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A agenda sul-americana no século XXl, Notas de estudo de Ciências Sociais

início do século XXI na América do Sul foi marcado por importantes mudanças na política, na economia e na sociedade. Todo esse dinamismo contrastou com as duas décadas precedentes, quando houve, na região, o advento de governos liberais e o predomínio de um pensamento reformista em relação à economia de mercado. Os anos 2000 tornaram mais evidentes os processos de transformação despertados pelas transições para a democracia e que progrediram paralelamente à crise e à reforma do Estado.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 09/07/2010

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Baixe A agenda sul-americana no século XXl e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity! A Agenda Sul-Americana: Mudanças e Desafios no Início do Século XXI MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim Secretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo INSTITUTO DE PESQUISA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Presidente Embaixador Carlos Henrique Cardim A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira. Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo, Sala 1 70170-900 Brasília, DF Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847 Fax: (61) 3322 2931, 3322 2188 Site: www.funag.gov.br Este livro é o primeiro produto coletivo da equipe do Observatório Político Sul-Americano - OPSA, núcleo de informação e análise idealizado em 2002 e efetivamente criado em agosto de 2003, no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ. Várias pessoas e instituições contribuíram para que o OPSA se transformasse, nestes três anos de implementação, em uma das principais referências no país para a política sul-americana. Em primeiro lugar, cabe mencionar Fabiano Santos e José Maurício Domingues que, como Diretores- Executivos do IUPERJ viabilizaram a consolidação do OPSA. O primeiro, no momento da criação do Observatório, por acreditar e apoiar nossa iniciativa, fornecendo-nos todas as condições e o estímulo necessários para a implantação do núcleo. O segundo, pelo apoio continuado às nossas atividades, contribuindo para o processo de consolidação do OPSA. Várias instituições têm nos apoiado com recursos financeiros, permitindo que, ao longo deste período, o OPSA tenha ampliado os produtos oferecidos em sua página na Internet. São elas: Financiadora de Estudos e Projetos - Finep; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq; Construtora Norberto Odebrecht; PROSUL/MCT/CNPq, e Companhia Vale do Rio Doce. À Fundação Alexandre de Gusmão, FUNAG, do Ministério das Relações Exteriores, nosso agradecimento pelo apoio à publicação deste volume tornando possível a divulgação do trabalho do Observatório. A revisão dos originais foi realizada com a competência de sempre de Beth Cobra; a digitação e formatação gráfica, por Claudia Boccia, com a qualidade usual que demonstra no desempenho de suas A G R A D E C I M E N T O S tarefas. Um agradecimento especial a João Carlos Nogueira, constantemente nos colocando desafios à análise da cooperação regional e partilhando conosco a certeza das virtualidades da integração da América do Sul. Este livro foi finalizado quase que concomitantemente à abertura do Banco de Eventos Políticos do OPSA, construído ao longo destes três anos de trabalho, exemplares significativos da natureza coletiva de nossas atividades e do empenho da nossa equipe atual e de outros pesquisadores que trabalharam no Observatório desde a sua criação. A eles também nossos agradecimentos pela dedicação, competência e companheirismo, tornando possível o lançamento destes dois produtos do OPSA, que constituem um marco importante na construção institucional do grupo de pesquisa e de um olhar próprio sobre a região sul-americana. Rio de Janeiro, agosto de 2006 Maria Regina Soares de Lima e Marcelo Vasconcelos Coutinho (organizadores) S U M Á R I O Introdução - A América do Sul sob o signo da mudança Maria Regina Soares de Lima e Marcelo Vasconcelos Coutinho ............................ 9 I. A Argentina nos primeiros cinco anos do século XXI: crise, transição e transformação Juan Claudio Epsteyn e Daniel Jatobá ................................................................... 31 II. Bolívia: instabilidade política e dificuldade de inserção regional Cristina Alexandre ..................................................................................................... 69 III. Brasil: as dificuldades internas da liderança regional Juliana Erthal e Bruno Magalhães ......................................................................... 103 IV. Chile: um país em movimento Flávio Leão Pinheiro ............................................................................................... 137 V. O Governo Uribe: militarização, processos de paz e política externa Iara Leite e Mariana Montez Carpes ...................................................................... 175 VI. Democracia e desenvolvimento no Equador: instabilidade crônica e estelionato eleitoral André Luiz Coelho Farias de Souza e Carlos Henrique Vieira Santana ............ 207 VII. Paraguai: transição inconclusa e integração reticente Silvia Lemgruber ...................................................................................................... 245 VIII. A Tentativa de mudar o mesmo: novos discursos e velhas práticas no Peru pós-Fujimori Marcela Vecchione .................................................................................................... 277 —) | + om 11 início do século XXI na América do Sul foi marcado por importantes mudanças na política, na economia e na sociedade. Todo esse dinamismo contrastou com as duas décadas precedentes, quando houve, na região, o advento de governos liberais e o predomínio de um pensamento reformista em relação à economia de mercado. Os anos 2000 tornaram mais evidentes os processos de transformação despertados pelas transições para a democracia e que progrediram paralelamente à crise e à reforma do Estado. Dois movimentos estruturais encontraram, nesse período, um ponto de adensamento e conflito. De um lado, a liberalização econômica, com suas privatizações, desregulamentações, choques de abertura comercial e demais ajustes; e, de outro, a democratização política, expressa nos aumentos da liberdade e da participação política. O que, a princípio, poderia se caracterizar como fenômenos convergentes demonstra, na realidade, o grande distanciamento existente entre os mercados (as forças produtivas e financeiras) e as ruas (as forças populares de mobilização social). Dois segmentos, que, mesmo internamente, estão muito longe de serem considerados coesos ou monolíticos, sendo ambos bastante dinâmicos. As reformas de ajustamento estrutural da economia de fin de siècle não lograram reverter um quadro de pobreza e desigualdade Maria Regina Soares de Lima * Marcelo Vasconcelos Coutinho** * Ph.D. em Ciência Política pela Vanderbilt University e Coordenadora Acadêmica do OPSA (E-mail: mrslima@iuperj.br). ** Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ e Coordenador Executivo do OPSA (E-mail: mcoutinho@iuperj.br). O 12 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI desanimador. Mesmo o objetivo de resolver a crise fiscal do Estado foi sequer alcançado por conta do endividamento público asfixiante, da ampliação da carga tributária e do acúmulo sucessivo de déficits. Uma relativa estabilização monetária conviveu, então, com uma crescente vulnerabilidade externa, com o aumento do desemprego e com uma expansão econômica oscilante e muito pequena. Os avanços sociais observados foram pontuais e de natureza mais incremental, à exceção do Chile, onde reformas adaptadas ao contexto e aos interesses do país possibilitaram progressos realmente expressivos, ainda que continuasse a persistir a concentração de renda. Frente às restrições econômicas e à incapacidade do Estado em atender às demandas sociais, as calles, como metaforicamente são chamadas em espanhol, perdem a paciência e se incendeiam. Por duas décadas, a reorganização de trabalhadores urbanos e rurais, sobretudo novos atores e movimentos emergentes, inclusive alguns de corte étnico, passam a protagonizar a história, regendo um dos momentos de maior pressão popular registrado nessas democracias. Instala-se, assim, uma crise mais generalizada e profunda do que outras que continuaram a habitar o contexto sul-americano mesmo após o fim dos regimes militares. Na realidade, essa crise é apenas o ápice de processos já em andamento, não ocorrendo da mesma forma, nem com a mesma intensidade, em todos os países do Continente. As crises que caracterizaram a virada de século na América do Sul são sintomas agudos da ausência de um modelo de desenvolvimento para a região, da persistente inoperância do Estado e da insatisfação que se alastra mais e mais em sociedades desejosas de inclusão política e social. Sob o manto dogmático da liberalização econômica, trocou-se o já exaurido nacional-desenvolvimentismo, baseado, por décadas, na substituição de importações, por um modelo econômico que não chega a ser propriamente de desenvolvimento, uma vez que fragiliza ainda mais o 15 INTRODUÇÃO hegemonia liberal, levando à divisão da sociedade venezuelana e ao enfraquecimento das instituições políticas intermediárias do país, supostamente em nome de uma democracia participativa. Instala-se, então, um governo de teor altamente nacionalista, que alguns classificariam como um socialismo militarizado, ou simplesmente como mais uma reprodução do velho populismo latino-americano. Em todo caso, trata-se de um modelo muito centrado na figura do presidente Chávez, que aos poucos, e em sucessivas batalhas contra uma oposição feroz e golpista, consolida seu poder erguendo a bandeira de uma esquerda continental, sob os auspícios de grandes receitas públicas provenientes da alta dos preços e da exportação do petróleo. Na Bolívia, no Equador e, em menor grau, no Peru, além do nacionalismo, consolida-se também a emergência das populações tradicionais e indígenas, que passam a ocupar o centro da cena política de seus países. Nesses casos, além da letargia econômica, da demora em atender satisfatoriamente às demandas sociais e da ruptura da hegemonia do assim denominado neoliberalismo, a crise institucional é resultado também do descompasso entre a diversidade de interesses e valores encontrados na sociedade e sua real participação não apenas no Executivo, mas no Estado de um modo geral. Os Andes talvez expressem mais claramente, e com suas particularidades étnicas, o que norteia as mudanças políticas na virada de século na América do Sul, qual seja, o signo da inclusão; o signo de mudanças no sentido de aproximar o Estado da sociedade. Mais do que simplesmente superar uma agenda econômica liberal, as mobilizações sociais no Continente procuram se adequar ao seu próprio estilo de vida e tomar conta de seus destinos, participando de maneira mais equilibrada das instituições e decisões nacionais. Isso ocorre, em particular, com os movimentos indígenas, uma vez que estes almejam representar uma fração majoritária em suas sociedades, que secularmente se manteve alijada não somente do ponto de vista econômico-social, mas também político-institucional. 16 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI Sendo assim, não obstante a inegável relevância do desempenho macroeconômico, de variáveis como o crescimento do produto interno bruto (PIB) e o controle das taxas inflacionárias, a estabilidade das democracias sul-americanas é promovida de maneira mais eficaz pela inclusão política e social, com a diminuição da pobreza e das assimetrias extremas de renda e na correlação de forças presentes no Estado. A estabilidade é, portanto, conseqüência de um quadro institucional que realiza uma boa mediação entre os mercados e as ruas, o que sugere a necessidade premente, na América do Sul, de articular um modelo democrático que vincule, nesses dois pólos, uma realidade oriunda de um mundo globalizado e interdependente com outra, formada por seus excluídos, muitos dos quais já altamente mobilizados. Nesse sentido, se a tentativa de recuperação do Estado é um dos traços que se sobressaem nos anos pós-Consenso de Washington, então essa tentativa não significa exatamente um retorno ao passado, ao paradigma nacional-desenvolvimentista, ou ao burocrático- autoritário, mas, sim, no âmbito doméstico, uma coordenação política mais eficiente do Estado no que se refere aos valores e ao conflito de interesses contemporâneos que antagonizam diferentes setores do mercado e segmentos populares, e, no âmbito regional, uma coordenação entre nações vizinhas com vistas ao desenvolvimento comum. A busca de uma convergência nas relações que envolvem os processos de democratização política e liberalização econômica se traduz, de forma dinâmica, em pontos ideais entre as preferências capitalistas e os anseios dos menos favorecidos. Evitar que a interação dessas partes se torne um jogo de soma negativa, ou de soma zero, é provavelmente o maior desafio das democracias da região no novo século, tendo em vista a constatação de que não se vislumbra saída para o desenvolvimento que não passe pelo mercado, como tampouco pode haver democracia sem as ruas livres e ativas. Embora as mudanças ocorridas na América do Sul não tenham completado seu ciclo, não é difícil perceber, já na primeira metade da década, uma onda inédita de ascensão de governos de esquerda, social- 17 INTRODUÇÃO democratas e de tendências nacionalistas as mais variadas: Chávez (1998); Lagos (1999); Lula (2002); Kirchner (2003); Tabaré (2004); Morales (2005); Bachelet (2006); e Garcia (2006). Como poderá ser visto nos capítulos do livro, há uma certa unidade nessas mudanças em meio a tanta diversidade na forma como elas se apresentam. Excetuando-se a Colômbia de Álvaro Uribe, onde o problema de segurança ocupa quase todos os espaços, em geral ocorre uma revisão no fim das hegemonias dos anos de reforma em direção ao mercado, que põe a questão social no centro das preocupações, mesmo no Chile, país onde o saldo final das reformas foi relativamente positivo.1 Cada um a seu modo reexamina privatizações, aberturas comerciais, reformas previdenciárias e trabalhistas, de modo bastante pragmático na maioria das vezes. Alguns países também revêem seu passado autoritário. Chile, Uruguai e Argentina retiram o entulho deixado pelos regimes militares, enquanto o Peru enfrenta o legado da era Fujimori. Todos eles apuram as violações de direitos humanos e o constrangimento às liberdades civis então experimentado. As mudanças não implicam obrigatoriamente rupturas radicais. Em alguns casos, como Brasil, Chile e Uruguai, houve mesmo mais continuidade do que mudanças com relação à agenda de reformas estruturais. Mas não por isso deixaram de ajustar as políticas ao novo momento, interrompendo o processo de redução e enfraquecimento do Estado ao mesmo tempo em que introduziram inovações importantes que vão ao encontro dos setores populares. Outros países, como a Argentina, implementam mudanças mais nítidas como a interrupção do pagamento e a renegociação da dívida externa, e a adoção de políticas heterodoxas. No extremo das mudanças situa-se a Venezuela, onde se fala 1 Mesmo na Colômbia, nas eleições presidenciais de 2006 que deram a vitória à direita, houve um crescimento inédito da esquerda representada pelo Pólo Democrático Alternativo (PDA). Em termos regionais, provavelmente a melhor maneira de perceber a onda de mudanças políticas é pela derrota eleitoral do centro-direita na grande maioria dos países, em oposição, portanto, ao que se observou na década anterior. 20 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI das respectivas experiências nacionais, como está ocorrendo a radicalização da democracia participativa em países como a Bolívia, em moldes nunca antes experimentados pelos países latino americanos, com exceção do caso cubano que, durante a Guerra Fria, ficou enquistado em si mesmo por efeito da política de segurança norte-americana. Por outro lado, em uma tendência à maior homogeneidade, observou-se a gradativa institucionalização de arranjos e mecanismos de segurança regional e de defesa da democracia, seja no âmbito das antigas e quase desacreditadas organizações como a OEA, seja na criação de novas instituições como a Comunidade Sul-Americana de Nações, CASA, por iniciativa dos próprios países sul-americanos. A democratização também parece estar tendo efeito sobre as possibilidades de cooperação regional no sentido de que os governos estão muito mais sensíveis às demandas dos setores domésticos, especialmente os mais mobilizados politicamente, muitas vezes em detrimento das injunções da cooperação regional. Quanto maiores e mais concentrados os custos da integração para setores ou países, maiores os custos de soberania em que os respectivos governos estão dispostos a incorrer. São os casos, por exemplo, de Uruguai e Paraguai, países que se sentem fortemente prejudicados pela lógica comercial do Mercosul, muita mais centrada na dinâmica das relações Brasil-Argentina. A maior sensibilidade aos custos de soberania também decorre do clássico efeito integrador da existência de um “inimigo externo”. Ainda que não seja apenas este o fator responsável pela eclosão de uma série de disputas fronteiriças mais recentes, o projeto de construção das fábricas de celulose na margem uruguaia do Rio da Prata gerou um contencioso sério com a Argentina. Tal fator também poderia estar influenciando a reativação de antigos contenciosos territoriais, como aquele entre Bolívia-Chile, e os problemas fronteiriços entre este último país e a Argentina e o Peru. Novamente, a democratização como fenômeno sistêmico não necessariamente está gerando maior padronização de processos e 21 INTRODUÇÃO instituições, muito menos impulsionando a cooperação regional, uma vez que seu impacto principal é aumentar a sensibilidade dos governantes aos anseios de seus eleitores e, conseqüentemente, maiores reservas à cessão de soberania implicada em arranjos de integração mais profundos. A própria convergência ideológica entre regimes social-democratas e de esquerda não necessariamente está gerando expectativas generalizadas de cooperação regional. Nos anos 90, era comum o temor de que as reformas orientadas para o mercado, induzidas pela pressão cruzada da crise fiscal generalizada e da socialização coercitiva das agências financeiras internacionais, acabassem abortando o movimento de democratização então em curso. Mais tarde, percebeu-se que tal não estava ocorrendo pela prática sistemática de “estelionato eleitoral” por via da qual os governantes, mesmo com plataformas inclusivas e social-democratas, uma vez eleitos, implementavam duros programas de contenção de gastos e responsabilidade fiscal. Desta forma, a tensão que David Held identificou, da não coincidência entre os espaços da representação, doméstico, e o da decisão, externo, era resolvida pela mudança de política dos governantes assim que eleitos. Na atualidade, contudo, a mudança de posições, depois da eleição, tende a ser mais rara, seja porque candidatos social-democratas explicitam ex-ante seu compromisso com a responsabilidade fiscal, como foram os casos da eleição dos governos do PT e da Concertación, no Brasil e Chile, respectivamente, seja porque os candidatos de esquerda implementam, de fato, sua plataforma de campanha, uma vez no governo, como foi o caso de Evo Morales na nacionalização dos hidrocarbonetos. Apesar da barragem de crítica ao funcionamento das instituições políticas sul-americanas, uma tendência parece estar em curso, qual seja, os governantes, uma vez eleitos, cumprem o que prometeram, ou porque há consenso na sociedade sobre alguns dos fundamentos macroeconômicos, ou, ainda, porque os governantes que não cumprem sua plataforma eleitoral têm seus mandatos encurtados pela movimentação das ruas. 22 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI No tema da integração regional observaram-se, também, movimentos não lineares. A mudança na inserção internacional da América do Sul, a partir da crise do modelo de substituição das importações e da abertura econômica, induziu à criação de novos arranjos de integração regional, com base na formação de áreas preferenciais de comércio, como foram os casos da criação do Mercosul e da Comunidade Andina. Paradoxalmente, a antiga aspiração latino-americana de integração regional foi obstaculizada pelo modelo pretérito de economia fechada, voltado para dentro, que dificultava a criação da densidade de mercado na área, condição necessária para o sucesso dos projetos de integração econômica. A conseqüência positiva da abertura econômica foi propiciar a emergência deste tipo de regionalismo na sub-região, como é o caso das duas experiências acima mencionadas. A criação destes dois blocos sub-regionais, no início dos anos 90, foi o primeiro passo na trajetória integracionista sul-americana, concebida como meio de superar os entraves históricos relacionados à estabilização política e ao desenvolvimento econômico. O principal desafio dos projetos de integração concebidos então era ampliar a competitividade e melhorar a inserção desses países na economia globalizada, adaptando- se às mudanças no capitalismo global e fazendo frente aos movimentos de integração regional em outras regiões geográficas, em especial o aprofundamento do processo europeu e a criação do NAFTA. A proposta norte-americana de criação de uma Área de Livre-Comércio das Américas, ALCA, englobando todo o hemisfério, também estimulou outras iniciativas de cooperação, como foi o caso do projeto de integração sul-americano, ALCSA, bem como a implementação de uma série de acordos com países fora da América do Sul, como aquele entre o Mercosul e a União Européia. Mais recentemente, a integração comercial das sub-regiões passou a enfrentar uma série de dificuldades em função de períodos de instabilidade macroeconômica de curto prazo dos parceiros; a acentuação das assimetrias 25 INTRODUÇÃO global norte-americana, atrás apenas de Israel e Arábia Saudita, como se ampliou sensivelmente a presença militar norte-americana e de agências de combate às drogas, como a DEA, em particular em países como Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Estas atividades implicam a presença de norte-americanos em atividades militares/policiais, o treinamento das agências especializadas em ações anti-droga, instalações de sistemas de comunicação e vigilância, pistas de pouso e bases militares. No caso do “livre-comércio”, a estratégia norte-americana modificou-se ao longo do tempo, em vista das dificuldades enfrentadas pelo Executivo daquele país em conseguir vencer as resistências, representadas no Congresso, a acordos de livre-comércio multilaterais, nos moldes daquele do NAFTA. Assim, acordos bilaterais de livre-comércio foram negociados com Chile, Colômbia, Peru e Equador, além da instituição de acordos de preferências especiais, vinculados ao compromisso com programas de erradicação do cultivo da coca, no âmbito da Lei de Proteção Comercial e Erradicação da Droga nos Andes, negociados com os três últimos e a Bolívia. Finalmente, o fator Chávez e a desenvoltura da diplomacia do petróleo do Presidente venezuelano é o terceiro dos pontos de fricção dos EUA na região. Em uma recriação do clima de Guerra Fria, Washington teme que a influência crescente de Chávez na região, em especial junto ao novo governo boliviano e no Caribe, e a possibilidade da formação de um eixo extra-hemisférico com a China, cujo interesse pela América do Sul é crescente, possa fazer pender o equilíbrio de forças regionais em uma direção contrária aos interesses dos Estados Unidos. Do lado sul-americano, não se pode identificar um padrão único entre os diversos países. Assim, por exemplo, a Colômbia representa um caso de relacionamento especial com os Estados Unidos, não apenas porque o problema da droga alçou o país à condição de prioridade estratégica dos EUA, mas porque a sobrevivência política do presidente Álvaro Uribe, reeleito em 2006 para mais um mandato presidencial, está 26 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI diretamente relacionada à sua política de combate ao narcotráfico e, portanto, dependente do fortalecimento da relação com Washington. Ainda que não estejam presentes os mesmo elementos, uma analogia com a situação no Oriente Médio sugere, porém, os riscos para a estabilidade política da região em situações em que um dos países conta com o total respaldo dos Estados Unidos em sua política de segurança nacional. No extremo oposto está a Venezuela, importante exportador de petróleo para os Estados Unidos, mas inimigos mútuos, declarado por ambos. Finalmente, há os casos de Brasil e Chile, cuja relação bastante pragmática com os Estados Unidos é pautada pela tentativa de desvincular as questões contenciosas, no caso do primeiro, o estabelecimento da ALCA e, do segundo, o voto contrário, juntamente com o Brasil, à intervenção norte- americana no Iraque no Conselho de Segurança em 2004, por exemplo. O efeito conjunto da globalização econômica e das mudanças políticas locais parece ter tornado a América do Sul mais relevante para os países do que no passado. Na Argentina, o fim do governo Menem significou o abandono das “relações carnais” com os Estados Unidos e um redirecionamento para a região. Brasil e Chile também passaram a enfatizar a América do Sul em suas respectivas políticas externas, ainda que por motivos diferentes. Por sua vez, a Venezuela tem posto em prática uma ativa política regional que inclui a compra de títulos da dívida argentina, a constituição da ALBA, como alternativa à ALCA, englobando Bolívia e Cuba, a cooperação estreita com Evo Morales na Bolívia, a iniciativa da construção do Gasoduto do Sul e a entrada como sócio pleno no Mercosul. Todos estes movimentos estão mudando a geopolítica regional, comparada à situação corrente nos anos 90 em que prevaleciam, entre as elites, a aquiescência dos movimentos sociais, o encolhimento político dos sindicatos industriais e o Consenso de Washington. Naquele momento, parecia que a região tinha apenas um destino, qual seja, sua adaptação à hegemonia do mercado. Hoje não existe mais este consenso entre países 27 INTRODUÇÃO e, dentro deles, as sociedades estão mais divididas em termos das agendas políticas domésticas e internacionais; em alguns deles, os resultados das disputas eleitorais podem ter implicações em termos de mudanças das agendas domésticas e externas. As disputas presidenciais na Bolívia, em 2005, e do Peru, em 2006, são exemplos de realinhamentos eleitorais com conseqüências relevantes. Verifica-se uma certa tendência, na literatura especializada e na mídia em geral, em avaliar estes movimentos de mudança em termos de oposições duais: fragmentação e integração; democracias representativas e neopopulismos; disputa pela liderança regional entre Chávez e Lula. Se observarmos mais detidamente estas polarizações, é fácil perceber que os traços positivos estão associados a tendências prevalecentes na década de 90, quando se tinha a expectativa de que a região finalmente entraria na era das “democracias de mercado”. O outro lado do binômio evoca o passado e processos que, na atualidade, já deveriam ter sido superados da perspectiva de quem elabora tais dicotomias. A desqualificação é dupla, temporal e substantivamente, arcaísmos que, já se sabe, levarão à repetição das mazelas do passado. Este tipo de abordagem analítica oculta aquilo que há de novo e diferente em relação à década passada. Por exemplo, que há mais diversidade nos experimentos democráticos em curso na região e que podemos estar diante de inovações nos modelos democráticos antes impensáveis de ocorrerem no interior da área de influência dos Estados Unidos. Que apesar das acusações de “chavismo”, “nacionalismo”, “neopopulismo” e outros “ismos” a serem inventados de acordo com as conveniências dos setores dominantes, o capitalismo nunca foi tão florescente na região quanto hoje. A globalização pode ter contribuído para a crise do modelo de economia fechada e comandado pelo Estado, mas seu sucessor na América do Sul certamente não é o Estado liberal, dos livros-textos de Economia. Ao contrário, o que parece estar em curso —) | + om I. A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO —) | + om 35 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO Não é fácil explicar com exatidão o conjunto de fatores, políticos e econômicos, internos e externos, que interagiram e se potencializaram para terminar desencadeando um colapso político, social, econômico e institucional que submergiu o país no mais profundo abismo de sua história. Alguns dados socioeconômicos, no entanto, servem de base para sintetizar o contexto em que eclodiu a crise de dezembro de 2001. Uma recessão que durou mais de três anos, acompanhada de um desemprego recorde de mais de 20%, somado a um forte aumento da pobreza e da indigência, indubitavelmente representaram causas objetivas sem as quais não é possível dar conta da situação extrema que assumiu a contestação política e social que levou ao processo final de desestabilização. O colapso argentino é interessante, acima de tudo, porque a efervescência política e social que engendrou a crise não foi um fenômeno espontâneo, transitório e conjuntural; suas raízes podem ser encontradas vários meses antes da renúncia do presidente Fernando de la Rúa, da coligação partidária Alianza, encabeçada pela União Cívica Radical (UCR). No mesmo sentido, a agitação e a rejeição explícita da classe política tampouco cederiam sequer com a ascensão de Néstor Kirchner, do Partido Justicialista (PJ), à presidência, em maio de 2003, etapa que marca o fim da transição. Significativamente, durante os mais de dois anos seguintes, os movimentos sociais contestatórios permaneceram bastante ativos, mesmo depois de conhecidos os dados sobre a recuperação econômica. Os problemas econômicos e sociais que favoreceram o surgimento e posterior consolidação da contestação social, em última instância eram conseqüências diretas ou indiretas do modelo econômico que havia sido implementado durante mais de uma década no país, durante os dois governos do presidente Carlos Saúl Menem, também justicialista. Este modelo foi mantido, sem grandes alterações, pela administração encabeçada por De la Rúa, que assumiu como presidente em dezembro de 1999, depois de obter a vitória eleitoral com um discurso que prometia 36 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI uma ruptura com o estilo do menemismo. Para tratar dos primeiros cinco anos do século da Argentina, período que inclui a crise do final de 2001, antes de tudo é necessário descrever as características básicas do modelo implementado nesse país a partir dos primeiros anos da década de 90. Os anos 90 e os pilares do modelo econômico do menemismo Em julho de 1989, deu-se a renúncia do presidente Raúl Alfonsín, da UCR, como conseqüência de sua incapacidade de garantir a governabilidade diante da profunda crise econômica que castigava o país e que havia resultado nos famosos saqueos, prática sistemática de saques populares que marcou aquele inverno. Por fim, o novo presidente, eleito nesse mesmo ano – o peronista Carlos Saul Menem –, assumiu o cargo de forma antecipada e com um objetivo imediato: a implementação de mecanismos que permitissem controlar a “hiperinflação”,1 o grande flagelo econômico do país. As primeiras medidas significativas do novo governo, não obstante, foram adotadas com a finalidade de levar a cabo uma reforma estrutural do Estado para reduzir o enorme déficit fiscal. Assim, o modelo econômico menemista e a reforma do Estado, anunciada poucos meses depois da posse, tinham como primeiro fundamento a execução de um processo amplo e acelerado de privatizações que incluía a maioria das empresas estatais. Efetivamente, mais de cinqüenta dessas empresas passaram, em poucos anos, à iniciativa privada, a preços muito abaixo do seu valor real, mediante decretos presidenciais que permitiam procedimentos expedientes, ainda que pouco transparentes. A eficiência do governo no que diz respeito às vendas das empresas estatais não estaria isenta de conseqüências negativas para os usuários dos serviços públicos privatizados. Com efeito, algumas das 1 Calcula-se que a variação anual dos preços ao consumidor chegou a mais de 3.000%, em 1989. É a partir desse ano que o termo “hiperinflação” começou a ser utilizado para denominar o aumento acelerado dos preços, sem precedentes na história do país. 37 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO instituições regulatórias, criadas inicialmente para garantir um marco legal destinado a evitar os abusos das novas empresas prestadoras de serviço, seriam constantemente objeto de críticas e denúncias por parte do público. Esta situação impulsionou um forte descontentamento social que adquiriu força a partir da segunda metade da década de 90, período que compreende o último mandato de Menem. O segundo pilar do modelo econômico, a chamada “convertibilidade”, tinha por objetivo promover uma imediata estabilização econômica e financeira. Sua finalidade, por conseguinte, consistia em atacar de forma direta o problema da “hiperinflação”, responsável pela ausência total de confiança no sistema econômico e uma das causas principais do aumento da pobreza durante a década de 80. Após mais de um ano de tentativas frustradas de solucionar este problema – o que incluiria dois planos econômicos e dois ministros da Economia – a designação de Domingo Cavallo, em 1991, trouxe como novidade a implementação deste esquema monetário. Buscava-se, essencialmente, evitar a emissão descontrolada de moeda por parte do Estado e, simultaneamente, devolver a confiança do público no dinheiro nacional. Vale a pena ressaltar que durante os anos 80, na Argentina, como em muitos países latino-americanos, a emissão de dinheiro efetuada sem respaldo genuíno da autoridade monetária havia se transformado no mecanismo mais utilizado para aliviar o déficit público – método popularmente denominado na Argentina como impuesto inflacionário. Concretamente, a “convertibilidade” incluía a adoção de um tipo de câmbio fixo (um peso igual a um dólar), equivalência respaldada e garantida pela nova situação de independência do Banco Central, medida implementada em 1992.2 A paridade cambial significou uma solução definitiva ao problema crônico da “hiperinflação”, e deste modo ofereceu um período de 2 Em setembro de 1992, uma nova lei estabeleceu a independência do Banco Central, ao mesmo tempo em que o proibiu de emprestar dinheiro ou subscrever empréstimos ao governo (tanto federal como das províncias federadas), assim como às empresas estatais. 40 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI extraordinários do Congresso, cujos membros também deram respaldo à sua política de “déficit zero”, destinada a diminuir o insustentável problema fiscal do Estado. Sem embargo, a situação não deixaria de piorar, tanto em nível interno como internacional. Na frente externa, desde março daquele ano teve início um vertiginoso aumento do risco-país,3 impulsionado pelos rumores de que a Argentina poderia decretar a moratória da dívida, suspendendo os pagamentos previstos. Já em novembro, como conseqüência deste temor, ocorreu uma veloz retirada dos mercados. Este fato deixava o FMI como única fonte de auxílio financeiro externo do Estado argentino; no entanto, no princípio de dezembro, depois de se conhecer a verdadeira dimensão do déficit fiscal, o anúncio do FMI de que não realizaria um desembolso previamente pactuado com a Argentina configurou o estopim da crise, desencadeando a perda total de confiança pública no sistema financeiro. Isto levou o ministro Cavallo a adotar medidas profundamente impopulares, voltadas, entre outras coisas, a evitar a retirada massiva de depósitos bancários, mediante o que passou a ser chamado de corralito.4 No âmbito interno a situação política e social também começou a se complicar seriamente, em especial desde o final de julho de 2001, momento em que se produziu a maior greve geral enfrentada até aquele momento pelo governo da Alianza. Ao final de agosto, houve uma segunda manifestação multitudinária contra De la Rúa, realizada na capital federal. Finalmente, em 17 de dezembro, o anúncio do orçamento para 3 Em 23 de março de 2001, o risco-país superaria a barreira dos mil pontos. Em outubro, a Argentina já havia se transformado no país com o maior índice de risco do mundo, com 1.916 pontos. Depois disso, o risco-país não deixaria de aumentar, até atingir seu ponto culminante em maio de 2002, quando alcançou quase 4.900 pontos. 4 Este é nome pelo qual ficaram conhecidas as medidas utilizadas para conter a crise de confiança no sistema financeiro, que consistia na limitação da extração de efetivos como meio de evitar um pânico bancário. 41 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO 2002, que incluía um corte de 15% nos gastos, visando fundamentalmente a facilitar as negociações com o FMI, gerou massivos protestos populares em todo o país. Dois dias depois o presidente De la Rúa decretou o estado de sítio. A eclosão da crise de dezembro Em 20 de dezembro de 2001, o presidente De la Rúa e todos os integrantes de seu governo renunciaram, logo após a divulgação da notícia de que 29 pessoas haviam morrido em conseqüência de distúrbios ocorridos em Buenos Aires e nas maiores cidades do país. Os protestos, saqueos e greves que desencadearam as revoltas haviam se produzido para repudiar as medidas de austeridade, fortemente impopulares, adotadas para resolver a situação econômica do país. Recorde-se que, naquele momento, a economia já estava atravessando o quarto ano de recessão, enquanto o desemprego superava 20%, circunstâncias sem precedentes na história da Argentina. Com a renúncia do presidente – e a subseqüente sucessão de quatro fugazes presidentes interinos e o vazio político-institucional produzido em um contexto de profunda instabilidade econômica, o fim da “convertibilidade”, e cessação de pagamentos e fuga de capitais – teve início a etapa mais aguda da crise argentina.5 Crise econômica, conflito social e instabilidade política A recessão econômica prolongada e a impossibilidade de continuar mantendo o modelo econômico iniciado dez anos antes 5 Em janeiro de 2002, a “convertibilidade” foi oficialmente abandonada. Seguiu-se uma profunda desvalorização do peso e uma crise generalizada do setor bancário. Ao final desse ano, a economia havia se contraído 20% em relação ao princípio da recessão, em 1998. 42 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI impulsionaram o surgimento de uma contestação social generalizada que desencadeou a crise e afetou seriamente a estabilidade política do país por mais de um ano. Durante este período, a miséria cresceu vigorosamente. Cerca de 51% da população atingiu níveis de vida abaixo da linha de pobreza, enquanto 22% dos argentinos passaram a ocupar a categoria de extrema pobreza. Neste contexto, um governo de emergência, encabeçado pelo peronista Eduardo Duhalde, ficaria a cargo da administração do Estado a partir de janeiro de 2002, até que em maio de 2003, outro peronista, Néstor Kirchner, venceria as eleições e assumiria a presidência. Um dos aspectos mais interessantes do colapso argentino é que o alto nível de conflito social, trabalhista e sindical que precipitou a crise não cederia durante o período de transição. Ao contrário, os protestos, em suas mais diversas formas, mantiveram-se constantes durante esta nova etapa, marcada pela revisão do modelo econômico precedente. Com efeito, em 22 de maio de 2002, por exemplo, eclodiu a primeira greve geral realizada contra o governo Duhalde. O protesto, em que milhares de manifestantes criticaram a suposta complacência do governo às exigências do FMI, foi organizado por uma facção dissidente da Confederação Geral do Trabalho (CGT), e reivindicava ainda aumento salarial para compensar as perdas com a inflação. Um mês depois, outro evento, também derivado da agitação política e social, ajudaria a colocar em risco o governo de transição. Neste caso, a brutal repressão policial de uma manifestação liderada pela Central de Trabalhadores Argentinos (CTA) e secundada pelos piqueteros terminaria em graves incidentes, deixando um saldo de dois mortos e noventa feridos. Essa repressão provocou imediatamente uma manifestação de repúdio, com mais de trinta mil pessoas reunidas na Praça de Maio, ponto de encontro habitual dos ativistas. O descontentamento social evidenciado pelos protestos foi o fator que precipitou o anúncio, pelo presidente Duhalde, de eleições presidenciais antecipadas. 45 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO eficazes para lograr a vitória presidencial. O propósito de Kirchner em se mostrar como candidato de Duhalde, inimigo declarado de Menem, assim como seu perfil neodesenvolvimentista e crítico das políticas neoliberais, iriam garantir-lhe ao mesmo tempo a adesão de uma parte significativa do eleitorado. No mesmo sentido, seu compromisso declarado em manter o ministro da Economia de Duhalde, Roberto Lavagna, assegurava a continuidade das políticas econômicas revisionistas e de renegociação da dívida iniciadas durante o período de transição. Uma vez no governo, a intenção de Kirchner em manter a imagem de progressista defendida durante a campanha, contrária ao modelo de país simbolizado pelo menemismo, induziu-o a iniciar uma série de rápidas reformas de grande impacto, as quais seriam bem acolhidas por um setor da população. Além disso, essas reformas tinham como objetivo remediar a debilidade política do novo mandatário: de fato, Kirchner começava sua gestão carente de uma base política sólida (em conseqüência de seu parco peso relativo dentro do PJ), sem controle sobre os Poderes Legislativo e Judiciário, e desprovido de respaldo dos grupos tradicionalmente aliados do peronismo (sindicatos e empresariado nacional). Deste modo, apenas três dias depois de haver assumido a presidência, o ex-governador de Santa Cruz anunciou projetos de reformas sem precedentes nas Forças Armadas e na Polícia Federal Argentina (PFA). O objetivo destas iniciativas consistia em passar à reserva todos os oficiais supostamente envolvidos com as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar (1976-1983) e, no caso da PFA, afastar os comandantes acusados de corrupção. Em 25 de julho de 2003, como medida complementar, Kirchner revogaria o decreto que proibia a extradição de militares relacionados com essas violações, firmado pelo ex-presidente De la Rúa com o propósito de protegê-los diante da enxurrada de pedidos internacionais de prisão. Em agosto, o novo presidente buscou no Congresso a anulação das leis do “ponto final” e da 46 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI “obediência devida”, adotadas em 1986 e 1987 pelo então presidente Alfonsín para beneficiar os militares acusados de violações de direitos humanos. Finalmente, em 14 de junho de 2003, a Corte Suprema de Justiça declararia inconstitucionais estas leis e validaria, deste modo, a decisão do Congresso. Com todas estas medidas, Kirchner obteria o respaldo de um setor importante da classe média, muito sensível ao tema dos direitos humanos e tradicionalmente com uma grande influência sobre a opinião pública em geral. Outra das instituições que seria objeto de reformas significativas foi a Corte Suprema, a qual havia sofrido um grande desprestígio durante a gestão de Menem. Vale a pena esclarecer que durante a administração menemista, vários membros da Corte, escolhidos diretamente pelo presidente, haviam sido acusados de exarar julgamentos favoráveis em questões controversas relacionadas a atos emanados do Poder Executivo. Com o objetivo de revitalizar o papel desta instituição, o governo de Kirchner promoveu uma série de medidas destinadas a renovar sua composição, afastando aqueles magistrados considerados partidários do menemismo e nomeando em seu lugar juízes com destacadas trajetórias profissionais e menos vinculados ao poder político. As eleições legislativas de 2005, a consolidação de Kirchner e o fim da crise O resultado das eleições para renovação parcial do Congresso Nacional, realizadas em outubro de 2005, serviu para afiançar o poder do presidente Kirchner frente a seu antigo aliado, mas nesse momento principal adversário, Duhalde, e legitimar sua autoridade política nacional. É por este motivo que as eleições foram encaradas pelo presidente como um plebiscito sobre sua gestão. Concretamente, o triunfo obtido por sua coalizão, Frente para a Vitória, assim como o dos demais grupos aliados na maior parte dos distritos eleitorais do país, proporcionou a Kirchner uma força significativa na Câmara dos Deputados e uma maioria própria no 47 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO Senado. Apesar da heterogeneidade da base de apoio com a qual o governo continuou contando no Congresso, a renovação parlamentar permitiu ao kirchnerismo maior independência com relação ao grupo de legisladores duhaldistas, dominante durante a transição, porém menos numeroso depois das eleições de outubro. Além disso, o fortalecimento político do ex-governador de Santa Cruz viria acompanhado do anúncio de uma forte recuperação de alguns indicadores socioeconômicos. Com efeito, ainda que fosse certo que o combate à pobreza continuaria sendo um objetivo postergado pelo governo, tanto o desemprego como, em especial, o PIB e a situação fiscal mostrariam sinais de notória melhoria durante a administração Kirchner. Esses sinais forneceram, evidentemente, um argumento bastante firme para aqueles defensores do governo que não tiveram dúvidas em vincular a gestão do presidente com o final da crise. As oscilações da relação entre a Argentina e o FMI Outro dos aspectos cruciais que merece análise, devido a seu impacto econômico, é, indubitavelmente, a relação entre a Argentina e o FMI no contexto de dependência financeira e crise econômica. Desde o segundo semestre de 2001, momento em que a capacidade da Argentina de ter acesso aos mercados externos de capital começou a se deteriorar, os vínculos entre a Argentina e o FMI se tornaram muito mais difíceis e complexos. Os rumores sobre o iminente default, somados ao agravamento da situação das contas públicas e ao fato de que a Argentina havia violado o que fora pactuado com o organismo multilateral, colocaram o Fundo frente a um delicado dilema. A primeira alternativa consistia em continuar sua política de respaldo incondicional, apesar do descumprimento sistemático dos acordos que haviam possibilitado os desembolsos anteriores, evitando assim uma severa crise, mas ao mesmo tempo prolongando uma situação insustentável. A segunda opção, que seria 50 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI Finalmente, em dezembro de 2005, seguindo os passos do Brasil, o governo tomou uma decisão delicada, que seria aproveitada para anunciar a “virada nas relações com o FMI e o início de uma nova etapa”. Concretamente, esta decisão implicou o cancelamento por adiantamento da totalidade da dívida de quase dez bilhões de dólares que a Argentina mantinha com o Fundo, utilizando para isso um terço das reservas do Banco Central. Apesar de que, de fato, este cancelamento não teve um impacto tão radical como o anunciado, pois a Argentina continua sofrendo auditorias anuais pelo organismo, a medida evidentemente ajuda a limitar as pressões do Fundo, aumentando os “graus de liberdade para a decisão nacional”, segundo as palavras do presidente Kirchner. Política internacional Também nas relações internacionais a Argentina teve o início do século XXI marcado por uma ruptura com o paradigma prevalecente durante a última década do século anterior. O paradigma de política externa estabelecido a partir do final da Guerra Fria, em 1989, que coincide com a ascensão de Menem à presidência, foi substituído por um novo conjunto de ações internacionais que indicam claramente o abandono da formulação anterior. Esta seção apresenta o desenvolvimento dessas ações nas principais frentes externas do Estado argentino, com o intuito de destacar as transformações ocorridas que permitem visualizar a elaboração de um novo projeto de inserção internacional, ainda que haja uma perene discussão no país se de fato existe ou não um projeto nacional. Somam-se a estas configurações mais conjunturais duas características nacionais bastante particulares e permanentes na evolução histórica das relações internacionais da Argentina. Primeiramente, a política externa argentina é freqüentemente conduzida visando à política doméstica. Em outros termos, no caso da Argentina, mais do que em outros países, o processo político doméstico possui influência decisiva na formulação e 51 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO implementação da política externa, a qual é utilizada, por sua vez, como um instrumento de política interna. Isto faz com que a política externa seja tratada como mais uma política governamental, dentre outras, em vez de uma política de Estado por excelência, que se supõe desvinculada das variações dos humores domésticos ou das sucessões de governos ao longo do tempo. Em segundo lugar, existe uma assimetria institucional fundamental, cuja compreensão é imprescindível para que se possa analisar o caso argentino: o processo decisório da política externa é marcado pela predominância da presidência da Nação sobre as demais estruturas institucionais do Estado. Por meio de diversos mecanismos, como o controle da agenda e da decisão final em temas de política externa, ou a nomeação, pelo presidente da República, dos ocupantes dos principais cargos na burocracia diplomática, o fato é que na Argentina a presidência tem prevalência sobre quaisquer outras instâncias governamentais no momento de decidir os rumos das ações internacionais do país. A política externa argentina no período menemista (1989-1999) A reorientação da política externa diante da emergência da nova ordem política e econômica que se construía a partir de meados dos anos 1980 representou uma resposta similar à de outros países em desenvolvimento e desenvolvidos, na medida em que seus principais elementos foram a redefinição de alianças estratégicas, a participação de projetos de integração econômica regional e a nova estratégia de inserção na economia mundial. Na Argentina, essa reorientação resultou de uma avaliação crítica da decadência argentina, que passou de uma das nações mais desenvolvidas no começo do século XX a país subdesenvolvido, com frustrante evolução econômica na segunda metade do século. A Argentina, da mesma forma que outros países latino- americanos, passou por um processo de reformulação das concepções 52 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI dominantes sobre o desenvolvimento nacional. Assim, as diferentes estratégias utilizadas desde os anos 1930 foram substituídas por um novo paradigma de ação governamental, no que se refere aos assuntos domésticos e internacionais. Na política externa, o modelo ficou conhecido como “realismo periférico”, conceituação defendida pelo cientista político Carlos Escudé, referência teórica que conferia sentido à nova orientação internacional do país.9 Resumidamente, o sustento teórico da política externa argentina a partir do começo dos anos 1990, tal como elaborado por Escudé em 1992, procurava propor um comportamento internacional coerente com as novas realidades política e econômica internacionais, consideradas as características particulares da Argentina no contexto do sistema internacional. Assim, enquanto Estado dependente, vulnerável e de pouca relevância estratégica, a Argentina deveria orientar sua política externa pelo princípio básico de redução dos custos e riscos. Concretamente, convinha ao Estado argentino posicionar o país da forma mais favorável possível, por meio da cooperação com as potências dominantes, em todas as áreas em que não estivesse em jogo o seu próprio interesse nacional. Pelo realismo periférico, quando a viabilidade do desenvolvimento econômico fosse colocada em xeque, as confrontações, manejadas de forma prudente, deveriam restringir-se ao campo econômico. Isto significa que, a despeito de quaisquer divergências com as potências dominantes nesse campo, as relações de cooperação política com elas deveriam ser preservadas, particularmente com os Estados Unidos, em cuja área de influência situa-se a Argentina. Embora não houvesse garantia de êxito associada a esta estratégia, tratava-se de um princípio de conveniência cujo objetivo era justamente minimizar os custos e riscos. 9 Ver Escudé, Carlos, “Realismo Periférico”, Buenos Aires, Ed. Planeta, 1992. 55 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO organização do espaço político e econômico das Américas. O distanciamento da potência norte-americana foi marcante durante a gestão de Duhalde, que chegou a formular severas críticas ao governo norte- americano, como quando afirmou, em junho de 2002, que as maiores dificuldades enfrentadas pela região seriam a “ignorância” e a “pouca preocupação” desse governo com a América do Sul, já que os Estados Unidos não se consideram responsáveis pela situação dos países sul- americanos e preferem priorizar outras partes do mundo, nas quais o fluxo de petróleo está em jogo. Declarações fortes, feitas pelo presidente, que seriam impensáveis no contexto do paradigma menemista de política externa prevalecente nos anos 90. Os últimos trinta meses do período analisado referem-se ao governo Kirchner, isto é, de maio de 2003 ao final de 2005. Nesta parte final, procuraremos apresentar as principais linhas da política externa kirchnerista, cujo desenvolvimento permite visualizar que se trata de algo bastante diferente do que havia no período Menem, quando prevalecia o paradigma do “realismo periférico”, ou até mesmo das indefinições dos governos de crise e transição. A coincidência do ano de ascensão ao governo do presidente Kirchner e do seu homólogo brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), e a convergência ideológica desses dois governos foram fatores que impulsionaram a construção de uma nova fase nas relações bilaterais e nas políticas regionais dos dois países. Ainda durante a campanha presidencial, o presidente Lula cometeu a impropriedade diplomática de manifestar apoio à candidatura Kirchner; o gesto, no entanto, pode ter favorecido a inclinação positiva de Kirchner com relação ao aprofundamento da parceria estratégica com o Brasil. Assim, logo em seu primeiro ano de mandato, Kirchner firmou dois importantes entendimentos com o Brasil, que balizaram as relações 56 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI argentino-brasileiras desde então. Primeiramente, os dois presidentes firmaram, em outubro de 2003, o “Consenso de Buenos Aires”, marco de relançamento do Mercosul, depois de cinco anos de crise e recessão; este acordo também estabeleceu uma posição comum nas negociações da ALCA, que consistia na oposição à proposta norte-americana de avançar as negociações para cumprir o cronograma acordado na III Cúpula das Américas, em 2001. Cinco meses depois, em março, era assinada a “Declaração de Copacabana”, pela qual Kirchner e Lula marcaram posição comum também para as relações com o FMI, especialmente quanto à reivindicação comum de tratamento menos restritivo às suas políticas fiscais; Copacabana também consolidou a aliança dos dois países nos foros internacionais e os dois presidentes fizeram questão de destacar um acordo firmado entre os governos de incorporar diplomatas do outro país em suas delegações no Conselho de Segurança das Nações Unidas, sempre que ocuparem assentos não-permanentes do órgão. Naturalmente, embora o período de 2003 a 2005 haja sido marcado pela convergência política, não foi ausente de desentendimentos, em especial nas questões comerciais. Mesmo depois de Buenos Aires, ou de Copacabana, o governo argentino ficou bastante insatisfeito com a recusa do governo brasileiro diante do seu pedido de estabelecer novas salvaguardas dentro do Mercosul, feito em setembro de 2004. A insistência argentina sobre a necessidade das medidas protecionistas e a resistência brasileira ao que era considerado um retrocesso na integração somente tiveram seu fim – não sem duras negociações de mais de um ano e meio – quando, no princípio de 2006, os dois governos assinaram o Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC), que permite aos governos estabelecer salvaguardas para determinados setores, desde que preenchidos os requisitos do acordo. Outra manifestação dos desentendimentos entre os dois governos diz respeito ao pleito brasileiro por um assento permanente no Conselho 57 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO de Segurança das Nações Unidas, pretensão para a qual o governo brasileiro buscou apoio de governos de diversos países, incluídos os sul-americanos. Enquanto o governo brasileiro reivindica o direito a um assento permanente na reforma do órgão, a Argentina defende um projeto de reforma alternativo, que crie um assento permanente para a região, que seria ocupado, de forma alternada, por diferentes países. A reivindicação brasileira, explícita durante o governo Lula, gera desconforto nos meios políticos argentinos, uma divergência sobre a qual dificilmente será possível encontrar um ponto de consenso por absoluta incompatibilidade dos projetos alternativos defendidos por cada um dos países. Neste meio tempo, a Argentina não ficou alheia aos movimentos de integração realizados pelos países sul-americanos, cujo símbolo maior não pode ser outro senão a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, em dezembro de 2004, logo após a criação de um acordo de integração entre os blocos do Mercosul e da Comunidade Andina de Nações (CAN). O novo bloco, integrado pelos países destes, mais Chile, Guiana e Suriname, recebeu a significativa sigla “CASA”, que embora não reflita as iniciais do nome oficial, denota o mesmo sentido atribuído à organização pelos países da região, tanto faz se a palavra é utilizada na língua portuguesa, do Brasil, ou na castelhana, dos demais países sul-americanos. No âmbito da vizinhança mais próxima, vale a pena ressaltar que houve um tema central nas relações com Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai: a questão energética. Submerso em uma profunda crise de abastecimento energético, que acometeu também outros países sul- americanos justo no momento em que a economia nacional dava seus primeiros sinais de recuperação depois da dramática crise, o governo argentino optou por privilegiar o suprimento da demanda doméstica, em detrimento das exportações de gás natural para o Chile e de energia elétrica para o Uruguai, entre abril e maio de 2004. Paralelamente, a Argentina buscou garantir um aumento no fornecimento de energia elétrica 60 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI argentina, a estratégia do governo foi estabelecer um acordo com o Brasil, que consolidou o entendimento comum de que os dois países negociarão em conjunto a abertura comercial com a China. Em conjunto, as políticas externas da Argentina no período do governo Kirchner apontam para a inquestionável ruptura com o paradigma precedente, do menemismo, e também para a ausência de um paradigma durante a crise e o governo de transição. Ainda que persista uma permanente discussão no debate público argentino, qual seja, se a nação possui um projeto de inserção internacional, manifestação pontual da questão mais geral: será que a Argentina possui, afinal, um projeto nacional? Não se pretende responder diretamente a questão, apenas indicar que se trata de uma discussão relevante no cenário político argentino; os termos do debate e os possíveis posicionamentos dependem, em grande medida, do ponto de vista do intérprete. Conclusão Argumentamos que os primeiros cinco anos do século na Argentina foram marcados pelo colapso de um modelo de país que seria completamente revertido como conseqüência da magnitude da crise eclodida em dezembro de 2001. Durante o período revisionista posterior à crise, os três pilares do modelo econômico que havia imperado durante os anos 90 – privatizações, “convertibilidade” e recurso ao crédito internacional – sofreram transformações radicais. Em primeiro lugar, a paridade cambial – o contrato econômico fundamental da sociedade Argentina com o Estado – foi abandonado e substituído por um sistema de câmbio flutuante, com dólar alto. Em segundo lugar, apesar de não optar por medidas drásticas como a reestatização das empresas privatizadas, o governo negou-se a aceitar as pressões destas companhias, evitando, deste modo, a renegociação de contratos e aumentos tarifários. Foram revertidos, assim, dez anos de preços monopolistas e incrementos 61 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO regidos pela inflação norte-americana. Finalmente, o default da dívida externa eliminou a opção do recurso ao crédito externo usado como mecanismo para financiar o déficit, fazendo valer a necessidade de se manter uma genuína solvência fiscal, inexistente durante a década precedente. A crise, a moratória da dívida externa e o reconhecimento da co-responsabilidade do FMI também ajudaram a transformar a situação de extrema dependência que a Argentina havia mantido com a entidade financeira. Além disso, a nova administração logrou solucionar alguns dos problemas econômicos mais graves derivados da crise. Assim, durante a atual gestão kirchnerista o PIB argentino alcançou um crescimento médio de quase 9% desde 2003, juntamente com o forte superávit fiscal que em 2005 alcançou o recorde de 20 bilhões de pesos, ou 4,4% do PIB, obtido no período e que deu por terminada a recessão iniciada em 1998. No âmbito da política externa, o governo Kirchner deu continuidade à reorientação iniciada ainda no governo de transição e implementou a opção por uma política regional de alto relevo, com a adesão da Argentina ao processo de integração da América do Sul e a valorização e aprofundamento das relações bilaterais com países próximos, especialmente a parceria estratégica construída com o Brasil no âmbito do Mercosul. Configurava-se, desta forma, um novo paradigma de política externa, absolutamente diverso daquele predominante no período menemista, quando prevaleceu o modelo de aliado especial dos Estados Unidos na região, modelo baseado em uma percepção realista da política internacional e do conseqüente papel de um país periférico, vulnerável e dotado de escassos recursos de poder. Qual é o balanço final que podemos apresentar desta nova agenda desenvolvimentista? Ainda que o crescimento econômico e a boa situação das contas públicas tenham representado êxitos indubitáveis do governo, a dívida social permaneceu presente, com escassas alterações durante o período, colocando um limite aos avanços da gestão Kirchner. 62 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI Evidentemente, a luta contra a pobreza, o desemprego e a desigualdade social não chega a acompanhar o bom desempenho da atividade econômica, deixando quase inalteradas muitas das condições que deram origem à contestação social imediatamente anterior à crise de dezembro de 2001. Esta é uma das razões principais que explicam a continuidade do alto nível de conflito político-social evidenciado depois de finalizada a situação de crise e expresso por meio da persistência do ativismo de alguns grupos piqueteros e outros setores sociais. Cronologia 2001 2 de março – Ministro da Economia, José Luís Machinea, renuncia e são feitas mudanças no governo. 20 de março – Novo gabinete é anunciado pelo presidente De la Rúa e o novo ministro da Economia, Domingo Cavallo, anuncia novas medidas. 3 de abril – O presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, cancela visita ao país, demonstrando tensões entre Argentina e Brasil com relação a questões comerciais. 20 de junho – Cúpula do Mercosul comemora dez anos do bloco com redução da Tarifa Externa Comum (TEC) e decisão sobre a criação de um tribunal de resolução de disputas 19 de julho – Governo enfrenta maior greve dos últimos anos. 1º de dezembro – Governo anuncia novas medidas de restrição ao saque e confisca fundos de pensão. 17 de dezembro – Governo anuncia proposta de orçamento para 2002 na tentativa de facilitar um acordo com o FMI. Anúncio provoca dramático protesto popular. 20 de dezembro – Presidente Fernando de la Rúa renuncia, junto com os Ministros da coalizão, após decretar estado de 65 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO 22 de março – FMI aprova desembolso depois de duras negociações com o governo argentino. 21 de abril – Crise energética argentina gera cortes nas exportações de gás natural para o Chile e energia elétrica para o Uruguai. 4 de maio – Governo responsabiliza empresas de serviços públicos privatizados e governos passados pela crise energética 16 de julho – Organizações de piqueteros realizaram protestos na capital federal que terminaram em violência e o governo recebe críticas por adotar a política de não- repressão às manifestações. 29 de julho – FMI divulga relatório em que reconhece falhas na atuação do organismo nos acordos com a Argentina durante os anos 90. 7 de dezembro – Pedido de salvaguardas comerciais é negado pelo governo brasileiro. 8 de dezembro – Doze países sul-americanos instituem a Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa). 2005 14 de janeiro – Governo lança operação de troca dos títulos do país em default. 31 de janeiro – Presidentes Kirchner e Hugo Chávez assinam acordos nas áreas energética, de telecomunicações e financeira. 14 de fevereiro – Piqueteros vão às ruas em ação nacional de protesto exigindo melhoras nos planos sociais e mais emprego. 6 de abril – Diferentes grupos piqueteros se unem para realizar protesto conjunto e realizam ações em dezenove províncias e na capital federal. 66 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI 27 de abril – Primeira dama participa de comício político de preparação para as eleições legislativas de outubro. 20 de maio – Empregados estatais e docentes universitários fazem paralisação de 24 horas por melhores salários. 27 de maio – Chanceler Rafael Bielsa faz críticas à ambição brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. 7 de junho – Presidente Kirchner lança sua frente para disputar as eleições legislativas de outubro. 19 de setembro – Governador de Entre Ríos apresenta denúncia contra o Uruguai na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 24 de outubro – Resultados das eleições modificam o mapa político no Congresso. 5 de novembro – Países do Mercosul agem em concerto durante a IV Cúpula das Américas e impedem a retomada das negociações da ALCA. 9 de dezembro – XX Reunião de Cúpula do Mercosul é marcada pela adesão da Venezuela como país-membro do bloco. 18 de dezembro – Presidente Kirchner defende a quitação da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e anuncia começo de uma nova fase. Bibliografia GODIO, Julio. (2003), “Los movimientos piqueteros ante una seria disyuntiva política”. Rebanadas de Realidad, Buenos Aires, dezembro. http://www.rebanadasderealidad.com.ar/godio-6.htm INTERNATIONAL MONETARY FUND. (2003), “The role of the IMF in Argentina, 1991-2002. Draft issues paper for an evaluation by the Independent Evaluation Office (IEO)”. Julho. http:// www.imf.org/External/NP/ieo/2003/arg/index.htm 67 A ARGENTINA NOS PRIMEIROS CINCO ANOS DO SÉCULO XXI: CRISE, TRANSIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO ROJAS, Mauricio (2003), “Historia de la crisis argentina”. Timbro/SFN y Fundación CADAL. http://www.cadal.org/libros/pdf/ Historia_de_la_Crisis_Argentina.pdf —) | + om 71 Introdução A Bolívia insere-se na América do Sul acumulando as posições nada agradáveis de país mais pobre, mais desigual e com a maior parcela da população vivendo abaixo da linha de pobreza. A isso soma-se o fato de que, entre 2001 e 2005, cinco diferentes presidentes ocuparam o Palácio Quemado. Os péssimos indicadores socioeconômicos e políticos, senso comum quando tratamos desse país andino, já sinalizam, portanto, a complexidade dos desafios que se apresentam à Bolívia neste século XXI. O período analisado no presente artigo (2001-2005) evidencia, no âmbito doméstico, instabilidade política, erosão da governabilidade, altos índices de conflitos sociais, enfraquecimento dos partidos políticos tradicionais e fortalecimento dos movimentos indígenas como ator político. Todos esses processos na esfera política nacional tanto sofreram como exerceram impactos nas relações regionais e internacionais da Bolívia. Por um lado, as crises políticas prejudicaram o prosseguimento de uma política externa de inserção do país no movimento de integração regional. Por outro lado, a ajuda internacional, principalmente dos países vizinhos, foi essencial para assegurar o respeito às instituições democráticas bolivianas. Tendo como objetivo compreender as principais questões que compõem a agenda boliviana nesse início de século, o presente artigo está Cristina Alexandre* * Mestranda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e assistente de coordenação do OPSA (E-mail: calexandre@iuperj.br). 72 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI organizado em três seções, além desta introdução e da conclusão. Primeiramente, serão apresentadas, no cenário doméstico, as crises de governabilidade e do sistema de partidos, com a ascensão política do movimento indígena. Na seção seguinte, segue-se para o âmbito regional, onde o ressurgimento da rivalidade com o Chile e a inserção da Bolívia no projeto de integração energética serão analisados. Por fim, em esfera internacional, serão destacados os temas da dependência da ajuda externa, da política antidrogas e da política comercial. Crises de governabilidade e do sistema de partidos e ascensão política do movimento indígena A Bolívia, desde sua independência, sofreu inúmeros abalos em sua vida político-institucional. Após a fundação da República, em 1825, contam-se mais de cem golpes e contragolpes de Estado. Com a redemocratização do regime político, ocorrida no início dos anos 80, em sincronia com os demais países sul-americanos, a Bolívia passou a receber análises positivas e prognósticos de sucesso foram feitos a partir de suas experiências de modernizações econômica e política. No campo econômico, o país, ainda que afetado – assim como os demais Estados da região – por uma crise de endividamento externo e surtos inflacionários, aplicou as reformas estruturais sugeridas pelo Consenso de Washington. O processo hiperinflacionário iniciado em 1982 foi tratado com um programa de estabilização de caráter ortodoxo: a Nova Política Econômica, estabelecida pelo Decreto Supremo no 21.060/ 85, que conseguiu promover a estabilização da economia boliviana. No âmbito político, apesar de breve instabilidade surgida no primeiro governo de transição, chefiado por Siles Suazo (1982-85), o regime consolidou-se após 1985, respeitando a periodicidade das eleições, os princípios democráticos e alternando governos de coalizão pós-eleitoral 75 BOLÍVIA: INSTABILIDADE POLÍTICA E DIFICULDADE DE INSERÇÃO REGIONAL Durante os meses de setembro e outubro de 2003, protestos populares organizados contra aquele projeto sitiaram La Paz e foram violentamente reprimidos pelas Forças Armadas, resultando em mais de sessenta mortos e quinhentos feridos. A saída constitucional para a crise foi possível com o desligamento do vice-presidente Carlos Mesa Gisbert com relação ao governo por discordar de suas medidas de repressão às manifestações. Sánchez de Lozada, acuado pelos protestos que não cediam, renunciou à presidência e exilou-se nos EUA. Carlos Mesa assumiu a presidência apoiado em uma taxa de popularidade de 80%, com o compromisso de evitar a violência para conter conflitos sociais e de cumprir a “agenda de outubro”, que consistia, basicamente, na realização de um referendo sobre a política de gás natural e na convocação de uma Assembléia Constituinte. Em sua tentativa de montar um gabinete independente e se afastar dos partidos políticos tradicionais, os quais condenava pelo alto nível de corrupção e atraso sócio-econômico no país, Mesa fragilizou ainda mais as instituições democráticas bolivianas. Tendo enfrentado o expressivo número de mais de oitocentos protestos sociais em vinte meses de governo, o presidente parecia buscar atender a todas as demandas sociais por meio da promulgação de Decretos Supremos. Ocorre que na Bolívia, o chefe do Executivo, ao contrário da maior parte dos países sul-americanos, carece de poderes para emitir decreto com força de lei. Assim, a cada tentativa de solucionar os problemas advindos, Mesa apenas transferia ao Congresso a decisão final sobre o assunto. Presidente sem partido e carente de uma base sólida de apoio no Congresso, Mesa tampouco soube buscar o diálogo com os parlamentares. À população, explicava o fracasso de suas iniciativas por conta da má vontade do Congresso. Na análise do tratamento conferido à política de petróleo e gás, em específico, é possível verificar os movimentos erráticos e titubeantes do então presidente. A aparente vitória no referendo nacional sobre essa 76 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI questão – no qual o respaldo às cinco perguntas formuladas oscilou entre 54% e 92% – não facilitou a formulação de uma nova lei. Com efeito, o referendo configurou-se mais em um plebiscito sobre o governo Mesa e, além de ter sua validade questionada por alguns constitucionalistas, mostrou- se extremamente ambíguo quando se tratou de convertê-lo em lei. Após quase dois anos de debates, a lei aprovada pelo Congresso determinou a recuperação, para o Estado, da propriedade dos hidrocarbonetos na boca do poço; uma maior intervenção estatal no mercado por meio da refundação da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) e da fixação de preços no mercado interno; a migração obrigatória dos contratos de risco compartilhado já assinados entre o Estado e as empresas privadas; e a cobrança de 18% de royalties e 32% de Imposto Direto sobre Hidrocarbonetos (IDH) sobre as atividades no setor. O presidente Mesa chegou a anunciar sua intenção de vetar integralmente o texto, mas na impossibilidade de um diálogo nacional e frente a inúmeros protestos nas ruas, a lei foi promulgada pelo presidente do Congresso, em maio de 2005, sem agradar aos movimentos sociais, que clamavam pela nacionalização total do setor, nem às empresas petrolíferas, que consideravam confiscatória a nova tributação e questionavam a imposição da migração de contratos. Após um mês de intensos protestos, o presidente Mesa renunciou por ter se mostrado incapaz de solucionar o embate de forças entre as demandas do setor oriental do país – por maior autonomia política e a manutenção do modelo econômico liberal – e as reivindicações trazidas pelos movimentos indígenas e sindicalistas do ocidente, defendendo a nacionalização dos hidrocarbonetos e a convocação de uma Assembléia Constituinte. Mesa não obteve êxito em destravar a agenda política do país. Seu governo sem partidos transmutou-se em uma situação de vácuo de poder que só poderia ser superada por meio de eleições gerais. A renúncia de Mesa permitiu aos atores políticos em cena a construção de 77 BOLÍVIA: INSTABILIDADE POLÍTICA E DIFICULDADE DE INSERÇÃO REGIONAL um consenso mínimo em torno da posse do presidente da Corte Suprema de Justiça, Eduardo Rodríguez, para comandar um governo de transição. As eleições gerais foram antecipadas para dezembro de 2005 e trouxeram como novidade a escolha direta dos governadores dos nove departamentos bolivianos, até então nomeados pelo presidente da República. A reforma vinha sendo reivindicada pelo setor oriental do país, em especial, pelo departamento de Santa Cruz. Os governadores eleitos, contudo, ainda carecerão de poderes constitucionalmente atribuídos e, principalmente, de autonomia orçamentária. Mais ainda, os conselheiros departamentais continuarão a ser escolhidos de modo indireto, por dois anos, tendo apenas funções de fiscalização, ou seja, muito aquém do que seria um Legislativo regional. A consolidação da descentralização política, portanto, ficou adiada para julho de 2006, quando está prevista a realização do referendo sobre as autonomias regionais e a convocação da Assembléia Constituinte. Até lá, os novos atores políticos poderão representar mais um potencial ponto de conflito com o futuro presidente. Na disputa pela presidência, dentre os oito candidatos inscritos, apenas três tinham chances reais: Morales, Quiroga e Medina. Morales, líder indígena e cocaleiro, foi candidato pelo MAS; o ex-presidente Quiroga, antigo membro da ADN, lançou-se candidato pelo “grupo de cidadãos” Poder Democrático e Social (Podemos), com intuito de se desvencilhar da marca dos partidos tradicionais e da imagem do ex-ditador e ex- presidente, Hugo Banzer; Medina, ex-líder do MIR, adotou estratégia parecida ao fundar o novo partido Unidade Nacional (UN). Em que pese o temor de que a clivagem política então presente no Congresso se repetisse nas urnas e inviabilizasse um segundo turno indireto, o candidato do MAS conquistou maioria absoluta em primeiro turno, com 53,7% dos votos, em uma eleição que teve a mais alta taxa de participação em mais de vinte anos de democracia (85%). Pela primeira vez em sua história, os bolivianos elegeram um presidente indígena. 80 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI Contudo, as crises políticas que abalaram o país no período impediram qualquer avanço em suas pretensões. Em cinco anos, cinco diferentes ministros passaram pela Chancelaria boliviana; não causa espanto, portanto, a falta de coerência na política externa ao longo desse período. Ademais, em um de seus poucos objetivos permanentes – o aprofundamento da integração regional – o país acumulou mais derrotas do que vitórias. Na prática, o que se observou foi um grande paradoxo entre a política de projeção regional pretendida pela Bolívia e a visão que deste país têm seus vizinhos sul-americanos. Estes se preocuparam muito mais em evitar que a instabilidade política desaguasse em novos regimes autoritários e em diminuir ao máximo os efeitos que as crises poderiam gerar na região. Assim, a interação fundamental com os demais países e organizações regionais se deu no marco de missões para garantir o respeito à institucionalidade democrática durante as crises de 2003 e 2005, além do envio de observadores internacionais para o referendo popular de 2004 e as eleições de 2002, 2004 e 2005. Nesse âmbito, merece destaque o papel do Brasil, que foi especialmente ativo nessas relações, visando não só a reforçar sua liderança regional, mas também defender interesses específicos, como a forte presença da Petrobras na Bolívia1 e a dependência do gás natural boliviano, que representou, em 2005, cerca de 50% do consumo brasileiro. Frente a esse turbulento cenário interno, dois temas interligados sobressaíram como retrocesso e fracasso na agenda regional: o ressurgimento 1 A Petrobras Bolívia, criada em 1995, opera em todas as áreas do setor de petróleo e gás – da exploração e produção ao refino e distribuição de combustíveis. A empresa explora 40% das reservas bolivianas de hidrocarbonetos, nos campos de San Alberto e San Antonio (departamento de Tarija), controla as duas principais refinarias e 20% da rede de postos de gasolina. Com investimentos da ordem de US$1,5 bilhão, é a maior empresa da Bolívia, sendo responsável por 22% da arrecadação de impostos no país. Além da Petrobras, muitas empreiteiras brasileiras têm negócios no país, e estima-se que brasileiros controlem 35% da produção de soja boliviana. 81 BOLÍVIA: INSTABILIDADE POLÍTICA E DIFICULDADE DE INSERÇÃO REGIONAL da rivalidade com o Chile e a oportunidade perdida quanto à integração energética. Com efeito, o conflito com o país vizinho, ademais de estar assentado em uma demanda territorial histórica, passou a ter relação com um dos temas mais importantes da atual agenda boliviana, qual seja, a política de exploração do gás natural. Este, por sua vez, ganhou especial relevância para os países do Cone Sul – especialmente Argentina, Brasil e Chile – em um início de século marcado por crises energéticas. O primeiro tema a ser abordado – a rivalidade histórica chileno- boliviana – teve origem na Guerra do Pacífico (1879-1884), quando a Bolívia perdeu 140 mil km2 de território e 400 km de costa, conforme acordado no Tratado de Paz e Amizade, de 1904. Insatisfeito com a sua condição de mediterraneidade, o país vem, há muito tempo, mobilizando esforços para retomar uma saída soberana para o mar. A falta desse acesso ao mar foi, muitas vezes, apresentada como um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento econômico. Um estudo realizado em 2004 pela Câmara Nacional de Indústria (CNI) da Bolívia calculou em US$120 milhões a perda anual por conta desse fator. O argumento, no entanto, vem sendo rebatido pelo Chile ao alegar que a Bolívia já dispõe de acesso livre de tarifas aos portos chilenos de Arica e Antofagasta, onde possui postos alfandegários e armazéns. Assim, durante os anos 90, apesar do aprofundamento de uma agenda de cooperação comercial entre os dois países, a agenda negativa se manteve, com a persistência da demanda marítima e a inclusão de novas disputas em torno dos direitos sobre o manancial do Silala e outros rios fronteiriços. Com efeito, as diferenças semânticas no tratamento do problema – “diferendo territorial chileno-boliviano”, para o Chile, enquanto que “enclausuramento boliviano” e demanda por “saída soberana ao Pacífico”, para a Bolívia – já dão mostras das dificuldades a serem superadas. O Chile, com base em uma forte tradição legalista, defende, a partir de argumentos estritamente jurídicos, a perfeita validade e a plena vigência 82 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI do Tratado de 1904, e reafirma o caráter bilateral do problema. Ainda, face aos recentes acontecimentos, desqualifica a legitimidade da demanda boliviana ao estabelecer uma conexão clara entre o que considera problemas de governabilidade e a politização em torno da questão marítima (Hirst, 2004). Já a Bolívia vem tradicionalmente buscando a inserção do problema em outras duas dimensões, além da bilateral: uma trilateral, que inclui o Peru, tendo em vista que qualquer revisão de fronteiras entre Chile e Bolívia necessita da aprovação deste país; e uma multilateral, que prevê o tratamento da demanda em fóruns internacionais – especialmente regionais –, alegando que qualquer movimento de integração tem por desafio a solução do conflito entre os dois vizinhos (Siles, 2004). Apesar de não reconhecer o caráter multilateral da questão, o Chile se vale, em sua defesa, de um argumento que se dirige ao público regional ao alertar para os riscos de uma enxurrada de novos pedidos de revisão de fronteiras. Atualmente, pode-se dizer que o conflito chileno-boliviano representa o mais grave problema fronteiriço a ser superado na América do Sul. A derrota na Guerra do Pacífico permanece viva na memória coletiva dos bolivianos e, infelizmente, vem sendo utilizada por atores políticos bolivianos em troca de apoio popular. Com efeito, em 2003, a rivalidade foi reativada a partir da mobilização de grande parcela da população boliviana contra um projeto de exportação de gás natural por um porto chileno, que culminou com a renúncia do presidente Sánchez de Lozada. O vice-presidente Mesa, ao assumir o cargo – sem maioria sólida no Congresso e carente de legitimidade – buscou conquistar apoio popular adotando uma estratégia mais agressiva na reivindicação marítima, indo ao encontro dos movimentos sociais que, havia pouco, tinham derrubado um presidente. O novo rumo no tratamento da matéria – que nunca saiu completamente da agenda externa boliviana – consistiu basicamente em recolocar a demanda marítima em discussão em âmbitos multilaterais e condicionar a venda de gás natural ao Chile à conquista de uma saída 85 BOLÍVIA: INSTABILIDADE POLÍTICA E DIFICULDADE DE INSERÇÃO REGIONAL prover Argentina, Chile, Brasil e Uruguai com o gás do campo de Camisea, Peru, foi resultado da iniciativa dos presidentes do Chile e da Argentina. O segundo, do Gasoduto do Sul, previa a ligação das reservas venezuelanas ao Brasil e à Argentina por um gasoduto de mais de oito mil km, com capacidade de transporte de 150 MMCD de gás. O afastamento da Bolívia nos dois projetos ocorreu devido à incerteza quanto ao novo marco regulatório a ser definido no setor de gás natural do país. Como visto na seção anterior, a nova Lei de Hidrocarbonetos, aprovada em maio de 2005, refletiu grande ambigüidade em seus preceitos e não pôde ser plenamente regulamentada com a renúncia do presidente Mesa. A posse de Rodríguez para um mandato transitório, em junho de 2005, não permitiu nenhum avanço no tratamento dessa questão. Membros do governo boliviano limitaram-se a participar como observadores de algumas negociações do Gasoduto do Sul. Com efeito, ficou estabelecido que os fundamentos da política boliviana de petróleo e gás deveriam ser assentados pelo novo governo de Morales, a partir de janeiro de 2006. Já no que diz respeito às relações com o Chile, o governo Rodríguez reaproximou-se de Lagos e, no breve período de seis meses de mandato, deu início a um movimento de distensão. Como resultado, houve o aprofundamento do ACE-22, o estabelecimento do livre-trânsito de cidadãos entre os dois países e a adoção de uma série de projetos conjuntos nas áreas de educação e cultura. De acordo com o novo ACE-22, todos os produtos bolivianos poderão ingressar livremente no mercado chileno, com exceção do trigo e seus derivados, e do açúcar (limitado a uma quota de seis mil toneladas anuais). A abertura unilateral promovida pelo Chile marcará uma nova etapa nas relações comerciais entre os dois países, permitindo à Bolívia reverter o déficit comercial que vinha acumulando desde 1992. A assinatura desses acordos significou o restabelecimento da “confiança mútua” entre os dois países, abrindo caminho para que, em 86 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI um futuro próximo, a demanda marítima boliviana seja tratada. O ponto culminante desse movimento de reaproximação entre os dois países foi a presença do presidente Lagos na posse de Evo Morales – resultado de um esforço pessoal do recém-eleito presidente boliviano.2 Seguindo os passos de Rodríguez, Morales defendeu uma postura mais cautelosa com relação ao país vizinho, sem tentar capitalizar ganhos políticos a partir da rivalidade histórica. Sem se pretender resumir todos os argumentos da reivindicação marítima boliviana a problemas de governabilidade, é preciso reconhecer que a superação das crises políticas internas na Bolívia, bem como o início dos mandatos de Morales e Bachelet, em 2006, deverão contribuir para que o diálogo construtivo retomado no último semestre de 2005 entre Lagos e Rodríguez possa avançar. Presidentes que apenas ingressaram no cargo contam com maior margem de manobra por conta do respaldo ainda recente das urnas e podem se mostrar mais aptos a avançar nesse tema sensível. É inegável, portanto, o peso dos cenários políticos domésticos para a compreensão dos avanços e retrocessos desse processo, bem como a dimensão regional que a contenda possui. Nesse sentido, as declarações de apoio explícito à Bolívia por parte de outros Estados sul-americanos, como a promovida pela Venezuela em 2004, não contribuem muito para a sua solução. Ao contrário, inserem novos elementos de atrito na questão já conflituosa, de modo que a participação dos países vizinhos deve ser calcada em prudência. Relações internacionais: dependência econômica externa, política antidrogas e política comercial Nos últimos anos, temas fundamentais da agenda doméstica boliviana tiveram relação não só com a política regional, tal como visto na seção anterior, mas interligaram-se também à política internacional. Não 2 Essa foi a primeira visita oficial de um presidente chileno à Bolívia desde que Víctor Paz Estenssoro recebera o General Carlos Ibáñez del Campo, em 1955. 87 BOLÍVIA: INSTABILIDADE POLÍTICA E DIFICULDADE DE INSERÇÃO REGIONAL simplesmente por conta da dependência de ajuda econômica externa, que há muito se mantém, mas pela inclusão e intensificação de questões como a política antidrogas, e o livre-comércio. Dependência econômica externa A dependência da ajuda econômica externa configura-se, principalmente, em relação aos EUA e a organismos internacionais. O volume de recursos que a Bolívia recebe de países desenvolvidos e de organizações internacionais por meio de empréstimos concessionais – que possuem condições mais vantajosas de juros e prazo de pagamento – alcançou, em 2003, o montante de US$930 milhões (11,8% do PIB boliviano), ou US$103 per capita. Além do fluxo advindo de outros Estados e organismos internacionais, estima-se que cerca de US$860 milhões ingressem anualmente no país por meio de remessas de bolivianos residentes no exterior3 às suas famílias. Nesse âmbito, uma das vitórias obtidas recentemente pela Bolívia foi o perdão de sua dívida externa anunciado pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em setembro de 2005. A decisão se deu após a mobilização transnacional promovida pela Campanha Internacional Jubileu 2000 em favor do cancelamento da dívida externa de dezoito devedores, classificados como “países pobres altamente endividados” (HIPC, na sigla em inglês), dentre os quais a Bolívia é o único representante sul-americano. O perdão alcançará o montante de US$2 bilhões, o que representa 41% do endividamento externo total do 3 Frente ao sério problema de desemprego e informalidade no mercado de trabalho, um número cada vez maior de bolivianos emigra. Segundo a Chancelaria boliviana, 1.366.511 bolivianos vivem no exterior, levando em consideração apenas os cidadãos que estão em situação de migração legal. A Associação de Bolivianos no Exterior sustenta que o número total de emigrantes chega a mais de dois milhões. Os países que apresentam maior número de registro de bolivianos são: Argentina, com 947.503; EUA, com 160.323; Brasil, com 116.276; Chile, com 70.003; e Espanha, com 36.757. 90 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI Plano Colômbia. Percebe-se, então, que entre 2000 e 2004 a redução contínua das plantações colombianas de coca foi acompanhada pelo recrudescimento no Peru e na Bolívia, como resultado do que é chamado “efeito balão”.6 Com efeito, o saldo de 2004 aponta que o aumento de produção na Bolívia e no Peru neutralizou as erradicações obtidas na Colômbia, de modo que a produção global de coca se manteve praticamente estável. Além dos fatores internacionais, o fracasso no combate ao cultivo ilegal entre 2001 e 2005 também guarda relação com a esfera doméstica. As crises de governabilidade não só afetaram a possibilidade de formulação e execução de uma política sólida, como ainda impuseram ao Executivo a tomada de decisões em cenários de grande turbulência social. Nesse sentido, Evo Morales, ator importante nas manifestações pela renúncia do presidente Sánchez de Lozada, aproveitou sua força nas ruas e obteve do presidente Mesa, em outubro de 2004, um acordo admitindo o cultivo legal de 3.200 ha. no Chapare, enquanto não fosse realizado um amplo estudo para determinar a demanda real de folha de coca para uso tradicional. No período que ora se analisa, portanto, a debilidade do Estado boliviano e a falta de legitimidade dos governos prejudicaram a execução da política antidrogas. Nesse cenário, o fortalecimento político do movimento cocaleiro trouxe preocupação aos EUA, ocasionando uma série de declarações de funcionários do governo Bush nesse sentido. Mais que isso, os constantes 6 A partir de 2000, a tendência decrescente se reverteu na Bolívia e, ao fim de 2004 as plantações de coca alcançaram 27.700 ha. O maior salto se deu entre 2003 e 2004, quando a produção passou de 23.600 para 27.700 ha., com um aumento de 38% na área do Chapare, chegando a 10.100 ha., e de 7% em Los Yungas, alcançando 17.300 ha. Também entre 2000 e 2004, a produção de coca aumenta no Peru, enquanto decai continuamente na Colômbia, onde a área total de cultivo foi diminuída pela metade (de 163.300 para 80 mil ha.). Além disso, a Bolívia torna-se parte da rota do tráfico da cocaína peruana em direção a Argentina, Brasil, Chile e Paraguai. 91 BOLÍVIA: INSTABILIDADE POLÍTICA E DIFICULDADE DE INSERÇÃO REGIONAL elogios de Morales à Cuba de Fidel e à Venezuela de Chávez fizeram com que muitos em Washington identificassem Havana-Caracas-La Paz como o “eixo do mal” latino-americano, denunciando o financiamento do MAS por petrodólares venezuelanos. Ao fazê-lo, no entanto, os EUA deixaram de compreender que, ao contrário da situação colombiana, os principais atores bolivianos não eram grupos armados, mas agricultores que já se encontravam organizados em sindicatos e partidos políticos com dimensão nacional. O tema, então, exige um diálogo com esses grupos que se fortaleceram frente a violentas políticas de repressão à coca e que vêm buscando cada vez mais utilizar os canais democráticos para expressar sua demanda. Isso representa um dilema real para o relacionamento dos EUA com o futuro presidente Evo Morales, na medida em que a tentativa norte-americana de classificar todos os envolvidos nos circuitos da coca como criminosos, deixando-os de fora do jogo político, agora esbarra em seu objetivo maior de promoção da democracia. Ademais, as manifestações de membros do governo e de analistas dos EUA classificando a Bolívia de “Estado fraco”, “Estado falido” ou “narco- Estado” acabaram por suscitar nos bolivianos o sentimento unívoco de temor a uma intervenção externa. Nesse cenário, manter a estratégia de excluir ou demonizar esses novos atores poderia apenas resultar em sua radicalização, o que desestabilizaria ainda mais a democracia boliviana. Política Comercial Além da política de erradicação das drogas, a política comercial boliviana naturalmente também sofreu com os abalos políticos internos. No período, o país não obteve êxito em conquistar mercado para os dois principais produtos de sua pauta de exportação – o gás natural e a soja –, além de colocar em risco a manutenção das exportações de produtos manufaturados aos EUA. Desde outubro de 2002, a Bolívia possui preferências em seu comércio com os EUA, com base na Lei de Promoção Comercial e 92 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI Erradicação de Drogas na Região Andina (Andean Trade Promotion and Drug Eradication Act – ATPDEA),7 que prevê o livre acesso ao mercado norte-americano para mais de cinco mil produtos exportados pelos países andinos, exigindo, como contrapartida, o compromisso desses com a erradicação de drogas. O acordo, que favorece principalmente a exportação de produtos têxteis e manufaturas em couro e madeira produzidos da área industrial de El Alto, expira ao final de 2006. Tendo em vista dar continuidade às preferências, bem como aprofundar a integração comercial, e admitindo as dificuldades no avanço da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA), os EUA deram início, em maio de 2004, à negociação de um tratado de livre-comércio (TLC) com os países andinos. No entanto, a Bolívia, por mais que se interessasse em fazer parte do TLC, participou das negociações com status de país observador, visto que ainda não havia aprovado sua nova lei de hidrocarbonetos, tal como exigido pelo governo norte-americano. Com a morosidade nas negociações do TLC, o governo dos EUA adotou nova estratégia bilateral, concluindo as negociações separadamente com o Peru, em dezembro de 2005, e a Colômbia, em fevereiro de 2006. Com isso, a Bolívia perdeu não só em sua inserção e integração política com os demais países da região andina, mas também terá prejuízos substantivos em seus principais mercados de soja, cuja exportação, em 2005, movimentou cerca de US$450 milhões. Apesar da crescente demanda mundial pelo grão, a Bolívia, carente de boa infra- estrutura para o escoamento de seus produtos, não tem como vender a preços competitivos em mercados mais distantes. O principal destino da soja boliviana tornou-se, então, os seus vizinhos andinos com os quais possui livre acesso, no marco da Comunidade Andina de Nações (CAN). O TLC assinado por Peru e Colômbia com os EUA assegura 7 O ATPDEA havia sido aprovado em 6 de agosto de 2002 pelo Congresso norte- americano. Antes dele, de 1998 a 2001, a Bolívia teve preferências no comércio com os EUA por conta da Lei de Preferência Comercial para a Região Andina (Andean Trade Preference Act - ATPA). 95 BOLÍVIA: INSTABILIDADE POLÍTICA E DIFICULDADE DE INSERÇÃO REGIONAL 24 de janeiro – Evo Morales (MAS) perde a imunidade parlamentar em votação na Câmara dos Deputados, sob a acusação de promover subversão nos conflitos entre cocaleiros e forças de segurança que resultaram em 28 mortes durante o mês de janeiro. 5 de maio – O ex-presidente Hugo Banzer Suárez falece. 7 de junho – Chega a La Paz a marcha de milhares de índios guarani, tupi-guarani e quéchua, membros da Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (CIDOB), reivindicando a convocação de uma Assembléia Constituinte. 30 de junho – Eleições gerais para presidente, vice-presidente, deputados e senadores. Disputarão o segundo turno Gonzalo Sánchez de Lozada (MNR) e Evo Morales (MAS). 4 de agosto – Em segundo turno indireto, no Congresso, o candidato Gonzalo Sánchez de Lozada (MNR) é eleito presidente, em aliança com o MIR, a ADN, a UCS, e o Movimento Bolívia Livre (MBL). 6 de agosto – Toma posse o presidente eleito, Gonzalo Sánchez de Lozada (MNR). 25 de setembro – Os EUA anunciam a renovação e expansão de preferências tarifárias a Bolívia, Colômbia e Peru, com base na Lei de Promoção Comercial e Erradicação de Drogas na Região Andina (ATPDEA). 2003 8 de janeiro – Pensionistas, trabalhadores do setor de transportes, camponeses, cocaleiros, membros do Movimento dos Sem Terra (MST) e do MAS protestam por aumento nas pensões. No confronto entre 96 A AGENDA SUL-AMERICANA: MUDANÇAS E DESAFIOS NO INÍCIO DO SÉCULO XXI manifestantes e forças de segurança, onze pessoas morrem. 11 e 12 de fevereiro – Em La Paz, protestos populares contra as políticas de austeridade do governo resultam em 33 mortos e vários feridos, além de saques generalizados e incêndios em prédios públicos. 18 de fevereiro – Os graves conflitos sociais provocam a renúncia coletiva do gabinete do presidente Sánchez de Lozada. 28 de março – O presidente Sánchez de Lozada declara estado de alerta nacional e afirma ter abortado uma tentativa de golpe de Estado articulado para acontecer em abril, e sobre o qual fora alertado por autoridades norte- americanas. 3 de junho – O presidente Sánchez de Lozada convoca o Congresso em sessão extraordinária atendendo à demanda de parlamentares do MAS e do Movimento Indígena Pachakuti (MIP), que promoviam uma greve de fome desde 29 de maio. 5 de agosto – Coalizão do governo de Sánchez de Lozada ganha adesão da NFR, liderada por Manfred Reyes Villa. Setembro e outubro – Intensas manifestações populares contra o projeto de exportação do gás natural boliviano aos EUA e ao México por um porto chileno resultam em mais de sessenta mortos e quinhentos feridos. 17 de outubro – O presidente Sánchez de Lozada renuncia e parte para o exílio nos EUA. Após a aprovação de sua renúncia pelo Congresso, o vice-presidente Carlos Mesa Gisbert assume a Presidência da República. 14 de novembro – Em Santa Cruz de la Sierra, a XIII Cúpula Ibero- Americana reúne os dezenove chefes de Estado dos países latino-americanos, da Espanha e de Portugal. 97 BOLÍVIA: INSTABILIDADE POLÍTICA E DIFICULDADE DE INSERÇÃO REGIONAL 16 de dezembro – Assinatura de TLC entre o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN), durante a Cúpula de Montevidéu. 2004 12 de janeiro – O presidente Mesa apresenta a demanda marítima boliviana como um problema de âmbito multilateral durante a Reunião Extraordinária da Cúpula das Américas, em Monterrey. 20 de fevereiro – Aprovação da reforma da Constituição, que passa a contemplar a possibilidade de realização de referendo e de convocação da Assembléia Constituinte, além de estabelecer a desmonopolização da representação partidária. 13 de abril – O presidente Mesa convoca referendo vinculante sobre o gás natural. 18 de julho – Realização do referendo nacional sobre a política de exploração de petróleo e gás natural. 30 de julho – Com base no resultado do referendo nacional, o presidente Mesa apresenta projeto de lei de hidrocarbonetos ao Congresso. 11 de agosto – Os presidentes do Peru, Brasil e Bolívia inauguram a Ponte da Amizade em Cobija, na Bolívia. 9 de setembro – Devido à rejeição, pelo Congresso, do projeto de lei de hidrocarbonetos enviado em julho, o presidente Mesa encaminha um novo texto ao Legislativo. 15 de outubro – O Congresso autoriza o início do processo criminal contra o ex-presidente Sánchez de Lozada e seus quinze ministros, que responderão perante a Suprema Corte de Justiça à acusação de genocídio pelas mortes e agressões ocorridas em outubro de 2003.
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