do econômico no texto (o que implica em rever a ortodoxia); (i i) a re l a ç ã o entre o político e o eco- nômico no texto (o que implica em questionar a heterodoxia); e (i i i) a n a t u - re z a do próprio texto (o que implica em refutar as leituras pós-modernas). Não me escapa que esse projeto exigiria que se explicitasse como, afinal de contas, pode-se ler o próprio “Prefácio”; ou mesmo como entender o “desenvolvimento” do pensamento de Marx. Esses são todavia problemas que reclamariam um tratamento bem mais extenso. Vou me limitar aqui em indicar algumas “escolhas” que informam minha “política de leitura” do texto marxiano, para falar como T. Carver. Resumidamente, sabemos que Marx representa o todo social por meio de uma imagem poderosa e polêmica: o conjunto das “relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspon- dem formas sociais determinadas de consciência”.16 O que essa passagem, que é na realidade um enunciado teórico, significa? Em primeiro lugar, atentemos aqui também para a linguagem empregada no texto de 1859. A metáfora “base/superestrutura”, que subs- titui as noções tradicionais “Estado/sociedade civil”, indica uma mudança teórica que não encontra, no plano ideal, um nome próprio, isto é, um con - ceito. Se ainda é por meio do antigo vocabulário que Marx se expressa nas “obras históricas” – como se recorda: ´em um país como a França, [...] onde o Estado encerra, controla, regula, vigia e mantém sob sua tutela a sociedade civil” (18 Br., p. 477; grifos meus) – seu uso é contudo pura- mente descritivo17 e em grande medida anacrônico.18 LUANOVA Nº 63— 200490 16 K. Marx, 1982, “Prefácio”, p. 25. 17 Cf. Cesare Luporini, 1979, p. 91-102. 18 Catherine Colliot-Thélène, 1984. O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICAE PÓS-MODERNISMO 91 A figura do “edifício social” a que se recorre não é, entretanto, apenas a expressão de uma carência terminológica ou de um processo arbi- trário de substituição de um termo (“Estado”; “sociedade civil”) por outro (“superestrutura jurídico-política”; “estrutura econômica da sociedade”). O sentido figurado dessa formulação registra também uma (r)evolução teóri- ca. Ao invés de denotar a oposição entre “Estado” e “sociedade civil”, trata-se agora de exprimir duas idéias complementares: (i) a articulação entre as instâncias e (ii) a articulação entre instâncias diferentes (econômi- ca, política e ideológica). Essa distinção, como insistiu Louis Althusser, diz respeito a “diferenças reais, e não apenas [a] diferenças de esferas de ativi- dades, de práticas, de objetos: são diferenças de eficácia”.19 Assim, o todo social, pensado como uma estrutura formada por níveis específicos, em estreita correlação entre si, é um todo intrincado e desequilibrado. A des- proporção entre seus termos vem justamente do fato de que o nível econômico é determinante (Marx), “em última instância” (Engels). Em que pese a linguagem antiga, tomada de empréstimo da Filosofia Política, já n’O 18 Brumário encontramos em operação essas premissas. Meu objetivo aqui é demonstrar essa operação. Ao invés de con- trapor esses dois textos dos anos cinqüenta, pretendo indicar alguns pontos de concordância (o que é diferente, bem entendido, de demonstrar a “apli- cação” dos princípios de 1859 na análise de 1852). O artigo está dividido em cinco partes. Na primeira procuro ilus- t r a r, de maneira menos esquemática, a interpretação dualista do pensamen- to de Marx com base no divórcio por ramos de atividade entre o “historia- dor” e o “teórico social”. Na segunda seção apresento minha hipótese de leitura. Ela une a forma (o “estilo”) e o conteúdo (a análise do processo social) d’O 18 Bru m á r i o aos postulados convencionais do materialismo histórico. Na terceira seção, listo as diferenças entre os textos de 1852 e 1859 e relativizo o desacordo tradicionalmente enfatizado pela maior parte dos comentadores. Na quarta seção busco comprovar um ponto do meu 19 Louis Althusser, 1978, p. 146. Marx, prossegue Althusser, “também não nos disse que tudo deveria estar contido [nesse edifício], e que tudo fosse ou infra-estrutura ou superestrutura”. Id., ibid., p. 146. Terry Eagleton parece sugerir a mesma idéia quando adverte para o uso de um termo como “superestrutura” como um substantivo abstrato, “um ‘domínio’dado, fixo de instituições que [a] formam”. O fundamental é reter o uso adjetivo do termo. Certas institu- ições sociais podem, ou não, atuar de maneira “superestrutural”. Elas o fazem quando con- tribuem para a produção/reprodução das relações sociais dominantes. A metáfora não nos diz, então, que o mundo possa ser dividido em “fatias”. Terry Eagleton, 1997, p. 81. de análise política, ao lado de um modelo teórico mais ou menos explícito que enfatiza certos condicionantes estruturais. Essa tensão entre uma pers- pectiva que sublinha a autonomia do poder de Estado, a primazia das variá- veis estritamente políticas e outra que, na linha da “ortodoxia teórica”, trata os eventos revolucionários como manifestações da inexorabilidade do pro- cesso histórico, (processo esse governado essencialmente pelas de- terminações das forças “materiais”), conduziria esse pensamento a uma dificuldade insolúvel. A análise política ad hoc – presente nos famosos tex- tos históricos – resolveria essa contradição e evidenciaria a superioridade do Marx comentarista político sobre o teórico da sociedade.24 Como superar essas visões? Como reatar o historiador e o filó- sofo, o jornalista e o cientista ou: a exposição dos princípios que informam a análise materialista e a análise materialista propriamente dita? DOIS PRINCÍPIOS EXPLICATIVOS A dessemelhança entre um Marx e outro deriva na verdade de certas dificuldades básicas que dizem respeito não exatamente à relação entre os textos de Marx mas às proposições do próprio texto em questão, O 18 Brumário de Luís Bonaparte . A primeira dificuldade, e a mais superficial, decorre da cons- tatação de um truísmo: a dinâmica dos eventos políticos da II República é independente, na narrativa e, principalmente, na explicação oferecida n’O 18 Brumário , da dinâmica dos eventos econômicos . Em rigor, a crise co- mercial francesa só comparece como um dos elementos explicativos para o golpe de 2 de dezembro na seção VI do livro (v. 18 Br., p. 517-520), e ainda assim não como o fato mais importante. O fundamental nessa con- juntura é a luta política de classes, ìessa indescritível e ensurdecedora confusão de fusão, revisão, prorrogação, Constituição, conspiração, coa- lizão, emigração, usurpação e revolução” (18 Br., p. 520)25. Trata-se con- tudo, do meu ponto de vista, de uma concentração excessiva no argumento LUANOVA Nº 63— 200494 24 Cf. Martin E. Spencer, 1979, p. 196. 25 Recordemo-nos dos principais elementos dessa conjuntura: tentativa de “golpe de Estado, restabelecimento do sufrágio universal, luta entre o Parlamento e o poder executivo, fronda de orleanisas e legitimistas, conspirações comunistas e revoltas camponesas, ameaças dos re- publicanos de defender a Constituição de armas nas mãos”. Maximilien Rubel, op. cit., p. 151. O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICAE PÓS-MODERNISMO 95 26 A inspiração aqui é Nicos Poulantzas, 1968, passim. 27 Perry Anderson, 1984, p. 100. 28 Para a “evolução”, cf. István Mészáros, 1979, capítulo VIII; para as “torções de sentido”, cf. Claude Lefort, 1990; para a separação das “problemáticas”, cf. Louis Althusser, 1965. factual do livro: não é um fato que a economia não causou o golpe de Estado? Disso se conclui que... A segunda dificuldade reside na leitura demasiado livre de certas partes i s o l a d a s de O 18 Bru m á r i o, onde se enfatiza, de maneira unilateral e num sentido muito vago, a “autonomia da política” sem mesmo atentar para os vários sentidos de “autonomia” presentes no livro ou para a integração des- sa noção e o seu significado preciso no conjunto do sistema intelectual marxiano. Penso que seja necessário separar a esse respeito três idéias com- plementares, mas distintas: (i) a idéia de autonomia (relativa) do político (i. e., do nível jurídico-político em relação ao nível econômico); (i i) a idéia de autonomia (relativa) da política (i. e., da prática política em relação à prática econômica) e (i i i) a idéia de autonomia (relativa) do Estado (i. e., do aparelho do Estado em relação à “sociedade civil”).2 6 É usual nas interpretações d’O 18 Bru m á r i o de Marx a fusão dessas proposições numa só ou a confusão que resulta ao se tomar uma pela outra quando se pretende enfatizar a “irredu- tibilidade da política à economia”, a “especificidade do político” etc. Tr a t a - s e , portanto, de desatenção ao argumento c o n c e i t u a l do livro. A terceira dificuldade, que é uma espécie de exagero da se- gunda, e portanto mais questionável, reside na desconsideração da obra de Marx como um “sistema intelectual” que dispõe (certa ou errada, não im- porta) de uma “teoria do desenvolvimento histórico”.27 Um sistema que certamente comporta correções de rumo, torções de sentido em certos con- ceitos e deslizes terminológicos – e mesmo a oposição entre problemáticas teóricas distintas.28 Mas um sistema porque conserva um princípio geral ou um “fio condutor”, para retomar a notória expressão do “Prefácio” de 1859: a primazia do econômico. Essa é a primeira lição da concepção ma- terialista da História. A segunda lição, igualmente central nessa concepção, é a separação, postulada inicialmente em A Ideologia Alemã, entre essência (a vida material) e aparência (a vida “espiritual”). Essa diferença foi traduzida em 1859 em termos bastante simples: Assim como não se julga o que um indivíduo é a partir do jul- gamento que ele faz de si mesmo, da mesma maneira não se pode julgar uma época de transformação a partir de sua própria consciência; ao contrário, é preciso explicar essa consciência a partir das contradições da vida material [...].29 Mesmo um exame pouco atencioso do “Prefácio” de Para a crítica da Economia Política constatará a centralidade desses dois princípios explicativos do materialismo de Marx.30 Em que sentido então se poderia aliar a interpretação da vida política francesa de meados do século XIX (precisamente: a análise minuciosa dos acontecimentos de 24 de fevereiro de 1848 a 2 de dezembro de 1851), exposta em detalhe n’O 18 Brumário de Luís Bonapart e, às instruções gerais para a análise da sociedade em geral resumida, exatos sete anos depois, no “Prefácio” de 1859? O que equivale dizer: qual o peso da concepção mate- rialista da História na análise concreta da política pelo marxismo clássico?3 1 Minha sugestão é que se verifique o efeito dessas duas proposições fundamentais – a “primazia do econômico” e a oposição entre “essência e aparência” – na escritura d’O 18 Bru m á r i o em dois níveis: sobre a sua f o r m a e sobre o seu c o n t e ú d o. O primeiro nível – a forma de expressão – diz respeito à lógica que preside a argumentação (e não ao “estilo” exuberante do texto, embora não seja indiferente a ele). Ela é tributária principalmente da segunda proposição. O segundo nível – o conteúdo – diz respeito à análise do processo político concreto (e não a um princípio teórico abstrato). Ela é tributária principalmente da primeira proposição. Este comentário de texto será feito portanto a partir dessa grade interpretativa. OS DISCURSOS E SEUS TIPOS Há, nessa hipótese de leitura, uma série de impedimentos bem conhecidos que deveriam travar a inspeção, a aproximação e a superpo- sição dos dois trabalhos, em quase tudo desiguais. Recordemos aqui as in- LUANOVA Nº 63— 200496 29 Karl Marx, 1982, “Prefácio”, p. 25-26. 30 Terrell Carver 1983 precisamente esse ponto: “Why should readers really need a ‘guiding thread’?”. 31 Há um trabalho recente que fez essa aproximação, mas num sentido bem diferente do pro- posto aqui. Cf. Jonathan Wolff, 2002. O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICAE PÓS-MODERNISMO 99 tingência” (supondo que O 18 Brumário seja a crônica de uma even- tualidade)38 não é “necessidade” (supondo igualmente que o “Prefácio” de 1859 seja a postulação de um percurso inevitável e pré-determinado da História)39, mas possibilidades limitadas de converter interesses em prá- ticas? Por que não dispor, sob uma hierarquia mais complexa, ao invés de contrapor, as motivações econômicas a todas as outras classes de mo- tivações não-econômicas que determinam a ação política segundo um prin- cípio mais exigente e mais preciso (supondo, é claro, que todo problema da causação se dê em torno de “motivos”)? Por que não pensar, enfim, que a luta de classes é inexplicável sem referência às classes, e que as classes simplesmente não existem fora das (ou anteriormente às) relações de produção? Não é propriamente um segredo que “para Marx as classes são [...] um aspecto das relações de produção. [...] As classes derivam da po- sição em que os vários grupos de indivíduos se encontram frente à propriedade privada dos meios de produção”.40 Assim posto, não penso que os dois textos se completem (no sentido mais convencional: um “teórico”, outro “empírico”) ou se con- fundam (no sentido mais artificial: tornem-se indistintos) mas sim que, postos um diante do outro, indiquem uma via que permita romper com o vício habitual do modo de leitura dos mais variados intérpretes – ou politicismo (na sua versão “heterodoxa”), ou economicismo (na sua versão “ortodoxa”), e mais recentemente, na falta de um nome melhor, idealismo (na sua versão “pós-moderna”). A PRIMAZIA DO ECONÔMICO Mencionei acima a centralidade do “econômico” na argumen- tação marxiana. Mas o que se deve entender por “primazia do econômico”? E como essa prioridade entre todas as outras vem expressa num livro cujo tema principal é, afinal de contas, uma questão política? De maneira idên- 38 O que é difícil de sustentar, visto que «o golpe de Estado [...] foi um resultado necessário e inevitável da evolução [dos acontecimentos] anteriores» (18 Br., p. 521). 39 A esse respeito v. a refutação enfática ao “etapismo” na carta de Marx a Vera Zasoulich, de março de 1881. 40 Anthony Giddens, 1984, p. 72, grifos meus. Raymond Aron também concorda que na famosa passagem do “Prefácio” de 1859 “nem a noção de classes nem o conceito de luta de classes aparecem aí explicitamente. No entanto, é fácil reintroduzi-los nessa concepção geral”. Para essa operação, v. op. cit., p. 140-141. tica: como se deve entender a oposição postulada entre “essência” e “aparência”? Onde (e como) se poderia encontrá-la n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte? A “primazia do econômico” é um postulado controverso e, como lembrou Engels, de difícil verificação empírica. Ele só surge na aná- lise retrospectivamente e a exposição da conexão entre a “série de acon- tecimentos da história do dia-a-dia” (os eventos) nem sempre permite ao observador recuar até as “causas em última instância econômicas”41 – pois essas são causas que atuam “inconscientemente e involuntariamente”42 (no nível, portanto, das estruturas). Logo, esse não é um princípio auto-evi- dente, para o analista, ou consciente, para o agente. A segunda restrição que se deve fazer ao entendimento dessa idéia é que “o fato econômico” não é “o único fato determinante”. Ao re- ferir-se precisamente a essa questão, Engels enfatizou, contra seus críticos, que o esquema explicativo do marxismo clássico aplicado à análise de “uma época histórica” deveria sempre considerar o “jogo recíproco de ações e reações” entre “o aspecto econômico” e os “demais fatores”, sendo “O 18 Brumário de Luís Bonaparte, em particular, um exemplo magnífico de aplicação” dessa relação complexa de causalidade. Há na verdade uma série de “condições políticas e mesmo a tradição, que perambula como um duende no cérebro dos homens”, é preciso notar, “também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, deter- minam sua forma, como fator predominante”.43 O modelo de causalidade histórica exposto no “Prefácio” de 1859 seria portanto parcial (i. e., não representativo do pensamento completo dos autores) e essa parcialidade resultaria de sua formulação antitética: “face aos adversários, éramos for- çados a sublinhar este princípio primordial que eles negavam [...]”44 a todo custo nas narrativas tradicionais. A interpretação de Engels, todavia, e as duas idéias básicas que ela contém – “sobredeterminação” e “determinação em última instância”, na linguagem althusseriana – mesmo que fosse válida para a compreensão das transformações históricas em geral, não resolveria a questão da inter- pretação da segunda edição do “18 Brumário” (o golpe de Estado) à luz dos LUANOVA Nº 63— 2004100 41 “Introdução de Friedrich Engels à edição de 1895”. In: Karl Marx, 1982, p. 189. 42 Carta de F. Engels a Bloch, 21-22 set. 1890. In: Karl Marx e Friedrich Engels, op. cit., p. 285. 43 Todas as expressões entre aspas são de Engels, ibid., p. 284-286; grifos do autor. 44 Id., ibid., p. 286. O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICAE PÓS-MODERNISMO 101 princípios materialistas expostos no “Prefácio”. E o recuo tático de Engels frente a seus críticos soa antes como uma desculpa que uma razão. Se a primeira idéia (baseada num “conjunto inumerável de forças que se entrecruzam”) é, de fato, a idéia-força do livro ou, por outra, o livro é a ilustração exemplar desse princípio, a segunda, baseada nas “circunstâncias e c o n ô m i c a s ” ,4 5 não integra, ou ao menos não assim, seu esquema explicativo. Para que o golpe de Estado fosse explicável, em última instância, pela “economia”, o papel que Marx atribui à “pequena crise comercial” (18 Br., p. 517) de 1851 deveria ser exagerado. De fato, nem mesmo se poderia afirmar que a economia (no sentido mais trivial: como prática econômica ou como motivo econômico da ação) cumpriu um papel nas lutas entre a burguesia n o Parlamento e a burguesia fora do parlamento. É o que o próprio Marx indica: Quando os negócios prosperavam, como era o caso ainda em princípios de 1851, a burguesia comercial enfurecia-se contra to- da luta parlamentar, para que o comércio não perdesse sua inten- sidade. Quando os negócios diminuíam, como foi constantemente o caso a partir do fim de fevereiro de 1851, ela atribuía a estagnação às lutas parlamentares e clamava pelo seu fim para permitir ao comércio retomar seu ritmo (18 Br., p. 515). Essa “circunstância econômica” – a crise geral do comércio – é, na verdade, mais um dos fatores que compõe o quadro geral desse período e que conduz a burguesia francesa a abdicar de seu “poder político” em nome de seus “interesses de classe” (18 Br., p. 514). Ela aprendeu no final das contas que, no curso das lutas políticas, “para salvar sua bolsa seria preciso perder a coroa” (18 Br., p. 482). Examine essa passagem: Imagine-se agora o burguês francês: a que ponto, em meio a esse pânico comercial, seu espírito mercantil é torturado, atormentado, aturdido pelos rumores de golpes de Estado e de restauração do sufrágio universal, pela luta entre o Parlamento e o Poder Exe- cutivo, pela fronda [guerra civil] entre orleanistas e legitimistas, pelas conspirações comunistas no sul do país, pelas supostas j a c q u e r i e s nos Departamentos de Nièvre e Cher, pela propaganda de diversos candidatos à presidência, pelas palavras de ordem in- conseqüentes dos jornais, pelas ameaças dos republicanos de 45 Id., ibid., p. 285. LUANOVA Nº 63— 2004104 46 Karl Marx, A guerra civil na França . In: Karl Marx e Friedrich Engels, s/d., vol. 2, p. 80. A legitimidade política que os camponeses emprestam ao Estado bonapartista é contudo trocada por uma ilusão ideológica. A nostalgia do Império e de suas “glórias” – i. e., a consagração da proprie- dade da terra – projetaram diante dos camponeses franceses a miragem segundo a qual “um homem chamado Napoleão” (18 Br., p. 533) seria capaz de realizar o milagre de deter a História. Sua identificação com o segundo Bonaparte vem justamente daí: da idéia que um poder executivo forte seria o meio de preservá-los do desenvolvimento do capitalismo. Ironicamente, justo o que o II Império tratou, nos vinte anos seguintes, de a s s e g u r a r. Segundo Marx, O [II] Império foi aclamado de um extremo a outro do mundo como o salvador da sociedade. Sob sua égide, a sociedade burguesa, livre de preocupações políticas, atingiu um desen- volvimento que nem ela mesma esperava. Sua indústria e seu comércio adquiriram proporções gigantescas; a especulação financeira realizou orgias cosmopolitas.46 Todas as contas feitas, o “bonapartismo”, enquanto realidade histórica, ou mais exatamente, as condições materiais que tornaram seu advento possível, só são inteligíveis a partir da caracterização precisa da e s t rutura econômica da sociedade francesa num estágio determinado do seu desenvolvimento – isto é, só são inteligíveis a partir do “econômico”. Olhado mais de perto, o “econômico” não pode portanto ser entendido, nos estudos políticos de Marx (O 18 Brumário de Luís Bona - p a rt e aí incluído), como o “contexto social” em geral – o e n q u a d r a m e n t o – das práticas de classe, as suas circunstâncias, o pano de fundo onde a evolução da II República se dá. A sugestão de Fred Block para pensar em termos mais exatos a “especificidade do político” e, nesse sentido, a diferença entre o poder “do Estado” (da burocracia) diante do poder “da classe” (dominante), assim como o grau, maior ou menor, de inde- pendência dos state managers como o resultado contingente do “contexto de classe” em que esse poder é exercido, pode até se constituir numa O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICAE PÓS-MODERNISMO 105 alternativa à noção pouco operacional de “autonomia relativa de Estado” proposta por Nicos Poulantzas, mas está longe de ajustar-se à noção marxiana de “estrutura econômica”.4 7 Penso que o “econômico” é mais exatamente: (i) o “interesse geral” da classe burguesa – o ordenamento capitalista – que deve ser garan- tido sempre, mesmo quando a burguesia “perdeu sua vocação para go- vernar” (18 Br., p. 500); (ii) a “variável” que em última instância determina – o condicionamento, portanto – as ações políticas, as representações ideo- lógicas etc. dos agentes sociais e (iii) a “realidade última” – o fundamento – dos conflitos políticos entre as classes.48 Portanto, se cada facção da monarquia desejava impor, contra a outra, a restauração de sua própria dinastia, isto significava unicamente que cada um dos dois grandes interesses em que se divide a burguesia – propriedade fundiária e capital – procurava restaurar sua própria supremacia e subordinar o outro (18 Br., p. 465; grifos do autor). No prefácio à terceira edição alemã de 1885 de O 18 Brumário, Engels, sublinhando a importância do autor e da obra, advertiu: Fora precisamente Marx quem primeiro descobrira a grande lei da marcha da História, a lei segundo a qual todas as lutas históricas quer se processem no domínio político, religioso, filosófico ou qualquer outro campo ideológico, são na realidade apenas a expressão mais ou menos clara de lutas entre classes sociais, e que a existência e, portanto, também os conflitos entre essas classes são, por seu turno, condicionados pelo grau de desenvolvimento de sua situação econômica, pelo seu modo de produção e pelo seu modo de troca, este determinado pelo precedente. Essa lei – que tem para a História a mesma importância que a lei da transformação da energia tem para as 4 7 O que não seria problema algum se Block não confundisse “contexto de classe” com “o papel de- terminante das relações de produção”. Nos seus próprios termos: “[...] the exercise of state power occurs within particular class contexts, which shape and limit the exercise of that power. These class contexts in turn arte the products of particular relations of production”. Fred Block, 1987, p. 84. 4 8 Note bem: não se trata de aspectos d i f e re n t e s da mesma realidade, ou funções complementares da “estrutura econômica”, mas de três faces da mesma idéia vistas por três ângulos diferentes. ciências naturais – forneceu-lhe, aqui também, a chave para a compreensão da história da II República Francesa.49 Descontado o cientificismo dessa proposição, o resumo acima fixa o princípio teórico que explica não somente os fenômenos políticos franceses de 1848 a 1851, mas os fenômenos políticos. Esquematicamente: a centralidade de toda a explanação está ancorada na noção de luta de classes e essa contradição entre as classes não deriva de uma oposição qualquer, mas das suas “situações econô- micas” respectivas (ainda que elas possam assumir “formas” especí- ficas: jurídicas, políticas, ideológicas, simbólicas etc.). As análises históricas de Marx não negam essa realidade, não contornam essa tese, nem propõem outro princípio teórico diante da “primazia do econô- mico”, assim entendido. O que O 18 Bru m á r i o evidencia, por seu turno, é a d i s s i m u l a ç ã o desse fato na política, seja porque a atividade política (os grupos puramente políticos, a representação partidária das classes e frações de classe etc.) nem sempre pode ser ligada e x p l i c i t a m e n t e a o s interesses econômicos, seja porque essa dissimulação do que é em relação ao que parece ser é o que torna a dominação “legítima”. Recorde-se, para o primeiro ponto, a ação desastrada da Montagne – a pequena-burguesia democrática – no 13 de junho em defesa da “Constituição” (18 Br., p. 468-469). Da mesma maneira, recorde-se que os representantes dos interesses de uma classe nem sempre precisam ser idênticos a ela ou nela recrutados: “Não se deve [...] imaginar que os representantes democratas [a Montagne] sejam todos shopkeepers, lojistas, ou simpatizantes destes últimos. Graças à sua educação e situação indi- vidual, podem ser tão diferentes uns dos outros como o dia e a noite” (18 Br., p. 467). Há aqui em ação um jogo entre essência e aparência que preside e estrutura a argumentação. Exagerando um pouco, talvez se pudesse mesmo pensar que essa dissimulação do que é e do que se vê é a possibi- lidade mesma da vida política: Napoleão III deveria apresentar-se à vista de todos como o procurador estrito da aristocracia financeira ou, antes, co- mo o mandatário do campesinato? LUANOVA Nº 63— 2004106 49 “Prefácio de Engels para a terceira edição alemã” [1885]. In: Karl Marx, 1978, p. 327-328, grifos meus. O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICAE PÓS-MODERNISMO 109 mediocridade, ao dissolver no pântano dos interesses a mixórdia das ideologias, mostrando, simultaneamente, os sinais da inelutável gestação de um novo mundo.53 O método empregado por Marx consiste assim na habilidade para discernir, sob as aparências, as razões efetivas de tão “gritantes anti- nomias” que caracterizam essa época, confundem os contemporâneos e desconcertam os analistas: constitucionalistas que conspiram abertamente contra a Constituição; revolucionários que se confessam constituciona- listas; uma Assembléia nacional que pretende ser todo-poderosa mas que permanece sempre parlamentar; uma Montagne que faz da resignação sua vocação e que consola-se diante de suas derrotas presentes profetizando vitórias futuras; realistas que são os patres conscripti da república (18 Br., p. 461). Apesar desses disfarces caricatos, esse mundo ilusório da política (mas ao mesmo tempo “real”, pois é assim que as coisas aparecem e é assim que as coisas acontecem) não detém o empenho de Marx “em descobrir [...] o sentido das práticas nas quais as instituições e as representações se fun- damentam, em captar o princípio de sua gênese”5 4. Afinal, todos aprendemos que orleanistas e legitimistas defendiam seus interesses, o domínio da b u rguesia, como “partido da ordem”, essencialmente um “rótulo s o c i a l e não [meramente] p o l í t i c o”, como lembrou o próprio Marx (18 Br., p. 465). Não seria falso concluir, a partir do exemplo dos realistas coligados, que o fundamento último desse mundo não são interesses quaisquer, mas os interesses e c o n ô m i c o s de classe. Reencontramos dessa maneira a “essência”. Acompanhe-se mais atentamente essa longa e bem conhecida passagem. Ela condensa e exprime ao mesmo tempo os dois princípios que quero enfatizar: Quando se examina a situação mais de perto, esta aparência superficial que dissimula a luta de classes e a fisionomia peculiar desse período [i. e., o período da “república cons- 53 Claude Lefort, 1991. 54 Claude Lefort, id., p. 179. titucional”] desaparece [...]. Legitimistas e orleanistas constituíam [...] as duas grandes frações do partido da ordem [...]. Sob os Bourbons fora a grande propriedade agrária que havia reinado, com seus padres e seus lacaios, sob os Orléans fora a alta finança, a grande indústria, o grande comércio, isto é, o capital, com seus advogados, professores e oradores bem- falantes. [...] O que separava essas duas frações não era nenhum dos pretensos princípios, eram suas condições materiais de existência, dois tipos diferentes de propriedade, era a velha opo- sição entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e a propriedade da terra. [...] Enquanto orleanistas e legitimistas, enquanto cada uma dessas frações procurava persuadir-se e per- suadir seu adversário que apenas suas ligações às duas dinastias as separava, os fatos provaram mais tarde que fora princi- palmente seus interesses opostos que haviam impedido a união das duas dinastias (18 Br., p. 464-465, grifos do autor). Todo comentário aqui seria supérfluo. Trata-se de uma operação analítica que implica duas reduções: as (auto)representações ideológicas são reduzidas ao seu fundamento de classe – orleanistas e legitimistas enfrentam-se “como representantes do mundo e da ordem burguesa, não como cavaleiros errantes de princesas longínquas” (18 Br., p. 465); e os interesses puramente políticos são reduzidos à sua essência, i. e., aos interesses especificamente econômicos. Todavia, note que “reduzidos” não significa dissolvidos. Aqui cabem duas observações. Esse procedimento analítico é análogo à intenção crítica que caracteriza a “crítica da Economia Política” (n’O capital) e a crítica da Filosofia Especulativa (em A sagrada família, por exemplo). A “crítica da prática política”, para mantermos a similitude, é igualmente desmis- tificadora, ainda que a desmistificação não corrija a realidade tal como os homens a representem (simbolicamente) e a percebam (ideologicamente). Achamos portanto aqui o problema da eficácia própria das representações coletivas – de fato, o primeiro tema d’O 18 Brumário de Luís Bonaparte, como lembrou Antoine Artous55. LUANOVA Nº 63— 2004110 55 V. Artous, 1999, p. 173. O 18 BRUMÁRIO, POLÍTICAE PÓS-MODERNISMO 111 O método empregado no trabalho – traduzido na linguagem que o acompanha – obriga o analista a reconhecer a influência das justificações ideológicas sobre os interesses econômicos, das representações ima- ginárias sobre o “mundo profano” (18 Br., p. 453). Não é precisamente por essa idéia – a eficácia simbólica do político e a eficácia política do sim- bólico – que começa o livro? Quando os homens parecem empenhados em transformar-se a si mesmos e a revolucionar as coisas, em criar o absolutamente novo, é justamente nesses períodos de crise revolucionária que evocam ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, as suas palavras de ordem e vestimentas, a fim de representar a nova peça histórica sob um antigo e venerável disfarce e com essa linguagem emprestada” (18 Br., p. 437-438). Marx lembra que “Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, [..] a Revolução de 1789-1814 disfarçou-se ora como República romana, ora como Império romano” (18 Br., p. 438) e que “um século antes Cromwell e o povo inglês haviam emprestado do Velho Testamento sua linguagem, suas paixões e suas ilusões para servir à sua revolução b u rguesa” (18 Br., p. 439). A escolha dos termos não é arbitrária: “máscara”, “disfarce”, “ilusão” querem sugerir que esse simbolismo é antes de tudo uma i d e o l o g i a: “As revoluções [burguesas] tiveram de recorrer a recordações da história universal para se iludirem quanto ao seu próprio conteúdo” (18 Br., p. 440). Mas uma ideologia – ou uma “aparência” – que tem o poder de produzir um efeito determinado, empurrar a História para frente; uma fantasia (no duplo sentido: como imaginação e como disfarce) eficiente, não uma mistificação simplória. Na interpretação de Paul-Laurent Assoun, um imaginário coletivo que tem a propriedade de produzir a realidade.5 6 A segunda observação, que decorre da primeira, é menos óbvia, penso eu: é exatamente nesse terreno ideológico que se dão as práticas políticas de classe, pois não há um outro lugar possível. Essa é uma idéia indicada, de passagem, no próprio “Prefácio” de 1859. Recorde-se que, numa 56 V. Aussoon, 1978, p. 185 apud A. 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Paper presented 150th Anniversary of the Publication of The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte at the Murphy Institute of Political Economy. Tu l a n e University. New Orleans, Louisiana, USA, 13th-14th April. 2002. RESUMOS/ABSTRACTS O DEZOITO BRUMÁRIO , POLÍTICA E PÓS-MODERNISMO ADRIANO NERVO CODATO A maioria das interpretações contemporâneas das análises de Karl Marx sobre a política européia da segunda metade do século XIX têm, em comum, a supressão de toda menção à “economia” e sua subs- tituição, ou pela autonomia da política, nas versões heterodoxas, ou pelo caráter performativo da linguagem, nas versões pós-modernas. Neste artigo, sustenta-se que há n’O 18 Brumário de Luís Bonapart e u m a interpretação da política que pode ser reduzida, do ponto de vista teórico, a dois princípios explicativos da concepção materialista da his- tória: a primazia do econômico e a oposição entre essência e aparência. O artigo se propõe a verificar a incidência desses postulados naquele texto. Palavras-chave: Karl Marx; O Dezoito Brumário de Luís Bona - parte; Materialismo Histórico; Pós-Modernismo. THE EIGHTEENTH BRUMAIRE, POLITICS AND POSTMODERNISM Most contemporary interpretations of Karl Marx ’s analyses of European politics of the second half of the nineteenth century share both the suppression of all re f e rences to the “economy” and its substitution either for the idea of the autonomy of the political (in h e t e rodox views), or for the idea of the performative aspect of language (in post-modern views). This article argues that Marx ’s Eighteenth B ru m a i re of Louis Bonapart contains an interpretation of politics that can be reduced, from the theoretical point of view, to two explanatory principles of the materialist conception of history: the primacy of economics, and the opposition between essence and appearance. The a rticle seeks to verify the incidence of these two fundamental p ropositions within that text. Keywords: Karl Marx; The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte; Historical Materialism; Postmodernism. análise feita acerca de dois de seus livros: Depois da Virtude e Justiça de Quem? Qual racionalidade?. O artigo considera a relação, em MacIntyre, entre ética e história, virtude e relativismo, bem como apresenta seu conceito do Eu, como corretivos à anomia contemporânea. Palavras chaves: Teoria da Justiça; Concepções do Eu; Ética; A. MacIntyre. NOTES ON TWO BOOKS BY MACINTYRE The central concepts of MacIntyre’s approach to justice – practice, narrative and tradition – constitute the main trust of the analysis of two of his books: After Virtue and Whose justice? Which rationality?.
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