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Construção das identidades surdas na escola ouvinte - Apostilas - História, Notas de estudo de História

Apostilas de História sobre o estudo das Mãos que falam da construção das identidades surdas na escola ouvinte, Identidades surdas, Políticas educacionais, Re lações de poder, Relação com a diferença.

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 27/06/2013

PorDoSol
PorDoSol 🇧🇷

4.5

(202)

443 documentos

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Pré-visualização parcial do texto

Baixe Construção das identidades surdas na escola ouvinte - Apostilas - História e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DISSERTAÇÃO MÃOS QUE FALAM DA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES SURDAS NA ESCOLA OUVINTE Marita Zorzolli Nebel Pelotas, 2006 Marita Zorzolli Nebel MÃOS QUE FALAM DA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES SURDAS NA ESCOLA OUVINTE Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Jarbas Santos Vieira Pelotas, 2006 AGRADECIMENTOS Este é um momento delicado por isso busco na lembrança todas as pessoas que de alguma forma ajudaram na construção deste trabalho. Durante o tempo em que estive envolvida com a pesquisa, muitos foram aqueles que me deram motivos para vencer este desafio. Sendo mãe, filha, esposa, irmã, estudante, professora, pesquisadora entre muitas outras que pude descobrir em mim mesma, agradeço por ser mulher e ter podido enfrentar as pedras no caminho. Agradeço a Raquel, a Camila e ao Rafael, meus filhos, por existirem; eles estão presentes em cada parte deste trabalho, porque alimentam as minhas mais profundas emoções. Ao meu marido Álvaro, agradeço o carinho e a ajuda nas leituras e na organização da dissertação. Agradeço a minha mãe, Zair, por ter vibrado com o meu sucesso e me dado ânimo nos dias mais difíceis. Mesmo sendo esta caminhada um tanto solitária, digo obrigada aos colegas de trabalho que colaboraram e compreenderam as minhas ausências. Obrigada às colegas Daniele e Susele pela ajuda na leitura do trabalho. Dedico este trabalho aos meus alunos surdos e a sua luta pelo respeito ao outro; mais do que sujeitos a investigar, os surdos foram parceiros neste trabalho, e com eles aprendi a aprender. Um especial agradecimento ao meu orientador Jarbas Vieira, pelos ensinamentos cognitivos e afetivos que me fazem acreditar que valeu a pena ter vivido esta experiência. Acima de tudo, agradeço a minha vida a Deus. RETRATOS Que gentes tão estranhas não entendo o olhar do outro por cá estou no tumulto das vozes tagarelas, estranhas. Que gentes estranhas fazem das bocas tamanhas entranhas brancas, vermelhas, amarelas de tantos sabores. Que estranhos braços, mãos, rostos de corpos que falam das dores, dos desejos, das flores das cores, dos amores Que não são estranhos. Marita Nebel Resumo NEBEL, Marita Zorzolli. Mãos que falam da construção de identidades surdas na escola ouvinte. 2006. 127p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. Nesta dissertação discuto como as identidades surdas vêm sendo construídas pela experiência da inclusão no Colégio Municipal Pelotense - RS, problematizando os efeitos da política inclusiva sobre oito alunos surdos no Ensino Médio e Curso Normal e discutindo os impactos dessa política na construção de suas identidades. Para tanto, utilizei as contribuições de autores como Foucault, Hall, Silva, Larrosa, Skliar, Corazza, Perlin, Ewald e Woodward entre outros. Estudar os alunos surdos significou trazer para essa discussão um pouco da história geral dos surdos e da educação, através de movimentos sociais e políticos, considerando que os fatos transcritos através do tempo interferem no presente e no futuro dos surdos. Proponho uma discussão em torno das políticas educacionais e a questão da inclusão, passando pela visão da escola especial em que estiveram inseridos os surdos desta pesquisa, culminando numa reflexão sobre os dilemas vividos pela escola. Faço uma análise atenciosa no que diz respeito às relações de poder e a relação com as diferenças numa visão multicultural, entendendo que as identidades são construídas e modificadas no contato com outras pessoas. Para tanto, usei o método qualitativo. O próprio Colégio serviu de cenário para a investigação iniciada em meados de 2005. Três encontros foram organizados com a utilização de entrevistas semi-estruturadas e filmagem, recursos que possibilitaram refletir, analisar e elaborar proposições sobre a construção das identidades surdas na escola ouvinte. Também participou dos encontros, a intérprete de LIBRAS. Os alunos narraram suas impressões a respeito da escola, da inclusão, dos professores, dos colegas, das disciplinas, das identidades, da cultura surda, da língua natural dos surdos. Das mudanças, conquistas e dificuldades fizeram uma análise crítica baseada nos resultados e efeitos de suas intervenções nas atividades do colégio. O meu olhar para as alteridades surdas buscou nas narrativas dos surdos, os dados para serem analisados e interpretados. Palavras-chave: identidades surdas; políticas educacionais; relações de poder; a relação com as diferenças. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10 1 POR QUE ESTUDAR AS IDENTIDADES SURDAS? ..........................................26 1.1 A Abordagem Teórica do Estudo ......................................................................30 2 UM OLHAR ATRAVÉS DO TEMPO – A SURDEZ E A EDUCAÇÃO DE SURDOS...................................................................................................................35 3 AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS OFICIAIS E A QUESTÃO DA INCLUSÃO......43 3.1 Discurso de Inclusão .........................................................................................43 3.2 O Contexto da Educação Especial....................................................................46 3.3 A LDB e a LIBRAS: dilemas vividos pela escola ...............................................49 4 EDUCAÇÃO E CURRÍCULO: PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS, PODER, DIFERENÇA E MULTICULTURALISMO....................................................53 4.1 O que fazem os Currículos?..............................................................................59 4.2 As Relações de Poder.......................................................................................65 4.3 A Relação com as Diferenças ...........................................................................68 4.4 Multiculturalismo................................................................................................71 5 OS SABERES SOBRE AS ALTERIDADES SURDAS .........................................73 5.1 A Margem Esquerda da Normalidade ...............................................................76 5.2 Das Personagens - elas estão entre nós...........................................................83 6 NA BUSCA DA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES SURDAS .........................85 6.1 Nós Somos Surdos Porque não Somos Ouvintes?...........................................93 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................115 REFERÊNCIAS.......................................................................................................122 ANEXOS .................................................................................................................126 ANEXO A Questões utilizadas nas entrevistas com os alunos ...............................127 ANEXO B Desenhos utilizados nos encontros........................................................128 INTRODUÇÃO A pesquisa que embasou esta dissertação teve como objetivo saber como as identidades surdas vêm sendo construídas pela experiência da inclusão em uma escola totalmente pensada e organizada para ouvintes, problematizando os efeitos da política inclusiva sobre alunos surdos1 no Ensino Médio e Curso Normal no Colégio Municipal Pelotense (CMP) e discutindo os impactos dessa política na construção de suas identidades. Para isso, a pesquisa teve como objetivo mais específico uma análise dos significados/sentidos que alguns estudantes surdos vêm atribuindo a sua experiência dentro desse Colégio2, valorizando a perspectiva desses sujeitos sobre essa situação e as implicações em suas vidas. Estudar os alunos surdos significou trazer para essa discussão um pouco da história geral da educação dos surdos, a história de outros surdos que fizeram o mesmo caminho educacional até o CMP e as suas próprias caminhadas nas escolas especial e regular. Também foi importante saber sobre os movimentos políticos e sociais organizados pela Associação de Surdos de Pelotas (ASP). Neste caso, a investigação sobre a construção das identidades se fundamentou na trajetória de uma coletividade surda e nas relações que foram se constituindo ao longo do tempo. Por isso, o leitor poderá observar que em muitas partes deste estudo os surdos aparecem mais como grupos do que propriamente na sua individualidade. 1 Os sujeitos da pesquisa são alunos e alunas surdos. O gênero usado neste trabalho será o masculino, com o propósito de não tornar exaustiva a escrita. Somente será usado o feminino quando for um caso específico. 2 O termo colégio será utilizado quando houver referência ao Colégio Municipal Pelotense. 13 língua portuguesa. Portanto, os surdos aprendiam a oralizar, falar e repetir os sons ensinados pelos ouvintes que, somado a proibição do uso dos sinais, criou entre os surdos uma espécie de aversão à oralização. Contudo, as mudanças exigidas pela sociedade contemporânea, especialmente por aqueles que se sentiam prejudicados pela história que carregavam, alcançaram o interior das escolas especiais. Na cidade de Pelotas, a Escola Alfredo Dub tem demonstrado interesse pela reforma de pensamentos e práticas que se encaminham para novos fazeres pedagógicos. Hoje em dia, a escola especial busca recursos pedagógicos voltados à educação de surdos em uma perspectiva que sugere melhores condições de aprendizado, tendo a língua de sinais reconhecida e utilizada por grande parte dos professores. Certamente, a educação especial enfrenta as dificuldades próprias da escola subsidiada pela benevolência governamental e particular. Infelizmente, essa situação contribui com a manutenção da imagem da escola de deficientes. Quando os alunos surdos são incluídos na escola regular, levam as imagens/representações da deficiência, a exemplo dos alunos surdos que ingressaram no CMP. A idéia da deficiência está ligada à doença, portanto, no imaginário ouvinte a visão do surdo não está associada apenas à deficiência auditiva, mas a outros males que os tornam menos inteligentes, menos capazes, menos espertos, menos sociáveis. Assim, a lei que beneficiou a entrada dos surdos no CMP também os expôs a uma situação de discriminação e preconceito. O movimento dos surdos no CMP Além de carregar a marca da deficiência, os surdos eram uma minoria que, segundo relatos dos próprios alunos, costumava se agrupar nos mais diversos locais do Colégio, principalmente porque usavam a mesma língua. Considerando o uso comum de uma língua como fator importante em qualquer relação entre pessoas e www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10436.htm . Considero importante destacar que a LIBRAS não é uma língua universal, cada país tem a sua língua de sinais. 14 grupos, a comunicação visual que aproximava os surdos acabava por afastar ou dificultar a aproximação entre surdos e ouvintes. Sendo a Língua Brasileira de Sinais uma língua em processo de divulgação e de difícil acesso à população em geral, os ouvintes não a conheciam. Além disso, a utilização da LIBRAS não se limita aos gestos comuns adotados muitas vezes por ouvintes em algumas situações, ela tem uma estrutura que é diferente da língua portuguesa; a complexidade da língua de sinais exige vontade, estudo e dedicação para compreendê-la. Neste caso, conviviam alunos surdos e ouvintes em um espaço escolar comum, usando formas diferentes e excludentes de comunicação. Tal fato poderia ser motivo de constrangimentos aos jovens surdos se considerássemos o número reduzido de pessoas que usava a língua de sinais. Porém, o uso da LIBRAS conferia ao grupo o poder da comunicação, sendo um signo que os identifica cultural e socialmente como grupo diferente, porque têm uma língua própria. Portanto, a comunicação entre surdos e ouvintes é matéria de importância nos estudos surdos. Sabemos que nas últimas décadas, a educação de surdos vem sendo foco de debates, embora esse assunto tenha tomado maiores proporções na cidade de Pelotas há pouco tempo. Especificamente no CMP, a discussão começou com o ingresso dos primeiros surdos via políticas de inclusão. Sem dúvida, receber alunos que não usavam a comunicação oral tornou-se um problema para o Colégio, principalmente quando a nova língua se apresentava através de gestos e expressões que estavam além das possíveis comunicações ouvintes que acontecem através do corpo. Assim, a língua de sinais desafiava a comunicação ouvinte tentando se pôr no contexto escolar com a mesma legitimidade da língua falada. De fato, a história geral da escola revela que essa não é uma instituição pensada ou articulada para trabalhar com o desconhecido, embora as diferenças existissem sempre. Através do tempo, os surdos enfrentaram o preconceito e as dificuldades inerentes à situação de inclusão, contudo os primeiros alunos surdos do CMP conseguiram marcar a sua presença através de ações que provocaram transformações importantes no interior do Colégio. Compreendo que o princípio desse processo de mudança aconteceu quando o pequeno grupo “estranho” passou a ocupar, efetivamente, os espaços ouvintes. O movimento organizado pelos 15 próprios surdos acabou gerando mudança de atitudes por parte de alguns ouvintes, que responderam favoravelmente às ações dos alunos que buscavam mais do que a simples inclusão retratada na tolerância. Sem dúvida, de lá para cá a rotina do Colégio mudou. Muitas foram as modificações ocasionadas pela presença dos novos alunos, tanto nas salas de aula como nos espaços abertos ocupados por crianças, adolescentes e adultos que se relacionavam em meio aos barulhos, ora sussurrados nas salas, ora estridentes nos pátios e coberturas, somados aos sons que vinham dos risos e gritos daqueles que mexiam as mãos e todo o corpo, significando gestos que contracenavam com as figuras infantis apinhadas nos recreios. Os meus olhares para os surdos Diria que os meus olhares para os surdos foram muitos, desde a diretora, a professora, a parceira, a pesquisadora. Olhares que não encontraram respostas senão aquelas que suscitaram outras respostas e outras perguntas nos últimos cinco anos em que tenho participado das dificuldades e lutas dos surdos para vencer preconceitos e conquistar espaços. Além da experiência vivenciada no dia-a-dia, os estudos que realizei na área da educação de surdos foram elementos que deram sustentação ao desenvolvimento desta pesquisa. Participei de leituras, palestras, seminários, oficinas, cursos e encontros que oportunizaram um maior conhecimento nessa área da educação, ainda pouco explorada, e até então distante da minha realidade. O valor desses momentos de discussão estava principalmente na presença e participação de surdos: - surdos alunos, surdos oficineiros, surdos palestrantes, surdos professores etc. Neste momento, me vejo em um ambiente de aprendizado por aceitar que o meu processo pessoal de entendimento do outro como diferente passa por uma mudança interna, nisso me disponho a admitir novos conceitos refutados pela ciência e pelos valores que foram consagrados pela normalidade. Na verdade, a mudança mais importante foi no olhar que via o surdo como uma pessoa doente e incapaz de aprender como os ouvintes, e agora os estuda através de uma outra 18 busca de respostas sobre o que fazer com os “estranhos deficientes”. A partir da inclusão dos alunos no Colégio, as coisas foram acontecendo e os professores se deparando com as diversas facetas da educação sem que o olhar patético da escola os protegesse. Para facilitar e melhorar as condições de ensino-aprendizagem, os professores dos surdos tinham na sua carga horária duas horas de reuniões semanais para discutir a educação de surdos. Apenas no final de 2005, este grupo começou a contar com a participação do primeiro professor surdo do CMP7, acrescentando ao processo de luta dos surdos as mãos que falariam da educação a partir da visão surda. Cabe salientar que professor de LIBRAS, necessariamente, é surdo. No CMP, Diogo, o professor surdo, ensina língua de sinais para as turmas de inclusão8 e oferece oficinas de LIBRAS para ouvintes. No meu entendimento, a sua contratação foi uma das conquistas mais importantes dos surdos, considerando que após cinco anos de educação de surdos, os alunos do Colégio têm um representante da cultura surda assumindo um papel que tem contribuído para o entendimento dos surdos como pessoas capazes de aprender e ensinar. Por sua vez, a maioria dos professores ouvintes que trabalham com alunos surdos fez curso de capacitação na área da educação de surdos. No currículo do curso estavam incluídos, entre outros assuntos, a história da educação de surdos, a cultura surda, a identidade surda e a língua de sinais. A formação de professores nessa área estimulou-os a buscar outros conhecimentos que pudessem proporcionar maior compreensão acerca dos seus alunos. Certamente, a situação de aprendentes dos professores contribuiu para que acontecessem algumas modificações nas relações entre surdos e ouvintes envolvidos no processo de reconhecimento do outro. Essas novas relações supõem certa transformação no olhar de quem via no surdo a deficiência e passa a questionar a normalidade, criando novas regras de aceitação e convivência. 7 Professor surdo: ensina LIBRAS. Língua que somente pode ser ensinada por um surdo que tenha feito curso de instrutor na FENEIS. 8 As turmas de inclusão no CMP podem ser formadas apenas com alunos surdos ou com surdos e ouvintes, nesse segundo caso, chamadas de turmas mistas. 19 As novas relações geraram aprendizado também comprometeram os professores com os novos referenciais surdos que reivindicavam mudanças. O compromisso se pautava basicamente no entendimento de que não existem práticas determinadas para melhor conduzir a educação de seus alunos. O compromisso ainda estava no respeito à cultura surda, de modo a optar por ações que indicavam o caminho do reconhecimento da surdez como diferença. As várias ações desencadeadas no processo de inclusão revelaram os olhares cultural e patológico que oscilam no campo discursivo, disputando as representações da surdez. Neste campo onde as representações da surdez se alternam, a aceitação da língua natural dos surdos é uma indicação reconhecida por grande parte de ouvintes que se relacionam diretamente com os surdos, sejam professores ou alunos. Contudo, considerando o universo ouvinte, a LIBRAS, muitas vezes, tem uma representação menor e incompleta quando é vista como mímica em substituição à língua falada. Aceitar e aprender a língua dos surdos é um dos princípios de respeito à cultura dos alunos no CMP. Neste caso, a opção pelo olhar da diferença na educação dos surdos também foi percebida nas ações de alguns professores e alunos ouvintes que arriscaram maneiras de participar das novas aprendizagens, rediscutindo regras e conceitos. O lugar de cada personagem envolvido no processo de (re)construção escolar permitiu que as diversas vozes se cruzassem provocando instabilidade nas relações. Surdos e ouvintes dividiram os espaços de discussão em que entendimentos e desentendimentos estabeleceram uma relação direta com a constituição das identidades surdas e ouvintes, com mais ou menos importância, de acordo com as mudanças que puderam ou não acontecer de forma participativa. Os caminhos da pesquisa A pesquisa buscou nas palavras dos alunos os motivos para interpretar como eles se vêem no CMP. Para saber sobre os pensamentos (idéias) dos sujeitos sobre suas vidas e como se sentem representados no corpo escolar, utilizei o método qualitativo, pois compreendendo ser esse o melhor caminho utilizado na investigação, considerando as particularidades dela. 20 Os alunos surdos que aceitaram participar da pesquisa foram esclarecidos antecipadamente sobre os propósitos e a importância do trabalho, que ganharia sentido somente a partir de seus relatos. Todos concordaram que as entrevistas seriam filmadas e que as anotações seriam feitas no meu caderno, de acordo com as observações realizadas em cada encontro. Na minha visão, esses alunos aceitaram o convite por terem uma opção política e cultural em construção dentro de um projeto maior, que compreende a prática da diferença e a conquista do reconhecimento da cultura surda. O próprio Colégio serviu de cenário para a investigação iniciada em meados de 2005. Os três encontros foram organizados e encaminhados através de recursos que possibilitaram refletir, analisar e elaborar proposições sobre a construção das identidades surdas no currículo escolar ouvinte. Nos dois primeiros encontros foram lançados questionamentos9 para o grupo a respeito de suas experiências na escola. No terceiro, optei pela utilização de desenhos10 feitos pelo professor surdo do Colégio Pelotense, com o objetivo de fazer com que os alunos conversassem entre si, trocando experiências, idéias, sentimentos, dificuldades, valores etc. durante algum tempo, sem a minha interferência ou a de qualquer outro ouvinte. Também participaram dos encontros, a intérprete de LIBRAS11 e uma professora encarregada da filmagem. A figura do intérprete faz parte da cultura surda, por isso a sua presença é importante nos momentos em que existe a necessidade de uma comunicação mais elaborada. Por outro lado, penso que a comunicação direta com os surdos na sua língua aproxima e facilita a relação que leva à compreensão do que o outro pensa, quer ou diz, sem que a distância mediada pelo intérprete se torne uma barreira. Comunicar-se com os surdos envolve muito mais do que o uso aplicado das mãos, mas o uso da expressão, que se manifesta através do olhar, dos movimentos da boca, das sobrancelhas, da cabeça, dos ombros, enfim, do corpo todo. Comunicar-se com os surdos também exige o mínimo de conhecimento sobre os seus saberes. 9 As questões levadas ao grupo estão em anexo. 10 Os desenhos feitos por Diogo Madeira estão em anexo. 11 Intérprete de LIBRAS é a profissional que faz mediação da comunicação entre surdos e ouvintes. A intérprete que atuou nos nossos encontros faz parte de uma equipe composta por dez profissionais do CMP. 23 A análise desse processo de subjetivação foi baseada nos estudos foucaultianos, que entendem o sujeito como produto de práticas discursivas (porque o discurso é sempre prática) que ditam como ele deve ser. Entretanto, nas relações de poder, interagem enunciado, tempo, espaço e posição do sujeito, produzindo um deslocamento discursivo desse sujeito. Portanto, o sujeito não atinge a legitimação de si mesmo a partir de um referencial único de representação, ele está sujeito às modificações e interferências de outros que interagem no corpo social (FOUCAULT, 2002 b). Os estudos na área da educação de surdos Neste momento em que se desdobra e se mostra a variedade humana na educação, enunciada nas políticas de inclusão, nas pesquisas e nos estudos do campo educacional, a educação de surdos tem sido objeto de intensos debates que partem de enfoques diferentes: clínico, antropológico, educacional inclusivo e educacional especial, colocando em questão a suposta fixidez da representação da deficiência surda e mostrando a atualidade do tema, bem como a necessidade de maiores estudos e investigações. Nessa busca, alguns trabalhos foram de grande importância para este estudo, especialmente porque tiveram como sujeitos de pesquisa alunos surdos do CMP. A pesquisa da professora Mestre em Educação Amélia Rota Borges14 investigou a percepção de alunos surdos do CMP sobre a inclusão na rede regular de ensino, em 2003. A pesquisa de Édina Vergara Fagundes sobre a inclusão de surdos sob o ponto de vista dos professores foi realizada em escolas públicas da rede municipal (entre elas o CMP) e estadual, em 2002. Esses trabalhos contribuíram com as minhas reflexões, principalmente porque possibilitaram enxergar o Colégio e os surdos sob outros olhares, em um tempo diferente do meu. 14 Amélia Rota Borges, autora do livro “Com a Palavra os Surdos, o que eles têm a dizer sobre a escola regular?” fruto do seu trabalho de pesquisa realizado em 2003. 24 Considerei interessante consultar trabalhos sobre os surdos também em outras áreas do conhecimento. A focalização da surdez na maior parte dos estudos tem a sua compreensão como deficiência. A surdez é vista a partir de uma perspectiva clínica que pretende recuperar a criança através de tratamento fonoaudiólogo ou cirúrgico, usando a psicologia como suporte nos distúrbios emocionais e como apoio à família. Entretanto, estudos recentes na área da psicanálise15, trazem a discussão sobre a utilização da identidade como marcador de diferença das minorias, entre elas os surdos. A despeito do enfoque próprio de cada área no desenvolvimento das pesquisas, tenha ela o corpo como objeto de apreciação laboratorial ou o pensamento norteado por sugestões lacanianas, freudianas etc., são estudos sobre os surdos que, forçosamente, sofreram um deslocamento a partir dos fatores externos que se manifestam no social, no político, no religioso e no educacional. A escola como centro de discussão Os questionamentos que puderam ressignificar os conceitos sobre a educação de surdos passaram pela escola como centro de discussão. Considerando o momento em que as novas linguagens interferiram positivamente na invenção de imagens construídas social e politicamente, pareceu oportuno dialogar com alunos que viveram escolaridades diferenciadas (escola regular ou especial) no Ensino Fundamental e que agora chegam ao Ensino Médio. Atualmente, o surdo na escola é uma realidade na cidade de Pelotas. Eles estão diante de nós, nas salas de aula, nas escolas e nas universidades, não há como ignorar. São essas pessoas que vão oportunizar novos comportamentos por parte dos profissionais da área da educação, por isso, iniciativas tomadas dentro da escola no sentido de transformar rotinas estéreis em ações que movimentam os fazeres pedagógicos e, acima de tudo, mexem com o pensamento dos professores, são importantes na fabricação de novos currículos. Manter os surdos como reféns de uma educação tradicional falida seria prejudicá-los duplamente. 15 Ricardo Vianna Martins (2004) no artigo Identificação, Exclusão e Língua de Sinais fala sobre os processos de identificação e o papel da língua de sinais na constituição subjetiva dos surdos. 25 Compreendo ainda que este seja um estudo de caso na área da educação de surdos que pode contribuir com novas leituras e novas práticas de ensino dirigidas aos alunos surdos de Ensino Médio que ingressam em escolas públicas de ensino regular, principalmente porque a maioria dos trabalhos de pesquisa têm sido realizados nos primeiros estágios escolares, tendo como sujeitos as crianças surdas. São estudos que dão conta do aluno quando sua formação educacional se mistura ao seu momento pessoal de descoberta de si mesmo como surdo. Tais pesquisas ainda se estendem aos primeiros anos do Ensino Fundamental, que pode acontecer em escola especial ou regular. Nesse período percebe-se a ênfase nos estudos direcionados à averiguação dos limites entre a visão clínica que toma o surdo por deficiente e a visão antropológica que o quer sujeito cultural (PERLIN, 2001; SKLIAR, 2001). Na seqüência do texto, procuro esclarecer ao leitor os motivos que me levaram a realizar esta pesquisa e sob que ponto de vista teórico desenvolvi os estudos sobre a construção das identidades surdas. Logo a seguir, faço um olhar através do tempo sobre a surdez, considerando que os fatos transcritos interferem no presente e no futuro dos surdos. No terceiro capítulo, proponho uma discussão em torno das políticas educacionais e a questão da inclusão, passando pela visão da escola especial em que estiveram inseridos os surdos desta pesquisa, culminando em uma reflexão sobre os dilemas vividos pela escola. O quarto capítulo traz para análise e crítica os Parâmetros Curriculares Nacionais, pondo em discussão as relações de poder e a relação com as diferenças a partir de uma visão multicultural. Depois, focalizo as alteridades surdas na busca dos personagens desta história. O sexto capítulo apresenta as narrativas dos alunos surdos, analisadas e interpretadas a partir das minhas percepções. E, finalmente, escrevo as palavras que interrompem a escritura de uma pesquisa, que não pode ser concluída enquanto existirem as mãos que falam das vidas de gentes estranhas que estamos conhecendo. 28 auxiliar na leitura, interpretação e escrita dos alunos, começaram a surgir outros interesses que problematizaram a inclusão no Colégio, alargando a perspectiva de ensinar a Língua Portuguesa. Nessa ocasião foi oferecido o primeiro curso de capacitação na área da surdez pela Secretaria Municipal de Educação (SME) aos professores de surdos das redes municipal e estadual de educação. Esse curso18, coordenado por Carlos Skliar, professor fundador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para Surdos (NUPPES) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), trabalhou os conhecimentos adquiridos sobre as experiências dos surdos na área da educação, possibilitando um aprendizado que, ao invés de apresentar respostas, fez com que eu passasse a problematizar o que estava acontecendo no CMP, não no sentido de criar juízos, mas servindo como uma lente que ampliava a questão dos surdos na escola. O trabalho com os surdos foi intensificado quando nos reunimos para organizar o I Seminário: alunos surdos e a escola. Foi uma tarefa difícil, principalmente porque os alunos surdos e os professores ouvintes partiam de perspectivas diferentes para organizar o evento. Contudo, a programação pretendia priorizar o interesse dos surdos. Foram dois dias de palestras, oficinas, relato de experiências e outras atividades que envolveram surdos e ouvintes, pais, alunos, profissionais da educação e intérpretes. Em 2003 e 2004 foram realizados o II e o III Seminário: alunos surdos e a escola, tendo como tema central o tratamento das diferenças. A proposta de discussão centralizou as políticas de inclusão nas escolas regulares, tendo a participação e relatos de mulheres, negros, homossexuais e deficientes19 físicos, além de outras práticas relacionadas ao tema. Nesse período, eu já estava fazendo disciplinas do Curso de Mestrado da Faculdade de Educação da UFPEL, na Linha de Pesquisa Currículo, Profissionalização e Trabalho Docente, que tratava sobre currículo, identidade e diferença. Ainda como aluna especial sabia da dificuldade que encontraria para 18 Curso de capacitação na área da surdez. 2002. 19 O termo deficiente foi utilizado por ser a nomeação oficial atribuída aos cadeirantes, cegos, surdos e outros. 29 conseguir orientação em uma área da educação ainda pouco problematizada/investigada na universidade. Entretanto, tinha convicção de que um dos caminhos que poderiam contribuir na minha trajetória de educadora e na história da educação de surdos era a pesquisa. Estudar as identidades surdas relacionadas no contexto escolar de Ensino Médio e Curso Normal significava atentar para uma situação pouco explorada no quadro geral da Educação no Brasil neste momento, exigindo os olhares pesquisadores. A leitura de alguns trabalhos de pesquisa nessa área foi especialmente importante para este trabalho, pois seus autores utilizaram experiências surdas e ouvintes do CMP. Em 2002, a Assistente Social Édina Vergara Fagundes concluiu o seu trabalho de pesquisa sobre a inclusão do estudante com necessidades especiais na escola regular. Entre os sujeitos entrevistados, uma era a coordenadora da Educação de Surdos do CMP da época. Na ocasião, a referida coordenadora referiu-se ao processo de inclusão como: “um grande desafio, a cultura e a identidade do surdo, eu acho que é o maior desafio dentro da escola que sempre a gente tem esse receio e eles como muito politizados... (P. E. M – a professora)” (p.85). O trecho visualiza um sentimento que necessariamente avisa mudanças, considerando que desafios pressupõem ações. Além disso, entendo particularmente significativa a designação “muito politizados” atribuída aos surdos, uma vez que concorda com a versão utilizada nesta pesquisa. Em 2003, alunos surdos do mesmo Colégio foram alvo de interesse da psicóloga e mestre em educação Amélia Rota Borges. O objetivo da sua pesquisa era saber como os alunos surdos incluídos na rede regular de ensino percebiam o processo de inclusão. Por coincidência um dos sujeitos da pesquisa de Amélia também foi sujeito deste estudo, propiciando uma análise comparativa dentro da análise geral das narrativas dos alunos envolvidos na minha pesquisa. Embora a problemática discutida no trabalho da Amélia tenha sido a inclusão, diferente do meu foco de pesquisa, algumas questões levantadas pelos surdos correspondem ao perfil questionador que hoje representa uma parte da história de luta dentro da escola. Como por exemplo: 30 Vocês têm que pensar: O que vocês gostariam que tivesse na escola? Gostariam que tivesse mais surdos? Mais intérpretes? Pensem o que a escola poderia ter? Por exemplo, lá no colégio tem aula de música, surdo ouve música? Não, né? Então como poderiam ser as aulas de artes? O que vocês acham que poderia ter em uma escola para que os surdos se sentissem melhor? Mais comunicação em LIBRAS? Eu não sei. Vocês têm que pensar! O que, para vocês, falta na escola? Como seria uma escola boa para os surdos? (Aluna A, p.94). Essas palavras revelam a grande ansiedade e a responsabilidade de uma surda que quer arrancar pensamentos dos colegas e provocar reflexão. Esse modo de fazer as coisas querendo interferir no currículo escolar faz parte de uma estratégia política da comunidade surda no Colégio, provocando o olhar indagador dos próprios surdos. Portanto, as mãos que falavam naquele episódio são as mesmas que hoje marcam a posição de confronto dos surdos no CMP. São as mesmas que interferem no processo de inclusão que se desenrola na história de luta dos surdos. Estudar as identidades surdas é uma forma de intrometer-me nas narrativas dos surdos, analisando-as e interpretando-as conforme a minha própria vivência ouvinte, posição política e visão de educação. É engajar-me em uma luta que não é minha. Entretanto, é possível contribuir nessa luta se concordo com a perspectiva que entende as identidades se constituindo nas relações com outras pessoas. 1.1 A Abordagem Teórica do Estudo Os diálogos com as leituras que me fizeram refletir sobre a constituição das identidades surdas se comprometem com a visão do sujeito em construção, dentro do processo de identificação cultural e social. Essas identidades não existem naturalmente, a idéia de surdez não nasce com a criança surda, portanto as ações sociais e culturais é que produzem o indivíduo surdo, assim como produzem toda a sorte de indivíduos. O surdo foi criado a partir de representações que apenas fazem sentido dentro de uma cadeia de significados e os sentidos da surdez são matéria das relações porque afetam os modos de vida dos surdos. Como diz Carlos Skliar: 33 As identidades são criadas a partir de uma relação de cumplicidade entre representação e poder, tornando-se importante saber sob que ponto de vista olhamos essa relação. Neste caso, opto pelo olhar foucaultiano, que não vê o poder como algo fixo, pertencente a alguém ou a grupos; ele não parte de nenhum centro, mas permeia todas as relações, estando em toda a parte. Além disso, se relaciona com o saber em uma situação de dependência, portanto, o poder produz saber assim como o saber expressa uma vontade do poder. Esse sujeito, que não existe fora das relações de poder, funciona dentro de estruturas articuladas a partir de verdades regulamentadas pela sociedade. Portanto, me interessa refletir sobre os efeitos de verdade produzidos pelo poder, e de que regras de direito as relações, que são múltiplas, se apropriam para criar novos discursos que caracterizam o corpo social. Nessa perspectiva, o poder está imbricado em relações de dominação, não o poder do Estado, nem o do mais forte sob o mais fraco, mas aquele poder que transita claramente em todas as relações em qualquer geografia humana. É um poder que circula e muda de direção, desestabiliza e cria novas formas de sujeição sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro, elaborando novos discursos que constituem novos efeitos de poder (FOUCAULT, 2002b). O sujeito produzido nessa relação de saber-poder é produto de discursos que criam verdades, como os currículos escolares, que são organizados a partir de construções históricas que instituem quais conhecimentos deveremos nos apropriar. Nessa perspectiva, o discurso pós-estruturalista questiona o processo pelo qual algo passa a ser considerado como verdadeiro. Se os discursos são tomados como verdades na medida em que se repetem os enunciados, parece que voltamos ao caráter maleável das concepções sobre surdez, educação, diferença, normalidade, identidade etc.. Nesse caso, as práticas discursivas têm a ver com a relação do sujeito com o meio, como indicador de verdades. A partir dessa relação criam-se as subjetividades que naturalizam as formas de ver os indivíduos. As percepções que as pessoas têm de si mesmas estão implicadas na visão do outro. As nuances que implicam na constituição das 34 identidades são constantemente colocadas em dúvida para que possamos saber quais os interesses que estão sendo arrolados nessas relações. Para refletir sobre a construção das identidades surdas subjetivadas no currículo escolar, optei por fazer uma retrospectiva passando pelos estudos de Stuart Hall (2003), com o intuito de reconhecer os sujeitos da minha pesquisa dentro dos discursos que os distinguem no decorrer da história. Os sujeitos da pesquisa não serão estudados em sua representação iluminista, uma vez que essa representação estática do homem, dotado de um núcleo interior, se desenvolve ao longo da sua vida, engessando qualquer possibilidade de deslocamento identitário. Também não pretendo enxergá-los sob uma ótica sociológica, como aquele que, consciente da complexidade do mundo, perde a autonomia, a unicidade e continua identificado a partir de uma suposta essência, do eu interior, para se formar na relação com outras pessoas. Este estudo vai observar os sujeitos rompendo com a idéia de estabilidade identitária, considerando-a fragmentada e em constante transformação, de acordo com as representações incorporadas nos sistemas culturais em momentos e espaços diferentes (HALL, 2003). Essas imagens do sujeito estão sendo constantemente ressignificadas, sucessivamente multiplicadas e temporariamente deslocadas em diferentes direções. Elas vêm se opondo a uma existência supostamente real do eu. Assim, a análise que faço da construção das identidades surdas tem a ver com as posições que se alternam nas relações entre surdos e ouvintes, disputando interesses particulares ou coletivos. No processo de interação esses sujeitos, (e)feitos da linguagem, participam da experiência de inclusão que associa poder e saber tomados como objetos de representação no processo de construção social, submetido aos desdobramentos históricos que anunciam perturbação nas instituições educacionais. 2 UM OLHAR ATRAVÉS DO TEMPO – A SURDEZ E A EDUCAÇÃO DE SURDOS20 Ao escrever este capítulo recorri inicialmente aos dados encontrados nos livros que se preocuparam em situar a história da educação dos surdos21 dentro da história da humanidade, citando épocas e episódios que tiveram a oralização22 como centro de discussão. Os escritos davam conta de pensamentos, idéias, experiências e ações de ouvintes que, de certa forma, conduziam os destinos dos surdos. Embora o primeiro parágrafo deste capítulo coloque os surdos na condição de coadjuvantes, não pretendo dar a este texto um tom melancólico que impeça de desenhar outros perfis de surdos, em formas mais agressivas ou corajosas. Se a história não registrou com destaque as palavras e ações desses indivíduos, certamente as suas lutas movimentaram e frustraram muitas das investidas ouvintes em que prevalecia o valor da cultura ouvinte. Um olhar sobre a surdez e a educação de surdos através do tempo teve como objetivo buscar um diálogo com um passado que necessariamente interfere na vida dos sujeitos da minha pesquisa. As representações da surdez, ao longo do tempo, têm sido motivo de discussão nas conversas de alguns surdos que tomam a história como referência de épocas que, embora distantes, carregam questões 20 Sobre a educação de surdos Carlos Skliar faz uma análise bem interessante no livro: ”La educación de los sordos. Uma reconstrucción histórica, cognitiva y pedagógica”, citado nas referências. 21 As informações coletadas sobre a história da educação de surdos são anotações de participação em seminários, em cursos de capacitação e no curso de Especialização em Educação de Surdos. Entre elas a revista Arqueiro vol 9, do INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos), 2004. 22 Considero a oralização como centro de discussão porque em todos os momentos da história o foco de interesse foi a valorização da língua falada. 38 A língua de sinais teve a sua importância até que em setembro de 1880 se realizou o II Congresso Mundial de Professores de Surdos em Milão, Itália. O fatídico encontro reuniu um grande número de ouvintes que defendiam a superioridade da língua oral em detrimento à língua de sinais, decretando que a língua oral deveria ser a única forma de comunicação e ensino dentro das escolas para surdos. Embora houvesse a presença de surdos no evento, eles não participaram da sessão final de votações; quanto a este fato há controvérsias a respeito dos motivos que os teriam deixado de fora das discussões num momento tão importante. Desde então prevaleceu o uso do método oral em quase todo o mundo, praticamente até nossos dias. O uso da língua de sinais foi proibido nas escolas especiais, desrespeitando qualquer possibilidade de comunicação gestual que pudesse ser experimentada pelos surdos. As narrativas de alguns dos ex-alunos do CMP educados por esse método, mostraram os castigos que recebiam na escola e em suas casas por insistir no uso da língua de sinais. A idéia passada para a família era de que o uso dos sinais dificultaria o treino da oralização e, portanto, a aprendizagem de seus filhos seria prejudicada. Os relatos desses alunos nascidos nas décadas de 1970 e 1980, trazem um passado distante para bem perto de nós, intensificando a luta dos surdos pelo reconhecimento da LIBRAS, pois foi através dela que o surdo adquiriu outros direitos. Pode-se dizer que a história da educação de surdos no Brasil é recente no contexto geral. O seu principal personagem não foi um brasileiro e sim um francês surdo, Eduard Huet.. O francês formou-se professor e emigrou para o Brasil em 1855, sendo apoiado por D. Pedro ll fundou o Instituto Nacional de Surdos Mudos no dia 26 de setembro de 1857, no Rio de Janeiro. A primeira escola de surdos tem em seu registro os primeiros alunos surdos e surdas, a esposa de Huet como responsável pelo cuidado das meninas. Apenas anos depois, já com a saída de Huet da escola, fecharam o internato feminino, permanecendo apenas os meninos. Vinham surdos de todos os pontos do país, e muitos eram abandonados pelas famílias. Foi a primeira escola brasileira a usar a língua de sinais na metodologia de ensino, o mesmo método do abade L´Epée. Entretanto, após o Congresso de Milão, em 1911, passou a adotar o oralismo puro. Em 1931, foi re-criado o externato feminino com oficinas de costura e bordado. Em 06 de junho de 1957, passou a se 39 chamar Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Atualmente o INES atende em torno de seiscentos alunos da Educação Infantil até o Ensino Médio. A partir da década de 1960, marcada pela luta pela aprovação da LDB e pela organização de um ensino unificado em todo o país, as preocupações ligadas à educação dos surdos passaram a ser pensadas como forma de inclusão social. Sobretudo, o interesse nesta área permanecesse relacionado à necessidade de oralização dos surdos, pois, ainda hoje, a oralização tem como justificativa a inclusão na sociedade. O importante é que este e outros assuntos vêm sendo discutidos por diferentes educadores, lingüistas, sociólogos e pela comunidade surda. Neste contexto, a Declaração de Salamanca25 é considerada um marco para as políticas de inclusão que, necessariamente, têm em seu contexto a educação de surdos. Embora o conteúdo específico sobre a educação de surdos tenha uma parcela mínima de discussão, este documento tem sido de grande importância para os surdos, acredito que por razão da sua importância no cenário global e, na medida em que oportuniza debates sobre as questões que interessam aos surdos. A Declaração de Salamanca é também um artefato de reflexão e avaliação da educação de surdos dentro das políticas de inclusão. Os estudos sobre surdez, linguagem e educação, a suposta garantia do direito de todos à educação e a propagação das idéias de normalização e de integração das pessoas com necessidades especiais fizeram com que as crianças surdas fossem encaminhadas para as escolas regulares. Neste cenário, as políticas de inclusão têm sido instrumentos de luta nas discussões a cerca da educação de surdos, que não se restringem aos grupos de ouvintes, mas necessariamente são invadidas pelas opiniões, questionamentos e reivindicações dos surdos. As Secretarias Estaduais e Municipais de Educação passaram a coordenar o ensino das crianças com necessidades especiais, criando salas de recursos e classes especiais para surdos. Esses acontecimentos, que pretendiam garantir os 25 Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Prática em Educação Especial, documento das Nações Unidas, de 1994. 40 direitos dos cidadãos, fizeram com que os surdos passassem a reivindicar o reconhecimento e respeito à língua de sinais, qualidade do ensino, acesso aos meios de comunicação, serviços de intérpretes etc. Em 1977 foi fundada a Federação Nacional de Educação e Integração de Deficientes Auditivos (FENEIDA). Entretanto a representatividade da entidade estava comprometida porque sua diretoria era composta por ouvintes. Contrariados com a situação, formou-se uma comissão de luta pelos direitos dos surdos, organizada por um grupo de surdos que buscavam a participação nas decisões da diretoria. Em 16 de maio de 1987, em Assembléia Geral, a nova diretoria reestruturou o estatuto da instituição que passou a se chamar Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS). A FENEIS trabalha no sentido de garantir os direitos culturais, sociais e lingüísticos da comunidade surda, tendo como uma das principais bandeiras o reconhecimento da cultura surda perante a sociedade. A Federação é membro da WFD que representa os surdos em organizações mundiais como a ONU, UNESCO, OEA, OIT. Em outubro de 1993, reuniram-se surdos de todo o país na FENEIS e votaram para eleger o nome da língua de sinais do surdos do Brasil – a LIBRAS. O reconhecimento oficial da língua brasileira de sinais – LIBRAS – aconteceu em 24 de abril de 2002, como meio legal de comunicação e expressão, como sistema lingüístico, próprio de comunidades de pessoas surdas do Brasil. No ano de 1996, a PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) em Porto Alegre, o grupo do Dr. Antonio Rocha passou a desenvolver pesquisas na área da língua escrita de sinais - o SignWriting26 - enquanto sistema escrito de sinais usado através do computador. O trabalho que está sendo desenvolvido no sentido de criar a língua escrita dos surdos é realizado por Rocha e a surda Marianne Stumpf. O acompanhamento deste estudo é feito pelo surdo Diogo Madeira, com projeto na Universidade Católica de Pelotas. 26 O SignWriting foi criado pela Valerie Sutton em 1974. Valerie criou um sistema para escrever danças e despertou a curiosidade dos pesquisadores de língua de sinais dinamarquesa que estavam procurando uma forma de escrever os sinais. Acesso pelo site: <www.signwriting.org>. 3 AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS OFICIAIS E A QUESTÃO DA INCLUSÃO 3.1 Discurso de Inclusão O século XXI tem sido um tempo de rupturas nos sistemas mais ajustados da sociedade do Brasil e do Mundo – a família e a escola. A distância temporal nos afasta do rigor social da Antigüidade que deliberava sobre os corpos imperfeitos dos indivíduos, condenando-os à morte ou à exclusão por afastamento do convívio social. “A contemporaneidade nos apresenta um cenário de controle mais sutil, em que delicadeza e bondade – tolerância – são estratégias de captura de corpos, no qual são examinados e classificados os grupos de pessoas diferentes, através do comportamento, da forma, da cor, da língua e, de maneira geral, daquilo que destoa dos padrões da normalidade.” A discussão que me proponho a fazer neste capítulo vai tratar especificamente da entrada dos alunos surdos na escola regular de ensino, da inclusão como situação que leva a criação de novas identidades. Estes sujeitos pertencem a um grupo de minorias28 que tenciona espaços de significação, luta pelo reconhecimento da sua cultura e pelo direito à diferença numa sociedade supostamente mais flexível em suas doutrinas. A própria condição de ambigüidade nas relações entre aqueles caracterizados pela normalidade e os desajustados afeta a racionalidade da vida social. 28 Os grupos minoritários aos quais me refiro nesse texto, são grupos discriminados pela sua história, raça, etnia, classe, gênero, credo, língua etc.. 44 Novos enunciados são elaborados a partir dos discursos que pregam a justiça social entre eles, a inclusão nas escolas regulares fazendo parte de uma cadeia de intenções embutidas no discurso neoliberal o qual tem como pano de fundo a utilização do trabalho de indivíduos portadores de alguma deficiência. Portanto, a inclusão apresenta o sujeito ao mundo, na sua discrepância física, moral, econômica, sexual ou intelectual, a partir de ações que produzem os sujeitos funcionais. Neste caso, a representação dos portadores de deficiência vem acompanhada de discriminação e preconceito pelo fato da sua identificação aparecer associada a algum mal. No processo de inclusão, a deficiência está sendo narrada segundo o olhar de quem a quer representar. Sejam olhares surdos ou ouvintes, em cada espaço de relação são designadas as deficiências de acordo com as convicções, as leis ou as convenções criadas a partir do referencial da normalidade. Neste caso, o discurso da igualdade entre surdos e ouvintes pode funcionar como perda para os surdos num plano de comparação em que o ouvinte seja a referência. Contudo, a orientação que chega às escolas é o tratamento da igualdade, a mercê de qualquer interpretação que possa servir ao olhar de quem recebe os surdos. Além disso, a escola deve atender às necessidades educacionais de seus alunos prevendo a formação integral do indivíduo deficiente. Nesta perspectiva, suponho que, nas relações de pretensa igualdade, são criados novos valores de justiça, regras, normas, direitos, representações e significados que passam de um estado de guerra para a harmonia, de marginalidade para disciplina, de castigo para tolerância, de exclusão para inclusão. Certamente, são muitas as vozes que constituem as estratégias de controle e regulação em nome da igualdade, fraternidade e solidariedade, capazes de inventar o prazer e a felicidade nos corpos dos marginalizados quando são convocados a fazer parte de um contexto social que se quer renovado. Esse movimento faz com que a beleza, o jogo, a riqueza, a maldade e a bondade ganhem uma importância cultural imaginada no olhar dos que cobiçam a normalidade. Neste contexto, a inclusão é um processo de construção social como estratégia da linguagem que universaliza, humaniza e produz cidadãos responsáveis 45 segundo as regras da sociedade. Deficientes ou normais, os sujeitos são partes do processo de civilização caracterizado conforme a época e sob influência cultural do meio. Este é um processo dinâmico que se manifesta através dos discursos que indicam as condutas corretas e o corpo adequado a ser conquistado pelos indivíduos. Tomo as práticas discursivas como ações sociais e culturais que circulam e se (re)produzem nas diferentes instituições: famílias, escolas, associações, universidades e outras. Pode ser que o processo de re-construção dos surdos se paute na proximidade/ semelhança com as características ouvintes. Esta idéia estaria comprometida com o desejo dos próprios surdos e de suas famílias de se apropriarem do status e poder da cultura ouvinte. Neste caso, a inclusão aparece como uma forma dos surdos se apropriarem dos bens materiais e intelectuais reservados aos ouvintes, ajustando possíveis deficiências às características da normalidade. Tal reflexão corresponde ao pensamento que leva o sujeito a buscar, nos discursos de inclusão, as verdades que funcionam de acordo com o olhar de quem governa, utilizando técnicas e procedimentos eficazes na obtenção do estatuto de verdade (FOUCAULT, 2002b). Entre as estratégias de governo para melhor governar estão os meios de comunicação de massa29, que multiplicam os olhares para a deficiência, para a inclusão, para a solidariedade, para as diferenças, para a tolerância, para o outro representado e significado em um contexto global. O governo de si mesmo é o caminho mais eficaz de conquista do outro, é a independência controlada, é o espaço aberto que limita, é o desejo que empurra para a normalização. No meu entendimento, as políticas de inclusão apenas usam o discurso fraternal que pretende reverter a situação criada pelo abandono, ignorância ou injustiça social simplesmente colocando os surdos na escola regular. Na verdade, a inclusão é uma das estratégias de governo de si mesmo porque provoca no 29 Penso que a mídia é uma estratégia de controle, tendo a televisão como meio de comunicação de maior efeito “lingüístico”, a qual entra na luta pela cidadania e pelos direitos iguais na forma de inclusão. Na TV aparecem pessoas chamando os surdos para a escola dos normais, usando a língua de sinais como prova de que, além da escola estar aberta para todos, reconhece e aceita as diferenças. Entendo esta prática como estratégia do governo para melhor governar. 48 importância de uma educação adequada aos deficientes, reafirmando um compromisso de educação para todos. Embora a educação de surdos conste apenas no artigo dezenove, este documento é um dos referenciais de luta pela inclusão dos surdos nas escolas regulares. Alguns dos alunos surdos do CMP têm conhecimento da existência deste texto que fala do respeito às diferenças como princípio de melhores condições de ensino, considerando que: Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e situações individuais. A importância da linguagem de signos como meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso à educação em sua língua nacional de signos. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais e unidades em escolas regulares (SALAMANCA, 1994, art. 19). No trecho, o signo de maior importância da cultura surda – a LIBRAS – está sendo reconhecido nas rodas de discussão internacional com relevância no seu reconhecimento e aplicação. Este fato tem representação de força da cultura surda como forma de indicação de valores e características legítimas da comunidade surda. Embora o documento tenha em seu contexto geral o tom da generosidade e da complacência, próprios da educação paternalista, interfere positivamente nas práticas da inclusão quando valoriza a língua dos surdos. Este documento foi motivo de análise porque tem significado importante para os sujeitos da pesquisa. De alguma forma ele responde a certas expectativas dos surdos quando cobra respeito aos portadores de deficiência. O respeito aos surdos se traduz, neste caso, na orientação sobre a inclusão dos surdos nas escolas regulares com atendimento adequado às suas características. A Declaração, de alguma forma, tira os surdos da escola especial que representa a anormalidade, a deficiência e, portanto, a exclusão da vida social. Ao mesmo tempo, autoriza os surdos a participar ativamente do contexto escolar ouvinte, usufruindo as supostas vantagens representadas na escola regular. 49 3.3 A LDB e a LIBRAS: dilemas vividos pela escola Nos documentos oficiais as pessoas representadas por anomalias, desvio ou qualquer característica física que as diferencie do padrão de normalidade aparecem dominadas pelos processos de simplificação, de generalização, de homogeneização. Entre estas pessoas estão os deficientes auditivos, sujeitos ao processo de normalização através das políticas de inclusão. De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação do Brasil (LDB – Lei 9394/1996)31, em seu capítulo V, que define a Educação Especial como modalidade escolar para educandos portadores de necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino (artigo 58), estão previstos serviços de apoio especializado na escola regular para atender às peculiaridades desses alunos. A Lei estabelece que os sistemas de ensino devem assegurar, entre outras coisas, professores especializados ou devidamente capacitados para atuar com qualquer pessoa especial em sala de aula. O discurso sobre a inclusão está amparado em dois pontos: “escola para todos” e “qualidade na educação”, congregando os governos a adotarem “o princípio de educação inclusiva em forma de lei ou de política, matriculando todas as crianças em escolas regulares”. Diz que: “aqueles com necessidades educacionais especiais – deficientes – devem ter acesso à escola regular que deveria acomodá-los dentro de uma pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades” (LDB – Lei 9394/1996). Entretanto, ao reproduzirmos o slogan “escola para todos” estaremos dizendo que a escola é para todos, mesmo para aqueles que destoam do conjunto, que estão à margem, que são avulsos. Contudo, marcam o espaço com sua presença, às vezes, estranha, exótica, menor, mas sempre necessária para que nos tornemos mais humanos, para delimitar um espaço que divide normal e anormal. O dilema vivido nas escolas que recebem estas pessoas inclui dificuldades que precisam ser vistas e enfrentadas no dia-a-dia. As diferenças são negociadas, 31 O documento pode ser encontrado em www.google.com.br, LDB-Lei 9394/1996. 50 individual e coletivamente por meio das relações que se conectam através dos diálogos, das divergências e dos silêncios. Contudo, o direito à inclusão traz o outro – surdo – para perto de nós – ouvintes –, para o espaço pretensamente puro, distinguindo esse outro do mesmo. Na invenção moderna da escola, a norma vai corrigir e disciplinar o “monstro”, o “desvio”, o “estranho” para torná-lo mais próximo da normalidade, para livrá-lo do mal que o habita, como “portador das falhas sociais” (SKLIAR, 2001, p.124). Mas quem define o que é anormal? Que discurso produz a normalidade? Nas relações entre grupos e indivíduos vão sendo criadas as diferenças projetadas a partir do padrão que institui a normalidade. Pode-se dizer que os conceitos de anormalidade são construídos nos grupos, sem que isso venha a exprimir uma lei da natureza (VEIGA-NETO, 2001). Os surdos não são naturalmente surdos, a representação da surdez vem sendo construída através de um modelo social que procura classificar as pessoas estabelecendo seus lugares dentro de relações binárias. Crianças, jovens e adultos com necessidades educacionais especiais32 são considerados sujeitos anormais que, segundo Veiga-Neto (2001, p.105): “são os mais variados e numerosos grupos que a Modernidade vem, incansável e incessantemente, inventando e multiplicando, (...) os surdos, os cegos, os aleijados, os rebeldes (...) o refugo enfim”. Refugo que, por ora, vem sendo objeto de atenção das políticas públicas de inclusão, as quais são cúmplices de uma gestão política/econômica/social que pretende transformar os “corpos incompletos” em objetos produtivos. Sem dúvida, a Lei, como estratégia de governo, traz em seu discurso a aceitação do outro, reconhecendo suas limitações e possibilidades de conviver em sociedade. Esse discurso se preocupa principalmente em seguir o tratado mundial da paz, em que se inserem todos os atos de cunho humanizador. Assim, são 32 Na Declaração de Salamanca, o termo “necessidades educacionais especiais” refere-se a todas aquelas crianças ou jovens cujas necessidades educacionais especiais se originam em função de deficiências ou dificuldades de aprendizagem. 4 EDUCAÇÃO E CURRÍCULO: PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS, PODER, DIFERENÇA E MULTICULTURALISMO Problematizar os PCN significa procurar na escritura aquilo que não foi dito, significa buscar contradições no decorrer do texto, implica proximidade com a coisa real e distanciamento das palavras que cativam o olhar romantizado da educação. A crítica que faço a este documento está relacionada principalmente com a universalidade do seu conteúdo como doutrina a ser seguida em todos os lugares sem olhar a quem. É um texto comprometido com a visão humanista que prega justiça, liberdade e fraternidade como algo a ser doado. As palavras do texto não deixam dúvidas quanto à sua opção por uma política do bem comum mostrada através de uma escrita clara e objetiva. Busquei uma leitura bastante crítica, mais do que interpretativa porque não havia formas obscuras de mostrar o controle e a sujeição às quais estamos expostos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)35 se constituem em mais um dos supostos compromissos governamentais na área da educação sem que a comunidade tenha discutido as especificidades da sua região. Por mais que se tenha certa autonomia nas escolas, os parâmetros são os mesmos em locais e espaços diferentes. Entretanto, o texto dos PCN estabelece as metas do ensino no Brasil como forma de unificar os currículos. São os parâmetros que vão nortear o trabalho dos professores em suas salas de aula, apontando para exercícios de cidadania voltados para o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes, jovens e adultos. 35 Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): Temas Transversais, Brasília, 1998. 54 O documento traz em seu contexto mais amplo as formas de governar para uma educação ética, justa e solidária, respeitando todas as pessoas independentemente da raça, religião ou situação econômica. Os pobres e os deficientes são incluídos na sociedade a partir da aquisição dos direitos e os deveres próprios de qualquer cidadão. Nessa perspectiva, os PCN elegeram alguns princípios básicos para orientar a educação escolar, baseados no texto constitucional. Os princípios são: “Dignidade da pessoa humana; Igualdade de Direitos; Participação; Co-responsabilidade pela vida social” (PCN, 1998, p.21). Procurando ver os retratos dos alunos surdos no documento, escolhi a parte que trata sobre os temas transversais36. A educação de surdos pode ser entendida no contexto da transversalidade no capítulo que trata da pluralidade cultural, já que o tema proposto busca explicitar a diversidade étnica e cultural que compõe a sociedade. O tom da escritura é de respeito às diferenças, no sentido de aceitar que elas existem e que devem ser respeitadas. O ponto que trago para reflexão e crítica é o tratamento da diversidade e da diferença. Nele, a diferença faz parte do contexto da diversidade como uma variedade dos comportamentos dos sujeitos, sem que tal característica pudesse se constituir numa outra forma de criar identidades independentes da identidade normal. Seguindo esta interpretação, os surdos ocupam espaços reservados àqueles que precisam de compreensão e respeito porque também fazem parte de uma comunidade nacional. De acordo com o documento: “Reconhecer e valorizar a diversidade cultural é atuar sobre um dos mecanismos de discriminação e exclusão, entraves à plenitude da cidadania para todos e, portanto, para a própria nação“ (PCN, 1998, p.122). Portanto, segundo o texto, a escola pode desempenhar um papel importante na luta contra a exclusão e conseqüentemente na construção de uma sociedade mais justa aceitando a diversidade humana. A escola aparece como responsável pelo ensino e conservação das regras de convivência que fazem com que as pessoas se respeitem, possam se constituir enquanto sujeitos individuais e também 36 Temas Transversais: as questões da Ética, da Pluralidade Cultural, do Meio Ambiente, da Saúde, da Orientação Sexual e do Trabalho e Consumo. (PCN. 1998, p.17) 55 do outro constituído em sua alteridade. Seguindo este pensamento, a constituição do sujeito remete a situação de estabilidade, de busca e aceitação de uma identidade que o justifique. Apesar do discurso da diferença estar presente em alguns momentos do documento, considero que a perspectiva tradicional da educação instituída no texto carrega o peso do preconceito e da discriminação. Os discursos diferença e diversidade são tomados sob uma mesma ótica, ambos trazem os ranços da benevolência, da caridade e da tolerância, produzindo identidades fixas e estáveis. No entanto, os conceitos de diversidade e diferença que utilizei nesta pesquisa compreendem que diversidade e diferença assumem posições diferentes social e politicamente. O discurso da diversidade está associado ao movimento do culturalismo que “em geral, utiliza-se o termo para advogar uma política de tolerância e respeito entre as diferentes culturas enquanto que a diferença se constitui num processo social vinculado à significação” (SILVA, 2000, p.42). Portanto, a diferença assume a presença simbólica construída nas relações sociais e o reconhecimento da autonomia de um grupo identificado culturalmente, e a diversidade toma o sujeito a partir de suas deficiências. Atualmente, o discurso da tolerância substitui os sentimentos de vergonha e medo que em outros momentos da história separava os monstros da sociedade civilizada. Os deficientes viviam escondidos em suas casas, em asilos, internatos ou em qualquer depósito que os mantivessem afastados do convívio social. Hoje em dia são poucos os casos de expulsão física das pessoas com deficiência ou doença grave; em vez disso, a sutileza da exclusão social pode ser identificada no próprio discurso de tolerância que quer fabricar aluno-cidadão. Nas escolas, os educadores se vêem às voltas com um pretenso cidadão desenhado nos PCN, por mãos que acreditaram poder fazer a travessia destes sujeitos para uma escola mais humana que oportunizasse a igualdade de direitos. A chamada “escola para todos”, por sua vez, sobrevive em meio à crise identitária- educacional que afasta a imagem do sujeito centrado, neste espaço ele pode ser reescrito a partir da produção de novas representações. Segundo Silva: 58 No início do 1º capítulo, o texto dos PCN diz que, ainda hoje, a nossa sociedade é uma sociedade marcada por relações hierarquizadas e por privilégios que reproduzem e mantêm um sistema de desigualdade, injustiça e exclusão social. Concordo com esta idéia, especialmente quando se concretizam situações de inclusão que não consideram as diferenças individuais e de cada grupo, tratando a todos como se as posições, papéis e funções dentro de um espaço específico não tivessem implicação nas relações de poder. Como se fazer parte de uma minoria dentro da escola não fosse motivo de preocupação e luta. Assim, as palavras a seguir, copiadas do documento apenas fazem sentido nos discursos da diversidade. Portanto: Igualdade de direitos: refere-se à necessidade de garantir a todos a mesma dignidade e possibilidade de exercício de cidadania. Para tanto há que se considerar o princípio de eqüidade, isto é, que existem diferenças (étnicas, culturais, regionais, de gênero, etárias, religiosas, etc.) e desigualdades (socioeconômicas) que necessitam ser levadas em conta para que a igualdade seja efetivamente alcançada (PCN, 1998, p.21). A busca da igualdade é a bandeira do plano de inclusão e condiz com a idéia de justiça social pautada na moralidade nascida de formulações humanitárias advindas na simbologia eclesiástica. Sobre o direito e a norma na educação pode-se interpretá-los numa ótica que versa sobre o compromisso com o aprofundamento do caráter humanista da escola. Uma humanidade que prega o “direito natural”, que significa “uma espécie de moral, um pequeno número de regras de conduta, pretensamente universais, cuja sanção o direito positivo deveria ser e que ele próprio deveria respeitar” (EWALD, 1993, p.63). O discurso sobre direito e norma como processo fundamentalmente político adota uma linha de ação que mexe com o interior das pessoas, fomentando sentimentos de fraternidade, compreensão e tolerância. A escola e todos que dela fazem parte se tornam os tutores dos incluídos, e no final, todos fazem parte da aldeia global. Nesse cenário, a Organização das Nações Unidas (ONU), por intermédio de suas agências, tem procurado trazer contribuições para que se desenvolva uma Cultura da Paz, no âmbito da escola, baseada em trabalhos sobre tolerância, do respeito mútuo e da solidariedade; esse pensamento aparece refletido 59 nos enunciados que aparecem nos PCN, como: “dignidade e igualdade humana, mais participação e responsabilidade” (1998, p.124). Essas idéias formam o documento que circula nas escolas em busca de olhos que os tornem sinais vivos de um poder-fazer. Rompendo novas fronteiras, o Estado engendra elementos que perpassam os espaços escolares de forma sutil e muito eficaz quando mexem com as emoções dos personagens que compõem as instituições. O uso de tal artifício leva às intervenções politicamente corretas como, por exemplo, a inclusão de pelo menos um negro e um deficiente nas salas de aula, desconhecendo ou desconsiderando, muitas vezes, as diferenças. Cercar-se de palavras que encaminham nossos pensamentos para a educação de crianças, jovens e adultos surdos significa muitas vezes desacreditar das escrituras bem elaboradas, mas, por horas, crer na materialidade que inclui as vozes dos surdos que sabem rasurar as possíveis descrições que fazem deles. 4.1 O que fazem os Currículos? Nós, professores e professoras, estamos vivendo momentos da história da educação que se confunde com a história de nossas vidas, considerando a instabilidade da época atual. Temos que aprender a transformar a nós mesmos, vivendo situações novas que, muitas vezes, se opõem às nossas práticas cotidianas. Temos um currículo de vida extremamente permeável, simbólico e flexível. As âncoras que nos permitiam fazer escolhas entre o bem e o mal estão soltas. Constantemente nos vemos fazendo perguntas e sendo questionados por nossos alunos. O currículo escolar mudou? Sim, ele também faz parte da cadeia de significados que altera os comportamentos das pessoas. Além disso, o currículo não é algo fora de nós, ele é o que temos, fazemos e pensamos, ele é o que escolhem para nós e o que temos que aprender. Assim são os currículos escolares que não se prendem a simples idéia de disciplinas e conteúdos. Eles se articulam através das experiências, dos saberes e narrativas de cada personagem escolar. Os currículos são as linguagens que 60 adotam/criam conceitos a partir de categorias simbólicas que nos permitem dar um sentido ao mundo; dão voz e representam determinados grupos sociais como desejáveis, por isso legitimam quando incluem determinados saberes e excluem outros. Portanto, o currículo é uma prática de representação que se constrói na produção de sentidos e na produção de determinadas identidades. A visão de currículo utilizada nesta pesquisa concorda com a idéia de Silva (1996), quando diz que é a expressão das relações sociais de poder em todas as suas manifestações. O currículo são todas as coisas que dizemos e fazemos, excluímos ou valorizamos dentro da escola. Portanto, ele é a forma organizada de incluir, abandonar ou substituir práticas escolares de acordo com os novos significados culturais e sociais de cada momento da história. Entre as atribuições do currículo está a forma de governar que implica na manutenção do controle e regulação do processo de conhecimento. Atualmente, as estratégias de controle nas escolas são mais insidiosas porque não são ostensivas. Apesar de historicamente ter-se tratado o currículo escolar como um artefato a serviço do conhecimento, nele está inscrita a forma de adequar o aluno às regras de conveniência. Partindo desse pressuposto, os alunos são submetidos à legitimidade do currículo que: Não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal - ele tem uma história, vinculada a formas específicas de organização da sociedade e da educação (SILVA, 1996, p.83). E quem produz o currículo? Não posso fazer uma interpretação do currículo como se ele fosse algo externo a mim e a todos que o produzem. “um currículo é o que dizemos e fazemos com ele, por ele, nele” (CORAZZA, 2001, p.14). Portanto, esse currículo, assim como nós, é um efeito derivado da linguagem que o significa através de representações de mundo e da sociedade, absolutamente comprometidas com o tempo e o espaço onde as coisas acontecem e se modificam. Como diz Sandra Corazza, o currículo... 63 raça negra, caracterizadas com vestimentas afro que normalmente são usadas apenas em rituais religiosos ou festivos. Numa outra cena, surgem da mata índios enfileirados vestidos com roupagem própria de homens e mulheres brancas, fazendo uma coreografia indígena. Nessa primeira página, que trata da pluralidade cultural, vemos registrados os esteriótipos construídos pelos representantes da cultura hegemônica, representando o outro “eu” como um outro construído sempre como déficit, carência, exotismo e insuficiência em relação à “civilização” (SILVA, 1996, p.189), porque estas são as imagens necessárias para que a normalidade branca exista. Sem dúvida, são gravuras que reforçam a imagem folclorizada das culturas, uma vez que remetem aos movimentos do corpo e também à espiritualização. Sem ter a pretensão de fazer análise de imagens, posso dizer que as duas cenas querem limitar os espaços reservados às duas culturas, localizando-as em territórios determinados e determinantes de uma cultura representativa do outro de uma forma que o subordina e inferioriza. Creio que as figuras, enquanto imagens do outro, seriam materiais suficientes para iniciar um rastreamento pelo caminho do (des) respeito ao cidadão. Contudo, as figuras desenhadas e faladas no documento são constantemente recriadas nos currículos escolares através das narrativas da comunidade da qual fazem parte. Os grupos subjugados podem ser introduzidos no currículo também por meio de narrativas dos próprios personagens, que aparecem ativos no processo que constitui subjetividades e ainda nas metanarrativas que trazem imagens do surdo como sujeito incompleto. Nesse sentido, faço um caminho de pensamento sobre o currículo que busca conhecer as dobras que possam dar lugar aos grupos “negados e silenciados no currículo” (SANTOMÉ apud SILVA, 1995). O olhar para o currículo neste estudo entende que a inclusão faz parte de um sistema de significação construído nas relações entre os sujeitos; e elaborado segundo os papéis que cada um desempenha nos espaços em que se movem os alunos considerados normais e os deficientes, os negros, os pobres, os analfabetos, os homossexuais e outros, que representam o obscuro, o estranho, o incógnito. Os 64 filhos de operários e os filhos dos patrões entram juntos nas escolas públicas, obedecendo aos preceitos que regulam o direito à cidadania, sujeitos aos mesmos códigos que vão apartar o “joio do trigo”, ou seja, os alunos bons dos alunos ruins. A seleção é feita a cada avaliação em que os alunos “fracos” não correspondem às exigências de um currículo “forte”, em todos os momentos em que as vivências dos alunos são valorizadas ou ridicularizadas e nas diversas manifestações em que se oponham comportamentos dos desejados ou indesejados. Assim, escola e currículo se valem de temas que se tornaram eixos nos discursos comprometidos com um currículo nacional que se quer aberto e flexível no acolhimento desses alunos que produzem outras formas de poder que se refletem nas rotinas escolares. Esse movimento produz novas verdades transgressoras no formato linear com que se dispõem os aparatos reguladores das condutas docentes e discentes. Para articular melhor as idéias que venho tecendo a respeito das políticas curriculares, especialmente as de inclusão, utilizo palavras de Corazza (2001) quando anuncia que o currículo nacional é uma das formas privilegiadas de controle e regulação, funcionando como princípio e método para racionalizar as próprias práticas governamentais (2001, p.81). O currículo nacional pressupõe uma cultura nacional privilegiada. A cultura mestra, segundo a qual todas as outras devem derivar. Concordo com Hall quando diz que: Não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural? (2003, p. 59). O currículo nacional não poderia existir puramente. Sua relação com os estados permanentes de construção e reconstrução das várias identidades culturais é instável. As diferenças culturais escapam das práticas de regulação que poderiam anular ou subjugar as culturas menores. 65 Todas as teorias, os conceitos, as leis, as intervenções políticas que possam ser referências na construção dos currículos escolares, não tem o poder de esterilizar o dinamismo do currículo, impedindo que as vivências dos sujeitos interpretem e transformem as orientações que chegam às escolas. A cultura não é pura. As formas de viver os movimentos culturais implicados nos currículos dependem dos momentos históricos e das relações sociais que deslocam o foco dos sistemas de representação. 4.2 As Relações de Poder A discussão de poder é o tópico que atravessou a pesquisa em todos os seus momentos: de estudos teóricos, da história, da educação de surdos, dos estudos culturais, das leis, dos discursos, da coleta de dados, dos registros, dos encontros com os alunos, da minha escritura, da narrativa dos alunos, dos olhares que uso na investigação etc. O poder transita em todas as páginas deste trabalho porque ele permeia as relações que se fazem através da história de cada um de nós, uma história individual e coletiva que se desloca e se desdobra num tempo que circula ao redor de fatos e idéias construídas por muitas pessoas. Um poder feito das diferenças e semelhanças, combates e cumplicidades. A diferença, na concepção pós-estruturalista, não é uma característica que nasce com o sujeito, não é intrínseca ao humano, mas é produzida a partir do processo discursivo e só existe na relação do diferente com o não-diferente. Considerando que a relação produz a diferença e que toda relação é atravessada pelo poder, a diferença é uma relação de poder (SILVA, 2001). A condição de incluído/tolerado/respeitado se dá em relações de poder. “O poder é da ordem da relação. O poder liga tanto como opõe (...) O poder poder-se-ia dizer, é sempre relação de relações de poder” (EWALD, 1993, p.13). O poder não se exerce apenas numa direção, ele se alterna em meio a conflitos de ordem técnica, moral, ética, religiosa, emocional que provocam o espírito de luta das alteridades 68 do poder, disputando espaços, criando novas verdades, ajuizando valores, construindo diferenças e questionando semelhanças nos espaços culturais e sociais. Como se todos fossem iguais nos espelhos que refletem a normalidade, jovens surdos se relacionam com a maioria ouvinte marcando a cultura surda nas paredes de casas ouvintes, anunciando os saberes surdos e conquistando espaço social. Os surdos não são apenas hóspedes de domínios alheios. Discutem o não- lugar da diversidade que promove o respeito e a tolerância aos que passam por rascunhos da normalidade. Enfim, se movem as relações de poder no caminho das diferenças, em estradas por onde todos passam. 4.3 A Relação com as Diferenças As políticas públicas promovem a inclusão na área da educação fortalecendo a idéia de que é por meio dela que o sujeito, mesmo fora dos padrões de normalidade, terá as mesmas oportunidades e direitos que os ditos normais. A forma sutil como são difundidas as vantagens que terá o individuo ao ser considerado cidadão escolarizado cria uma situação de cumplicidade entre os parceiros na relação entre os supostos normais e anormais. Esta relação torna-se turbulenta na medida em que as pessoas envolvidas disputam os espaços que conferem direitos a uns e a outros. Na verdade, por mais bem elaboradas que sejam as políticas públicas encarregadas de atrair as pessoas a serem incluídas, alguns homens e mulheres não se acostumam à posição de sujeitos a serem tolerados, por isso buscam o reconhecimento da diferença, enquanto agentes sociais constituídos de subjetividades talvez não-comuns. Nesse caso, a diferença cultural, que identifica grupos com um modo de vida própria, capazes de criar suas experiências e transformá-las, é uma necessidade daqueles que reconhecem os olhares do outro que os desenham de acordo com suas crenças como forma de controle. Nesse cenário, as políticas de inclusão são elaboradas para organizar alguns acontecimentos sociais que sugerem atenção e ações dos governos. As 69 atitudes que implicam inclusão de pessoas consideradas deficientes querem colocar as coisas nos lugares para que o controle continue existindo sob nova roupagem, por isso é importante perceber os movimentos sociais no que se refere aos retratos das diferenças para que os sujeitos a serem re-criados não sejam outros retratos do mal, da doença, da imperfeição etc.. A representação dos surdos passa pela deficiência e chega ao reconhecimento/aceitação da diferença numa perspectiva cultural, considerando que a sua visão de mundo, através da comunicação visual, os faz construir as suas identidades de forma diferente da forma ouvinte. Embora o discurso que os faz surdos seja o mesmo que os reconhece como não ouvintes, os surdos procuram se narrar – constituir a diferença surda – a partir de marcas que não têm referência no ouvir. A perspectiva da diferença se contrapõe à idéia da deficiência quando se concebe o sujeito surdo como alguém que foge da norma que somente o inclui na sociedade a partir de uma visão binária do normal/anormal, concedendo-lhe direitos de deficiente próprios de pessoas necessitadas de amparo legal remunerado ou de abrigos públicos, como por exemplo: salário benefício, transporte gratuito, atendimento prioritário, escolas especiais e outros facilitadores de sua sobrevivência. Tais concessões reforçam a idéia de incapacidade e menos-valia do sujeito discriminado no contexto de maioria aparentemente normal. A questão da deficiência é bastante complexa e distante quando pensamos nos sujeitos que estão longe de nós, que não fazem parte da mesmidade, ou seja, que não vêem o mundo com os óculos semelhantes aos meus. Paradoxalmente, a “deficiência” tem um tratamento simplificado no sistema educacional de ensino quando os alunos são identificados a partir de marcas de insuficiência física, mental, cognitiva, lingüística ou comportamental. A tradução do pensamento que está na sociedade e especialmente na educação aparece nos discursos que buscam criar representações e imagens das pessoas a partir de diagnósticos pré-concebidos. A exemplo dos PCN, a representação deficiente dos sujeitos incluídos está nos textos escritos e nas ações escolares. Está clara nos documentos a concepção 70 da cultura da deficiência, mesmo que maquiada pelos discursos que pregam a autonomia do sujeito a ser respeitado como diferente. Assim, o sujeito é identificado pelo viés alternativo, ou seja, da variedade na diversidade, que se preocupa com o reconhecimento contemplativo e humanista da surdez sem o reconhecimento simbólico que carrega as marcas da diferença . Questiono o discurso da diversidade porque discrimina, criando uma relação de força, de aceitação e de tolerância de alguém para outro, outro menor, pois sempre remete à norma. Este pensamento passa pela representação da diversidade como uma variedade de algo que é completo, é o núcleo, a parte fixa, a regular, a boa, a normal, a medida. A diversidade é a cópia. A idéia de diversidade cultural é perigosa porque discrimina e, ao mesmo tempo, promove a visibilidade do outro como diferente. Diversidade é sinônimo de dessemelhança, de desigualdade, de heterogeneidade, de variedade e de diferença, por isso causa confusão, engana. O problema está no significante da palavra e na prática da diversidade como diferença. O discurso da diversidade compreende uma aceitação mistificada do outro, ela diz, por exemplo, que podes ser surdo, mas não é bom ser surdo. Esta discussão também é uma questão política e uma construção discursiva que pretende debater os modos de inclusão numa perspectiva da diversidade assim como qualquer conceito que se baste. A prática da diversidade pode levar o sujeito a abdicar dos seus valores, da sua língua, da sua história e, inclusive, da sua visão de mundo em função de sua possível inclusão nos domínios da cultura hegemônica. Mesmo em um momento histórico conturbado como o nosso, onde há mais perguntas do que respostas, os indivíduos pertencentes aos grupos minoritários são atraídos pelo imaginário mundo ouvinte que parece oferecer oportunidades ilimitadas. O relacionar-se com as diferenças de forma construtiva, exige reconhecer o outro e respeitá-lo na sua individualidade. Entretanto, esta relação necessita das marcas da visibilidade sobre a coisa que se quer mostrar, por isso cabe aos próprios surdos afirmarem a diferença, demarcando fronteiras dentro das escolas, ocupando os espaços em branco com os sinais surdos, elaborando projetos de divulgação da cultura surda, enfim, é necessário apostar nas operações que impõem a sua cultura. 5 OS SABERES SOBRE AS ALTERIDADES SURDAS Somos personagens de uma época onde parece estarmos vivenciando o caos, o múltiplo, as incertezas, a derrubada daquilo que acreditávamos ser o verdadeiro, que nos fazia sujeitos, que nos identificava na individualidade e no coletivo. Uma época confusa da história do homem, da mulher, das crianças, dos adolescentes, dos velhos e de muitos outros. Em tempos e espaços onde figuras complexas em suas diferenças são produzidas dentro do sistema capitalista, que busca torná-las úteis. Neste cenário, conceitos de diferença, diversidade, cultura, identidade e inclusão se relacionam, assumindo novas representações, constituídas através de novos discursos fabricados por olhares dinâmicos e comprometidos com a sua própria história. No interior dessas histórias, são fabricados os estranhos indivíduos (porque fogem do padrão de normalidade) que se multiplicam, contrariando, de certa forma, a lógica binária criada pela Modernidade, que quer enquadrar os sujeitos dentro da norma, fixando e nomeando os opostos. Assim, na relação entre os que estão dentro e os que estão fora se disseminam as mais antigas relações de exclusão entre os indivíduos. Neste caso, concordo com Duschatzky e Skliar (apud LARROSA e SKLIAR, 2001, p.121) quando dizem: “isto é, a ética perversa da relação inclusão/exclusão” uma vez que fixa as identidades, fabricando os sujeitos assujeitados à norma e garantindo o lugar das identidades estáveis. O outro da relação é sempre o problema, por isso, este sujeito que foi criado através das mais variadas formas de controle e regulação, deve romper com o seu 74 modo de vida. De fato, seu comportamento, seus gostos e características muitas vezes são vistos como falhas pessoais e sociais, deste modo, “para poder fazer parte da diversidade cultural bem entendida e aceitável, deve despir-se, des- racializar-se, des-sexualizar-se, despir-se de suas marcas de identidade; deve, em outras palavras, ser como os demais” (DUSCHATZKY e SKLIAR, apud LARROSA e SKLIAR, 2001, p.124). Ser como os demais significa, em algum momento, estar subordinado a uma cultura oficial representada simbolicamente através de crenças, valores, ética, costumes etc.. Partindo dessa perspectiva, entendo que as alteridades devem ser olhadas através dos mecanismos que as produzem, definindo quem e como são, como são os outros e que lugar devem ocupar. Dentro desta visão, parto do pressuposto de que os outros são a nossa referência, precisamos deles para fortalecer o que somos, quem somos, a partir do que está neles e não está em nós. Essa idéia toma forma quando percebo a minha razão através da loucura do outro, quando no corpo negro se reflete a minha branquitude e, ainda, quando na visibilidade deficiente ganho a certeza da minha normalidade. Essa necessidade do outro muitas vezes tem sido usada como política de discriminação e não como diferença. O discurso da diferença traz as alteridades como são matéria de discussão, crítica, encontros e desencontros com aqueles que poderíamos ser e com outros que não somos; pois, este é um momento de renegociar conceitos históricos, quem sabe modificando as verdades que instituíram o outro como fonte do mal. Especialmente no campo da educação, este tema aparece nos discursos e práticas institucionais através da lógica binária, separando os sujeitos em gavetinhas devidamente identificadas. Uma lógica que aceita os outros como sujeitos plenos de uma marca cultural, representados pelas comunidades homogêneas, vistas dentro de um padrão cultural que as identifica no coletivo, como se todos dentro dela tivessem as mesmas características, os mesmos desejos, a mesma perspectiva de vida, como se todos fizessem parte de uma cultura harmoniosa e equilibrada, o que Durschatzky e Skliar, (2001) chamam de mito da consciência cultural. O sujeito cultural pertencente a grupos sociais minoritários, normalmente não é valorizado fora do seu grupo, já que ele é visto dentro da diversidade que o 75 exclui do centro, da norma, da cultura hegemônica. Essa situação exige do sujeito ações positivas contra os desígnios do poder. Isso implica vencer uma série de obstáculos, e a produção de novos discursos sobre deficiência, deslocando as suas imagens do referencial patológico, e criando maneiras de combater a perversa violência interna que, mais forte que a violência física, faz dos deficientes alguém a tolerar. Esse outro a tolerar aparece como centro de análise no discurso utópico encaixado nas políticas públicas de inclusão, quando proclamam os direitos iguais, abrindo as portas das escolas para todos aqueles que são diferentes na aparência e que de alguma forma marcam sua presença, ora representada como exótica, ora necessária para que nos sintamos mais humanos, ora demarcadora de um espaço que se divide em normal e anormal. Os espaços da educação são divididos com esse outro que no passado foi escondido, ignorado, exilado, morto e agora aparece nos enunciados da televisão sendo chamado a participar das comunidades escolares frente ao discurso das políticas públicas. Estranhamente essa alteridade foge do controle, perturba e ameaça a normalidade, pois é um outro distante do real, supostamente normal; ele é incompreensível e imprevisível; é um outro externo a mim, alguém que não é eu nem nós, mas paradoxalmente pode estar impregnado em mim; um outro que precisa ser corrigido, disciplinado; um outro que deve se tornar o mesmo. Falar do outro é chamar para o campo das discussões as alteridades surdas que, por um grande período, estiveram à margem (na sociedade). É necessário problematizar os discursos que classificam os sujeitos a partir de suas características, de suas diferenças, de sua cultura. O princípio da eqüidade reconhece as alteridades numa ótica excludente, sobretudo se considerarmos os espaços de inclusão sob a ótica da compensação. Por isso, a diferença deve ser um processo de construção das identidades através de mecanismos próprios de cada grupo. 78 desde um ponto de vista único. Ainda segundo este autor, um dos importantes pensadores na área dos Estudos Culturais, as identidades são múltiplas e sujeitas às constantes modificações, dependendo de como são representadas nos sistemas culturais em que se encontram. Nesse caso, o sujeito pode assumir identidades distintas e até contraditórias em diferentes tempos e espaços. Além de descartar a possibilidade de uma essência, Hall (2003) confere ao indivíduo o atributo da transitividade, ou seja, o movimento de ser o outro, que não o próximo, mas ele próprio transfigurado, em consonância com a situação do momento. Ainda, esse processo de construção de identidades se estabelece a partir de relações sociais que contribuem na produção dos sujeitos coletivos. Partindo desses pressupostos, entendo que as identidades são sempre da ordem das relações, estabelecidas a partir de contínuos processos de movimentos entre os sujeitos. Essas relações exteriorizadas no coletivo provocam transformações nas identidades sacramentadas no passado, visto que há um deslocamento do sujeito tanto na sua individualidade quanto no seu lugar no mundo social e cultural. Esses processos de mudança individual e nos grupos sociais, na verdade, representam sujeitos que buscam outras referências que não as amarras que os determinam e classificam como deficientes ou especiais em oposição aos que representam a normalidade. Estes sujeitos nomeados também como diferentes tanto ameaçam e perturbam como são necessários para garantir o que somos. Seja qual for a ordem da relação, estes sujeitos estão tomando um lugar e um espaço que os autoriza a viver a sua própria diferença sem que tenham que abdicar da sua língua, por exemplo. Isso faz com que eu passe a enxergar o surdo como um indivíduo capaz de comunicar-se através de uma língua visual estruturada e complexa, como alguém que tem problemas, dificuldades e alegrias da mesma forma que qualquer outra pessoa. As particularidades de cada sujeito não podem ser atribuídas ao todo, não significa que todos os surdos possuem características idênticas, eles não são portadores de uma identidade surda única e essencial a ser revelada a partir de alguns traços comuns e universais. Além disso, as 79 representações sobre as identidades mudam com o passar do tempo, nos diferentes grupos culturais, no espaço geográfico, nos momentos históricos. Contudo, algumas teorias defendem a idéia de que as identidades surdas são constituídas em torno de uma experiência visual compartilhada, fato que as identifica dentro de um determinado contexto, com o uso da língua de sinais e outras características da cultura surda. Enquanto o ouvinte é identificado como aquele que se comunica através da fala, o sujeito surdo é identificado como aquele que faz uso da visão como meio de comunicação, excluindo qualquer possibilidade de uso do sentido da audição. As identidades surdas emergem justamente nas relações que doravante ocorrem na somatória de vivências experimentadas pelo sujeito surdo (PERLIN, 2001). Embora compreenda que qualquer classificação é problemática, pois pretende fixar os indivíduos, considero importante trazer para esta discussão a posição de Gladis Perlin (2001), quando classifica os surdos em categorias. Entre elas estão as identidades surdas fortemente marcadas pela língua de sinais, pelos costumes, pelos valores, pelas coisas que fazem os sujeitos surdos pertencerem à comunidade surda, assumindo a identidade surda. Estes surdos ocupam um espaço relevante perante a comunidade surda, pois a prática dessa cultura é o que torna viva a luta pelos direitos dos surdos. Em nossa cidade, a Associação de Surdos procura cumprir o seu papel político e social participando em vários segmentos da sociedade e se constituindo em espaço possível de viver a diferença surda. Em outros casos, a classificação gira em torno de identidades em processo de mudança. Tais como: identidades surdas híbridas, diz-se daqueles surdos que nascem ouvintes e, por algum motivo, perdem a audição; são identidades surdas de transição os surdos que nascem em famílias de ouvintes e mais tarde conhecem a cultura surda; aqueles que não aceitam a sua condição de surdo estão na categoria de identidades surdas flutuantes, não raro são representados como deficientes auditivos (DA), pois, normalmente, usam aparelho auditivo na esperança de tornarem-se ouvintes. Também aparecem as identidades surdas de diáspora compreendendo aqueles surdos que passam pela experiência de estar estrangeiro, não por escolha, mas por imposição; ainda existem as identidades intermediárias, 80 geralmente identificadas como sendo surdas, porém, a sua experiência não é somente a visual, uma vez que apresentam alguma porcentagem de audição (PERLIN, 2001). A invenção de nomes que identificam surdos a partir de critérios particulares é matéria a ser estudada em outra oportunidade, entretanto, trazer esta classificação para o meu texto significa dizer que ela existe para os surdos da minha pesquisa, por isso é importante. Achar-se em algum contexto destes é para os surdos encontrar-se em alguma situação que tem a ver com a sua história pessoal. A classificação também pode ser um meio de reforçar e exaltar o perfil do “verdadeiro“ surdo, aquele que assume integralmente a cultura surda: usa LIBRAS, não oraliza, valoriza os costumes dos surdos, gosta de estar com surdos, namora surdos, participa da associação dos surdos, discute e luta pelas questões surdas etc. Contudo, as identidades são várias, mudam e se contrapõem num mesmo sujeito apesar de haver a necessidade de um referencial de identificação, principalmente para os sujeitos que fazem parte da minoria. A idéia vem de narrativa de alunos do grupo de pesquisa que até certa idade pensavam que não existiam outras crianças surdas, pois não as conheciam, ou então, que não existiam surdos adultos porque os adultos que os cercavam eram adultos ouvintes. Nesse momento, em que se discute a construção das identidades surdas de alunos adolescentes, é oportuno chamar a atenção para as leituras que passam por conceitos, determinações e classificação das identidades a fim de evitar que os discursos em torno destas questões engessem o pensamento ouvinte. Sendo assim, a minha proposta de trabalho está amparada no olhar que possibilita ver o outro, a alteridade, como alguém que pode reinventar o viver, modificar o seu ambiente, derrubar mitos, criar novos conceitos e, sobretudo, narrar sua própria história, re- conhecendo o seu corpo, sua língua, seu silêncio e sua alteridade, caminhando por outros caminhos, alterando o curso que os distancia da hipotética civilização ouvinte que também muda o seu curso. Na educação, na vida, na literatura, no cinema, nas artes em geral, encontramos relatos, histórias e imagens da surdez que divulgam, explicam e 83 5.2 Das Personagens - elas estão entre nós Os surdos fazem parte do contexto educacional comum a outros tantos personagens, particularizados por representações diferenciadas, que atravessam os novos espaços, demarcados pela diferenciação que implica na identificação e discriminação de determinadas identidades. Como diz Perlin: O indivíduo surdo faz parte dos movimentos marginalizados. (...) O surdo foi acumulando estereótipos que têm reforçado cada vez mais a hegemonia discriminatória de sua produção cultural. O discurso de poder do ouvinte mantém-se firme e controla estes estereótipos (2001, p.55) Sem dúvida, Perlin (2001), por ser mulher e surda sabe o que significa ser apontada como fraca, pouco inteligente, nervosa, confusa, inferior, deficiente, estranha, etc.. Esse Brasil, esse mundo, esta sociedade em que vivemos discrimina os diferentes do modelo, reproduz comportamentos e ajuíza valores. Todavia, convence, agrega, seduz, satisfaz. Concordo com a autora quando pondera a situação marginal e de subjugação em que se inserem as pessoas surdas. Contudo, percebo o avanço na cidade de Pelotas, especialmente na escola em que trabalho, da qual também fazem parte os alunos pesquisados. Alunos surdos que vão ocupando seus espaços no maior Colégio Municipal da América Latina, sem, contudo, abdicar dos direitos propagados pelas políticas oficiais que, de fato, tornam-se realidades dentro da escola. As lutas são constantes, sim, porém arrastam obstáculos outrora intransponíveis. Esses são os sujeitos da minha pesquisa, resguardando as particularidades. Assim, para desenvolver este estudo que propõe questões da ordem das identidades, entrei no universo escolar de humanos qualificados como normais, lugar por onde passa, quase despercebida, uma pequena população de surdos decididos a fazer do espaço uma conquista, lutando contra o preconceito que no passado os isolava do convívio social. Estes alunos fazem parte de uma caminhada coletiva no universo escolar do qual todos nós somos agentes, seja na realização de seminários ou nas lutas pelos direitos dos surdos dentro da escola, há sempre uma proximidade 84 muito grande entre os alunos surdos e os seus professores, que são continuamente convocados pelas circunstâncias a rever suas práticas e conceitos. É importante destacar que esses alunos e professores são protagonistas de uma história contada dentro de uma escola pública de ensino regular, considerada uma escola de difícil acesso pela grande procura de vagas. Tal dificuldade faz com que os contemplados criem um imaginário de situação privilegiada, mesmo em situação diferenciada da normalidade, como é o caso dos alunos surdos. De qualquer forma, os ingresso dos surdos no Colégio é um processo de auto- valorização destes alunos pela importante representação do educandário no cenário social e educacional Pelotense. A diferenciação autoriza o discurso da diferença, contudo, compromete, discrimina, modifica posições, desestabiliza, vaza. Então, que se façam as diferenças em todas as frestas da educação desconstruída no cenário contemporâneo, para que homens e mulheres possam testemunhar os novos olhares sobre tudo aquilo que não conhecemos, todos os que estranhamos. O inédito, o não dito, o por-vir, o que nasce, como diz Larrosa: O nascimento é o aparecimento da novidade radical: o inesperado que irrompe toda expectativa; o acontecimento imprevisto que não pode ser tomado como a conseqüência de nenhuma causa e que não pode ser deduzido de nenhuma situação anterior; o que, longe de se inserir placidamente nos esquemas de percepção que funcionam no nosso mundo, coloca-os radicalmente em questão (2001, p.189). Questionar o absolutismo de valores postulados na educação é participar ativamente do nascimento, recriação ou reformulação de conceitos que nos fazem ser estranhos a nós mesmos. Em vez disso, é fundamental deixar que nossos pensamentos sejam corrompidos pela dúvida e que nossos corpos se reconheçam na diferença de si mesmos e na pura diferença das personagens que estão entre nós. 6 NA BUSCA DA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES SURDAS Buscar a construção das identidades surdas num cenário repleto de gente ouvinte exigiu parceria com os sujeitos da minha pesquisa. Associar-me a eles na busca de saberes que os pudessem identificar de todas as formas, que pudessem ver a si mesmos, aos outros e aos olhos dos outros, precisou encontrar nos alunos também a vontade de se mostrar. Foram convidados os alunos surdos do Ensino Médio e Curso Normal, e oito foram os que levaram adiante a nossa aventura. Um dos motivos que dificultou a maior participação dos surdos foi o número de paralisações que aconteceram no colégio por questões salariais dos municipários, desde meados de 2005. Quando houve estabilidade no ritmo das atividades escolares, os alunos se sentiram sobrecarregados com o acúmulo de conteúdos e trabalhos a realizar. Apesar dos contratempos, considerei bastante representativo o grupo de pesquisa, principalmente porque acredito que eles carregam representações coletivas que são manifestadas através de seus discursos e de suas ações. Com certeza, para os alunos que ficaram não foi fácil abdicar de outros afazeres, ou até mesmo de resistir à soneca da tarde depois de uma manhã cheia de aulas. Mas eles resistiram, apesar dos bocejos. Atribuo a esse grupo uma particularidade político-social desenvolvida na caminhada de conquistas em que se empenharam estes e os outros alunos surdos dentro e fora do colégio. Acredito que esta característica fez com que os alunos participassem do Projeto e quisessem contribuir com a minha pesquisa. 88 importante é que esta conquista é fruto da reivindicação das pessoas surdas e não mais da deliberação dos ouvintes, como ocorria comumente no passado. O local escolhido para o nosso primeiro encontro foi a antiga sala de educação de surdos, agora laboratório de informática dos surdos. Este espaço havia sido pensado e organizado para desenvolver atividades relacionadas à educação de surdos, entretanto, a mesma equipe da então Secretaria de Educação, que havia trazido para a escola esta perspectiva, retirou da escola os equipamentos eletrônicos e material específico para os surdos, alegando uma nova proposta de trabalho, num outro local, fora do CMP. Este acontecimento aborreceu muito aos alunos e aos professores envolvidos nesta área, sendo motivo de preocupação e reflexão sobre a fragilidade das condições favoráveis que envolvem neste momento a educação de surdos. Mais adiante, através de um projeto enviado ao Governo Federal, o Colégio recebeu computadores para a educação de surdos e a sala de recursos transformou-se em laboratório de informática. Considerei que a familiaridade com o lugar escolhido, facilitaria a conversa, no entanto, diante da câmera de filmagem eles ficaram pouco à vontade. Essa percepção foi confirmada quando uma vez desligado o aparelho uma das meninas disse que estava tensa por estar sendo filmada. Mesmo assim, avaliei que no final do trabalho, o grupo se descontraiu, quase esquecendo do aparelho. De início tive a preocupação de explicar o objetivo da pesquisa e a importância dos seus relatos. Lembramos que uma das reivindicações dos alunos surdos era justamente a de narrar a si mesmos sem que os ouvintes fizessem por eles. Expliquei que as suas opiniões estariam contribuindo para que eu pudesse entender um pouco sobre a construção das suas identidades surdas num colégio de maioria ouvinte. Além disso, o meu trabalho, somado a outros, poderia contribuir com os estudos surdos tão em evidência na área da educação, atualmente. Comentei que não era a primeira vez que acontecia um trabalho de pesquisa com alunos surdos ou professores de surdos do Colégio Pelotense, citando o trabalho de pesquisa da professora Amélia Borges e da professora Édina Fagundes. 89 Apesar das circunstâncias favoráveis, este primeiro encontro foi o mais difícil, era a estréia, e os outros dependiam dele. Havia certa formalidade, a arrumação das cadeiras de maneira que se adequasse à focalização da câmera, a organização dos relatos, a seqüência das questões e o compromisso com alguma coisa que era importante. Percebi que os alunos tinham dificuldade de entender algumas perguntas e eu estava preocupada em não desviar o foco da questão. A conversa foi aos poucos se tornando mais fácil, pois o assunto abordado era comum aos alunos que estavam acostumados a falar sobre a sua situação dentro do Colégio, e sobre a inclusão uma vez que era a porta de entrada para uma realidade que estavam tentando modificar. Percebia em suas manifestações o quanto estavam envolvidos por sentimentos contraditórios e de certa forma também buscavam se adequar ao ambiente. Desde o início mostraram desejo de sentir o Colégio como seu, com a sua marca e o domínio da Cultura Surda sobre a Cultura Ouvinte. Como disse um dos alunos: “Eu queria que aqui no Pelotense fossem todos surdos. Inclusão de ouvintes” (aluno D). O segundo encontro foi em outra sala da escola, a sala da Psicologia, escolhida por ser mais aconchegante, tinha um sofá, um espelho grande e tapete. Saímos da “sala das máquinas” (informática), e os alunos ficaram mais próximos. No início da conversa notei o entusiasmo de algumas alunas quando conversávamos sobre a pesquisa, retrocedemos um pouco no assunto porque uma das jovens não estava no primeiro encontro. Comentaram que era importante este estudo para dizer a todos - na faculdade - que surdos existem, pensam, são inteligentes. Uma delas contou que havia participado da pesquisa da psicóloga Amélia Rota Borges, há dois anos atrás. Outra aluna do Curso Normal demonstrou larga experiência no convívio com surdos e ouvintes, em escolas de surdos e ouvintes em outras regiões do país. Segundo ela, é importante se relacionar bem com as diferenças. Percebi que duas das meninas estavam empenhadas em dizer quem são os surdos. Quando pedi que ficassem tranqüilas, pois eu não mostraria a fita para outras pessoas, apenas para o meu orientador, foram unânimes em dizer que podia sim mostrar a quem quisesse. Creio que isto é uma afirmação da identidade surda, uma manifestação de aceitação e orgulho por pertencer a um grupo que consideram 90 em ascensão e, sem dúvida uma das estratégias do poder com vistas a ocupar espaços. Também transpareceu que o avanço da luta dos surdos é parte das suas vidas e, segundo as suas palavras, elas estariam ocupando o espaço de responsabilidade dos surdos que iniciaram a inclusão no Pelotense. Considero que nesse encontro houve progresso nas discussões, os alunos se sentiram mais à vontade. Por essa razão, voltei à questão da inclusão na tentativa de saber mais sobre as percepções que eles tinham a respeito de si mesmos na condição de surdos incluídos em uma escola de ouvintes. Para o nosso terceiro encontro organizei uma dinâmica diferente, com o propósito de descontrair mais o grupo e fortalecer algumas interpretações iniciadas ao final do segundo encontro. Considerando que era importante diminuir a interferência da pesquisadora e conseqüentemente da intérprete, propus uma atividade dirigida com maior liberdade para a troca de idéias no grupo. A discussão seria em torno de questões sobre identidade e comportamentos de surdos e ouvintes em algumas situações ilustradas nos desenhos39 feitos pelo surdo, Diogo Madeira, atual professor de LIBRAS no CMP. Os desenhos foram feitos a partir de algumas conversas com Diogo, quando contei sobre a minha pesquisa a cerca das identidades surdas. A idéia inicial era de pedir apenas um desenho para a capa do trabalho, depois pensei que seria interessante levar ao grupo imagens criadas por outro surdo, motivando-os a discussões que pudessem contribuir com o estudo. Expliquei ao desenhista que precisava de figuras que representassem situações significativas para os surdos dentro do tema geral - identidades surdas no contexto escolar ouvinte. Creio que a idéia surtiu o efeito desejado, pois houve interesse do grupo. Com os desenhos espalhados sobre a pequena mesa de madeira ao centro da sala, expliquei como seria a dinâmica. Enquanto isso os alunos demonstraram curiosidade com o material. Lembrei que o visual é a sua forma de comunicação, 39 Os desenhos estão no anexo B. 93 identidades surdas em um processo dinâmico que nega a representação da deficiência e ao mesmo tempo se opõe à identidade ouvinte. 6.1 Nós Somos Surdos Porque não Somos Ouvintes ? Num cenário de inclusão, o recorte que faço sobre a construção das identidades surdas aponta para uma leitura que desconstrói o discurso clínico, hegemônico na educação dos surdos. Esta idéia parte das próprias narrativas dos alunos, às quais interpreto como manifestações de repúdio à constituição de surdos patológicos, doentes, como sujeitos a serem recuperados pela cultura ouvinte. Este sentimento pode ser identificado nas palavras dos alunos: Aluno B: Não gosto quando as pessoas ficam olhando. Pensam que sou doente. Só não escuto. Sou normal. Não sou coitadinho. Posso aprender. Gosto de namorar, conversar, ficar com amigos. Sou diferente dos ouvintes, não tenho vergonha, antes eu tinha, agora melhorou. Estou desenvolvendo aqui no Pelotense. O problema é a comunicação trancada, só isso. Aluno H: Os ouvintes devem conhecer os surdos, a cultura surda. Aprender a usar a língua de sinais (LS), aí fica tudo certo. É uma cultura diferente. Uma história diferente. As argumentações acima permitem dizer que a fabricação das identidades surdas, analisada especificamente no grupo de alunos surdos do CMP, se fundamenta na não aceitação da deficiência. Entretanto, isso não significa que a representação da deficiência não afete esses sujeitos no processo de conhecimento de si mesmos. Em meio a sentimentos antagônicos, como angústia e prazer, o grupo cria formas de romper com a lógica da normalidade (valorizando a cultura surda, por exemplo) que prevê a modificação das pessoas deficientes, no sentido que torná- las o mais próximo possível dos padrões de normalidade. No caso dos surdos, por exemplo, a lógica da normalidade está no treinamento da fala, considerando que os surdos não são mudos. 94 A experiência de se perceberem como pessoas diferentes dos ouvintes pela não audição é um processo que vem sendo construído num tempo próximo de nós, um tempo em que os discursos sobre normalidade ferem os discursos que ganharam legitimidade social e científica no passado. Neste contexto, a percepção da surdez como diferença se desenrola, mostrando que os surdos são capazes e inteligentes. Mostrar aos outros quem são, ou o que não são, torna-se um trabalho incessante, presente nas ações dos alunos surdos que se voltam para a busca da identificação por meio da diferença, a diferença que não é estática, é múltipla, material e simbólica. A diferença que está no gosto, na estratégia, na dependência, na presença do outro. Segundo a visão do grupo, a diferença é cultural, pautada especialmente na diferença lingüística que demarca comportamentos e fatos próprios da comunidade surda. Os surdos se apresentam aos olhos dos ouvintes a partir de narrativas surdas, sobre a sua língua, sua comunidade e sua cultura. Essa visão é representada politicamente, através das lutas dos surdos dentro do Colégio. Por outro lado, existe o respaldo que se manifesta externamente, nos espaços sociais em que circulam os discursos sobre as múltiplas culturas. A Associação de Surdos de Pelotas, por exemplo, se constitui num território de contestação à hegemonia da cultura ouvinte, deixando clara a necessidade de criar espaços de discussão para o fortalecimento das identidades surdas. Portanto, aparece a questão cultural como baliza entre surdos e ouvintes. Todos são adolescentes e alunos do Ensino Médio da mesma escola, contudo, muitas coisas os fazem diferentes dos ouvintes. A Cultura Surda que os constitui indivíduos é um processo que se constrói através de práticas históricas que produzem sentido. Eles têm uma história própria e uma língua comum, desenvolvendo assim, um processo de identificação, num tempo e espaço de acordo com as possibilidades desses sujeitos. O tempo que cada um precisa para reconhecer-se como surdo faz parte da estratégia de identificação cultural. Os surdos que se acham assumidos entendem que este é um processo individual, embora construído no coletivo. 95 Seguindo esta idéia, o processo de significação da Cultura Surda é uma prática que pretende estabelecer um vínculo com a identidade construída a partir de símbolos particulares, próprios dos indivíduos que buscam a afirmação das suas identidades. O aspecto cultural da identidade aparece fortemente nas suas colocações quando se referem às duas culturas existentes no Colégio, a cultura surda e a cultura ouvinte. Fazem questão de relacioná-las enfatizando o seu modo de comunicar, através dos sinais, por exemplo. Este é o jogo da diferença, mostrar- se através daquilo que não está no outro. A comunicação visual é a característica mais importante da cultura surda, através dela é que os surdos vêem e constroem o seu mundo. A LIBRAS é a forma de representação das experiências do grupo que substituiu a fala pelos sinais. A língua é aquilo que os surdos têm em comum, é a criação simbólica que dá unidade ao grupo, que define a sua identidade. A língua de sinais é o símbolo que os identifica, por isso os surdos defendem o uso da LIBRAS como a sua primeira língua, se sentem orgulhosos e seguros pelo reconhecimento oficial da sua forma de comunicação. Entendem que os ouvintes devem aprender sinais, assim fazem um trabalho de divulgação no Colégio por meio de cursos e oficinas e na própria relação entre surdos e ouvintes. Às vezes criticam a falta de interesse dos ouvintes em aprender os sinais, acham que devem aprender mais e se colocam como parceiros neste aprendizado. Quando solicitados, fazem com gosto o ensino da sua língua, como disse o aluno F: “Se a pessoa se aproxima, vamos ensinando” . Sendo a língua de sinais a marca fundamental de identificação da cultura surda, os alunos trazem esses elementos como forma de marcação da identidade surda e da diferença em seus discursos. Para eles, conhecer a sua língua é também conhecer um pouco da sua cultura, entretanto, alegam que os ouvintes têm muito que aprender. Certamente, o uso da LIBRAS e o seu reconhecimento pelos ouvintes fortalecem a cultura surda, aproxima e facilita a relação entre surdos e ouvintes, afastando a possibilidade da identidade deficiente. Contudo é um trabalho que está
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