Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Crepusculo dos Ídolos, Notas de estudo de História

- - - - - - -

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 01/04/2008

bruno-machado-11
bruno-machado-11 🇧🇷

5 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Crepusculo dos Ídolos e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! C R E P Ú S C U L O D O S Í D O L O S (ou como filosofar com o martelo) F r i e d r i c h N i e t z s c h e PREFÁCIO Conservar a sua serenidade frente a algo sombrio, que requer responsabilidade além de toda medida, não é algo que exige pouca habilidade: e, no entanto, o que seria mais necessário do que a serenidade? Nada chega efetivamente a vingar, sem que a altivez aí tome parte. Somente um excedente de força é demonstração de força. - Uma transvaloração de todos os valores, este ponto de interrogação tão negro, tão monstruoso, que chega até mesmo a lançar sombras sobre quem o instaura - um tal destino de tarefa nos obriga a todo instante a correr para o sol, a sacudir de nós mesmos uma seriedade que se tomou pesada, por demais pesada. Qualquer meio para tanto é correto, qualquer "caso", um golpe de sorte. Sobretudo a guerra. A guerra sempre foi a grande prudência de todos os espíritos que se tornaram por demais ensimesmados, por demais profundos; a força curadora está no próprio ferimento. Uma sentença, cuja origem mantenho oculta frente à curiosidade douta, tem sido há muito meu lema: increscunt animi, virescit volnere virtus.1 Uma outra convalescença, que sob certas circunstâncias é para mim ainda mais desejável, consiste em auscultar os ídolos... Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é o meu "mau olhado" em relação a esse mundo, bem como meu "mau ouvido"... Há que se colocar aqui ao menos uma vez questões com o martelo, e, talvez, escutar como resposta aquele célebre som oco, que fala de vísceras intumescidas - que encanto para aquele que possui orelhas por detrás das orelhas! - para mim, velho psicólogo e caçador de ratos que precisa fazer falar em voz alta exatamente o que gostaria de permanecer em silêncio... Também este escrito - o título o denuncia - é antes de tudo um repouso, um feixe de luz solar, uma escorregadela para o seio do ócio de um psicólogo. Talvez mesmo uma nova guerra? E novos ídolos são auscultados?... Este pequeno escrito é uma grande declaração de guerra; e no que concerne à ausculta dos ídolos, é importante ressaltar que os que estão em jogo, os que são aqui tocados com o martelo como com um diapasão, não são os ídolos em voga, mas os eternos; - em última análise, não há de forma alguma ídolos mais antigos, mais convencidos, mais insuflados... Também não há de forma alguma ídolos mais ocos... Isto não impede, que eles sejam aqueles em que mais se acredita; diz-se também, sobretudo no caso mais nobre, : que eles não são de modo algum ídolos... Turim, 30 de setembro de 1888, no dia em que chegou ao fim o primeiro livro da Transvaloração de todos os valores. Friedrich Nietzsche SENTENÇAS E SETAS 1. O ócio é o começo de toda psicologia. Como? A psicologia seria um - vício? 2. Mesmo o mais corajoso de nós poucas vezes tem coragem para o que propriamente sabe... 3. Para viver sozinho, é preciso ser um animal ou um deus - diz Aristóteles. Falta ainda a terceira alternativa: é preciso ser os dois ao mesmo tempo - Filósofo... 1 Os espíritos crescem e a virtude floresce, à medida que é ferida. (N.T.) Quando a mulher possui virtudes masculinas, não nos resta senão nos evadirmos; e quando ela não possui nenhuma virtude masculina, ela mesma se evade. 29. "Outrora, quanto a consciência tinha de morder? Que bons dentes ela possuía? E hoje? Quantos lhe faltam?" Pergunta de um dentista. 30. Raramente cometemos uma única precipitação. Na primeira precipitação faz-se sempre demais. Exatamente por isso comete-se habitualmente ainda uma segunda. - Daí por diante faz-se então muito pouco... 31. O verme se enconcha quando é chutado. Essa é a sua astúcia. Ele diminui com isso a probabilidade de ser novamente chutado. Na língua da moral: humildade. - 32. Há um ódio à mentira e à dissimulação que nasce de uma apreensão sensível da honra. Há um ódio exatamente como esse que nasce da covardia, visto que a mentira é proibida por um mandamento divino. Covarde demais para mentir... 33. Quão poucas coisas são necessárias para a felicidade! O som de uma gaita. - Sem música a vida seria um erro. O alemão imagina Deus cantando canções. 34. On ne peut penser et écríre qu'assis4 (G. Flaubert). É assim que te pego, Niilista! A pachorra é justamente o pecado contra o Espírito Santo. Só os pensamentos que surgem em movimento têm valor. 35. Há casos em que somos como cavalos, nós psicólogos, e permanecemos inquietos: vemos nossas próprias sombras oscilando diante de nós para cima e para baixo. O psicólogo precisa abstrair-se de si, a fim de que seja acima de tudo capaz de ver. 36. Se nós imoralistas fazemos mal à virtude? Tão pouco quanto os anarquistas fazem mal aos príncipes. Somente depois de lhes ter alvejado é que estes se sentam firmemente em seus tronos. Moral: é preciso alvejar a moral. 37. Tu corres à frente? Tu fazes isto como pastor? Ou como exceção? Um terceiro caso seria o desertor... Primeiro caso de consciência. 38. Tu és autêntico? Ou apenas um ator? Um representante? Ou o próprio representado? Por fim, talvez tu não passes da imitação de um ator... Segundo caso de consciência. 39. 4 Só se pode pensar e escrever sentado. Fala o desiludido. Eu procurei por grandes homens, mas sempre encontrei apenas os macacos de seu ideal. 40. Tu és alguém que observa? Ou que coloca as mãos à obra? - Ou que desvia o olhar e se põe de lado?... Terceiro caso de consciência. 41. Tu queres acompanhar? Ou ir à frente? Ou ir por sua própria conta?... É preciso saber o que se quer e que se quer. Quarto caso de consciência. 42. Estes eram degraus para mim. Servi-me deles para subir e precisei então passar por cima deles. Mas eles pensavam que queria aquietar-me sobre eles... 43. O que importa que eu tenha razão?!?! Eu tenho por demais razão. E quem hoje ri melhor também ri por último. 44. A fórmula de minha felicidade: um sim, um não, uma linha reta, uma meta... O PROBLEMA DE SÓCRATES 1. Em todos os tempos os grandes sábios sempre fizeram o mesmo juízo sobre a vida: ela não vale nada... Sempre e por toda parte se escutou o mesmo tom saindo de suas bocas. Um tom cheio de dúvidas, cheio de melancolia, cheio de cansaço da vida, um tom plenamente contrafeito frente a ela. O próprio Sócrates disse ao morrer: "viver significa estar há muito doente - eu devo um galo a Asclépio curador". O próprio Sócrates estava enfastiado da vida. O que isso demonstra? Para onde isso aponta? Outrora teria-se dito (ó! Disse-se e forte o suficiente; e avante nossos Pessimistas!): "Em todo caso é preciso que haja algo verdadeiro aqui! O consensus sapientium prova a verdade." Ainda falaremos hoje desta forma? Nós temos o direito a um tal discurso? "Em todo caso é preciso que algo esteja doente aqui" - eis a nossa resposta. Em primeiro lugar temos de observar mais de perto esses mais sábios de todos os tempos! Todos eles talvez não estivessem tão firmes sobre as pernas? Talvez estivessem atrasados? Cambaleantes? Decadentes? Talvez a sabedoria apresente-se sobre a terra como um corvo, ao qual um pequeno odor de carniça entusiasma?... 2. Esta irreverência de asseverar que os grandes sábios são tipos decadentes abriu-se para mim mesmo exatamente em uma circunstância na qual mais intensamente o preconceito erudito e não-erudito se lhe contrapunha. Reconheci Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos da decomposição grega, como falsos gregos, como antigregos ("Nascimento da Tragédia" 1872). Aquele consensus sapientium - isto fui compreendendo cada vez melhor - não prova sequer minimamente que eles tinham razão quanto ao que concordavam. O consenso demonstra muito mais que eles mesmos, esses mais sábios, possuíam entre si algum acordo fisiológico para se colocar frente à vida da mesma maneira negativa - para precisar se colocar frente a ela desta forma. Juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser em última instância verdadeiros: eles só possuem o valor como sintoma, eles só podem vir a ser considerados enquanto sintomas. Em si, tais juízos são imbecilidades. É preciso estender então completamente os dedos e tentar alcançar a apreensão dessa finesse admirável, que consiste no fato de o valor da vida não poder ser avaliado. Não por um vivente, pois ele é parte, mesmo objeto de litígio, e não um juiz; não por um morto, por uma outra razão. - Da parte de um filósofo, ver um problema no valor da vida permanece por conseguinte uma objeção contra ele, um ponto de interrogação quanto à sua sabedoria, uma falta de sabedoria. Como? E todos esses grandes sábios? - Eles não seriam senão decadentes, eles não teriam sido sequer uma vez sábios? Mas eu retorno ao problema de Sócrates. 3. Segundo sua origem, Sócrates pertence à camada mais baixa do povo. Sócrates era plebe. Sabe-se, ainda se pode até mesmo ver, quão feio ele era. Mas a feiúra, em si uma objeção, é entre os gregos quase uma refutação. Sócrates era afinal de contas um grego? Muito freqüentemente, a feiúra é a expressão de um desenvolvimento cruzado, emperrado pelo cruzamento. Em outros casos, ela aparece como desenvolvimento decadente. Os antropólogos dentre os criminalistas dizem-nos que o criminoso típico é feio: monstrum infronte, monstrum in animo. Mas o criminoso é um décadent. Sócrates era um típico criminoso? Ao menos não o contradiz aquele famoso juízo-fisionômico que soava tão escandaloso aos amigos de Sócrates. Um estrangeiro, que entendia de rostos, disse certa vez na cara de Sócrates, ao passar por Atenas, que ele era um monstro e escondia todos os vícios e desejos ruins em si. E Sócrates respondeu simplesmente: "Vós me conheceis, meu Senhor!" 4. Em Sócrates, a desertificação e a anarquia estabelecidas no interior dos instintos não são os únicos indícios de décadence: a superfetação do lógico e aquela maldade de raquítico, que o distinguem, também apontam para ela. Não nos esqueçamos mesmo daquelas alucinações auditivas que, sob o nome de o "Daimon de Sócrates", receberam uma interpretação religiosa. Tudo nele é exagerado, bufão, caricatural. Tudo é ao mesmo tempo oculto, cheio de segundas intenções, subterrâneo. - Procuro compreender de que idiossincrasia provém essa equiparação socrática entre Razão = Virtude = Felicidade: essa equiparação que é, de todas as existentes, a mais bizarra, e que possui contra si, em particular, todos os instintos dos helenos mais antigos. 5. Com Sócrates, o paladar grego transforma-se em favor da dialética: o que acontece aí propriamente? Acima de tudo é um gosto nobre que cai por terra. A plebe ascende com a dialética. Antes de Sócrates, recusavam-se as maneiras dialéticas na boa sociedade: elas valiam como más maneiras, elas eram comprometedoras. Se advertia a juventude contra elas. Também se desconfiava de todo aquele que apresentava suas razões de um tal modo. As coisas honestas, tal como as pessoas honestas, não servem suas razões assim com as mãos. É indecoroso mostrar os cinco dedos. O que precisa ser inicialmente provado tem pouco valor. Onde quer que a autoridade ainda pertença aos bons costumes, onde quer que não se "fundamente", mas sim ordene, o dialético aparece como uma espécie de palhaço: ri-se dele, mas não se o leva a sério. - Sócrates foi o palhaço que se fez levar a sério: o que aconteceu aí propriamente? 6. Só se escolhe a dialética, quando não se tem mais nenhuma outra saída. Sabe-se que se suscita desconfiança com ela, que ela é pouco convincente. Nada é mais facilmente dissipável do que um efeito dialético: a experiência de toda e qualquer reunião na qual se conversa, o prova. Ela só serve como saída drástica nas mãos daqueles que não possuem nenhuma outra arma. É preciso que se tenha de estabelecer à força o seu direito: antes disto não se faz uso algum dela. Por isso, os judeus eram dialéticos; Reinecke Fucks era dialético. Como? Sócrates também o era? 7. 3. - E que finos instrumentos de observação temos em nossos sentidos! Este nariz, por exemplo, do qual nenhum filósofo ainda falou com veneração e gratidão. Ele é mesmo em verdade o mais delicado dos instrumentos que se encontram à nossa disposição: ele consegue constatar diferenças mínimas de movimento, que o próprio espectroscópio não constata. Hoje não possuímos ciência senão enquanto nos decidimos por aceitar os sentidos: por torná-los mais incisivos, por armá-los, por fazê-los aprender a pensar até o fim. O resto é algo que nasceu abortado e que ainda-não-é-ciência: Metafísica, Teologia, Psicologia, Teoria do Conhecimento. Ou ciência-formal, teoria dos signos: exatamente como a lógica e aquela lógica aplicada, a matemática. Nelas a efetividade não se apresenta absolutamente como problema nem sequer uma única vez. Elas tampouco se interessam pela colocação da questão acerca de que valor em geral possui uma convenção de signos tal como a lógica. - 4. A outra idiossincrasia dos filósofos não é menos perigosa: consiste em confundir as coisas últimas com as primeiras. Eles colocam no início enquanto início o que vem no fim (infelizmente! pois não devia vir em momento algum!): os "conceitos mais elevados", os conceitos mais universais e vazios, a derradeira fumaça da realidade que evapora. De novo, uma tal disposição é apenas a expressão de seu modo de venerar: o mais elevado não tem o direito de surgir do mais baixo, não tem de modo algum o direito de ter surgido... Moral: tudo o que é de primeira linha precisa ser causa sui. A proveniência a partir de algo diverso vale como objeção, como colocação em dúvida de seu valor. Todos os valores superiores são de primeira linha, todos os conceitos mais elevados, o ser, o incondicionado, o Bem, o verdadeiro, o perfeito. Nenhum deles pode ter experimentado o vir-a-ser, conseqüentemente todos precisam ser causa sui. Nenhum deles pode porém ser ao mesmo tempo desigual entre si, pode estar em contradição consigo mesmo... É assim que eles descobrem seu conceito estupendo de "Deus"... O derradeiro, o mais tênue, o mais vazio é posto como o primeiro, como causa em si, como ens realissimum... Ah! A humanidade levou realmente a sério as dores cerebrais desses doentes, desses tecelões de teias de aranha! - E ela pagou caro por isso!... 5. - Vejamos em contraposição de que modo diverso nós (- digo nós por cortesia...) consideramos o problema do erro e da aparência. Outrora tomava-se a transformação, a mudança, o vir-a-ser em geral como prova da aparência, como um sinal de que algo tinha se apresentado que necessariamente nos conduzia ao erro. Hoje, ao contrário, vemos até que ponto o fato de o preconceito da razão nos obrigar a fixar a unidade, a identidade, a duração, a substância, a causa, a coisidade, o Ser, nos enreda de certa maneira no erro, nos leva necessariamente ao erro. Assim, estamos certos de que, sobre a base de uma verificação rigorosa junto a nós mesmos quanto a esse ponto, o erro está aí. O que se passa aqui, portanto, não é diverso do que acontece com os movimentos dos grandes astros: no que concerte a eles, os nossos olhos são os advogados contínuos do erro; no que concerne ao preconceito da razão, é nossa linguagem. Segundo seu aparecimento, a linguagem pertence ao tempo da forma mais rudimentar de psicologia. Inserimo-nos em um fetichismo grosseiro quando trazemos à consciência os pressupostos fundamentais da linguagem metafísica: ou, em alemão, da razão. Esse fetichismo vê por toda parte agentes e ações; ele crê na vontade enquanto causa em geral; ele crê no "Eu", no Eu enquanto Ser, no Eu enquanto Substância, e projeta essa crença no Eu-substância para todas as coisas. - Só a partir daí a consciência cria então o conceito "coisa"... Por toda parte, o Ser é introduzido através do pensamento, imputado como causa. Somente a partir da concepção do "Eu" segue, enquanto derivado, o conceito "Ser"... No começo encontra-se a grande imposição do erro: a assunção de que a vontade é algo que atua - de que a vontade é uma faculdade... Hoje sabemos que ela é meramente uma palavra... Muito mais tarde, em um mundo milhões de vezes mais esclarecido, veio com espanto à consciência dos filósofos a segurança, a certeza subjetiva na manipulação das categorias da razão. Eles concluíram que elas não poderiam provir da empiria - toda a empiria já se encontra para eles em contradição. De onde elas provém então? - E na índia, tanto quanto na Grécia, cometeu-se o mesmo engano: "é preciso que já tenhamos estado ao menos uma vez em um mundo mais elevado (ao invés de em um muito inferior: o que teria sido a verdade!) e que aí tenhamos nos sentido em casa. É preciso que tenhamos sido divinos, pois temos a razão!" De fato, nada teve até aqui um poder de convencimento mais ingênuo do que o erro do Ser - tal como foi formulado, por exemplo, pelos eleatas: pois ele abarca toda e qualquer palavra, toda e qualquer frase, que pronunciamos! - Também os oponentes dos eleatas sucumbiram à sedução de seu conceito de Ser: Demócrito entre outros, quando inventou seu átomo... A “razão” na linguagem: oh! mas que velha matrona enganadora! Eu temo que não venhamos a nos ver livres de Deus porque ainda acreditamos na gramática... 6. As pessoas ficarão gratas para comigo, se resumir uma visão tão essencial e tão nova em quatro teses: facilitarei com isso a compreensão e provocarei a contradição. Primeira Proposição. Os motivos que fizeram com que se designasse "este" mundo como aparente fundamentam muito mais sua realidade. - Um outro tipo de realidade é absolutamente indemonstrável. Segunda Proposição. As características que foram dadas ao "Ser verdadeiro" das coisas são características do não-Ser, do Nada. Construiu-se o "mundo verdadeiro" a partir da contradição com o mundo efetivo: de fato, o mundo verdadeiro é um mundo aparente, à medida que não passa de uma ilusão ótica de ordem moral. Terceira Proposição. Criar a fábula de um mundo "diverso" desse não tem sentido algum se pressupusermos que um instinto de calúnia, de amesquinhamento, de suspeição da vida não exerce poder sobre nós. Neste último caso, nos vingamos da vida com a fantasmagoria de uma "outra" vida, de uma vida "melhor". Quarta Proposição. Cindir o mundo em um "verdadeiro" e um "aparente", seja do modo cristão, seja do modo kantiano (um cristão pérfido no fim das contas) é apenas uma sugestão da décadence: um sintoma de vida que decai... O fato de o artista avaliar mais elevadamente a aparência do que a realidade não é nenhuma objeção contra essa proposição. Pois "a aparência" significa aqui uma vez mais a realidade; só que sob a forma de uma seleção, de uma intensificação, de uma correção... O artista trágico não é nenhum pessimista. Ele diz justamente sim a tudo que é digno de questão e passível mesmo de produzir terror, ele é dionisíaco... COMO O “MUNDO VERDADEIRO” ACABOU POR SE TORNAR FÁBULA HISTÓRIA DE UM ERRO 1. O mundo verdadeiro passível de ser alcançado pelo sábio, pelo devoto, pelo virtuoso. - Ele vive no interior deste mundo, ele mesmo é este mundo. (Forma mais antiga da idéia, relativamente inteligente, simples, convincente. Transcrição da frase: "eu, Platão, sou a verdade".) 2. O mundo verdadeiro inatingível por agora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso ("ao pecador que cumpre a sua penitência"). (Progresso da idéia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais inapreensível - ela torna-se mulher, torna-se cristã...) 3. O mundo verdadeiro inatingível, indemonstrável, impassível de ser prometido, mas já enquanto pensado um consolo, um compromisso, um imperativo. (No fundo, o velho sol, só que obscurecido pela névoa e pelo ceticismo; a idéia tornou-se sublime, esvaecida, nórdica, königsberguiana.) 4. O mundo verdadeiro - inatingível? De qualquer modo, não atingido. E, enquanto não atingido, também desconhecido. Conseqüentemente tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que algo de desconhecido poderia nos obrigar?... (Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. O canto de galo do positivismo.) 5. O "mundo verdadeiro" - uma idéia que já não serve mais para nada, que não obriga mesmo a mais nada - uma idéia que se tornou inútil, supérflua; conseqüentemente, uma idéia refutada: suprimamo-la! (Dia claro; café da manhã; retorno do bom senso e da serenidade; rubor de vergonha de Platão; algazarra dos diabos de todos os espíritos livres.) 6. Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O mundo aparente, talvez?... Mas não! Com o mundo verdadeiro suprimimos também o aparente! (Meio-dia; instante da sombra mais curta; fim do erro mais longo; ponto culminante da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA.5) MORAL COMO CONTRANATUREZA 1. Todas as paixões têm um tempo em que são meramente nefastas, em que aviltam suas vítimas com o peso da estupidez; e um tempo posterior, muito posterior, em que se casam com o espírito, em que se "espiritualizam". Outrora, em virtude da estupidez na paixão, combatia-se a própria paixão: conjurava- se para a sua aniquilação. Todos os antigos monstros da moral são unânimes quanto a isso: "il faut tuer les passions"6. A formulação mais famosa desta sentença encontra-se no Novo Testamento, naquele Sermão da Montanha, no qual, dito de passagem, as coisas não foram consideradas de modo algum desde o alto. Aí mesmo, por exemplo, diz-se com respeito à sexualidade: "Se teu olho te escandaliza, arranca-o fora". Por sorte nenhum cristão age segundo este preceito. Aniquilar os sofrimentos e os desejos, apenas para evitar sua estupidez e as conseqüências desagradáveis de sua estupidez, se nos apresenta hoje como sendo mesmo apenas uma forma aguda desta última. Não passamos a admirar mais os dentistas que arrancam os nossos dentes, para que eles não doam mais... Por outro lado, é preciso confessar com alguma eqüidade que, sobre o solo de crescimento do Cristianismo, o conceito de "Espiritualização da Paixão" não podia ser concebido de forma alguma. Como é de fato reconhecido, a igreja primitiva lutou contra os "Inteligentes" em favor dos "Pobres de Espírito": como seria possível esperar dela uma guerra inteligente contra a paixão? - A igreja combate o sofrimento através da extirpação em todos os sentidos: sua prática, seu "tratamento" é o da castração. Ela nunca pergunta: "como se espiritualiza, se embeleza, se diviniza um desejo?" Em todos os tempos, ela pôs a ênfase da disciplina na supressão (da sensibilidade, do orgulho, do desejo de domínio, de posse e de vingança). - Mas atacar os sofrimentos na raiz é o mesmo que atacar a vida na raiz: a práxis da igreja é inimiga da vida... 2. 5 "Começa Zaratustra". (N.T.) 6 “É preciso destruir as paixões”. (Nota do Pirateador) O erro oriundo da confusão entre causa e conseqüência. - Não há nenhum erro mais perigoso do que confundir a conseqüência com a causa: eu o denomino a própria perversão da razão. Apesar disso este erro pertence aos hábitos mais antigos e mais recentes da humanidade. Ele é mesmo santificado entre nós e porta o nome da "religião", da "moral". Todas as proposições que a religião e a moral formulam encerram-no. Sacerdotes e legisladores morais são os autores dessa perversão da razão. - Tomo um exemplo: todo mundo conhece o livro do célebre Cornaro, no qual este aconselha sua dieta parca como receita para uma vida longa e feliz - bem como virtuosa. Poucos livros foram tão lidos. Ele ainda é impresso agora na Inglaterra anualmente em muitos milhares de exemplares. Não tenho a menor dúvida de que nenhum livro (excetuando a Bíblia, bem entendido) provocou tanto mal, encurtou tantas vidas, quanto essa singular obra, tão bem intencionada. O motivo para tanto: a confusão entre a conseqüência e a causa. O honesto italiano viu em sua, dieta a causa de sua vida longa: enquanto a condição prévia para uma vida longa, a lentidão extraordinária do metabolismo, o consumo restrito é que eram a causa de sua dieta parca. Ele não tinha a liberdade de comer muito ou pouco, sua frugalidade não era uma "vontade livre": ele ficaria doente se comesse mais. No entanto, quem não é uma carpa não apenas faz bem em comer a valer, como tem necessidade disso. Um douto de nossos dias, com seu consumo rápido das forças nervosas, se aniquilaria com o regime de Cornaro. Crede experto. - 2. A fórmula mais universal, que se encontra na base de toda e qualquer religião, assim como de toda e qualquer moral, é: "Faze isso e isso, deixa isso e isso! Assim, tu te tornarás feliz!" No outro caso... "Toda moral, bem como toda religião resume-se a esse imperativo: eu o denomino o pecado hereditário da razão, a irrazão imortal. Em minha boca, esta fórmula metamorfoseia-se em seu inverso. - Primeiro exemplo de minha "transvaloração de todos os valores": um homem bem constituído, um homem "feliz", precisa empreender certas ações e fugir instintivamente de outras, Ele insere em suas relações com os homens e as coisas a ordem que apresenta fisiologicamente. Para exprimir através de uma fórmula: sua virtude é a conseqüência de sua felicidade... Uma vida longa, uma rica prole não são a paga pela virtude. Ao contrário, a própria virtude repousa sobre aquele retardamento do metabolismo que, entre outras coisas, tem por conseqüência uma vida longa, uma rica prole, ou, resumindo, o cornarismo. - A igreja e a moral dizem: "O vício e o luxo levam um povo ou uma raça à aniquilação". Minha razão reconstituída diz: se um povo perece e vai ao fundo, se ele se degenera fisiologicamente, então seguem daí o luxo e o vício (isto é, a necessidade de estímulos cada vez mais intensos e cada vez mais freqüentes, tal como os conhece toda e qualquer natureza extenuada). Este homem jovem empalidece e murcha precocemente. Seus amigos dizem: tal ou tal doença é a causa. Eu digo: o fato de ele ter adoecido, o fato de ele não ter se oposto à doença, foi justamente o efeito de uma vida empobrecida, de uma extenuação hereditária. O leitor de jornais diz: este partido está a caminho de dissolver-se com um tal erro. Minha política mais elevada diz: um partido que comete tais erros está no fim - ele não possui mais sua segurança instintiva. Todo e qualquer erro, de toda e qualquer espécie, é a conseqüência de uma degradação do instinto, da desagregação da vontade: quase se define com isso o que é ruim. Tudo o que é bom é instintivo. - E, conseqüentemente, leve, necessário, livre. A fadiga é uma objeção, Deus é tipicamente diferente dos heróis (em minha linguagem: os pés leves são o primeiro atributo da divindade). 3. Erro de uma Causalidade Falsa. - Sempre se acreditou saber o que é uma causa: mas de onde retiramos nosso saber, mais exatamente, nossa crença neste saber? Do âmbito dos célebres "fatos internos": dos quais nenhum se mostrou até aqui como factual. Acreditávamos em nós mesmos como tendo uma participação causal no ato de vontade; pensávamos surpreender aí no mínimo a causalidade em meio ao ato. Do mesmo modo, não se duvidava de que todos os antecedentes de uma ação, suas causas, pudessem ser buscadas na consciência. E que, buscando-as aí, se as reencontraria - como "motivos". Do contrário, não se teria sido nem livre para a ação, nem responsável por ela. Por fim, quem teria contestado o fato de um pensamento ser causado? O fato de o Eu causar os pensamentos?... Destes três "fatos internos", nos quais a causalidade parece se respaldar, o primeiro e mais convincente é este da vontade enquanto causa; a concepção de uma consciência ("Espírito") enquanto causa, e, posteriormente ainda, a do Eu (do "Sujeito") enquanto causa não nascem senão ulteriormente; depois que, pela vontade, a causalidade se firma como um dado, como empiria (empirismo)... Entrementes, refletimos melhor. Hoje, não acreditamos mais em nenhuma destas palavras. O "mundo interno" está cheio de ilusões e fogos-fátuos: a vontade é um deles. A vontade não movimenta mais nada, e, por conseguinte, também não esclarece mais nada. - Ela simplesmente acompanha ocorrências e também pode faltar. O assim chamado "motivo": um outro erro. Simplesmente um fenômeno de superfície da consciência, um acessório da ação que, ao invés de apresentar os seus antecedentes, antes os oculta. E o que dizer do Eu! Ele se tornou uma fábula, uma ficção, um jogo de palavras: ele parou absolutamente de pensar, de sentir e de querer!... O que segue daí? Não há de modo algum nenhuma causa espiritual! Toda a pretensa empiria inventada para isso foi para o inferno! Isto segue daí! - E tínhamos levado adiante um amável abuso com aquela "empiria". A partir daí, tínhamos criado o mundo como um mundo de causas, como um mundo da vontade, como um mundo do espírito. Aqui, a psicologia mais antiga e mais duradoura estava em obra, ela não fez absolutamente nada diverso: todo acontecimento era para ela uma ação, toda ação a conseqüência de uma vontade; o mundo tornou-se para ela uma multiplicidade de agentes e um agente (um "Sujeito") colocou-se por debaixo de todo e qualquer acontecimento. O homem projetou para fora de si seus três "fatos internos", os objetos de sua crença mais firme: a vontade, o espírito, o Eu. - Ele primeiramente extraiu o conceito Ser do conceito Eu, ele posicionou as "coisas" como seres segundo sua imagem, segundo seu conceito do Eu enquanto causa. O que há de espantoso no fato de ele sempre ter reecontrado posteriormente nas coisas aquilo que ele tinha inserido nelas? - A coisa mesma, dito uma vez mais, o conceito de coisa, é apenas um mero reflexo da crença no Eu enquanto causa... E mesmo ainda seu átomo, meus senhores mecanicistas e físicos! Quanto erro, quanto de psicologia rudimentar ainda se mantém em seu átomo! - E isso para não falar absolutamente da "coisa em si", do horrendum pudendum dos metafísicos! O erro de confundir o espírito enquanto causa com a realidade! E tomá-lo medida da realidade! E chamá-lo Deus! - 4. O erro das causas imaginárias. - Comecemos pelo sonho: uma causa é ulteriormente imputada (freqüentemente todo um pequeno romance, no qual o que sonha é o personagem principal) a uma determinada sensação - por exemplo a que segue a um distante tiro de canhão. A sensação perdura, entrementes, em um tipo de ressonância: ela espera como que até o instinto causal lhe permitir passar para o primeiro plano. Daí por diante não mais como acaso, mas como "sentido". O tiro de canhão emerge de uma maneira causal, em uma aparente inversão do tempo. O tardio, a motivação, é vivenciado em primeiro lugar; freqüentemente com centenas de singularidades que, passando ao largo como no raio, o tiro segue... O que aconteceu? As representações, que produziram uma certa disposição, foram mal compreendidas e transformadas em suas causas. - De fato, agimos da mesma forma quando estamos acordados. A maioria de nossos sentimentos universais - todo e qualquer tipo de inibição, pressão, tensão, explosão no jogo de ação e reação dos órgãos, assim como em particular o estado do nervo simpático - excita nosso impulso causal: queremos um motivo para nos sentirmos dispostos de tal ou tal modo, para nos sentirmos mal ou bem dispostos. Nunca é suficiente para nós constatar o fato de nos sentirmos dispostos de tal ou tal modo: só aceitamos esse fato - só tomamos consciência dele quando lhe entregamos um tipo de motivação. - A recordação que, sem nosso saber, entra em atividade em tais casos, traz à tona estados anteriores do mesmo tipo e interpretações causais que aí estão articuladas - não sua causalidade. Decerto, a crença em que as representações, os processos de consciência acompanhantes, tinham sido as causas, também é trazida à tona pela recordação. Assim surge o hábito de uma determinada interpretação causal, que em verdade impede e mesmo exclui a investigação. 5. Explicação Psicológica para isso. - Reconduzir algo desconhecido a algo conhecido alivia, tranqüiliza, satisfaz e dá, além disso, um sentimento de potência. Junto com o desconhecido é dado o perigo, a inquietude, a preocupação - o primeiro instinto aponta para a eliminação destes estados penosos. Primeiro Princípio: qualquer explicação é melhor do que explicação nenhuma. Porque no fundo se trata apenas de querer livrar-se de representações angustiantes, não se considera com a exatidão necessária os meios de produzir um tal movimento. A primeira representação, com a qual o desconhecido se explica como conhecido, faz tão bem que se a "toma por verdadeira". Prova do prazer ("da força") como critério de verdade. O impulso causal está assim condicionado e provocado pelo sentimento de medo. Se houver alguma possibilidade, o “por quê?” não deve tanto entregar a causa em virtude dela mesma, mas entregar sim um tipo de causa. - Uma causa que aquiete, que liberte e que tome mais leve. A primeira conseqüência dessa necessidade é o fato de que algo já conhecido, vivenciado e inscrito na memória como causa é posto em anexo. - O novo, o não-vivenciado, o estranho são excluídos enquanto causa. Não se busca com isto apenas uma espécie de explicações como causa, mas sim uma espécie escolhida e privilegiada de explicações, que tragam consigo o mais rápida e freqüentemente possível a extinção do sentimento do estranho, do novo, do não-vivenciado: as explicações mais usuais. - Conseqüência: uma espécie de posicionamento das causas torna-se cada vez mais preponderante; concentra-se sistematicamente e mostra-se por fim como dominante, isto é, exclui simplesmente outras causas e explicações. - O banqueiro pensa imediatamente no "negócio", o cristão no "pecado", a moça em seu amor. 6. Todo o âmbito da moral e da religião pertence a este conceito das causas imaginárias. - "Explicação" dos sentimentos universais desagradáveis. Estes sentimentos são condicionados pelos seres que são nossos inimigos (os espíritos maus são o caso mais célebre - as histéricas que foram mal compreendidas como bruxas). Eles são condicionados por ações que não são passíveis de aprovação (o sentimento do "pecado", do "caráter pecaminoso", "imputado" a um mal-estar fisiológico - sempre se encontra razões para se estar descontente consigo mesmo). Eles são condicionados como punições, como a paga por algo que não deveríamos ter feito, para algo que não deveríamos ter sido (idéia universalizada de forma impudente por Schopenhauer através de uma proposição, na qual a moral aparece como o que é, como a própria envenenadora e caluniadora da vida: "toda e qualquer grande dor, seja ela corporal, ou espiritual, expressa o que merecemos; pois ela não poderia advir-nos, se não a merecêssemos". Mundo como Vontade e Representação, 2, 666). Eles são condicionados enquanto conseqüências de ações irrefletidas que prosseguem terrivelmente (os afetos, os sentidos são estipulados como causas, como "culpáveis"; estados de necessidade fisiológicos interpretados com a ajuda de outros estados de necessidade como "merecidos"). - "Explicação" dos sentimentos universais agradáveis. Eles são condicionados pela confiança em Deus. Eles são condicionados pela consciência de boas ações (a assim chamada "boa consciência"; um estado fisiológico que por vezes parece tão similar a uma digestão feliz, que chegamos a confundi-los). Eles são condicionados pelo desenlace feliz de certos empreendimentos (falsa conclusão, de uma ingenuidade patética: o desenlace feliz de um empreendimento não cria, para um hipocondríaco ou para um Pascal, nenhum sentimento universal agradável). Estes são condicionados pela crença, pelo amor, pela esperança - as virtudes cristãs. - Em verdade, todas estas pretensas explicações são conseqüências de estados de prazer e de desprazer traduzidos, por assim dizer, em um falso dialeto: se está em condições de ter esperanças porque o sentimento fundamental fisiológico está de novo forte e rico; confia-se em Deus porque o sentimento de plenitude e de força entrega ao indivíduo a quietude. - A moral e a religião pertencem completamente à psicologia do erro: em todos os casos particulares, a causa e o efeito são confundidos; ou bem a verdade é confundida com o efeito do que se crê como verdadeiro; ou bem um estado de consciência com a causalidade desse estado. 7. Erro da vontade livre. - Hoje já não temos mais nenhuma compaixão pelo conceito de "vontade livre": sabemos muito bem o que ele é - o mais suspeito artifício dos teólogos que existe; um artifício que tem por objetivo fazer com que a humanidade se torne "responsável" à moda dos teólogos, isto é, que visa fazer com que a humanidade seja dependente deles... Eu ofereço aqui apenas a psicologia de toda e qualquer atribuição de responsabilidade. - Onde quer que as responsabilidades sejam procuradas, aí costuma estar em ação o devem errar de um lugar para o outro sem descanso. É-Ihes proibido escrever da esquerda para a direita e servir-se da mão direita para escrever: a utilização da mão direita e da escrita da esquerda para a direita é reservada apenas aos virtuosos, às pessoas de raça". - 4. Estes decretos são bastante instrutivos: neles temos a humanidade ariana, totalmente pura, totalmente originária. Aprendemos que o conceito de "sangue puro" é o oposto de um conceito inofensivo, Por outro lado, fica claro em que povo perpetuou-se o ódio, o ódio da chandala contra esta "humanidade". Em que povo o ódio se transformou em religião, em gênio... Sob este ponto de vista, os evangelhos são documentos de primeira linha; mais ainda o livro de Henoch. - O cristianismo, que surge da raiz judia e só é compreensível como uma planta deste solo, representa o movimento de oposição à toda moral da criação, da raça, do privilégio: ele é a religião antiariana par excellence. O cristianismo, a transvaloração de todos os valores arianos, a vitória dos valores do chandala, o evangelho pregado aos pobres e aos humildes, a insurreição conjunta de todas as camadas mais baixas, dos miseráveis, dos fracassados, deserdados contra a "raça". - A vingança imortal do chandala como religião do amor... 5. A moral da criação e a moral da domesticação são plenamente dignas uma da outra, no que concerne aos meios de se impor. Podemos apresentar como princípio mais elevado o seguinte: para levar a termo a moral é necessário ter a vontade incondicionada do contrário. Este é o grande problema, o problema sinistro, ao qual persegui mais longamente: a psicologia dos "melhoradores" da humanidade. Um fato diminuto e no fundo modesto, este da assim chamada pia fraus8, abriu-me um primeiro acesso a este problema. A pia fraus foi a herança de todos os filósofos e sacerdotes que “melhoraram” a humanidade. Nem Manu, nem Platão, nem Confúcio, nem as doutrinas hebréias e cristãs jamais duvidaram de seu direito à mentira. Eles duvidaram de direitos totalmente diversos... Expresso em uma fórmula, poder- se-ia dizer: todos os meios, através dos quais até aqui a humanidade deveria se tornar moral, foram fundamentalmente imorais. O QUE FALTA AOS ALEMÃES 1. Entre os alemães não é suficiente hoje ter espírito: precisa-se ainda detê-lo, arrogar-se espírito... Talvez conheça os alemães, talvez possa mesmo dizer-lhes um par de verdades. A nova Alemanha apresenta uma grande quantidade de habilidades hereditárias e adquiridas, de modo que ela pode mesmo gastar profusamente durante um tempo o tesouro acumulado de forças. Não foi uma cultura elevada que se tornou senhora junto com ela, nem tampouco um paladar delicado, uma nobre "beleza" dos instintos. Ao contrário, foram virtudes mais varonis do que poderia apresentar um outro país da Europa. Muito da boa coragem e do respeito para consigo mesmo, muito da segurança na lida com as pessoas e as coisas, bem como na reciprocidade dos deveres, muito da concentração no trabalho, muito dá perseverança e uma moderação herdada, que carece antes de aguilhão do que de travas. Acrescento que aqui ainda se obedece, sem que a obediência humilhe... E ninguém despreza seu oponente... Vê-se que é meu desejo fazer justiça aos alemães: não gostaria de vir-a-ser desleal quanto a isso. - Também preciso lhes apresentar então minha objeção. Paga-se caro para chegar ao poder: o poder emburrece... Os alemães - se os chamou um dia o povo dos pensadores: eles ainda pensam hoje em dia? - Os alemães entediam-se agora com o espírito, os alemães desconfiam agora do espírito, a política devora toda a gravidade para as coisas realmente espirituais. - "Alemanha, Alemanha acima de tudo"!9 Eu temo que este tenha sido o fim da filosofia alemã... "Há filósofos alemães? Há poetas alemães? Há 8 Mentira piedosa. (N.T.) 9 primeiro verso duma canção nacional alemã (N. T.) bons livros alemães?" - as pessoas me perguntam no estrangeiro. Eu coro, mas com a valentia que me é tão própria mesmo nos casos mais desesperadores respondo: "Sim, Bismarck!" -Teria mesmo o direito de apenas confessar que livros se lê hoje em dia?... Maldito instinto da mediocridade! 2. - O que poderia ser o espírito alemão, quem já não teria experimentado seus pensamentos melancólicos sobre isso! Mas esse povo emburrou-se arbitrariamente, desde quase um milênio: em nenhum outro lugar, os dois grandes narcóticos europeus, álcool e cristianismo, foram mais viciosa e abusivamente utilizados. Recentemente, até mesmo um terceiro narcótico veio ainda acrescentar-se a esses dois; um com o qual é possível aniquilar sozinho toda mobilidade sutil e audaz do espírito: a música, nossa música alemã entulhada e entulhadora. - Quanto há do peso enfadado, do aleijão, da umidade, do robe, quanto há de cerveja na inteligência alemã! Como é afinal possível que homens jovens, dedicando sua existência aos fins mais espirituais, não sintam em si o primeiro instinto da espiritualidade, o instinto da autoconservação do espírito, e bebam cerveja?... O alcoolismo da juventude erudita talvez não seja ainda nenhum ponto de interrogação no que concerne à sua erudição. Pode-se, mesmo sem espírito, ser um grande erudito. Mas se considerarmos de qualquer outro modo, ele permanece um problema. Onde não se encontraria a suave degradação que a cerveja produz no espírito! Em um caso que quase se tornou célebre, uma vez coloquei o dedo em uma tal degradação - a degradação de nosso primeiro espírito livre alemão, do inteligente David Strauss; o homem que se transformou no autor de um evangelho de cervejaria e de uma "nova crença"10... Não à toa fez ele seu elogio à "amada loura" em versos. - Fiel até a morte... 3. - Falei do espírito alemão: que ele vem se tornando mais rude, que ele vem se aplanando. Isto é suficiente? - No fundo, o que me espanta é uma coisa totalmente diversa. Como a seriedade alemã, a profundidade alemã, a paixão alemã pelas coisas do espírito vai declinando sempre mais . O pathos transformou-se, não apenas a intelectualidade. - Eu refiro-me aqui e acolá às universidades alemães: que atmosfera reina entre seus eruditos, que deserto, que espiritualidade tornada sóbria e tépida! Seria um mal-entendido profundo, além de uma prova de que não se leu nenhuma palavra do que escrevi, se se quisesse me objetar aqui através da menção à ciência alemã. Há dezessete anos não me canso de lançar luz sobre a influência desespiritualizadora de nossos impulsos científicos atuais. O duro hilotismo, à qual a monstruosa extensão da ciência condena hoje todos os indivíduos, é um dos fundamentos principais para o fato de as naturezas mais plenas, mais ricas, mais profundamente constituídas não encontrarem mais nenhuma educação e nenhum educador que lhes seja adequado. Nossa cultura não padece em nada mais do que em uma superabundância de serviçais pretensiosos e humanidades fragmentárias. Nossas universidades são, contra a sua vontade, as próprias estufas para esse tipo de estorvamento dos instintos do espírito. E toda a Europa já tem um conceito disto - a grande política não ilude ninguém... A Alemanha vige cada vez mais como a planície da Europa. - Ainda busco um alemão, com o qual pudesse ser sério à minha maneira - e tanto mais procuro por um com o qual tivesse o direito de permanecer sereno! Crepúsculo dos ídolos: ah! quem é capaz de conceber hoje de que tipo de seriedade um eremita se restabelece aqui! - A serenidade é em nós o mais incompreensível... 4. Pode-se calcular aproximadamente certos custos: não é apenas evidente que a cultura alemã está em decadência, mas também não falta razão suficiente para que isso aconteça. Enfim, ninguém pode despender mais do que possui: isto vale tanto para os indivíduos, quanto para os povos. Despende-se muito com o poder, com a grande política, com a economia, com o comércio internacional, com o parlamentarismo, com os interesses militares - se dissiparmos com este lado o quantum de entendimento, de seriedade, de vontade, de auto-superação, que se é, então ele faltará para o outro. A cultura e o Estado – que não nos enganemos quanto a isso – são antagonistas: o "Estado Cultural" é apenas uma idéia moderna. Cada um deles vive do outro, cada um prospera à custa do outro. Todos os 10 Refere-se a A antiga e a nova fé, do mesmo (N. do T.) grandes tempos da cultura são tempos de decadência política: o que é grande no sentido da cultura sempre foi apolítico, mesmo antipolítico. O coração de Goethe abriu-se juntamente com o fenômeno de Napoleão - ele fechou-se novamente junto com as "guerras de independência"... No mesmo instante em que a Alemanha irrompe como uma grande potência, a França conquista uma importância transformada enquanto potência cultural. Já hoje, uma seriedade muito nova, uma paixão do espírito muito nova mudou-se para Paris; a questão do Pessimismo, por exemplo, a questão de Wagner, quase todas as questões psicológicas e artísticas são consideradas de modo muito mais sutil e fundamental do que na Alemanha. - Os alemães são mesmo incapazes deste tipo de seriedade. - Na história da cultura européia, a ascensão do “império” significa antes de tudo uma coisa: uma mudança no centro de gravidade. Já se sabe por toda parte que: no tocante ao principal – e isso ainda é a cultura –, os alemães não se encontram mais sob o foco de consideração. Pergunta-se também: vós tendes ao menos um espírito digno de nota para mostrar à Europa? Um espírito tal como o vosso Goethe, o vosso Hegel, o vosso Heinrich Heine, o vosso Schopenhauer para contabilizar? O espanto é infindo, ao percebermos que não há mais nem um único filósofo alemão. 5. O que há de principal para toda a educação superior perdeu-se na Alemanha: a finalidade tanto quanto o meio para a finalidade. Esqueceu-se do fato de que a meta é a própria educação, a própria formação, e não "o império": o fato de que se precisava de educadores para alcançar essa meta - e não professores ginasiais e eruditos universitários... Educadores são necessários, educadores que sejam eles mesmos educados, espíritos superiores e nobres, que mostrem seu valor a cada instante, através da palavra e do silêncio, culturas que se tornaram maduras e doces. - Não estes brutescos eruditos que os ginásios e as universidades oferecem hoje em dia à juventude como "amém superior". Faltam educadores, descontadas as exceções das exceções, a primeira condição prévia da educação: daí a decadência da cultura alemã. - Uma dessas exceções das mais raras de todas é meu amigo Jakob Burckhardt de Basiléia, um homem digno de veneração: é a ele que Basiléia deve, em primeiro lugar, sua proeminência no que concerne às humanidades. - O que as "escolas superiores" alemãs conseguem de fato alcançar é um adestramento brutal para, com o dispêndio de tempo mais restrito possível, tornar um sem número de homens jovens utilizáveis para o serviço público; o que significa dizer, passíveis de serem explorados por ele. "Educação superior" e um sem número de educandos: isto é por princípio uma contradição em si mesmo. Toda e qualquer educação superior pertence apenas à exceção: é preciso que se seja privilegiado, para se ter o direito a um tão elevado privilégio. Todas as coisas boas, assim como todas as belas nunca podem ser um bem comum: pulchrum est paucorum hominum11. - O que condiciona a decadência da cultura alemã? O fato da "educação superior" não ser mais nenhuma prerrogativa: o democratismo da "formação universal", da "formação" que se tornou comum... Não esquecer que os privilégios militares impõem formalmente a freqüência demasiado intensa das escolas superiores, isto é, seu declínio. - Ninguém mais se encontra livre para dar, na Alemanha atual, uma educação nobre para suas crianças: nossas escolas "superiores" estão todas elas direcionadas pela mediocridade mais ambígua, com professores, com planos de aula, com objetivos pedagógicos. E por toda parte reina uma pressa indecente, como se fosse uma falta grave para o homem jovem ainda não estar "pronto" aos 23 anos, ainda não saber responder à "pergunta principal": que profissão escolher? - Um tipo superior de homem, seja dito com vossa permissão, não ama "profissões", exatamente pelo fato de se saber diante de um chamamento... Ele tem tempo, ele toma o tempo para si, - ele não pensa de modo algum em ficar "pronto". Com trinta anos se é, no sentido da cultura superior, um principiante, uma criança. - Nossos ginásios apinhados, nossos professores de ginásio sobrecarregados e tornados estúpidos são um escândalo: para defender este estado de coisas, como fizeram recentemente os professores de Heidelberg, tem-se talvez causas. Mas não há razões para ele. 6. - Eu apresento a partir de agora, para não perder o meu jeito afirmativo, este jeito que só tem a ver mediada e involuntariamente com a contradição e a crítica, as três tarefas em virtude das quais se precisa de educadores. Tem-se de aprender a ver, tem-se de aprender a pensar, tem-se de aprender a falar e 11 Poucos homens participam do belo. (N.T.) de todo e qualquer direito à crítica; ela só possui verdade, no caso em que Deus é a verdade - ela se erige e cai junto com a crença em Deus. Se os ingleses de fato acreditassem, eles saberiam por si mesmos "intuitivamente" o que é bom e mau; se eles conseqüentemente se arraigam à opinião de que o cristianismo não é mais necessário enquanto garantia da moral, este fato mesmo não é senão meramente a conseqüência do domínio do juízo de valor cristão e uma expressão da força e da profundidade deste domínio: de modo que a origem da moral inglesa é esquecida, de modo que o que há de deveras- condicionado em seu direito à existência não é mais sentido. Para os ingleses, a moral não é mais problema algum... 6. Georg Sand. - Eu li as primeiras Cartas de um Viajante. como tudo que provém de Rousseau, elas são falsas, factícias, balofas, exageradas. Eu não suporto este estilo colorido de tapeçaria; tampouco quanto a ambição do populacho pelos sentimentos generosos. O pior continua sendo contudo a "coqueteria" feminina envolta em virilidades, envolta em maneiras de jovens mal-educados . - Quão fria ela não precisa ter sido em meio a tudo isso, esta artista insuportável! Ela dava corda em si mesma como a um relógio e escrevia... Fria como Hugo, como Balzac, como todo e qualquer romântico, ao se lançar ao trabalho poético! E com que auto-suficiência ela deve ter se colocado aí, esta terrível vaca escritora, que possuía em si algo de alemão no pior sentido, exatamente como Rousseau, seu mestre, e que, de qualquer modo, só foi possível a partir da decadência do paladar francês! Mas Renan a venera... 7. Moral para Psicólogos. - Não desempenhar nenhuma psicologia barata! Nunca observar por observar! Isto dá uma falsa ótica, uma vesguice, algo forçado e desmesurante. Vivenciar enquanto um querer vivenciar não funciona. Não é permitido olhar para si mesmo em uma vivência, toda olhada torna-se aí um "mau olhado". Um psicólogo nato protege-se instintivamente de ver por ver; o mesmo vale para o pintor nato. Ele nunca trabalha "segundo a natureza" - ele abandona ao seu instinto, à sua camera obscura o transpassamento e a expressão do "caso", da "natureza", do "vivenciado"... Ele não tem consciência senão do universal, da conclusão, do resultado: ele não conhece aquela abstração arbitrária do caso singular. - O que acontece, quando se age de outra maneira? Por exemplo, quando à moda dos novelistas parisienses se implementa a grande e a pequena psicologia barata? Espreita-se aí do mesmo modo a efetividade, se traz toda noite para casa a mão cheia de curiosidades... Mas eu diria: só se vê o que por último vem à tona - um monte de nódoas, um mosaico na melhor das hipóteses, de qualquer forma algo co-adicionado, inquieto e de cores gritantes. São os irmãos Goncourt que alcançam o que há de pior nisto: eles não alinhavam sequer três frases sem simplesmente ferir os olhos, os olhos do psicólogo. A natureza, avaliada artisticamente, não é nenhum modelo. Ela exagera, ela desfigura, ela deixa brechas. A natureza é o acaso. O estudo "segundo a natureza" parece-me um mau sinal: ele trai sujeição, fraqueza, fatalismo. Esta prostração pulverizada diante dos fatos pequenos é indigna de um artista completo. Ver o que é pertence a um outro gênero de espíritos, aos espíritos anti-artísticos, aos objetivos. É preciso saber quem se é... 8. Para a Psicologia do Artista. Para que haja a arte, para que haja uma ação e uma visualização estéticas é incontornável uma precondição fisiológica: a embriaguez. A embriaguez precisa ter elevado primeiramente a excitabilidade de toda a máquina: senão não se chega à arte. Todos os modos mais diversamente condicionados da embriaguez ainda possuem a força para isso: antes de tudo, a embriaguez da excitação sexual, a mais antiga e originária forma da embriaguez. Da mesma forma, a embriaguez que nasce como conseqüência de todo grande empenho do desejo, de toda e qualquer afecção forte; a embriaguez da festa, do combate, dos atos de bravura, da vitória, de todo e qualquer movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certas influências metereológicas, por exemplo a embriaguez primaveril; ou sob a influência dos narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade acumulada e dilatada. - O essencial na embriaguez é o sentimento de elevação da força e de plenitude. A partir deste sentimento nos entregamos às coisas, as obrigamos a nos tornar, as violentamos. – Denomina-se esse evento como uma idealizarão. Desprendamo-nos aqui de um preconceito: o idealizar não consiste, como geralmente se pensa, em uma subtração e uma dedução disto que é pequeno e secundário. O que é decisivo é muito mais uma monstruosa exaltarão dos traços principais, de modo que os outros traços pertinentes se dissipam. 9. Neste estado, tudo se enriquece a partir de sua própria plenitude: o que se vê, o que se quer, se vê dilatado, cerrado, forte, sobrecarregado com a força. O homem que se encontra nesse estado transforma as coisas até elas refletirem sua potência: até elas serem o reflexo de sua perfeição. Este precisar- transformar em algo perfeito é - arte. Tudo mesmo o que ele não é, vem-a-ser apesar disto para ele prazer em si; na arte, o homem goza de si mesmo enquanto perfeição. Seria permitido cogitar-se um estado oposto, um específico movimento antiartístico dos instintos - um modo de ser que empobrece, estreita, que deixa todas as coisas tísicas. E, de fato, a história é rica em tais antiartistas, em tais esfomeados de vida: os quais por necessidade tomam as coisas ainda em si para debilitá-las, os quais precisam torná-las mais magras. Este é, por exemplo, o caso do genuíno cristão, citemos Pascal: um cristão que fosse ao mesmo tempo artista não existe... Que não se seja infantil e me lance ao rosto Rafael ou qualquer cristão homeopático do século dezenove: Rafael dizia sim, Rafael realizava a afirmação, logo Rafael não era de modo algum um cristão. 10. Qual o significado dos conceitos opostos introduzidos por mim na estética, o apolíneo e o dionisíaco, ambos concebidos enquanto modos da embriaguez? - A embriaguez apolínea mantém antes de tudo o olhar excitado, de forma que ele recebe a força da visão. O pintor, o escultor, o poeta épico são visionários par excellence. Na instância dionisíaca, ao contrário, o sistema conjunto de afetos é que está excitado e elevado: de modo que ele descarrega de uma vez só todos os seus meios de expressão e lança para fora ao mesmo tempo a força de apresentação, de reprodução, de transfiguração, de transformação, bem como de todo o tipo de mímica e teatralidade. O essencial permanece a facilidade da metamorfose, a incapacidade de não reagir (- similarmente a certos histéricos que, atendendo a todo e qualquer aceno, adentram todo e qualquer papel). É impossível para o homem dionisíaco não entender uma sugestão qualquer, ele não desconsidera nenhum sinal dos afetos, ele tem no grau mais elevado o instinto intelectivo e divinatório, assim como possui no grau mais elevado a arte da comunicação. Ele se insere em cada pele e em cada afeto: ele transforma-se constantemente. - A música, tal como a compreendemos hoje, é igualmente uma excitação e uma descarga conjunta dos afetos, mas, não obstante, apenas o que, sobrou de um mundo de expressão dos afetos muito mais pleno, um mero residuum do histrionismo dionisíaco. Para a viabilização da música enquanto arte específica, imobilizou-se uma certa quantidade de sentidos, antes de tudo o sentido muscular (no mínimo relativamente: pois em certo grau todo ritmo ainda fala a nossos músculos): de modo que o homem não imita e apresenta mais imediatamente com seu corpo tudo que sente. Apesar disso, é este o estado normal propriamente dionisíaco, em todo caso o estado originário; a música é a especificação lentamente alcançada deste estado, em detrimento das faculdades que lhe são mais intimamente aparentadas. 11. O ator, o mimo, o dançarino, o músico, o poeta lírico são fundamentalmente aparentados em seus instintos e são em si um, mas pouco a pouco vão se especializando e se separando um do outro - mesmo até a contradição. O poeta lírico foi quem permaneceu por mais tempo unido com o músico; o ator com o dançarino. O arquiteto não apresenta nem um estado dionisíaco, nem um apolíneo: aqui é o grande ato de vontade, a vontade, que remove montanhas, a embriaguez da grande vontade que possui o afã pela arte. Os homens mais potentes sempre inspiraram os arquitetos; o arquiteto esteve freqüentemente sob a sugestão da potência. Na edificação, o orgulho, a vitória sobre o peso, a vontade de potência devem se tornar visíveis; a arquitetura é uma espécie de eloqüência da potência através das formas; ora convincente, mesmo lisonjeadora, ora meramente ordenadora. O sentimento mais elevado da potência e da segurança vem à expressão em meio ao que possui grande estilo. A potência que não precisa mais de nenhuma prova; que desdenha do agrado; que responde dificilmente; que não sente nenhuma testemunha em torno de si; que vive sem consciência de que há uma contradição em relação a ela; que repousa em si, fatalisticamente, uma lei sob leis: isto fala de si com grande estilo. - 12. Eu li a vida de Thomas Carlyle, esta farsa que se produz a despeito do saber e da vontade, esta interpretação heróico-moral dos estados dispépticos. - Carlyle, um homem de palavras e atitudes fortes, um retórico por necessidade, que é constantemente agastado pela exigência de uma forte crença e pelo sentimento da incapacidade para tanto (- nisto ele é um típico romântico!). A exigência de uma forte crença não é a prova de uma forte crença, muito mais o contrário. Se a possuímos, então nos é permitido conceder-nos o belo luxo do ceticismo: estamos seguros o suficiente, prontos o suficiente, comprometidos o suficiente para tanto. Carlyle faz com que algo adormeça em si através do fortíssimo de sua veneração por homens de crenças fortes e através de sua ira contra os menos unidimensionais: ele carece de barulho. Uma constante deslealdade frente a si mesmo - este é o seu proprium, com isto ele é e permanece interessante. É verdade que ele é admirado na Inglaterra exatamente por causa de sua deslealdade... Mas ora, isto é inglês; e, considerando que o inglês é o povo da cant [hipocrisia] perfeita, é mesmo legítimo, e não apenas compreensível. No fundo, Carlyle é um ateu inglês, que busca sua honra justamente no fato de não o ser. 13. Emerson - Muito mais esclarecido, errante, múltiplo, refinado do que Carlyle; e, antes de tudo, mais feliz... Alguém que não se alimenta senão com ambrósia e que deixa de lado o que há de indigesto nas coisas. Tomado em contraposição a Carlyle, um homem de gosto. - Carlyle, porém, que tanto o amou, dizia dele: "ele não nos dá o suficiente para morder": o que pode até ser dito com direito, mas não em detrimento de Emerson. - Emerson possui aquela boa e espirituosa serenidade, que desencoraja toda seriedade; ele simplesmente não sabe o quão velho já é e o quão jovem ainda será - ele poderia dizer de si com uma sentença de Lope de Vega: "yo me sucedo a mi mismo". Seu espírito sempre encontra razões, para estar satisfeito e mesmo agradecido; e por vezes ele toca a serena transcendência daquele homem distinto, que retornava de um encontro amoroso tarquam rebene gesta. "Ut de sint vires, ele dizia agradecido, tamen est laudanda voluptas". 14. Anti-Darwin. No que concerne à célebre luta pela vida, ela me parece a princípio mais afirmada do que provada. Ela acontece, mas enquanto exceção; o aspecto conjunto da vida não é a indigência e a penúria famélicas, mas muito mais a riqueza, a exuberância, mesmo o desperdício absurdo - onde há luta, luta-se por potência... Não se deve confundir Malthus com a natureza. No entanto, suposto que haja esta luta e, de fato, ela se dá -, ela transcorre infelizmente de modo inverso ao que a escola de Darwin deseja; de modo inverso ao que talvez se pudesse desejar: isto é, em detrimento dos fortes, dos privilegiados, das felizes exceções. As espécies não crescem em meio à perfeição: os fracos sempre se tornam novamente senhores sobre os fortes. Isto acontece porque eles estão em grande número e porque eles também são mais inteligentes... Darwin esqueceu o espírito (- isto é inglês!), os fracos possuem mais espírito... É preciso ter necessidade de espírito para obter um espírito - nós o perdemos quando não temos mais necessidade dele. Quem possui a força se desprende do espírito (- "Deixemo-lo ir!" pensa- se hoje na Alemanha - "O império há, contudo, de permanecer conosco" ... ). Eu entendo por Espírito, como se vê, a cautela, a paciência, a astúcia, a dissimulação, o grande autocontrole e tudo que é mimicry (a este último pertence uma grande parte da assim chamada virtude). 15. Casuística de Psicólogo. - O psicólogo é alguém que conhece o homem: para que estuda propriamente os homens? Ele quer retirar deles pequenas vantagens, ou mesmo grandes - ele é um político!... Este aí também é um conhecedor dos homens: e vós dizeis que ele não quer com isso nada para si, que ele é um grande "impessoal". Atentai mais incisivamente! Talvez ele ainda queira até mesmo uma vantagem pior: sentir-se superior aos homens, ter o direito de olhar para eles desde cima, não se misturar mais com eles. Este "impessoal" é um desprezador de homens: e aquele primeiro é da 23. Platão prossegue. Ele diz com uma inocência, para a qual é preciso ser grego e não "cristão", que não haveria absolutamente nenhuma filosofia platônica se não houvesse tantos jovens belos em Atenas: era só a visão destes jovens que propiciava a transposição da alma do filósofo em um delírio erótico e não lhe deixava espaço para nenhuma quietude, até que ela tivesse lançado as sementes de todas as coisas elevadas em uma terra tão bela. Também um santo deveras bizarro! Nós não nos fiamos em nossos ouvidos, apesar mesmo de confiarmos em Platão. Presume-se ao menos que em Atenas tinha-se filosofado de um modo diverso, sobretudo publicamente. Nada é menos grego do que a tecitura de uma teia conceitual de aracnídea por um ermitão, amor intelectualis dei à moda de Espinoza. A filosofia à moda de Platão poderia ser definida antes enquanto uma competição erótica, enquanto o aperfeiçoamento e a interiorização da velha ginástica agonística e de seus pressupostos... O que brotou por fim deste erotismo filosófico de Platão? Uma nova forma artística do agon grego, a dialética. - Eu me lembro ainda, contra Schopenhauer e em honra de Platão, que também a cultura e a literatura mais elevadas da França clássica floresceram em sua totalidade sobre o solo do interesse sexual. Pode-se procurar por toda parte aí a galanteria, os sentidos, a competição sexual, a "fêmea" - nunca se procurará em vão. 24. L'art pour l'art13. - A luta contra a finalidade na arte é sempre a luta contra a tendência moralizante na arte, contra a sua subordinação à moral. L'art pour l'art significa: "Que o diabo carregue a moral!" - Mas até mesmo esta inimizade denuncia a força preponderante do preconceito. Se se exclui da arte a finalidade própria à pregação moral e ao melhoramento da humanidade, então ainda está longe de seguir daí que a arte é em geral sem finalidade, sem meta, sem sentido; em resumo, a arte pela arte - um verme que morde seu próprio rabo. É preferível nenhuma finalidade a uma finalidade da moral!" - assim fala a mera paixão. Um psicólogo pergunta em contrapartida: o que faz toda arte? ela não louva? ela não glorifica? ela não seleciona? não realça? Com tudo isto, ela fortalece e enfraquece certas estimativas de valor... Isto é apenas um acessório? Um acaso? Algo de que o interesse do artista não tomaria parte absolutamente? Ou então: não é o pressuposto para tanto que o artista esteja em condições de empreender tudo isto ... ? Seu instinto mais profundo tende para a arte, ou, ao invés disso, muito mais para o sentido da arte, para a vida? Para algo desejável da vida? - A arte é o maior estimulante para a vida: como se poderia entendê-la como sem finalidade, como sem meta, como l'art pour l'art? Uma pergunta ressurge: a arte faz com que se manifeste também algo feio, duro, discutível da vida - ela não parece com isto dirimir a paixão pela vida? - E de fato houve filósofos que lhe emprestaram este sentido: "apartar-se da vontade", ensinava Schopenhauer enquanto intuito total da arte, "estar afinado com a resignação" honrava ele enquanto a grande utilidade da tragédia. - Mas isto - já dei a entender - é uma ótica de pessimista e um "mau-olhado": precisa-se apelar para os próprios artistas. O que é que o artista trágico comunica de si? Não é exatamente um estado sem temor frente ao temível e problemático, que ele indica? - Esse estado mesmo é algo desejável; quem o conhece o louva com os louvores mais elevados. Ele o comunica, ele precisa comunicá-lo, pressuposto que é um artista, um gênio da comunicação. A valentia e a liberdade do sentimento frente a um inimigo poderoso, frente a uma sublime adversidade, frente a um problema que desperta horror - esse estado triunfal é aquele que o artista seleciona, que ele glorifica. Diante da tragédia, o que há de belicoso em nossa alma festeja suas Saturnais; quem procura por sofrimento, o homem heróico, exalta com a tragédia sua existência - a ele apenas, o artista trágico oferta o cálice desta dulcíssima crueldade. - 25. Contentar-se com os homens, manter a casa aberta com seu coração, isto é liberal, mas é meramente liberal. Conhece-se os corações que são aptos à nobre hospitalidade, junto às muitas janelas cobertas e aos postigos cerrados: seus melhores espaços mantêm-se vazios. Por que afinal? - Porque eles esperam por hóspedes, com os quais a gente não "se contenta"... 13 A arte pela arte (N. do P.) 26. Nós não nos estimamos mais o suficiente, quando nos comunicamos. Nossas vivências próprias não são de modo algum loquazes. Elas não poderiam comunicar a si mesmas, se elas quisessem. Isto acontece porque lhes falta a palavra. Para o que temos palavra, já estamos um passo adiante de sua concernência. Em todos os discursos há um grão de desprezo. A fala, ao que parece, foi inventada apenas para o que é ordinário, mediano, comunicável. Com a fala vulgariza-se imediatamente o falante. - A partir de uma moral para surdos-mudos e outros filósofos. 27. "Este quadro está encantadoramente belo!"... A mulher literata, descontente, excitada, deserta no coração e nas vísceras, olhando todo o tempo de maneira perscrutadora e com uma curiosidade dolorosa o imperativo que, desde as profundezas de sua organização, sussurra "aut liberi aut libri"14: a mulher literata, suficientemente culta para compreender a voz da natureza, mesmo quando ela fala latim; e, por outro lado, suficientemente vaidosa e parva, para em segredo até mesmo falar francês consigo, "je me verrai, je me lirai, je m'extasierai et je direi: Possible que j’aie eu tant d’esprit?"15... 28. Os "impessoais" ganham voz. - "Nada nos dá menos trabalho do que sermos sábios, pacientes, superiores. Nós destilamos o óleo da indulgência e da compaixão, nós somos justos até as raias do absurdo, nós perdoamos tudo. Mesmo por isso deveríamos nos manter algo mais rigorosos; mesmo por isso deveríamos cultivar pra nós mesmos, de tempos em tempos, um pequeno afeto, um pequeno vício afetivo. Isto pode nos ser amargo; e, cá entre nós, talvez venhamos a rir do aspecto que a partir daí assumimos. Mas ao que é que isto ajuda! Não temos mais nenhuma outra espécie disponível de auto- superação: este é nosso ascetismo, nosso modo de fazer penitência"... Vir-a-ser pessoal - a virtude dos "impessoais"... 29. Extratos de uma Defesa de Doutorado. - "Qual é a tarefa de todo ensino mais elevado?" - Tornar o homem uma máquina. - "Qual o meio para tanto?" - Ele precisa aprender a entediar-se. - "Como se alcança um tal estágio?" – Através do conceito de dever. - "Quem é seu modelo em relação a isto?" - O filólogo: ele ensina o enfronhar-se. - "Quem é o homem perfeito?" - O funcionário público. - "Que filosofia fornece a fórmula mais elevada para o funcionário público?" - A filosofia kantiana: o funcionário público enquanto coisa-em-si transformado em juiz do funcionário público enquanto fenômeno. 30. O Direito à Estupidez. - O trabalhador extenuado que respira lentamente, olha benevolamente e deixa as coisas passarem como elas passam: esta figura típica que se encontra agora, na era do trabalho (e do "império"! -), em todas as classes sociais, requisita hoje para si justamente a arte, inclusive o livro, antes de tudo o jornal - e em muito mais a bela natureza, Itália... O homem da noite, com seus "impulsos selvagens adormecidos", das quais nos fala Fausto, carece do frescor veranil, do banho de mar, das geleiras, de Bayreuth... A arte tem em tais tempos é um direito à pura tolice - como uma espécie de férias para o espírito, o engenho e o ânimo. Wagner compreendeu isto. A pura tolice produz novamente. 31. Mais um Problema da Dieta. - Os meios através dos quais Júlio César se defendia contra doenças e dores de cabeça: marchas gigantescas, o modo de vida mais simples, permanência ininterrupta em um 14 Ou filhos ou livros. (N.T.) 15 “Me verei, me lerei, me extasiarei e direi: é possível que eu tenha tido tanta inspiração?” (N. do P.) espaço aberto, fadigas constantes. - Tomando por alto, estas são as punições em geral estabelecidas em função da conservação e da proteção contra a extrema vulnerabilidade daquela máquina sutil que trabalha sob a mais elevada pressão e que se chama gênio. - 32. O Imoralista fala. - Para o filósofo, nada fere mais o gosto do que o homem quando deseja... Ele considera o homem apenas em sua ação, ele vê este animal supremamente corajoso, astuto e perseverante perdido mesmo em meio a conjunturas de uma penúria labiríntica, o quão digno de admiração lhe parece o homem! Ele ainda lhe dirige a palavra... Mas o filósofo despreza o homem que deseja, assim como o homem "Passível de ser desejado" - e em geral tudo o que é desejável, todos os ideais do homem. Se um filósofo pudesse ser niilista, então ele o seria porque não encontra o nada por detrás de todos os ideais do homem. Ou nem ao menos uma vez o nada - mas apenas o que não é digno de nada, o absurdo, o doentio, o covarde, o cansaço, todo tipo de excremento dos copos tragados de sua vida... O homem que enquanto realidade é tão digno de veneração, como acontece de não merecer nenhum respeito quando deseja? Será que ele precisa expiar por ser tão apreciável como realidade? Será que ele precisa equiparar a sua ação, a tensão da cabeça e da vontade em toda ação, à extensão dos membros no interior do imaginário e absurdo? - A história do que para ele é passível de ser desejado foi até aqui a partie honteuse16 do homem: é preciso que nos guardemos de ler por muito tempo nesta história. O que justifica o homem é . a sua realidade: ela o justificará eternamente. O quão mais valoroso é o homem real, comparado com qualquer homem meramente desejado, sonhado, inventado de modo mendaz? Com qualquer homem ideal?... E apenas o homem ideal fere o bom gosto do filósofo. 33. O Valor Natural do Egoísmo. O egoísmo é tão valoroso quanto é fisiologicamente valoroso aquele que o possui: ele pode ser muitíssimo valoroso, ele pode não ser digno de nada e desprezível. Todo e qualquer indivíduo precisa ser considerado em função do fato de representar a linha ascendente ou decrescente da vida. Com uma decisão quanto a isto tem-se também um cânone em relação ao valor de seu egoísmo. Se ele representa a ascensão da linha, então o seu valor é efetivamente extraordinário - e, em função da vida conjunta que com ele dá um passo adiante, o cuidado em torno da conservação, em torno da criação de seu optimum de condições mesmas deve ser extremo. O indivíduo, o "indiviso", tal como o povo e o filósofo o compreenderam até aqui, é em verdade um erro: ele não é nada por si, nenhum átomo, nenhum "anel de uma corrente", nada simplesmente herdado de outrora - ele é toda uma linha homem até ele mesmo ainda... Se ele representa o desenvolvimento decadente, o declínio, a degeneração crônica, o adoecimento (- doenças são já, a grosso modo, conseqüências paralelas do declínio, não as suas causas), então lhe cabe pouco valor, e a eqüidade quer que ele retire do homem bem constituído o mínimo possível. Ele não é senão o parasita deste último... 34. Cristo e Anarquista. Quando o anarquista, enquanto a embocadura das camadas decadentes da sociedade, exige com uma bela indignação "direito", "justiça", "igualdade de direitos", ele não se encontra com isto senão sob a pressão de sua ignorância, a qual não sabe compreender o real porquê de seu sofrimento: - a qual não sabe compreender em relação ao que ele é pobre, à vida... Um impulso causal é nele poderoso: alguém precisa ser culpado pelo fato de ele se sentir mal... Também faz bem para ele a "bela indignação" mesma, é um prazer para todos os pobres diabos o maldizer: há aí uma pequena embriaguez de potência. Já o reclamar, o queixar-se pode dar à vida um estímulo, em virtude do qual se a sustém: uma dose mais sutil de vingança está presente em toda queixa, se apresenta o seu sentir-se mal, sob certas circunstâncias mesmo a sua ruindade como uma censura àqueles que são diferentes, como se o ser diferente fosse uma injustiça, um privilégio inadmissível. "Se sou um canalha, tu também tens de sê-lo": em função desta lógica faz-se revolução. - O queixar-se não serve em caso algum para algo: ele provém da fraqueza. o fato de se atribuir o seu sentir-se mal aos outros ou a si mesmo - o primeiro o faz socialista, o segundo, por exemplo, cristão - não faz propriamente diferença 16 Parte vergonhosa (N. do P.) última grande época, e nós, nós modernos, com nossos cuidados amedrontados em torno de nós mesmos e com nosso amor ao próximo, com nossas virtudes do trabalho, da ausência de requisições, da probidade, da cientificidade - compiladores, econômicos, maquinais - enquanto uma época fraca... Nossas virtudes são condicionadas, são requeridas por nossas fraquezas... A "igualdade", uma certa assemelhação factual que só ganha expressão no interior da teoria dos "direitos iguais", pertence essencialmente à decadência: o fosso entre homem e homem, estado e estado, a multiplicidade de tipos, a vontade de ser si próprio, de destacar-se, isto que denomino como o Pathos da Distância: tudo isto é próprio a todo tempo forte. A elasticidade, a envergadura entre os extremos vem se tornando hoje cada vez menor os extremos mesmo desaparecem por fim em meio à similitude... Todas as nossas teorias políticas e constituições de estado, o "império alemão" sem ser absolutamente excluído, são desdobramentos, conseqüências necessárias da decadência; o efeito inconsciente da decadência estendeu o seu assenhoramento até o cerne dos ideais das ciências particulares. A minha objeção contra toda a sociologia na Inglaterra e na França continua sendo o fato de ela só conhecer por experiência a conformação de declínio da sociedade e tomar de modo completamente inocente os próprios instintos decadentes enquanto norma dos juízos sociológicos de valor. A vida decadente, o definhamento de toda força organizadora, isto é, separadora, capaz de abrir fossos, subordinadora e hierarquizadora, formulou-se na sociologia de hoje como ideal... Nossos socialistas são decadentes, mas também Herbert Spencer é um decadente: ele vê na vitória do altruísmo algo digno de ser almejado!... 38. Meu Conceito de Liberdade. - O valor de uma coisa reside por vezes não no que se alcança com ela, mas no que se paga por ela - o que ela nos custa. Dou um exemplo. As instituições liberais deixam imediatamente de ser liberais, no momento em que são alcançadas: não há depois nenhum corruptor mais incisivo e fundamental da liberdade do que instituições liberais. Se sabe em verdade, que caminhos elas abrem: elas minam a vontade de potência, elas são o nivelamento da montanha e do vale elevado à condição de moral, elas apequenam, acovardam e acostumam ao deleite: com elas sempre triunfa o animal de rebanho. Liberalismo: em alemão, animalização gregária... As mesmas instituições produzem, enquanto ainda são combatidas, efeitos completamente diversos; elas fomentam de fato a liberdade de uma maneira poderosa. Visto mais precisamente é a guerra que produz estes efeitos, a guerra contra as instituições liberais, que, enquanto guerra, deixa persistir os instintos não-liberais. A guerra educa para a liberdade. Pois o que é liberdade! O fato de se ter a vontade de se responsabilizar por si próprio. O fato de se suster a distância que nos distingue. O fato de se tornar indiferente à fadiga, à rigidez, à privação, mesmo à vida. O fato de se estar preparado para sacrificar os homens pela coisa sua, sem deixar de contar a si mesmo neste sacrifício. Liberdade significa: os instintos viris, alegres na guerra e na vitória se apoderaram dos outros instintos - por exemplo, o instinto de "felicidade". O homem que se tornou livre, e muito mais ainda o espírito que se tornou livre pisa sobre o modo de ser desprezível do bem-estar, com o qual sonham o comerciante, o cristão, a vaca, a mulher, o inglês e outros democratas. O homem livre é guerreiro. - A partir de que critério se mensura a liberdade dos indivíduos, assim como dos povos? A partir da resistência que precisa ser superada, a partir do esforço que custa para permanecer em cima. Teria de se procurar o tipo mais elevado de homem livre lá, onde constantemente se supera a mais elevada resistência: cinco passos além da tirania, colado no umbral do risco da servidão. Isto é psicologicamente verdadeiro, se se compreender aqui sob os "tiranos" instintos implacáveis e terríveis, que exigem o máximo de autoridade e disciplina contra si: o tipo mais belo é Júlio César; isto também é politicamente verdadeiro, basta percorrer o caminho histórico. Os povos que tiveram um certo valor, que foram valorosos, nunca o foram sob instituições liberais: o grande perigo fazia algo com eles, que merece veveração; o perigo que nos ensina pela primeira vez a conhecer nossos recursos, nossas virtudes, nosso valor e nossas armas, nosso espírito - que nos obriga a sermos fortes... Primeiro princípio: temos de precisar ser fortes: senão nunca nos tornamos fortes. - Aquelas grandes estufas para uma espécie humana forte, para a mais forte das espécies humanas que até hoje existiu, aquelas coletividades aristocráticas à moda de Roma e de Veneza entendiam a liberdade exatamente no mesmo sentido que eu compreendo esta palavra: enquanto algo que se tem e não se tem, que se quer, que se conquista... 39. Crítica da Modernidade. - Nossas instituições não prestam mais para nada: quanto a isto se é unânime. Isto não reside contudo nelas mesmas, mas em nós. Depois de todos os instintos, a partir dos quais as instituições crescem, desaparecerem de nosso horizonte, desaparecem de nosso horizonte as instituições em geral, porque não valemos mais nada para elas. Democratismo foi em todos os tempos a forma decadente da força organizadora: já caracterizei em Humano demasiado Humano I, 318 a democracia moderna junto com suas derivações medianas, tal como o "império alemão", como uma forma declinante do estado. Para que haja instituições, é preciso que haja uma espécie de vontade, de instinto, de imperativo, antiliberal até as raias da maldade: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos além, de solidariedade pelas correntes das gerações tanto para adiante quanto para trás in infinitum. Esta vontade está presente?! Então funda-se algo como o imperium Romanum: ou como a Rússia, o único poder, que possui hoje duração corpórea, que pode esperar, que ainda pode prometer alguma coisa. Rússia: o conceito antípoda do deplorável particularismo e do deplorável nervosismo europeu, que entrou em cena em um estado crítico junto com a fundação do império alemão. Todo o ocidente não possui mais aqueles instintos, a partir dos quais crescem as instituições, a partir dos quais cresce o futuro: nada talvez seja mais incongruente com o "espírito moderno" do que estes instintos. Se vive em função do hoje, se vive muito rapidamente - se vive de maneira muito irresponsável: isto justamente denomina-se como "liberdade". O que faz das instituições instituições é desprezado, odiado, recusado: se acredita estar diante do risco de uma nova escravidão, onde a palavra "autoridade" ganha apenas voz. Tão profundamente se estabeleceu a decadência nos instintos valorativos de nossos políticos, de nossos partidos políticos: eles privilegiam instintivamente o que dissipa, o que acelera o acontecimento do fim... Atestado: o casamento moderno. Do casamento moderno desapareceu evidentemente toda racionalidade: isto não constitui porém nenhuma objeção ao casamento, mas à modernidade. A racionalidade do casamento - ela residia na responsabilidade jurídica exclusiva do homem: com isto, ele tinha um peso e uma medida, enquanto agora ele claudica das duas pernas. A racionalidade do casamento - ela residia em sua indissolubilidade em princípio: com isto, ele recebia um acento, que sabia criar para si frente ao acaso de sentimento, paixão e instante uma escuta. Ela residia até mesmo na responsabilidade da família pela escolha dos noivos. Eliminou-se com a crescente indulgência em favor do casamento por amor exatamente a base fundamental do casamento, o que primeiramente fazia dele uma instituição. Nunca se funda uma instituição sobre uma idiossincrasia, não se funda, como disse, o casamento sobre o "amor": se funda sim o casamento sobre o impulso sexual, sobre o impulso de posse (mulher e criança enquanto propriedades), sobre o impulso de domínio, que organiza para si constantemente a menor conformação do domínio, a família que precisa de filhos e herdeiros, para fixar também fisiologicamente uma medida alcançada de poder, influência, riqueza, para preparar tarefas longas e o instinto de solidariedade entre séculos. O casamento enquanto instituição já encerra em si a afirmação da grande e mais duradoura forma de organização: se a sociedade mesma enquanto um todo não puder elogiar o casamento até as gerações mais longínquas e para além delas, então este não possui sentido algum. - O casamento moderno perdeu o seu sentido, - conseqüentemente se o suprime. - 40. A Questão dos Trabalhadores. - A estupidez, no fundo a degeneração dos instintos, que hoje é a causa de toda estupidez, reside no fato de haver uma questão dos trabalhadores. Sobre certas coisas não se coloca perguntas: primeiro imperativo do instinto. - Eu não consigo vislumbrar, o que se quer fazer com o trabalhador europeu, depois de se ter transformado inicialmente os trabalhadores em uma questão. Eles se encontram bem demais, para não questionarem passo a passo e de maneira imodesta. Eles têm por fim o grande número a seu favor. A esperança de que venha a se conformar uma espécie de homens modestos e satisfeitos consigo mesmos, um tipo de chinês, já se dissipou completamente: e isto teria sido razoável, isto teria sido francamente uma necessidade. O que se fez? - Tudo para aniquilar mesmo em germe os pressupostos para tanto. Dizimaram-se radicalmente os instintos, em virtude dos quais um trabalhador é possível enquanto condição, vem a ser possível para si mesmo, através da mais irresponsável irreflexão. Fez-se dos trabalhadores seres aptos à militarização, concedeu- se-lhes o direito de coalizão, o direito de voz política: que espanto pode haver no fato de o trabalhar sentir já hoje a sua existência como um estado de penúria (expresso moralmente como uma injustiça -)? Mas o que se quer? Indago uma vez mais. Se se quer uma finalidade, também se precisa querer os meios: se se querem escravos, então não se é senão louco, ao educá-los para serem senhores. - 41. "A liberdade que não tenho em vista..." Em tempos como os nossos, deixar-se à mercê de seus instintos é uma fatalidade a mais. Os instintos contradizem-se, irritam-se, dizimam-se entre si; já defini o moderno como a autocontradição fisiológica. A racionalidade da educação exigiria, que ao menos um destes sistemas de instintos fosse paralisado sob uma pressão férrea, para permitir que um outro ganhasse força, se tornasse forte, se tornasse senhor. Hoje seria preciso tornar primeiramente o indivíduo possível, quando o podamos: possível, isto é, um todo... O que acontece é o contrário: a requisição por independência, por desenvolvimento livre, por deixar rolar é feita da maneira mais veemente por aqueles, para os quais nenhuma rédea seria por demais rigorosa - isto vale in politicis, isto vale também na arte. Mas isto é um sintoma da decadência: nosso conceito moderno de liberdade é mais uma prova da degradação dos instintos. 42. Onde é necessária a presença da crença. - Nada é mais raro entre moralistas e santos do que a retidão; talvez eles digam o contrário, talvez eles acreditem mesmo no contrário. Se em verdade uma crença é mais útil, mais eficaz, mais convincente do que a dissimulação consciente, então a dissimulação se transforma de imediato e por instinto em inocência: primeiro princípio para a compreensão de grandes santos. Também junto aos filósofos, um outro tipo de santo, todo o ofício traz consigo o fato de apenas certas verdades serem admitidas: a saber, apenas tais verdades, em relação às quais seu ofício conta com a sanção pública - dito kantianamente, verdades da razão prática. Eles sabem o que eles precisam provar, nisto eles são práticos - eles se reconhecem entre si através do consenso quanto à verdade. "Tu não deves mentir". Em alemão: precavenha-te, meu caro filósofo, quanto a dizer a verdade. 43. Dito ao pé do ouvido para os conservadores. - O que antes não se sabia e hoje se sabe, se poderia saber - uma involução, uma inversão em um sentido e em um grau quaisquer não é absolutamente possível. Nós fisiólogos ao menos o sabemos. Mas todos os sacerdotes e moralistas acreditaram nisto - eles queriam trazer a humanidade de volta para uma medida de virtude anterior, girar o parafuso para trás. Moral sempre foi um leito de Procrustro. Mesmo os políticos imitaram quanto a isto os pregadores da virtude: ainda hoje há partidos que sonham como meta para todas as coisas o andar de caranguejo. Mas ninguém está realmente livre para escolher ser caranguejo. Não adianta nada: é preciso seguir em frente, quer dizer, passo a passo cada vez mais profundamente na decadência (esta é a minha definição do "progresso" moderno ... ). Pode-se obstaculizar este desenvolvimento, e, através desta obstaculização, represar, recolher, tornar mais veemente e mais súbita a degeneração mesma: mais não se pode fazer, - 44. Meu conceito de Gênio. - Grandes homens são assim como grandes tempos um material explosivo, no interior do qual uma força imensa é acumulada. Histórica ou fisiologicamente, o seu pressuposto é sempre que esta força tenha se agrupado, amontoado, poupado e conservado por muito tempo para eles, - que nenhuma explosão tenha tido lugar. Se a tensão tornou-se grande demais em sua dimensão, é suficiente o estímulo mais acidental para trazer o "gênio", a “ação”, o grande destino ao mundo. O que importa então o meio circundante, a época, o "espírito do tempo", a "opinião pública"! - Consideremos o caso de Napoleão. A França da revolução, e ainda mais a França pré-revolucionária teria produzido a partir de si mesma o tipo oposto ao de Napoleão: ela chegou mesmo a produzir este tipo oposto. E porque Napoleão era diferente, herdeiro de uma civilização mais forte, mais extensa, mais antiga do que essa que se volatizava e esfacelava na França, ele se tornou aí senhor, ele foi aí o único senhor. Os grandes homens são necessários, o tempo em que aparecem são casuais; o fato de eles quase sempre se transformarem em senhores sobre o seu tempo não se sustém senão através do fato de eles serem mais indago, Rousseau queria retornar? Eu odeio Rousseau ainda na revolução: ele é a expressão histórico- mundial para esta dualidade de idealista e canalha. A farsa sanguinária, com a qual esta revolução transcorreu, sua "imoralidade", não me importa muito: o que odeio é a sua moralidade rousseauniana - as assim chamadas "verdades" da revolução, com as quais ela sempre ainda produz efeito e convence tudo o que há de raso e mediano para si. A doutrina da igualdade!... Mas não há nenhum veneno mais venenoso: pois ele parece estar sendo pregado pela própria justiça, enquanto é o fim da justiça... "Aos iguais algo igual, aos desiguais algo desigual - este seria o verdadeiro discurso da justiça: e, o que segue daí, nunca tornar igual o desigual". - O fato das coisas terem girado em torno daquela doutrina da igualdade de maneira tão terrível e sangrenta entregou a esta "idéia moderna" por excelência uma espécie de glória e uma aparência de chama, de modo que a revolução enquanto peça teatral seduziu mesmo os espíritos mais nobres. Isto não é por fim nenhum motivo para apreciá-la mais. - Eu só vejo um homem que a acolheu como ela precisa ser acolhida, com nojo - Goethe... 49. Goethe - Nenhum acontecimento alemão, mas um acontecimento europeu: uma tentativa grandiosa de superar o século dezoito através de um retorno à natureza, através de uma ascensão até a naturalidade da Renascença, uma espécie de auto-superação por parte deste século... - Ele carregou em si o instinto maximamente intenso deste século: a sensibilidade, a idolatria da natureza, o anti-histórico, o idealista, o irreal e revolucionário (o último é apenas uma forma do irreal). Ele encontrou o auxilio da história, da ciência natural, da antigüidade, do mesmo modo que de Espinoza, antes de tudo da atividade prática; ele se cercou com horizontes extremamente cerrados; ele não se descolou da vida, ele se inseriu nela; ele não se desanimou e tomou tanto quanto possível para si, sobre si, em si. O que ele queria era a totalidade; ele combateu a cisão entre razão, sensibilidade, sensação, vontade (- pregada através de Kant em uma escolástica maximamente aterradora; Kant, o antípoda de Goethe), ele disciplinou-se para a completude, ele criou a si mesmo... Goethe foi, em meio a uma era disposta irrealmente, um realista convicto: ele disse sim a tudo o que lhe era neste ponto aparentado - ele não teve nenhuma vivência maior do que aquele ens realissimum chamado Napoleão. Goethe concebeu um homem forte, elevadamente culto, hábil em toda corporeidade, que controlava a si mesmo e venerava a si mesmo; um homem que tinha o direito de ousar não invejar toda a envergadura e a riqueza da naturalidade, que era forte o bastante para esta liberdade; o homem da tolerância, não por fraqueza, mas por força, porque sabia usar ainda em seu proveito o que produziria o perecimento da natureza mediana; o homem, para o qual não existia nada mais proibido, a não ser a fraqueza, seja esta um vício ou uma virtude... Um tal espírito, que se tornou livre, encontra-se com um fatalismo alegre e confiante em meio ao todo, na crença em que apenas o singular é reprovável, em que no todo tudo se dissolve e afirma - ele não nega mais... Mas uma tal crença é a maior de todas as crenças possíveis: eu a batizei sob o nome de Dioniso. - 50. Poder-se-ia dizer, que, em certo sentido, o século dezenove também aspirou a tudo, ao que Goethe aspirava enquanto pessoa: uma universalidade no entendimento, na aprovação, um ficar na expectativa de qualquer coisa, um realismo arrojado, uma veneração frente a todo fatual. Como é possível que o resultado conjunto não seja nenhum Goethe, mas um caos, um suspiro niilista, um não-saber-desde- onde-nem-para-o-interior-do-que, um instinto de fadiga, que in praxi leva incessantemente a retroceder ao século dezoito? (por exemplo, enquanto romantismo do sentimento, enquanto altruísmo e hiper- sentimentalismo, enquanto feminismo no gosto, enquanto socialismo na política). O século dezenove não é, sobretudo em seu desfecho, meramente um século dezoito reforçado e corrompido, ou seja, um século decadente? De modo que Goethe teria sido não apenas para a Alemanha, mas para toda a Europa simplesmente um incidente, um belo acontecimento vão? - Mas se compreende mal grandes homens, quando se os considera a partir da pobre perspectiva de uma utilidade pública. O fato de não se saber tirar dele nenhuma utilidade talvez pertença mesmo à grandeza... 51. Goethe é o último alemão, frente ao qual tenho veneração: ele teria experienciado três coisas, que experienciei também nos entendemos em relação à "Cruz"... As pessoas me perguntam freqüentemente, por que afinal escrevo em alemão: em lugar algum fui tão mal lido quanto na terra pátria. Mas quem sabe por fim, se nem mesmo desejo ser lido hoje? - Criar coisas nas quais o tempo aplica em vão seus dentes; segundo a forma, segundo a substância estar empenhado em uma pequena imortalidade - nunca fui modesto o suficiente para exigir de mim menos do que isto. O aforismo, a sentença, nas quais sou o primeiro mestre dentre os alemães, são as formas da "eternidade"; minha ambição é dizer em dez frases, o que qualquer um outro diz em um livro - o que qualquer outro não diz em um livro... Eu dei à humanidade o livro mais profundo que ela possui, o meu Zaratustra: eu lhe darei em breve o livro mais independente. - O QUE DEVO AOS ANTIGOS 1. Por fim uma palavra sobre aquele mundo, ao qual busquei acessos, ao qual talvez tenha encontrado um novo acesso - o mundo antigo. Meu gosto, que pode bem ser o contrário de um gosto tolerante, também está longe aqui de dizer sim em bloco: ele não gosta absolutamente de dizer sim, de preferência ainda um não, na melhor das hipóteses não diz nada... Isto vale em relação a culturas como um todo, isto vale em relação a livros - vale também para lugares e paisagens. No fundo há um número muito pequeno de livros antigos, que contam em minha vida; os mais célebres não se encontram entre eles. Meu sentido para o estilo, para o epigrama enquanto estilo, despertou quase instantaneamente ao contato com Salustio. Eu não esqueço o espanto de meu honrado professor Corssen, quando precisou dar ao seu pior aluno de latim a melhor nota, - de uma tacada só estava pronto. Conciso, rigoroso, com tanta substância quanto possível por fundamento, uma malícia fria contra a "bela palavra", também contra o "belo sentimento" - nisto desvendei a mim mesmo. Se reconhecerá em mim até o meu Zaratustra uma ambição muito séria pelo estilo romano, pelo "aere perennius" no estilo. - Não de modo diverso se passaram as coisas para mim em meio ao primeiro contato com Horácio. Até hoje nunca tive em nenhum outro poeta o mesmo encanto artístico que me foi dado desde o princípio pela Ode de Horácio. Em certas línguas, não se deve sequer querer o que aqui é alcançado. Este mosaico de palavras, no qual cada palavra espraia sua força enquanto som, enquanto lugar, enquanto conceito, para a direita e para a esquerda e por sobre o todo, este minimum em abrangência e em número de signos, este maximum de energia dos signos com isto intentado. Tudo isto é romano, e, se quiserem acreditar em mim, nobre por excelência. Todo o resto da poesia torna-se inversamente algo por demais popular - um mero falatório sentimental... 2. Aos gregos não devo absolutamente nenhuma impressão intensa aparentada; e, para proferi-lo diretamente, eles não podem ser para nós o que os romanos são. Não se aprende dos gregos - seu modo de ser é demasiado estranho, ele também é demasiado fluido para atuar imperativamente, "classicamente". Quem teria jamais aprendido a escrever junto a um grego! Quem o teria jamais aprendido sem os romanos!... Que não venham para mim com uma objeção chamada Platão. Em relação a Platão sou um cético fundamental e nunca estive em condições de concordar com a admiração do artista Platão - uma admiração que é corrente entre os eruditos. Por fim, tenho aqui do meu lado o juiz de gosto mais refinado dentre os antigos mesmos. Tal como me parece, Platão mistura confusamente todas as formas do estilo, ele é com isto o primeiro decadente do estilo: ele traz consigo marcado na sua consciência algo similar aos cínicos, que inventaram a Sátira Menipéia. Para que o diálogo platônico, esta espécie repulsivamente presunçosa e infantil de dialética, possa atuar enquanto estímulo, é preciso que nunca se tenha lido bons franceses - Fontenelle, por exemplo. Platão é entediante. - Por fim, minha desconfiança junto a Platão vai até o fundo: eu o considero tão desviado de todos os instintos fundamentais dos helenos, tão moralizado, tão pre-existentemente cristão - ele já tinha o conceito "bom" enquanto o conceito supremo -, que gostaria de utilizar em relação a todo o fenômeno Platão antes a dura expressão "o mais alto embuste", ou, se se preferir escutar, mais do que qualquer outra palavra, o mais alto Idealismo. Pagou-se caro pelo fato deste ateniense ter estudado com os egípcios (- ou com os judeus no Egito? ... ) Em meio à grande fatalidade do cristianismo, Platão é esta fascinação dúbia chamada "Ideal", que tornou possível para as naturezas nobres da antigüidade compreender mal a si mesmas e pôr os pés sobre a ponte que conduziu até a "cruz"... E o quanto de Platão há ainda no conceito "igreja", na construção, no sistema, na práxis da igreja! - Meu descanso, minha predileção, minha cura de todo platonismo sempre foi Tucídides. Tucídides, e, talvez, o Príncipe de Maquiavel são maximamente aparentados comigo mesmo através da vontade incondicionada de não se deixar engambelar e de considerar a razão na realidade - não na "razão", menos ainda na "moral"... Da lastimável utilização de tons pastéis por parte dos gregos, sob a roupagem de ideal, que o jovem "classicamente formado" carrega em meio à vida como recompensa por sua aplicação no colégio, nada cura tão fundamentalmente quanto Tucídides. É preciso virá-lo de cabeça para baixo linha por linha e decifrar tão distintamente os seus pensamentos implícitos quanto as suas palavras: existem poucos pensadores tão ricos em pensamentos implícitos. Nele a cultura dos sofistas, quer dizer, a cultura dos realistas, alcançou a sua expressão plena: este movimento inestimável em meio ao embuste moral e ideal, que irrompia por toda parte, em meio ao embuste moral e ideal da escola socrática. A filosofia grega enquanto a decadência dos instintos antigos; Tucídides enquanto a grande soma, a última revelação daquela facticidade forte, rigorosa, dura, que residia nos instintos dos antigos helenos. A coragem frente à realidade diferencia por fim tais naturezas como Tucídides e Platão: Platão é um covarde diante da realidade - conseqüentemente, ele se refugia no ideal; Tucídides tem a si mesmo sob controle, por conseguinte mantém também as coisas sob controle... 3. Arrepiar-se diante dos gregos em virtude de suas "belas almas", suas "medidas plenas" e outras perfeições; admirar mais ou menos neles a calma em meio à grandeza, a meditação ideal, a elevada ingenuidade. Contra esta "elevada ingenuidade", em última instância contra uma niaiserie allemande [tolice alemã], fui protegido pelo psicólogo, que trazia em mim. Vi seu instinto maximamente intenso, a vontade de potência, os vi tremer frente à violência indómita deste impulso - vi todas as suas instituições crescerem a partir de regras e medidas de segurança, para se assegurarem uns em relação aos outros contra seu material explosivo intrínseco. A monstruosa tensão na interioridade descarregou-se então em uma inimizade terrível e brutal contra a exterioridade: as comunidades citadinas dilaceraram-se entre si, para que os cidadãos de cada uma delas em particular pudesse encontrar paz diante de si mesmo. Tinha- se necessidade de ser forte: o perigo estava por perto - ele estava por toda parte à espreita. A corporeidade exuberantemente flexível, o realismo e o imoralismo temerários, que eram próprios aos helenos, foi uma necessidade, não uma "natureza". Ele sucedeu primeiramente, ele não estava desde o princípio aí. E com festas e artes não se queria outra coisa senão se sentir por cima, se mostrar por cima: são meios de glorificar a si mesmo, em certas circunstâncias de provocar medo em relação a si mesmo... Julgar os gregos de uma maneira alemã segundo os seus filósofos, como que utilizar a lengalenga dos bons homens da escola socrática enquanto chave para determinar o que é no fundo helênico!... Os filósofos são sim os decadentes do mundo grego, o movimento contrário ao antigo e nobre gosto (- contra o instinto agonístico, contra a pólis, contra o valor da raça, contra a autoridade da tradição). As virtudes socráticas foram pregadas, porque eles tinham desaparecido do seio dos gregos: irritadiços, covardes, instáveis, comediantes todos em conjunto, eles tinham algumas razões a mais para permitir que a moral lhes fosse pregada. Não que isto tivesse ajudado alguma coisa: mas grandes palavras e atitudes caem muito bem em decadentes... 4. Eu fui o primeiro a, em nome da compreensão daquele instinto mais antigo, daquele instinto helênico ainda rico e transbordante, considerar a sério aquele fenômeno maravilhoso, que carrega o nome de Dioniso: ele só é passível de ser explicado a partir de um excedente de força. Quem segue os rastros dos gregos, como o mais profundo conhecedor de sua cultura hoje vivo, Jacob Burckhardt em Basiléia, sabe imediatamente que com isto foi dado um passo decisivo: Burckhardt inseriu em seu livro a Cultura dos Gregos um parágrafo próprio sobre o dito fenômeno. Se quisermos o contraponto, basta olhar para a quase divertida pobreza instintiva dos filólogos alemães, ao se aproximarem do dionisíaco. O célebre
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved